segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Aristides de Sousa Mendes: a queda de um mito (i)

Escrito pelo embaixador Carlos Fernandes





Veio finalmente a lume, numa edição de autor, o livro intitulado O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira (2013), assinado pelo embaixador Carlos Fernandes. Trata-se, na sua essência, de uma desmitificação da figura de Sousa Mendes enquanto herói salvador de milhares de refugiados no eclodir da Segunda Guerra Mundial, entre os quais um grande número de judeus, bem como da reposição da verdade histórica falsificada no plano de uma campanha interna e internacional que não poupa a pessoa impoluta e aristocrática de Oliveira Salazar, assim como membros do Ministério dos Negócios Estrangeiros e outras figuras no contexto afim.

Na verdade, não foram os judeus que iniciaram o movimento de mitificação de Sousa Mendes, mas sim os políticos portugueses e americanos com Bessa Lopes, Rui Afonso, Tony Coelho e Jaime Gama à cabeça.

Ainda assim, a mitificação de Sousa Mendes começou por ter o apoio das autoridades israelitas com base numa suposta investigação levada a cabo pelo Centro Vashem de Jerusálem, que concede, em casos alegadamente estudados e provados, «o título de Gentio Justo a todos os não judeus que salvaram judeus durante a guerra» (cf. José-Alain Fralon, Aristides de Sousa Mendes: Um Herói Português, Editorial Presença, 1999, p. 108). Ora, nós não sabemos que investigação foi verdadeiramente realizada para que, a 21 de Fevereiro de 1961, fosse plantada uma árvore no Museu de Yad Vashem – mais particularmente na Álea dos Justos – em memória de Aristides de Sousa Mendes. E também não compreendemos como se poderá sustentar uma campanha internacional que na actualidade se destina a angariar 2000 vistos concedidos por Aristides enquanto cônsul em Antuérpia, visto que, como reconhece o embaixador Carlos Fernandes, tudo aponta para mais uma descarada mentira que oculta o facto de o cônsul de Portugal ter saído «de Antuérpia em meados de 1938, dois anos antes do começo da 2.ª grande guerra no Ocidente, com a invasão da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França, em 10 de Maio de 1940, pelas tropas de Hitler» (cf. Carlos Fernandes, op. cit., 1.ª edição, 2013, p. 323).

Em Portugal, a mitificação de Aristides parece ter começado em 1976 com um diplomata de cinquenta e nove anos, Nuno Álvares Adrião de Bessa Lopes, que teria proposto a reabilitação do cônsul a uma comissão para a reintegração de funcionários do Estado, que a recusou . E é então que entra em cena Melo Antunes que terá ordenado que se estudasse o caso com vista à criação de uma campanha anti-salazarista pós-abrilina. E nisto, o testemunho do embaixador Carlos Fernandes não deixa margem para dúvidas, uma vez que, na qualidade de dirigente dos Serviços Jurídicos do MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] no Verão de 1981, deu com Bessa Lopes no seu gabinete nas circunstâncias por ele próprio descritas:

«Trazia o Dr. Bessa Lopes na mão, sem qualquer processo, um papel de informação, em que fazia considerações laudatórias hiperbólicas sobre Aristides, acusando Salazar de o perseguir e de o ter privado de vencimentos, atirando-o para a miséria. Fiquei perplexo, pois isto não condizia com os conhecimentos que eu tinha de Sousa Mendes e do seu último processo, adquiridos muitos anos antes, em 1948. Bessa Lopes não me disse então que o embaixador Medina se tinha recusado a homologar a sua pseudo-informação, mas queria que eu a homologasse. Omitia-me um facto muito importante.





O Dr. Bessa Lopes nunca conhecera nem lidara com Sousa Mendes – pelo menos foi o que então me disseram –, e era considerado no MNE por ser da extrema-direita, sem carreira brilhante mas com boa classificação em Ciências Jurídicas da Universidade de Coimbra. Tinha até apresentado como estudo para o seu concurso de acesso a ministro plenipotenciário, que já era, um trabalho sobre o apartheid na República da África do Sul, onde estivera como cônsul, defendendo esse apartheid, ao contrário da política tradicional do MNE, que era e é contrária à discriminação racial.

Disse-lhe que a sua proposta de informação, que ninguém lhe mandara fazer, sendo assim da sua exclusiva iniciativa – o que não era normal no MNE – me surpreendia de tal maneira que eu iria estudar o processo Sousa Mendes, que não conhecia, e depois o chamaria.

Pedi logo o processo. Estudei-o, verificando que já lhe faltavam algumas peças, e conclui que a proposta de informação de Bessa Lopes era, sobretudo, um tremendo ataque a Salazar, o que voltou a surpreender-me profundamente, vindo de quem sempre me constara ser direitista, e um embuste pretensamente a favor de Sousa Mendes.

Alguns dias depois, chamei Bessa Lopes, e disse-lhe que não lhe homologaria a informação, por considerá-la desonesta, e que o dispensaria imediatamente de trabalhar nos serviços que eu dirigia – vim então a saber que o meu colega Medina já tinha recusado homologar-lhe aquela proposta de informação. Não o despediria formalmente, dado o nosso anterior relacionamento – eu até os tinha recebido na minha Embaixada no México, a ele e à mulher –, mas impunha-lhe que fosse falar de urgência com o Secretário-Geral e lhe pedisse para mudar de serviço, o que aconteceu.

Bessa Lopes, após o 25 de Abril, ele, e mais alguém da sua família, teriam virado comunistas – não sei se assim foi ou não; do que não há dúvida é que mudou radicalmente de orientação política. Terá o ataque a Salazar sido a prova de admissão, ou de confirmação, de Bessa Lopes no partido político extremista de Álvaro Cunhal? Houve no MNE quem me garantisse que sim. Eu, contudo, não sei. Mas, se isto corresponder à verdade, que miséria humana, meu Deus! Como é possível que se baixe tão baixo?

Eu só menciono esta hipótese porque não encontro explicação racional, ou moralmente aceitável, para o que Bessa Lopes fez, e quer tenha sido ele ou não quem voltou a pôr o seu papel no dossier. Do que também não há dúvida é que alguém o colocou lá, de forma irregular e sub-reptícia.

Teve azar em dar com o embaixador Medina e comigo. De contrário, teríamos um documento oficial do MNE a consagrar as maiores barbaridades a respeito de Salazar, de quem é legítimo gostar ou não gostar, concordar ou não com a sua política, mas já não é legítimo atacá-lo injustamente.

Mandei retirar o papel do processo (dossier), porém, ou não o retiraram, o que duvido, dada a confiança que os meus colaboradores administrativos me mereciam, designadamente, a arquivista, a competente e moralmente impecável Alice, ou alguém voltou a colocá-lo lá, pois assisti, há anos, à invocação dessa pseudo-informação por um dos netos de Aristides, como fundamento indiscutível do martírio sofrido por este cônsul às mãos ditatoriais de Salazar.

E assim se faz a história!» (Carlos Fernandes, op. cit., pp. 64-67).




Tony Coelho



Mas há mais: esta campanha interna e internacional em prol de Aristides não somente teve e continua a ter motivações de índole política, mas também de ordem económico-financeira. Temos, pois, o caso da filha Joana, que tentou, durante mais de 20 anos, «obter uma indemnização, por causa da injustiça que Salazar teria praticado contra o pai, e, o que é certo é que, depois de mover céus e terra, conseguiu-a, embora não a viesse a receber directamente» (ibidem, p. 263). Há também o caso de um dos filhos mais novos de Aristides, João Paulo, que «acabou por ser o factor decisivo do início internacional de apoio à tese da salvação dos judeus, levando Tony Coelho, que então dominava a Câmara dos Representantes nos USA, a encabeçar, a sério, ali, uma campanha entusiasta a favor do protector, se não salvador, de milhares de judeus, em perigo de vida.

E porquê este apoio delirante de Tony Coelho?

Porque queria o suporte do poderosíssimo lobby judaico nos USA para as suas ambições políticas, que terminaram na Câmara dos Representantes porque, politicamente, morreu cedo. Meteu-se em aventuras financeiras, e, como consequência, morreu politicamente, embora continue fisicamente vivo» (ibidem, p. 263).

E como se não bastasse, uma vaga de procedimentos maioritariamente ilegais se sucederiam para estabelecer uma das maiores mentiras impostas ao mundo em geral, e ao povo português em particular, a saber:

1. A primeira cerimónia oficial de reabilitação de Aristides levada a cabo por Mário Soares, então Presidente da República Portuguesa, na Embaixada de Portugal em Washington (24 de Maio de 1987), condecorando-o, a título póstumo, com a Ordem da Liberdade. E tudo sob a pressão dos «lobbies políticos, português e americano (Tony Coelho e as suas delegações do Congresso Americano)» (ibidem, p. 253);

2. A reintegração de Sousa Mendes como ministro plenipotenciário de 2.ª classe que a Assembleia da República votou por unanimidade a 13 de Março de 1988;

3. A homenagem em Bordéus, num Domingo, a 29 de Maio de 1994, rendida a Sousa Mendes pelo Presidente da República, Mário Soares, e pela esposa Maria Barroso em conjunto com as autoridades da cidade: o prefeito Landouzy, Claudine Geissmann, co-presidente do B’nay Brith na capital girondina, Alexis Banayan, presidente do consistório, Dmitri Lavroff, adjunto do presidente da Câmara, e os embaixadores de Portugal e de Israel (cf. José-Alain Fralon, op. cit., p. 113);

4. A indemnização aos filhos de Aristides baseada numa suposta demissão ou aposentação compulsiva. No fundo, um falso humanitarismo destinado a encobrir interesses particulares à custa de uma substancial verba obtida pelo Estado a título de indemnização, quando, na realidade, «o Governo de Salazar agiu na mais perfeita legalidade» (cf. Carlos Fernandes, op. cit., p. 252).






Consequentemente, a mentira é tão vasta e traiçoeira que até foi criada uma banda desenhada – Bordeaux dans la tourmente, de Jocelyn Gille – com várias páginas consagradas a Aristides de Sousa Mendes . Por outro lado, em Outubro de 1996, a companhia do Teatro de Portalegre foi ao ponto de representar em Bordéus a peça Aristides, O Cônsul que Desobedeceu, da autoria de António de Moncada de Sousa Mendes, neto de Aristides. E «no Neguev, há uma mata com 10 000 árvores [alusão ao número de judeus supostamente salvos pelo cônsul] que tem o nome de Sousa Mendes, o mesmo acontecendo com uma praça em Telavive. Em Portugal há agora oito ruas Sousa Mendes e uma escola secundária, na Póvoa de Santa Iria, nos arredores de Lisboa. Parece até que se pensou em dar o seu nome à nova ponte sobre o Tejo [Ponte Vasco da Gama], inaugurada em 1998. Em Montreal, num parque infantil, há uma placa que conta a história deste grande homem» (cf. José-Alain Fralon, op. cit., p. 112).

Neste contexto assaz delirante, até o universitário Adriano Moreira, em entrevista directa a José-Alain Fralon, afirmou que Sousa Mendes «atacou um princípio até então absoluto: a legitimidade de origem tem de ser obedecida. O Tribunal de Nuremberga estabeleceu que somos responsáveis perante os princípios e que não podemos ir contra os valores humanos. A grandeza de Sousa Mendes foi ter obedecido aos valores da humanidade» (cf. José-Alain Fralon, op. cit., p. 116). E não menos delirante foi o facto de José Miguel Júdice ter propalado uma grandíssima atoarda, para não dizer uma inaudita judiaria quando entendeu, no âmbito do programa televisivo da RTP1 - «Os Grandes Portugueses» (2006/2007) –, defender levianamente o «Wallenberg português» sem apresentar as documentadas provas dos supostos factos aventados. Logo, caso nos venham dizer que o Grande Português escolhido se explica com base num protesto da maioria dos Portugueses quanto à situação de calamidade a que os políticos do pós-25 de Abril conduziram Portugal, diremos, por contrapartida, que a principal razão encontra-se plenamente explícita nas palavras do embaixador Carlos Fernandes: «EleOliveira Salazarvia as consequências das consequências das consequências» (cf. Carlos Fernandes, op. cit., p. 290).

Miguel Bruno Duarte





A Invenção dos 30.000 Vistos dos quais 10.000 para Judeus (i)


Os textos que ora apresentamos - extraídos do livro do embaixador Carlos Fernandes - são apenas um aperitivo sobre o assunto em questão. Por conseguinte, aconselha-se vivamente a aquisição e a leitura do livro.


No visto a Spett, que vem reproduzido na capa do livro de Rui Afonso que estamos comentando, e que foi concedido em 18 de Junho de 1940 - num dos dias da ira -, e com a taxa de 180.80 francos, não se vê o respectivo número. Pelo menos eu não consigo descortiná-lo. O número que lá se vê (630 e tal) é certamente do Consulado do Haiti, que primeiro lhe dera visto. Não pode ser o do português porque, já em 17 de Maio de 1940, Aristides dera, com os números, respectivamente, de 816 e 817, vistos a Jacques Osterreicher e à mulher Kaethe (...).

E, com o número 2.245, temos o visto a Fredrich (Kantor) Torberg em 19 de Junho, portanto, no último dia de Aristides como cônsul efectivo em Bordéus, e último dos três dias da ira em Bordéus.

Assim, o número do visto dado a Spett, regularmente pago, tem de estar entre 2.000 e 2.100, mais ou menos. Não precisou de consulta a Lisboa, porque já tinha visto do Haiti.

Quer dizer que, desde o princípio do ano até ao fim do dia 19 de Junho, não se chegaram a dar 2.500 vistos no Consulado de Bordéus.






Quem só ler Rui Afonso e acreditar em tudo o que ele diz ou insinua, ficará provavelmente com a ideia de que só Bordéus e, depois, Bayonne, é que deram vistos consulares para Portugal nos começos da 2.ª grande guerra.

Ora, isto é completamente errado, estando muitíssimo longe de ser assim.

De facto, no caminho do avanço das tropas alemãs, nós tínhamos em funcionamento ( e ainda temos), entre outros em França, os seguintes postos consulares:

a) dois na Holanda: um em Roterdão, e outro na Secção Consular da Legação da Haia;
b) um na Bélgica, em Antuérpia;
c) um em Paris.

Tudo isto muito antes de se chegar a Bordéus ou Bayonne. Todos estes postos consulares deram muitos vistos, como qualquer pessoa normal perceberá que terão de ter dado, pois não há qualquer razão para os refugiados só estarem à espera de obterem vistos em Bordéus e Bayonne (ainda não se sabia que Aristides facilitava vistos).

Portanto, a grande vaga de refugiados que procura Portugal através da França não engloba apenas os que obtiveram vistos em Bordéus e Bayonne, longe disso.

Por outro lado, se atendermos ao número de telegramas do MNE para Bayonne (1.999 até 25 de Junho de 1940), concluiremos que também aproximadamente esse número de vistos sob consulta a Lisboa ali foi dado. Isto é, um número muito próximo dos vistos dados em Bordéus em igual período (cerca de 2.500, entre regulares e irregulares).

Os números avançados pelos panegiristas de Aristides, e não por ele, não só são impossíveis materialmente como não têm nada que ver com o número de vistos dados até ao de Torberg, em 19 de Junho de 1940, com o número de 2.245, último dos três dias da ira, em Bordéus, como já referimos.

Portanto, e resumindo, a 17 de Maio de 1940, Bordéus ainda só ia no número 847. Em 18 de Junho concede-se visto a Spett, de que não sabemos o número exacto. E, em 19 de Junho, dá-se visto a Torberg, com o número 2.245. Estamos apenas a repetir a situação já analisada no capítulo anterior, porque é um ponto muito importante, relativamente à aldrabice dos 30.000 vistos.

Então, como se explica o mito dos supostos 30.000 vistos dos quais 10.000 a judeus, uma vez que Aristides nunca os mencionou?

Muito simplesmente, como vamos ver.

O mito dos 10.000 judeus tem por base uma carta do judeu Ilja Dijour, e nasceu em 1960, 20 anos depois dos factos ocorridos em Bordéus. Os mitos são assim. Levam tempo a nascer.




Como temos reiterado, quanto ao caso Sousa Mendes, tem-se praticado o método de transpor o futuro para o passado, sem o menor pudor, o que, além de ser manifestamente abusivo, induz em erro, o que, antes de mais, é vergonhoso. O que Hitler fez dois anos depois, Aristides já o sabia e vivia em Junho de 1940!

Rui Afonso diz-nos que Ilja Dijour e a mulher terão recebido vistos de Aristides em Bordéus, não indicando a data, mas admitamos que sim. Ora, numa carta de Ilja para Robert Magidoff, datada de 19 de Maio de 1960, aquele dirá que 10.000 judeus terão assim obtido refúgio em Portugal. Parece querer insinuar~se que Aristides teria dado este número de vistos a judeus. Mas isto não é verdade. Nem poderia sê-lo.

Esta carta virá reproduzida na edição de 1968 do livro de Sebastião Mendes, Flight Through Hell (v. RA., p. 199 e nota a esta página). Claro, tinha que ser Sebastião!

Parte daqui, e sobretudo de Sebastião, o aproveitamento do número de 10.000 judeus, salvos por Sousa Mendes! É que eu conheci Sebastião, e posso avaliá-lo.

Ora nós já vimos estar provado que Aristides, em Bordéus, nem sequer chegou aos 2.500 vistos durante todo o meio ano de 1940, até ser destituído em 23 de Junho, incluindo os três dias da ira.

Eu não vi a carta nem o livro de Sebastião Mendes, nem posso ver, e, por isso, não sei se Dijour mente descaradamente, ou se, mais ou menos correctamente, se refere aos judeus que, procedentes de França, chegaram a Portugal em 1940.

Nesta tarefa de mitificação de Sousa Mendes, toda a gente se esquece de provar a veracidade do que diz, dando lugar a uma dúvida razoável quanto a tudo o que a seu respeito se propala. Por exemplo, o número de 30.000 vistos em Bordéus, além de ser uma impossibilidade material e estar completamente desmentido pelo número de vistos registados até à destituição de Aristides, continua a propalar-se como axioma. São persistentes, e a mentira não os impressiona. Mentem descaradamente.

Mas, então, como nasceu esta magna falácia? Vamos dizê-lo, desde já.







O Prof. Francisco Leite Pinto introduziu em Portugal, através de Espanha, pelo Sud Express, com a conivência dos espanhóis, cerca de 30.000 refugiados, provindo da fronteira franco-espanhola.

Ouvi-lhe contar esta linda peripécia da segunda grande guerra várias vezes, uma delas na presença de Sam Levy, durante um dos nossos almoços das 4.ªs feiras no Círculo Eça de Queiroz.

Ora bem, o que é que aconteceu?

Francisco Leite Pinto era Presidente da Companhia de Caminhos de Ferro da Beira Alta, onde circulava o Sud Express, a cujo conselho de administração também pertencia o Doutor Mário de Figueiredo.

A certa altura, havia elevado número de refugiados na fronteira franco-espanhola a quererem chegar a Portugal através de Espanha.

Os espanhóis, por razão política, não queriam dar-lhes passagem pública, e muito menos vistos para o fazerem tranquilamente por qualquer meio de transporte, à vontade de cada um, por onde quisesse.

Perante isto, como estavam fortemente pressionados na fronteira franco-espanhola e não se importavam nada que toda aquela pobre gente viesse para Portugal, ponto de partida eventual para outros destinos, os espanhóis abordaram o Governo português, a fim de saberem se aqueles refugiados poderiam viajar clandestinamente no Sud Express até Portugal. O Governo português, não precisando de Aristides para o fazer, concordou, passando o problema e a sua resolução prática a Leite Pinto, de quem Salazar gostava muito. Este, casado com uma russa que conhecera em Paris quando ali se especializava, e que era refugiada da URSS comunista, era particularmente sensível a estas misérias humanas.

Foi assim como ele combinou com os seus colegas espanhóis o transporte clandestino de toda aquela gente no Sud Express, a qual não podia sequer exibir-se nas estações de caminho de ferro espanholas. Viajavam mesmo clandestinamente.

Como o número redondo destes refugiados se aproximava dos 30.000, logo os mitologistas de Aristides, quando o conheceram, se aproveitaram dele, sem sequer se darem ao trabalho de verificar se tal número era compatível com o número de vistos registados por Aristides (já vimos que esse número nem a 2.500 chegou).


(...) É provável, se não mesmo certo, que as críticas duras que alguns refugiados fizeram ao transporte de comboio para Portugal, e que Rui Afonso refere, tenham por base a forma clandestina e certamente muito espartana, não em 1.ª classe com cama, como Leite Pinto, gratuitamente, os transportou até Portugal (v. RA., p. 196).

É de notar que na fronteira franco-espanhola se juntara gente vinda da Holanda, Bélgica, Luxemburgo, e sobretudo de França. Os que viajavam normalmente tinham as boas comodidades habituais, como é óbvio.

Leite Pinto, um dos meus melhores amigos, que visitei no Estoril quase até morrer, alegrando-me com a sua conversação, era um homem de altíssimo gabarito intelectual, cultural e moral. Lia e lia tudo quanto há, e até achava gosto em ler as minhas deduções jurídicas! Não era homem de boatos ou de vaidadezinhas. tinha um pensamento robusto e uma cultura invulgar, de carácter humanista. Era a nossa alegria no Círculo Eça de Queiroz, tendo sempre coisas curiosas e agradáveis para contar. Senti muito a sua morte, mesmo muito.

Nunca quis averiguar quem era judeu dentre a multidão de refugiados que transportou para Portugal, e, portanto, nunca soube qual a percentagem de judeus e não judeus incluída naquelas cerca de 30.000 pessoas, de cujo número os panegiristas de Sousa Mendes se apropriaram logo que o conheceram, inventando também, como vimos, 10.000 judeus.

A história tem coisas muito curiosas e esta é uma delas. Como se faz perdurar uma mentira do tamanho do Everest?!

Como é difícil ater-se à verdade histórica! (in O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, edição de autor, 2013, pp. 117-124).

Continua


2 comentários:

  1. Valente artigo!
    O colega Diogo tem no blogue dele também alguns artigos sobre este fulano.

    http://citadino.blogspot.pt/search/label/Israel

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  2. Valiosa peça, que todos os vendedores de mentiras se recusam admitir. Cabe acrescentar que A.S.M.se fez cobrar dos vistos concedidos, gastando desmesuradamente,sem acautelar o futuro da própria família. Impõe-se a reposição da verdade e anulação de todas as condecorações concedidas.

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