«...A velhice é, segundo o famoso Índio inventado por Castaneda, o quarto inimigo do guerreiro...».
António Telmo
«MEUS LIVROS SÃO UM RELATO VERDADEIRO DE UM MÉTODO DE ensino que Don Juan Matus, um feiticeiro índio mexicano, usava para me ajudar a compreender o mundo dos feiticeiros. Nesse sentido, meus livros são o relato de um processo contínuo que se torna mais claro para mim à medida que o tempo passa.
(...) Em seu esquema de ensino, o qual foi desenvolvido por feiticeiros de tempos antigos, havia duas categorias de instrução. Uma era chamada de "ensinamentos para o lado direito", desenvolvida no estado normal da consciência. A outra era chamada de "ensinamentos para o lado esquerdo", posta em prática apenas em estados de consciência intensificada.
Essas duas categorias permitiam que os mestres ensinassem a seus aprendizes em três áreas de habilidades: a mestria da consciência, a arte da espreita e a mestria do intento.
Essas três áreas de habilidade são os três enigmas que os feiticeiros encontram em sua busca ao conhecimento.
A mestria da consciência é o enigma da mente; a perplexidade que os feiticeiros experimentam quando reconhecem o mistério espantoso e o alcance da consciência e da percepção.
A arte da espreita é o enigma do coração; a perplexidade que os feiticeiros sentem ao se tornarem conscientes de dois factos; primeiro, que o mundo parece para nós inalteravelmente objectivo e factual, por causa das peculiaridades de nossa consciência e percepção; segundo, que, se diferentes peculiaridades de percepção entram em jogo, as mesmas coisas desse mundo que parecem tão inalteravelmente objectivas e factuais mudam.
A mestria do intento é o enigma do espírito, ou o paradoxo do abstracto - os pensamentos e acções dos feiticeiros projectados além da nossa condição humana.
A instrução de Don Juan quanto à arte da espreita e à mestria do intento dependia de sua instrução sobre a mestria da consciência, que era a pedra fundamental de seus ensinamentos e que consistia nas seguintes premissas básicas:
1. O universo é uma aglomeração infinita de campos de energia, semelhantes a filamentos de luz.
2. Esses campos de energia, chamados de "emanações da Águia", irradiam de uma fonte de proporções inconcebíveis, metaforicamente denominada Águia.
3. Os seres humanos também são compostos de um número incalculável desses mesmos campos de energia em forma de filamentos. Essas emanações da Águia formam uma aglomeração encapsulada que se manifesta como uma esfera de luz do tamanho do corpo da pessoa com os braços estendidos lateralmente, como um ovo luminoso gigantesco.
4. Apenas um grupo muito pequeno de campos de energia no interior dessa esfera luminosa é aceso por um ponto de brilho intenso localizado na superfície da esfera.
5. A percepção ocorre quando os campos de energia desse pequeno grupo imediatamente ao redor do ponto de brilho estendem sua luz para iluminar campos de energia idênticos no exterior da esfera. Uma vez que os únicos campos de energia perceptíveis são aqueles iluminados pelo ponto brilhante, esse ponto é chamado de "o ponto onde a percepção é aglutinada", ou simplesmente "o ponto de aglutinação".
6. O ponto de aglutinação pode ser movido de sua posição usual sobre a superfície da esfera luminosa para outra posição na sua superfície ou no seu interior. Uma vez que o brilho do ponto de aglutinação pode iluminar qualquer campo de energia com o qual entre em contacto, quando se move para uma nova posição ele ilumina de imediato novos campos de energia, tornando-os perceptíveis. Essa percepção é conhecida como ver.
7. Quando o ponto de aglutinação se desloca, torna possível a percepção de um mundo inteiramente diferente - tão objectivo e factual como aquele que normalmente percebemos. Os feiticeiros entram nesse outro mundo para obter energia, poder, soluções para problemas gerais e particulares, ou para encarar o inimaginável.
8. Intento é a força penetrante que nos faz perceber. Não nos tornamos conscientes porque percebemos; antes, percebemos como resultado da pressão e intrusão do intento.
9. O objectivo dos feiticeiros é atingir um estado de consciência total, de modo a experimentar todas as possibilidades de percepção disponíveis ao homem. Esse estado de consciência contém até uma maneira alternativa de morrer».
Carlos Castaneda («O Poder do Silêncio»).
O salto mortal do pensamento
Quando ouço as palavras - manifestou-se Don Juan quando terminei de ler -, sinto que aquele homem está vendo a essência das coisas e posso ver com ele. Não me importo sobre o que seja o poema. Importo-me apenas sobre o sentimento que os anseios do poeta trazem até mim. Tomo emprestado seus anseios, e com eles aproprio-me da beleza. E me maravilho diante do facto de que ele, como um verdadeiro guerreiro, ofereça generosamente tudo isso às pessoas, retendo para si mesmo apenas sua ansiedade. Esse golpe, esse choque de beleza, é espreitar.
Eu estava muito comovido. A explicação do Don Juan tocara uma corda estranha em mim.
- Diria, Don Juan, que a morte é o único inimigo real que temos? - perguntei-lhe um momento depois.
- Não - respondeu com convicção. - A morte não é um inimigo, embora cause essa impressão. A morte não é nosso destruidor, embora pensemos que seja.
- O que é, então, senão destruidor?
- Os feiticeiros consideram a morte como o único oponente valoroso que temos. A morte é nosso desafiante. Nascemos para aceitar esse desafio, homens comuns ou feiticeiros. Os feiticeiros têm consciência disso: os homens comuns não.
- Eu pessoalmente diria, Don Juan, que a vida, e não a morte, é desafio.
- A vida é o processo pelo qual a morte nos desafia - disse ele. - A morte é a força activa. A vida é a arena. E nessa arena há apenas dois contendores em qualquer época: o próprio indivíduo e a morte.
- Eu pensaria, Don Juan, que nós, seres humanos, somos os desafiantes.
- De maneira alguma - retorquiu ele. - Somos passivos. Pense a respeito. Se nos movemos, é apenas quando sentimos a pressão da morte. A morte estabelece o ritmo de nossas acções e nossos conhecimentos, e empurra-nos incansavelmente até que nos derrota e ganha a luta, ou então nos elevamos acima de todas as possibilidades e derrotamos a morte.
"Os feiticeiros derrotam a morte, e a morte reconhece a derrota, deixando que os feiticeiros partam livres, para nunca mais serem desafiados."
- Isso significa que os feiticeiros se tornam imortais?
- Não. Não é isso - replicou ele. - A morte deixa de desafiá-los. Isso é tudo.
- Mas o que significa isso, Don Juan?
- Significa que o pensamento deu um salto mortal para o inconcebível.
- O que é um salto mortal do pensamento para o inconcebível? - perguntei tentando não soar beligerante. - O problema que você e eu temos é que não partilhamos dos mesmos significados.
- Você não está sendo verdadeiro - interrompeu Don Juan. - Você compreende o que quero dizer. Para você, pedir uma explicação racional para "um salto mortal do pensamento para o inconcebível" é ridículo. Você sabe exactamente o que é.
- Não, não sei.
Então percebi que sabia, ou melhor, que intuía o que significava. Havia alguma parte de mim que podia transcender minha racionalidade e compreender e explicar, além do nível de metáfora, um salto mortal do pensamento para o inconcebível. O problema era que essa parte de mim não era forte o suficiente para emergir à vontade.
Expliquei isso a Don Juan, que riu e comentou que minha consciência era como um ioiô: às vezes subia a um ponto elevado e meu domínio era apurado, enquanto outras vezes descia, e eu me tornava um idiota racional. Mas, durante a maior parte do tempo, pairava numa média baixa onde eu não era nem uma coisa nem outra.
- Um salto mortal do pensamento para o inconcebível - explicou ele com ar de resignação - é a descida do espírito; o acto de quebrar nossas barreiras perceptivas. É o momento no qual a percepção do homem atinge os seus limites. Os feiticeiros praticam a arte de enviar corredores, batedores avançados, para testar nossos limites perceptíveis. Essa é outra razão pela qual gosto de poemas. Tomo-os como batedores avançados. Mas, como lhe disse antes, os poetas não sabem tão exactamente quanto os feiticeiros o que esses batedores avançados podem realizar.
No início, Don Juan disse que tínhamos muitas coisas a discutir e perguntou-me se eu queria sair para uma caminhada. Eu me encontrava num estado mental peculiar. Mais cedo havia notado em mim uma estranha indiferença que ia e vinha. No início pensei que fosse a fadiga física nublando meus pensamentos. Mas meus pensamentos eram cristalinamente claros. Assim fiquei convencido de que meu estranho alheamento era um produto de minha mudança para a consciência intensificada.
Deixámos a casa e demos uma volta ao redor da praça da cidade. Mais que depressa, perguntei a Don Juan sobre minha indiferença, antes que ele tivesse a chance de começar qualquer outra coisa. Explicou isso como uma mudança de energia. Disse que a energia que era extraordinariamente usada para manter a posição fixa do ponto de aglutinação ficara libertada, focalizara-se automaticamente naquele elo de conexão. Assegurou-me que não havia técnicas ou manobras que um feiticeiro pudesse aprender por antecipação para mover a energia de um lugar para outro. Antes, era questão de uma mudança instantânea acontecendo, uma vez que certo nível de proficiência havia sido atingido.
Perguntei-lhe o que era o nível de proficiência. Entendimento puro, respondeu ele. Para atingir esse deslocamento instantâneo de energia, era necessária uma conexão clara com o intento, e para obter uma conexão clara era preciso apenas intentá-la por meio do entendimento puro.
Naturalmente quis que ele explicasse o entendimento puro. Ele riu e sentou-se num banco.
- Vou-lhe contar algo de fundamental sobre feiticeiros e seus actos de feitiçaria - continuou. - Algo sobre o salto mortal do pensamento deles para o inconcebível.
Disse que alguns feiticeiros eram contadores de histórias. Contar histórias para eles não era apenas o batedor avançado que testava os seus limites perceptíveis, mas o seu caminho para a perfeição, para o poder, para o espírito. Ficou em silêncio por um momento, obviamente buscando um exemplo apropriado. Então lembrou-me que os índios yaquis tinham uma colecção de eventos históricos que chamavam "as datas memoráveis". Eu sabia que as datas memoráveis eram relatos orais de sua história como nação, quando estavam em guerra contra os invasores de sua terra: primeiro os espanhóis, depois os mexicanos. Don Juan, ele próprio um yaqui, afirmou enfaticamente que as datas memoráveis eram relatos de suas derrotas e desintegração.
- Assim, o que você diria - perguntou-me -, uma vez que é um homem instruído, sobre um feiticeiro contador de histórias, tomando um relato das datas memoráveis, digamos, por exemplo, a história de Calixto Muni, e mudando o final de modo que, em vez de descrever como Calixto Muni foi amarrado e esquartejado pelos executores espanhóis, que é o que aconteceu, ele contasse uma história de Calixto Muni, o rebelde vitorioso que teve sucesso na libertação de seu povo?
Eu conhecia a história de Calixto Muni. Era um índio yaqui que, de acordo com as datas memoráveis, serviu por muitos anos num navio bucaneiro no mar do Caribe a fim de aprender estratégias de guerra. Então voltou para sua Sonora nativa e conspirou para iniciar um levante contra os espanhóis, declarando uma guerra de independência, apenas para ser traído, capturado e executado.
Don Juan incitou-me a comentar. Contei-lhe que teria de admitir que mudar o relato factual da maneira que ele estava descrevendo seria um recurso psicológico, para expressar os desejos ocultos do feiticeiro contador de histórias. Ou talvez fosse uma maneira pessoal, idiossincrática, de aliviar a frustração. Acrescentei que até mesmo chamaria tal feiticeiro contador de histórias de patriota, porque era incapaz de aceitar a amarga derrota.
Don Juan riu até engasgar.
- Mas não é assunto de um só feiticeiro contador de histórias. Todos eles o fazem - argumentou.
- Então é um instrumento socialmente sancionado para exprimir o desejo oculto de uma sociedade inteira, um meio socialmente aceite de aliviar o stress psicológico de modo colectivo.
- Seu argumento é lisonjeiro, convincente e razoável - comentou. - mas, porque seu espírito está morto, você não consegue ver a falha de seu argumento.
Olhou-me como se me incitando a compreender o que estava dizendo. Eu não tinha comentários, e qualquer coisa que pudesse dizer me teria feito soar mesquinho.
- O feiticeiro contador de histórias que muda o final do relato "factual" - disse ele - o faz sob a direcção e os auspícios do espírito. Por conseguir manipular sua conexão indefinível com o intento, pode efectivamente mudar as coisas. O feiticeiro contador de histórias assinala que intentou isso tirando seu chapéu, colocando-o no solo e fazendo-o girar 360 graus completos em sentido contrário aos ponteiros do relógio. Sob os auspícios do espírito, esse acto simples lança-o no próprio espírito. Ele deixou seu pensamento dar um salto mortal para o inconcebível.
Don Juan levantou o braço acima da cabeça e apontou por um instante para o céu além do horizonte.
Pode ser o seu entendimento puro um batedor avançado testando a imensidão lá fora - continuou Don Juan -, o feiticeiro contador de histórias sabe, sem dúvida, que em algum lugar, de algum modo, naquele infinito, neste exacto momento o espírito desceu. Calixto Muni é vitorioso. Ele libertou seu povo. Seu objectivo transcendeu sua pessoa (in ob. cit., pp. 138-143).
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