O simples facto de eu ter começado por falar em conceitos jurídicos, logo se afigurou aos estudantes uma intrusão no domínio inviolável dos seus mestres e, por reflexo, uma ofensa a eles próprios. Mais tenso se tornou o ambiente quando lhes apresentei os conceitos, uma versão diferente da que haviam recebido nas aulas. E mais ainda quando deduzi, do conceito de Direito, uma crítica ao ensino da Faculdade. Com uma indignação que conseguiram conter, não entenderam como é condição de todo o autêntico ensino do Direito o ensino da Filosofia do Direito e, completamentarmente, o do Direito Romano, modelo inultrapassável de classificação, articulação e sistematização das formas jurídicas.
Esta sessão na Faculdade de Direito deu-me uma agradável surpresa; a de ter reconhecido, entre os assistentes, o romancista de temas africanos, Rego Cabral, que não via há muito tempo. E saldou-se por um êxito "político": os estudantes que me haviam convidado, dirigentes da Juventude Socialista, pediram-me "licença" para assinar a proponência da minha candidatura. Não votariam em mim - observaram - mas gostariam de me dar a sua assinatura. É a gestos destes que se costuma chamar a generosidade da juventude».
Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).
A existência do PCP é uma ameaça à liberdade dos Portugueses
«A eleição do Presidente da República é o acto mais importante no funcionamento do regime democrático», afirmou o dr. Orlando Vitorino, candidato presidencial em declarações a «O Comércio do Porto».
Escritor e homem do Teatro, Orlando Vitorino, acentuou que a eleição «não pode ser tratada com leviandade» e que «candidatar-se alguém com o desígnio de dar que falar», de «desistir e negociar a desistência», é uma leviandade, uma atitude antidemocrática e, sobretudo, antipatriótica.
C.P. – Mas com a escassez de apoios que tem, V. acha que pode ir por diante, ir até ao fim?
O.V. – O apoio político que importa não é o dos Partidos, mas o do Povo Português. E, esse, têm-nos as propostas que apresento, todas elas seriamente fundamentadas e susceptíveis de imediata aplicação: a substituição do socialismo, estafado, esgotado e falido, pelo liberalismo a que todos os povos prósperos devem a sua prosperidade; a extinção e substituição da Universidade do Estado com a concorrente organização de todo o ensino; a ilegalização do PC enquanto obstáculo à prosperidade e liberdade dos Portugueses; a abolição das «centrais sindicais» instrumentadas pelos Partidos e hostis aos trabalhadores. Dirão que se trata de uma alteração radical, mas é de uma alteração radical que os Portugueses precisam.
Bem sei que, ao falar de «apoios políticos», V. se situa no pequeno mundo da «classe política» e se refere aos Partidos. Eu observo-lhe que a eleição do Presidente da República tem de ser, no espírito da lei e por exigência da democracia, independente de apoios partidários. E necessário é que assim seja pois é evidente que um Partido que consiga eleger o seu candidato presidencial, consiga igualmente eleger a sua Assembleia da República e designar o seu Governo colocar-nos-ia perante uma ditadura a que poderão chamar orgânica, como Salazar chamava democracia orgânica ao seu regime, mas sempre seria uma ditadura.
C.P. – E quanto a apoios financeiros? V. já declarou que não dispunha deles.
O.V. – É essa outra das condições para a independência necessária a uma candidatura presidencial. Mas, essa, mais claramente do que a anterior, está consignada na lei eleitoral ao determinar que nenhum candidato pode dispor, na sua campanha, de mais de 2 500 contos. Informo-o de que estou disposto a requerer ao Tribunal Constitucional que essas determinação seja cumprida, rigorosamente cumprida e sem malabarismos contabilísticos e dever-se-á incluir no dispêndio de cada candidato a avaliação do espaço e tempo obtidos por ele, seja em manifestações de propaganda aparentemente promovidas por organizações juridicamente alheias à sua campanha, seja em órgãos de comunicação social controlados pelo Governo (caso, por exemplo, do recente apelo ao primeiro-ministro para que se candidate a P.R., apelo feito na RTP por uma «central sindical» no melhor estilo cesarista, o qual, além de punido severamente, terá de ser contabilizado, segundo os preços da publicidade, logo que o P.M. efectivamente se candidate).
A ASNEIRA É LIVRE
C.P. – A sua conotação, já aparecida na comunicação social, com a extrema-direita, não rotula a candidatura de ultrapassada e alvo fácil de campanhas destrutivas?
O.V. – É evidente que essa conotação foi feita com intuitos destrutivos, o que é uma maneira de reconhecer a força da minha candidatura. Apareceu ela num órgão da Imprensa onde «a asneira é livre», como se verifica no título dessa publicação que, sendo um semanário, se designa por «O Jornal». Ao melhor vinho se pode colar o pior rótulo, que isso não engana aquele que o beber.
C.P. – Se fosse eleito Presidente, actuaria sobre o PC e a extrema-esquerda de que maneira?
O.V. – Como sabe, eu admito, nas propostas que acompanham a minha candidatura, a ilegalização do Partido Comunista. E fundamento-o em razões concretas e actuais. Em primeiro lugar, no facto – tantas vezes apresentado pelos primeiros-ministros – de que o PC exerce uma acção que só se destina a levantar obstáculos à nossa prosperidade económica. Em segundo lugar, no facto de o PC, sabendo já hoje que o comunismo é um erro antes de ser um mal, se constituir como uma organização, não de doutrina e propositura de um sistema político, mas de imediata acção e prática. Ora os Partidos existem para propor uma doutrina ao eleitorado, não para a pôr em prática sem a aprovação dos eleitores. A existência do PC é, deste modo, uma ameaça à liberdade dos Portugueses. E a sua ilegalização será uma medida que os governantes têm de considerar necessária – pois reconhecem e declaram que tal Partido é um obstáculo ao bom governo do nosso povo –, mas nenhum deles se atreve a propô-la por algum inconfessável motivo: velhas ligações, velhos compromissos, velhos temores e medos. Aliás, a «esmagadora» (como dizem os políticos esmagadores) maioria dos Portugueses, tendo conhecido e sofrido o erro e o mal do PC, deseja a sua abolição, e só o não manifesta expressamente porque os políticos não lhe dão oportunidade de o fazer e antes lhe transmitem as inibições que a eles os prendem. A minha candidatura oferece aos Portugueses a oportunidade e a possibilidade de votarem aquilo que desejam.
C.P. – É favorável ou não a uma revisão constitucional, não apenas no que concerne aos poderes presidenciais, como ao sector económico e leis laborais?
C.P. – Quando a CEE aceitar Portugal como seu membro efectivo e de pleno direito, haverá muitas falências em Portugal. Mesmo assim é favorável à adesão?
O.V. – A CEE constituiu-se com um carácter liberalista para restaurar a economia europeia destruída pela guerra. Esse carácter liberalista exprime-se no que é essencial à CEE: a abolição das fronteiras económicas, ou seja, o livre-cambismo que, já no século passado, deu origem à prosperidade da Inglaterra, dos EUA e do Ocidente em geral. Antes da CEE houve outras tentativas, como o Plano Marshall, que falharam por terem um carácter socialista, isto é, por assentarem na intervenção do Estado na economia. A sua inspiração liberal explica o triunfo relativo pois também foi muito condicionado o seu liberalismo. Acontece que uma parte dos países da CEE tem governos socialistas que fazem, portanto, uma política contrária ao liberalismo da organização. A adesão de Portugal só seria conveniente se, juntando-se ao actual Governo inglês, o nosso Governo contribuísse para travar a socialização que ameaça a CEE. Mas isso só seria possível com um Governo liberal e, entre nós, os Governos saem dos Partidos e os Partidos, por doutrina ou por actuação, são todos socialistas e parece não saberem ser outra coisa. De qualquer modo, se a CEE fosse plenamente liberalista, a falência de umas tantas empresas seria uma sangria saudável e teria imediatas ou até prévias compensações.
MÁXIMO EMPREGO, NÃO PLENO EMPREGO
C.P. – Que solução para os milhares de trabalhadores com salários em atraso?
O.V. – São duas, as vias de solução. Uma imediata, que é a de responsabilizar as empresas, na maioria públicas ou estatizadas, e não afastar dessa responsabilidade nem os homens de Estado, que é o capitalista dessas empresas, nem os respectivos gestores, sem hesitar em confiscar-lhes imediatamente os bens pessoais. A outra via é a de abandonar a economia socialista cujo «canto de sereia» é o «mito» do pleno emprego mas que só cria empregos fictícios geralmente destinados a escolhidos por filiação partidária. Aos empregos fictícios correspondem salários sem retribuição em trabalho produtivo, as empresas deixam de ter receitas suficientes e as vítimas são todos os trabalhadores, em primeiro lugar os que não têm cobertura política. Este fenómeno está estudado e descrito pelos doutrinadores neoliberais que, em complemento, demonstram como só a economia orientada pelas leis do mercado livre pode criar um «máximo de emprego» composto de empregos reais, não fictícios.
C.P. – Quanto ao monopólio da TV, aceita-o? Acha que a Igreja Católica deve ter um canal próprio de TV?
O.V. – Todo o monopólio estabelecido pelo Estado (e sempre os monopólios resultam da intervenção do Estado) é um mal, seja em que domínio for. Onde é o maior dos males é no domínio da comunicação social, do ensino e da cultura. O monopólio da TV só existe por aplicação das doutrinas socialistas. Num sistema liberal como o que eu proponho na minha candidatura – não há lugar para existirem monopólios. Nesse sistema, o Estado – ou o grupo de pessoas que detêm os poderes do Estado – nada tem a ver com a criação de Emissores de televisão, nada tem que os conceder, proibir, autorizar ou negar. Nada tem que fazer o favor de conceder ou não um «canal» à Igreja. A Igreja, como qualquer outra instituição, qualquer empresa ou indivíduo, têm o direito de dispor, não de um «canal» na TV do Estado (que deixará de existir), mas de montar a sua própria estação emissora.
CANDIDATO PARA GANHAR
C.P. – A dinâmica eleitoral, sobretudo a indefinição do CDS e a falta de estratégia do PSD, aponta já para uma mais do que provável vitória de Mário Soares. Juízo precipitado?
O.V. – Salvo casos excepcionais – a candidatura de um herói, por exemplo – não há democracia onde, antes das eleições, se possa dar como «mais do que provável» a vitória de um certo candidato. O facto de V. a dar como «mais do que provável» significa que a eleição do Presidente da República não é feita pelos eleitores mas por uma gente instalada no poder, que dá pelo nome de «classe política» distribuída em bom entendimento por quatro partidos, e que se entretêm em estratégias e intrigas, ou monta suas máquinas de manipulação eleitoral. Essa gente tem os seus jornais, a sua RTP, os seus dinheiros, as suas centrais sindicais e os seus chefes a quem servilmente serve: o que eles decidirem é o que a classe política transmite e o eleitorado votará. Como é possível admitir tal situação e chamar-lhe democracia? Como é possível deixarmos que, tranquilamente instalada nos poderes do Estado, sem atender a um protesto, essa «classe política» desdenhe todos os que estão fora dela, minoria de oportunistas, e são, afinal, os Portugueses? Como é possível que o fundista de um semanário fale dos três candidatos existentes (os que a classe política prepara) e ignore a existência de quatro candidatos independentes? E que o chefe de um partido vá mais longe ainda e diga existir apenas um único candidato?
C.P. – V. admite ganhar a eleição?
O.V. – Se não o admitisse, não me candidatava.
C.P.- Tem razões para isso?
O.V. – Sem dúvida. Digo-lhe apenas estas: num sistema estrangulado pelos Partidos e respectivas clientelas, e já abominado pela população, eu estou fora de tudo o que é «classe política»; num sistema saturado de socialismo – com 80% da economia estatizados e a crise cada vez maior, a vida cada vez mais difícil; com 30% do salário dos trabalhadores extorquidos pelos impostos; com o ensino degradado até ao estado de catástrofe nacional; com a existência, social e individual, controlada; e tudo sem uma réstea de esperança, de justiça e de liberdade (a não ser a de, num domingo de 4 em 4 anos, irmos votar nos deputados que eles escolheram) – neste sistema assim saturado, eu sou o único candidato que propõe, em termos muito concretos, a substituição do socialismo pelo liberalismo; num ambiente político em que predominam os oportunistas e carreiristas, e muitos deles já se preparam para fugir do barco e se acolherem ao liberalismo, eu apresento-me com uma comprovada autoridade que não vejo a quem possa cedê-la.
NUNCA O ESTADO ALARGOU TANTO OS SEUS TENTÁCULOS
C.P. – Como não há dinheiro, a cultura tem sido ignorada. Planos seus para o sector?
O.V. – Afirma V. que o Estado não tem dinheiro. Permita-me que lhe diga que não é bem assim. Nunca o Estado dispôs, entre nós, de tanto dinheiro: o do ouro e reservas esbanjados, o dos impostos de que não há memória terem subido a taxas tão altas, os dos sucessivos empréstimos do estrangeiro, o dos juros exigidos pela banca nacionalizada que quadruplicam o que sempre foi considerado agiotagem, etc. O que acontece é que também nunca o Estado alargou a tão longe os tentáculos da sua intervenção e não há dinheiro suficiente para cobrir os erros que faz. Afirma ainda V. que o Estado «ignora» a cultura. Permita-me que, também aqui, lhe diga que não é bem assim. O Estado nunca interveio tanto na cultura. Nunca, com tanto afinco, perseguiu o estabelecimento de uma «cultura oficial», uma cultura inteiramente institucionalizada, subordinada à orientação, à ideologia e aos interesses dos políticos e abafando todas as manifestações que possam aparecer fora dela, muito especialmente as de natureza individual. Nunca, por isso, se deram tantos prémios literários e científicos, se concederam tantos e tão elevados subsídios ao cinema, ao teatro, aos museus, à edição de livros, à investigação científica, ao jornalismo. O proteccionismo, o subsídio, o prémio prende quem o recebe e quem espera recebê-lo. Prende e cala. O servilismo atrai as mediocridades e instala-se.
Veja V. – para só considerarmos um caso – o que está acontecendo com o cinema. Nunca o Estado distribuiu tanto dinheiro aos produtores cinematográficos e nunca o nosso cinema desceu a um nível tão baixo. Os filmes que chegam a realizar-se (muitos dos subsidiados com muitos milhares de contos não chegam, com total impunidade, a ser produzidos) são, sem excepção, obras de puro infantilismo mental e esquematizadas, ainda por cima, como obra de propaganda política, em especial a do primário marxismo (ao dar notícia dos realizadores seleccionadas pelo IPC – uns dez entre setenta – para receberem os chorudos subsídios do ano passado, o jornal «Correio da Manhã» observava que, entre esses, uns não tinham até então produzido qualquer obra que os credenciasse, outros tinham produzido filmes que raiam a idiotia, mas eram, todos eles, conotados com o Partido Comunista; esta informação do «Correio da Manhã» não foi desmentida). Ora o que assim acontece com o cinema, acontece, ainda mais acentuadamente, no teatro; e acontece em todos os ramos da cultura, desde a edição de livros até ao jornalismo.
Questiona-me V. sobre planos da minha candidatura neste domínio. O quadro que lhe descrevi é indesmentível e eloquente. Dele resulta que só pode haver um plano: que o Estado deixe em paz a cultura, que a deixe entregue a quem ela pertence, aos que a fazem, aos que a vivem, aos que a actualizam. E acabar com todos os proteccionismos e financiamentos do Estado o qual, ao intervir na cultura, é como um elefante a passear sobre canteiros de flores (in Comércio do Porto, Suplemento, 19 de Maio de 1985, p. 12).
Continua
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