sexta-feira, 29 de março de 2013

Afonso de Albuquerque (ii)

Escrito por Oliveira Martins 








«Quem for senhor de Malaca tem a mãao na garganta de Veneza».

Tomé Pires


«A meu parecer, vos tendes a Himdia aguora em maior-rrisquo pello casso d'Afonso d'Albuquerque que pollo dos rumes...».

António de Sintra ao rei D. Manuel, Dezembro de 1508.


«Quando, em Novembro de 1513, António Raposo passava por Cananor, abordou Albuquerque com certo embaraço e confiou-lhe que Gaspar Pereira lhe pedira para juntar o seu nome a uma lista de queixas já assinada por mais seis pessoas. Entre esses nomes, alguns dos fiéis de Albuquerque, como D. João de Lima e Manuel de Lacerda. António Raposo só pudera obter uma cópia que mostrou ao governador. Imediatamente convocados, os pretensos signatários declararam nunca terem ouvido falar de nada e consideravam Gaspar Pereira um perigo público. Depois, começaram a falar à vontade, e um tal António Madeira disse que tinha visto uma carta escrita por Diogo Pereira, ditada por António Real e enviada ao rei um ano antes. Trazido à presença do governador, Diogo Pereira perdeu a cabeça e solicitou perdão. Foi-lhe concedido, mas na condição de dizer a verdade. Em resposta, entregou ao governador a cópia da carta, de que se fez leitura pública na presença de António Real. Este só jurava sobre os Evangelhos que era tudo falso e atribuía as culpas ao diabo que o tentara.

A análise destas acusações, caluniosas na grande maioria, esclarece o comportamento de Albuquerque e, também, o estado de espírito dos contemporâneos. Ele próprio classificava os detractores em três categorias: invejosos, despeitados e ofendidos. Se os primeiros constituem uma legião na sombra dos vencedores, os outros manifestavam reacções fáceis de entender. Viviam todos numa época em que o entusiasmo criado por novas empresas era travado pelo forte peso das antigas. O prestígio dos altos feitos da cavalaria não se apagara ainda no coração dos fidalgos. Colocavam a honra ao serviço de combates singulares e tornavam a iniciativa de acções militares desconexas que lhes tinham valido severas chamadas à ordem. Albuquerque denunciava o individualismo de tal comportamento e a emulação que os levava a folgar com as quebras e desastres que acontecem aos outros.

As técnicas da guerra moderna, introduzidas na Índia pela gente de ordenança, tinham sido rejeitadas por um grupo de nobres. A chegada de um exército profissional representava pôr em causa a função social da nobreza e originou tantos melindres que foram inúmeras as sabotagens e lanças partidas. Diante de Adem, o governador mandara separar em barcos distintos os soldados de ofício e os homens de armas ligados aos fidalgos».

Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque: Leão dos Mares da Ásia»).


«Eu sam pessoa pera que se meterem doze reynos na mão pera os governar com muita prudência, descriçam e saber... tenho hidade pera saber ho bem e ho mall».

Afonso de Albuquerque





Só e livre, absoluto senhor do império nascente, Albuquerque entregou-se com franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição dele era a fundação de uma cidade, uma capital portuguesa - coisa que até então não existira. Cochim, cujo rajá desde o princípio se abraçara aos novos invasores, era uma cidade índia, onde possuíamos apenas uma fortaleza, abrigo da feitoria e guarda de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa para capital. Colocada a meia altura da costa ocidental da península, bom porto, a cidade reunia as condições desejáveis. Fazia ele então parte do reino de Vijajapur (Bijapor), fracção que no fim do XV século se separara do de Dekkan, declarando-se o seu Cã independente, sob o título de adil-xá (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-xá do Vijajapur, ao tempo de Albuquerque, tinha por seu nome Iusuf. Por este governava em Goa Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em Fevereiro de 510, Albuquerque tomou Goa por surpresa; e pela primeria vez houve no Oriente um Estado português. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um lugar significava apenas a substituição da suserania indígena pela nossa; e o estabelecimento de feitorias e a construção de fortalezas, tinham somente em vista assegurar o comércio e a cobrança das páreas ou tributos de vassalagem, segundo o plano do primeiro vice-rei. Albuquerque iniciava um sistema diferente: criava uma cidade propriamente portuguesa; e com o novo governador, o nosso domínio desembarcava dos navios para a terra firme. A um sistema de colónias, como fora em volta do Mediterrâneo o dos fenícios ou o dos gregos, substituía-se um império, como Aníbal o sonhara na Itália, e Alexandre o fundou na Ásia. Albuquerque, porém, não pensava em fazer de Goa uma cidade portuguesa, no sentido de ser exclusivamente habitada por europeus: seria quimérico. Faltava-lhe gente, e para obviar a isto fomentou os cruzamentos de portugueses com mulheres indígenas, criando, tanto em Goa como depois em Malaca (7), uma população de mestiços, que mais tarde se tornou um dos elementos de dissolução do nosso império. Sob o domínio português, os naturais viveriam livremente na sua religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao império protector e soberano de Portugal (8). Era um plano correspondente ao que mais tarde os ingleses puseram em prática, sem todavia cruzarem com os indígenas; da mesma forma que os holandeses preferiram os planos marítimo-comerciais de D. Francisco de Almeida.

Goa ocupou ao governador todo o ano de 510; porque o Sabaio, tomado por surpresa em Fevereiro, voltou no Verão; e os soldados de Albuquerque não quiseram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da fúria e das ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os planos de Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da Índia, que além de lhes não compreenderem o alcance, se viam privados de saques, apenas fartos de guerra. Goa perdeu-se em Agosto; mas logo tornou para o domínio português, ganha por assalto em Novembro. Os soldados obedeciam, porque o comando do governador era terríbil, desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa a sua fé católica. Alexandre cria-se um deus, Albuquerque viu mais de uma vez os milagres do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um cavaleiro de armas brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os mouros (9) - conforme a tradição histórica portuguesa. Nas cidades da costa da Arábia, viajando para Ormuz, as suas crueldades tinham sido bárbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impor pelo medo; aqui destruía como político. Todos os mouros de ambos os sexos, de todas as idades, mais de seis mil, foram mortos (10); e queimados vivos os que se tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque para sossego dela só devia conter gentios. Era o lugar escolhido para capital do império dos novos gregos pelo moderno Alexandre.



Santiago, o Apóstolo guerreiro



Consolidada a posse da capital, no coração da Índia, Albuquerque voltou-se rápido para as duas empresas que rematariam o seu império: Malaca e Ormuz. Embarcou, logo no princípio de 511, e tocando em Ceilão, a terra encantada das pedras preciosas, delícias do mundo, pátria da canela e das pérolas, achamo-lo, já em Maio, em frente de Malaca, no Extremo Oriente.

Malaca, na ponta da península da Indochina, sobre o estreito a que dá o nome, era para esta região, como Ormuz, a norte-leste, para a outra. Assim como além se permutavam os géneros da Índia com os da Arábia e da Pérsia, e em Adém com os dos Egipto; assim em Malaca se faziam todas as trocas dos produtos ocidentais da China e das Molucas, e de todo o Extremo Oriente. De Malaca iam as naus a Ternate e a Tidor, a Banda e a Ambon, em procura do precioso cravo; e o estreito andava coalhado de juncos de Java, conduzindo à cidade o arroz, as carnes, a caça e os crises tauxiados de fino aço, em troca dos damascos e brocados, que levavam de retorno para as ilhas do arquipélago. Anfíbios, os malaios viviam no mar em permanência, com a casa e a família a bordo; e os seus juncos, com enxárcias de verga, iam buscar a Malaca os panos de Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e as drogarias de Kambai.

Do saque de Malaca, o governador reservou para si apenas seis leões de bronze, destinados ao seu túmulo. Sem se demorar, avassalou todo o arquipélago malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e, segura a porta oriental da Índia, voltou-se a Goa, de caminho para Ormuz e Adém, a consolidar o império pelo Ocidente. Em Fevereiro de 513, sai com uma armada para Adém, que não consegue tomar; viaja em torno do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arábia, indo a Meca despedaçar a santa Caaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado positivo, desde que Adém consegue resistir às investidas do governador. Adiou pois para outra vez esses planos, que eram a cúpula do seu edifício e a chave do império que vinha construindo. Conquistada Adém, as duas empresas que meditava eram relativamente fáceis na sua simplicidade temerária. Levaria quatrocentos homens de cavalo em taforeias ou caravelas e iria desembarcar em Liumbo, partindo num galope até Meca, lugar santo mal guardado por gente prostrada em adorações. Roubaria o tesouro sagrado e o próprio corpo do profeta: com ambos se resgataria o Santo Sepulcro de Jerusalém, cativo. Consumar-se-ia a obra malograda das Cruzadas, tradição piedosa que na Renascença passara das nações do norte para a Itália e para a Espanha, arrastando mais tarde Portugal a Alcácer Quibir. Ao mesmo tempo, e por outro lado, a grande empresa do Mar Vermelho descarregaria um golpe mortal no Egipto, que era a jóia do império dos turcos e o arsenal de onde vinham as armadas à Índia. O seu plano consistia em «cortar uma serra mui pequena que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste-João, para lançar as correntes dele por outro cabo que não fossem regar as terras do Cairo» (11). Desviando o Nilo secaria o Egipto (12). Já pedira a D. Manuel que lhe mandasse oficiais da Madeira, onde os havia mestres no corte das serras para formar as levadas de rega dos canaviais. Tudo isto continha a empresa de Adém, cujo malogro cortou os voos às ambições grandiosas do herói.


Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse fulgurado aos olhos do místico e terrível herói uma cruz vermelha, Cristo abandonara-o na empresa. Quando o famoso milagre surgiu, Albuquerque e todos, ingenuamente, crentes na missão divina em que andavam, caíram de rastos adorando a cruz (13). E o capitão, para corresponder ao céu, mandou tanger os coros de trombetas, responder com artilharia aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um estromento assinado pelas guarnições, que veio para D. Manuel, com carga de pimenta, afervorar a piedade mística da corte cartaginesa (14).

Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se para Ormuz, cujo domínio não estava seguro. Outro Alexandre em Persépolis, o herói condenou-se em Ormuz: a grandeza das suas façanhas tinha-lhe feito nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal. Orientalizado com o imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam já a crueldade, nem a força: apelava para a perfídia; e intrometendo-se nas miseráveis políticas dos persas, chamou à sua tenda para uma festa o ministro que então governava o príncipe idiota de Ormuz, e assassinou-o covarde e friamente, substituindo-se-lhe. Estava próximo da cova: e a sorte não queria que à história deste herói faltasse o epílogo frequente na história dos heróis: uma abjecção. Tão-pouco a verdade consente que se esconda um fraco de vaidade e fraqueza comum. Alexandre mimoseava os literatos de Atenas para que o exaltassem: Albuquerque mandava anéis de pedras preciosas ao cronista Rui de Pina «para escrever com melhor vontade os memoráveis feitos da Índia».

Da volta de Ormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como fizera a D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte Pacheco. A corte de Lisboa já o mandara substituir no governo por Lopo Soares de Albergaria, que, chegando, começou por condenar o seu predecessor, exaltando todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar, Albuquerque pegou na pena e dirigiu uma carta ao rei - «quando esta escrevo a V. A. estou com um soluço que é sinal de morte!». E pedia-lhe que lhe honrasse a memória e protegesse o filho; o que o rei fez, honra lhe seja. Agonizando, via-se incompreendido pela tacanha corte de Lisboa, e aceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens por amor de el-rei, mal com el-rei por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, à vista de Goa. Era homem de meã estatura, rosto comprido e corado. Era avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem: mui fácil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar com os mouros, muito temido e amado de todos.




Nascera filho segundo de uma família de sangue nobre, e educara-se na corte militar de Afonso V, viveiro da geração dos capitães da Índia amestrados nas guerras de África. Fora em 1480 na esquadra mandada a Nápoles em auxílio do rei Fernando contra os turcos, e nove anos depois partira para África a defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os mouros. Era estribeiro-mor de D. João II e já um grande fidalgo quando, em 1503, D. Manuel o mandou à Índia pela primeira vez. Foi, voltou com bons créditos, mas sen nada ter feito de singular; provavelmente observou e aprendeu muito, levando já um plano formado quando o rei o mandou como capitão na esquadra de Tristão da Cunha. Dessa ida começa a história que narrámos e que termina agora com a sua morte.

Os soldados, a bordo, amortalharam-no no hábito de Santiago com borzeguins e esporas, espada à cinta, na cabeça uma carapuça de veludo e aos ombros uma beca também de veludo. O enterro subiu em lanchas, e era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de Goa. Ao desembarcar, foi levado aos ombros dos soldados, sob o pálio, pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os olhos meio abertos, a longa barba caída (15) até à cinta, flutuando, não o criam morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por muito tempo houve romarias ao sepulcro do herói, vindo os naturais pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfídias dos portugueses, oferecendo-lhe boninas e azeite para a sua lâmpada. Do Extremo Oriente, desde o Pegu até à China, ficaram-lhe chamando o Leão do Mar (16).

Ormuz, Goa, Malaca, os três pontos cardeais do império fundado por Albuquerque no breve período de cinco anos (1507-11), valiam o domínio em todo o mar das Índias e a vassalagem de todas as costas, desde Sofala, em África, até o Golfo Pérsico; desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); daí às bocas do Ganges, e descendo pelo Arakan e pelo Pegu, até Malaka com as ilhas dispersas de Madagáscar e Socotorá, Angediva, os arquipélagos de Lakkha (Laquedivas) e de Malaja (Maldivas), Simhala (Ceilão) (17), e Sumatra e Java, Bornéu e as Molucas até os pontos extremos de Banda e Ambon. Com efeito, depois de Malaca e da viagem remerosa mas estéril de 513 a Adém, todo o Oriente pasmava e tremia de Albuquerque, o terríbil. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e tributos; todos os príncipes queriam a amizade do português, e a seus pés arrastavam a coroa os rajás de Ahmednagar, e de Kambai, de Vijajapur e de Narsinga (18), o xá da Pérsia e os sultões de Sião, do Pegu, do Aracan; e até o próprio Hidalcão, o adil-xá do Canará, consentindo a fortaleza de Kalikodu, comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do Gujerât, do Konkana, do Karnataka e de Benguela. Desde o Indo até o Ganges, pelo Cabo Kumari, desde Kambai até Golkonda, o litoral da península estava inteiramente submetido ao jugo português.






Entretanto este império não podia dizer-se ainda construído: era um esboço apenas. Como depois de uma vitória brilhante os tímidos se curvam todos perante o vencedor, assim acontecia no Oriente. Lançado na política de conquista, o império português ganhava a primeira batalha; mas não podia decerto ensarilhar as armas, enquanto a costa da Arábia e as margens do Mar Vermelho se conservassem em poder dos inimigos. Os naturais da Índia, avassalados por uma corrupção antiga, aceitavam o domínio de qualquer vencedor; mas era necessário, para o manter, que a vitória fosse decisiva. Ora o inimigo, o mouro, fora batido, mas não fora expulso. Como numa doença, tinham-se debelado muitos sintomas, mas não se destruíra o princípio mórbido. Adém continuava a ser o empório do domínio comercial marítimo dos árabes e egípcios no Oriente; o Mar Vermelho, o Suez, no extremo fundo desse estreito corredor, as bocas sempre abertas, para vazar sobre a Índia navios, artilharia e soldados. O domínio, que os portugueses se propunham substituir, continuava; e do carácter dual ou misto que a ocupação da Índia apresentava, resultaria um estado de guerra permanente com os mouros e com os naturais, que ora os preferiam a eles, ora a nós. Ninguém, nação alguma seria capaz de resistir a um século inteiro de semelhante vida. O destino do império português do Oriente dependia do exclusivo do domínio, desde que era impossível pactuar ou dividir a presa entre os dois caçadores rivais.

O génio de Afonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez; Adém, Meca, o Mar Vermelho eram a sua preocupação: «Três coisas, diz o filho e commentador, há na Índia que são escápulas de todo o comércio das mercadorias daquelas partes, e chaves principais dela. A primeira é Malaca, que está em três graus na entrada e saída do estreito de Singapura; a segunda Adém, que está em vinte e um graus de altura e na entrada e saída do Mar Roxo; a terceira é Ormuz, a qual está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da Pérsia. Este Ormuz, a meu ver, é a principal de todas. E se el-rei de Portugal tivera senhoreado Adém pudera chamar-se senhor de todo o Mundo». Dar um golpe mortal no Islamismo era, além de retribuir em Meca a afronta humilhante de Jerusalém, mostrar aos muçulmanos do Oriente que Jesus podia mais do que Mafoma. Mas se o génio excepcional de Albuquerque não bastou para levar a empresa ao fim, como poderiam bastar para isso os pigmeus que lhe sucederam? Valentes muitos ou quase todos, incansáveis no mar e na terra, os governadores da Índia foram extenuando em um século de guerra permanente as limitadas forças da nação, sem pensamento político, sem plano definido, à toa e à mercê de um capricho, ou de uma ideia a que o crime imbecil da corte limitava constantemente os voos. A primeira política, a marítima, fora abandonada com a queda de Francisco de Almeida; a segunda política, a imperial, condenada com a deposição e morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um domínio estável e seguro: uma tradição (in ob. cit., pp. 196-202).






Notas:

(7) V. As Raças Humanas, O. C., I., V., pp. 49 a 50.

(8) «Não consentia o governador A. de A. que os portugueses tratassem (negociassem), dizendo que onde tratassem haviam de querer ser poderosos e valorosos e não ser humildes como mercadores, do que se recreariam males de os matarem e perderem suas fazendas... e também que, se os mouros vissem que lhes tomávamos seus tratos nos teriam mor ódio, e mais, que os homens, andando tratando, andavam fora do serviço de Deus e de El-rei. Com esta pragmática os portugueses eram muito temidos por cavaleiros e não mercadores, e tão temidos e obedecidos que ainda que um só português fosse em uma almadia, se o topassem naus de mouros todas amainavam e lhe iam obedecer, mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos eram assinados por A. de A.». (Gaspar CORREIA, Lendas, I, p. 518).

(9) V. Sistema dos Mitos Religiosos, O. C., p. 307.

(10) Diz BARROS, Ásia, Década II, Liv. V, cap. IX: «...assi nesta fugida no rio, como debaixo do ferro dos nossos, dos mouros que morreram mais de seis mil pessoas de idade».

(11) V. História da Civilização Ibérica, O. C., p. 251.

(12) V. As Raças Humanas, O. C., pp. 177 e segs.

(13) V. Sistema dos Mitos Religiosos, O. C., p. 309.

(14) Na extensa carta que, relativamente à sua acção na Índia, envia ao Rei, com data de 4 de Dezembro de 1513, Afonso de Albuquerque penitencia-se de, mediante aquele aviso, não ter prosseguido em o caminho que tomara; «e como homens de pouca fé não ousámos de cometer o caminho, que creio as nossas naus de uma volta na outra o puderam haver: e pecou isto também por ser já homem velho, vadeado da condição e inclinações dos homens» (Alguns Documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 1892, p. 381).

(15) Até à 3.ª ed., caída. Seguidamente, porém, atada, o que é de aceitar, porque o vice-rei, através do que sabemos pelos retratos existentes, usava de um lacinho no termo das barbas para que estas, certamente, se não desmantelassem na compostura. Mantemos, no entanto, o que o A. deixou escrito até à dita edição, em razão de se dizer logo depois que elas, mesmo assim morto, flutuavam.

(16) Ainda hoje os indianos chamam Afonso de Albuquerque a um certo peixe, do tamanho da corvina, e cujo nome zoológico não pudemos apurar. Diz a lenda que o Leão do Mar não morreu: afundou-se, e revive nesses animais marinhos. A maxila inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das figuras portuguesas do século XVI; o barrete, as barbas pontiagudas e longas, etc. Os indianos pintam esses ossos, dando-lhes fisionomia humana e guardam os Afonsos de Albuquerque como fetiches.

(17) V. Instituições Primitivas, p. 3.

(18) V. Instituições Primitivas, O. C., pp. 131 e segs.






terça-feira, 26 de março de 2013

Afonso de Albuquerque (i)

Escrito por Oliveira Martins








«Afonso de Albuquerque tinha perfeita noção de a que ponto é incompreensível a experiência da Ásia para quem não a conhece. Todavia, ia prevenindo o rei de que a fidelidade à palavra dada não tinha o mesmo valor na Índia que em Portugal e não procedia da mesma ética: "Cuida Vossa Alteza de segurar com boas palavras e seguros, sendo mouros senhores de muita gente, muitos cavalos e muito dinheiro"... Efectivamente, os Mouros só tinham respeito pela força. E Albuquerque continua: "Como chego com armada sobre seus portos, a principal coisa que logo trabalham é em saberem quanta gente temos, que armas trazemos. E se nos vêem força com que eles não possam, então nos recebem bem e nos dão as suas mercadorias e tomam as nossas de boa vontade, e se nos vêem fracos e poucos crede, senhor, que aguardam a derradeira determinação e se poem a tudo o que possa acontecer". E acrescenta: "A amizade que assentardes com qualquer rei ou senhor da Índia, se a não segurardes, tende por certo que volvendo-lhe as costas os tendes logo por imigos... Não ponhais o côvado na amizade dos reis e senhores de cá, porque não entrastes vos com querela em Índia para vos assenhorardes o trato deles com branduras nem concerto de pazes, nem vos faça nonguém lá [em Portugal] entender que é isto dura coisa de acabar e acabando-o que vos obrigara a muito".

(...) Albuquerque não receava criticar abertamente o rei que gastava demasiado na defesa do seu reino, devorador de todas as riquezas enviadas da Índia e donde nunca se recebia apoio eficaz. Que sucederia aos tesouros embarcados para Lisboa? Ainda nesse ano, Pero de Alpoim e Nuno Vaz de Castelo Branco levaram a D. Manuel rubis, uma espada e uma taça em ouro, tudo oferecido pelo rei do Sião e dois kriss [punhais] malaios incrustados de pedraria.

O governador lamentava profundamente os efeitos de uma tal distância escamoteadora das verdadeiras perspectivas da expansão portuguesa: "Vós desemparais a Índia [...] tendo a maior empresa que nunca nenhum princípe cristão teve nas mãos e mais proveitosa assim para o serviço de Deus como para o vosso nome e fama, e assim para haverdes as riquezas quantas ha no mundo. E deixai-la a misericordia de uns poucos de navios podres e de mil e quinhentos homens, a metade deles gente sem proveito. Não digo, senhor, mais que hei medo que não querais fevorecer isto em meu tempo por meus pecados velhos e novos...". E acrescentava ainda que: "além de serem pecados meus obrigada está a vossa consciência..." [...] "Ha Vossa Alteza de mister gente e armas e boas fortalezas... ou se nos deitarmos a dormir descansados sobre a verdade destes cães, com as portas das fortalezas abertas"».

Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque: o Leão dos Mares da Ásia»).






AFONSO DE ALBUQUERQUE


«As coisas da Índia fazem grandes fumos!», costumava dizer o novo governador. Mas que fumos eram esses? Eram a vaidade e os erros de tantos pigmeus que o gigante via formigar activamente, enceleirar, e, depois de gordos e ricos, pavonearem-se na corte, alegando serviços, com a bazófia de quem tudo sabia das coisas do Oriente. Fumos, com efeito, eram todos esses para o governador, que aprendera nas suas primeiras viagens, e agora levava já bem definido o seu plano. Levava sem o saber os seus fumos também: porque em fumo se havia de tornar o império efémero que construía na mente...

Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno, na armada de Tristão da Cunha; mas o génio do guerreiro não se reprimia com isso, nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando absoluto, para pôr em prática o seu plano gigantesco. Ele sabia demais que, no caos da Índia, cada qual trabalhava por sua conta e risco; e que, nesse vasto campo de batalha, as manobras não obedeciam ao mando de um general; iam ao acaso, segundo a audácia e o génio dos capitães. De Lisboa a Zangebar uma armada era um exército; no mar da Índia o exército fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era senhor de prosseguir, conforme o seu plano, na vasta empresa de saquear o Oriente. O plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um império.

A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introdução, arrasando, queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava) (1), na costa, acima de Zangebar, dirigindo-se a Socotorá - essa ilha que, junto à ponta extrema da África, pelo norte, o cabo de Jar-Hafun (Guardafui) - era vedeta sobre a entrada do Mar Vermelho, e a estação onde os navios de corso às naus de Meca se deviam abastecer e refrescar. Os árabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os a todos, sem ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida. Feito isto, dirigiu-se à Índia, destacando Albuquerque (impaciente quase até à rebeldia, durante a delonga da construção do forte) com seis navios e quinhentos homens, para a caça das naus, no Estreito.

Afinal, o capitão comandava! Afinal dispunha de uma falange sua! E resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha desapareceram, na sua viagem para a Índia, Albuquerque largou de Sokotrá [Socotorá] para a costa da Arábia, ao longo da qual foi subindo vagarosamente, assolando tudo. Formara o plano de começar por Ormuz as suas conquistas, marcando primeiro o limite por Norte e Ocidente, para mais tarde ir ao Oriente, pôr em Malaca o extremo do seu império. Ormuz, Sofala e Malaca são três quinas de um triângulo, cuja base mede 70 graus em longitude, cuja altura, até o vértice de Ormuz, conta 50 em latitude.

Foi a 10 [aliás a 20] de Agosto do ano de 507 que Afonso de Albuquerque largou de Socotorá, em direcção do Golgo Pérsico. A sua esquadrilha compunha-se de seis [«Seis naus, [...], e mais uma fusta [...], em que iam até 460 homens de peleja» (BARROS, Ásia, II, Liv. II., cap. I] navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a poderosa unidade que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança que todos tinham no seu génio e na sua sabedoria, e também nos mosquetes e artilharia das naus, tornavam poderosa como um ariete esta pequena divisão. Para nos servirmos da expressão de Francisco de Almeida, tratava-se apenas de combater com bestas; e não havia ainda que temer em Ormuz a artilharia dos rumes, nem os bombardeiros venezianos. A novidade de um engenho de guerra e a audácia de um grosseiro à antiga, iam levar a cabo uma empresa, de facto espantosa, como as de Alexandre ou de Ciro.

Alexandre Magno


Seguindo os exemplos desses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na mente, punha em prática os antigos meios orientais. Avançava no meio de um coro de aflições e mortes, precedido por uma coluna de incêndios, para que, ao chegar, a vanguarda do terror precipitasse os ânimos na abjecção. Assim ia ao longo da costa da Arábia assolando e devastando todos os lugares vassalos do suserano de Ormuz. Primeiro arrasou Kalhât (Calaite) «que é feito de casas de pedra, terradas e muitas cobertas de palha, casas espalhadas e mal armadas e fora do lugar à mão direita um palmar de palmeiras de tâmaras, onde estavam uns poços de água de que bebiam. O lugar assenta ao longo da água, e por detrás há grandes serranias de pedra viva, e no mar alguns zambucos e naus que vêm aqui carregar cavalos e tâmaras e peixe salgado» (G. CORREIA, Lendas).

Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a todos os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e mutilados, anunciar por toda a parte a fama do seu poder (2). Em Khor-Fakhan (Orfacate) reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou todos os prisioneiros. Entre eles, porém, estava um velho letrado persa, de longas barbas brancas, que vivia de admirar Alexandre, cujo livro possuía. O velho aplaudia o português, comentando o livro com as façanhas do novo herói; e aplaudia~se a si por ter ainda em vida assistido à ressurreição do filho de Olímpias. Aclamava o português, ou o grego, confundindo a realidade com a história; e de joelhos, adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe.

Em Makâte (Mascate), já entrada do golfo e quase fronteiro a Ormuz, tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrível desse herói que se aproximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha apareceu diante da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em resistir, por ver que os navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que cada um deles, com os seus canhões escondidos por detrás das amuradas, era um vulcão pronto a rebentar em lava, um inimigo pérfido cuja força latente não podia medir-se. Maskâte foi bombardeada. A mesquita onde os infelizes se tinham refugiado caiu a machado, e os cativos, mutilados, foram fugindo, chorando, reunir-se à gente da cidade escondida nas serras. Havia cadáveres em todas as ruas e o fogo posto começava a crepitar lavrando nos armazéns cheios de azeite e de melaço. As labaredas subiam, zumbia ao longe o clamor dos desgraçados, e à maneira que o terrível herói se alongava na praia com os seus para regressar aos navios, os mouros vinham ansiosos e cheios de medo ver se podiam ainda salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto das chamas vivas. Era em vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque prosseguiu deixando um rasto de sangue e cinzas. Ormuz estava próximo, e cumpria que a onda de terror, que fora crescendo, estoirasse agora de um modo pavoroso (3).

Ormuz era então a jóia mais preciosa da coroa da Pérsia. Chamavam-lhe a pedra do anel das Índias. Era a Londres oriental, onde todos os produtos do Oriente vinham desembarcar; de onde saíam nas longas caravanas que se dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartária e o Turquestão, por toda a Ásia do norte. Os armadores levavam por mar a Ormuz a pimenta, o cravo das Molucas, o gengibre, o cardamomo, os paus de Sândalo e Brasil, os tamarinhos, o açafrão, a cera, o ferro, as cargas do arroz de Dekkan [Decão], os cocos, as pedrarias, as porcelanas, o benjoim, os panos de Kambai [Cambaia], de Chala, de Deval, os sinabafos de Bengala. Aí vinham, de Adém, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o azougue, os bracados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da Europa, pelo caminho de Alexandria, a Suez, via do Mar Vermelho. Toda a Pérsia se abastecia em Ormuz dos géneros de fora; por Ormuz toda ela mandava importar os produtos indígenas. Os navios carregavam aí a seda e o almíscar, ruibarbo da Babilónia, e as récuas de cavalos da Arábia, tão queridos de Dekkan, em Kambai e nos Estados da contra-costa de Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges. Contra o arroz e os panos que levavam, os comerciantes traziam de Ormuz as tâmaras, o sal das suas colinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljôfar grosso muito procurado em Narsinga.



Ormuz



A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e prazer, uma corte de mercadores. As casas, recheadas de coisas preciosas, eram tesoiros ou museus, com paredes forradas de mármores, colunatas, eirados, pátios ajardinados e fontes preciosas. A vida custava aí caríssimo, porque o luxo absorvia todos os recursos naturais. A terra, uma salina, era estéril de si: tudo vinha da Pérsia, da Arábia, da Índia; mas os mercadores tinham defronte, além, na costa firme, as quintas e hortas, onde iam com frequência. Aí o plátano majestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cipreste meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e jardins de rosas, povoados de rouxinóis, abrigando nas encostas à sua sombra as vinhas férteis. Os pomares regados estavam coalhados de laranjeiras, de frutos de ouro e flores de neve perfumada; de macieiras, pêssegos, albocorques; de figueiras de formas extravagantes e amplas folhas; de granadas, como os frutos rebentados a sorrir nos seus grãos cor de rubi. No chão serpeavam as redes de hastes dos meloais, louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com peso os cachos de uvas preciosas de todas as cores. Por entre os bastos pomares e do seio dos jardins de rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira, com o seu turbante de folhas agudas, carregada de tâmaras.

Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a defendiam da luz e do calor, formigava uma população de várias raças, de cores diversas, ocupada em comprar, em vender; mais ocupada ainda em gozar a vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os perfumes inebriavam os sentidos, e acordavam todos os instintos sensuais. Vinham ali vender neve, de trinta léguas do interior da Pérsia. Amar era o primeiro de todos os comércios de Ormuz; e o persa, alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os desvairamentos da pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até aborrecidas em Ormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os haréns dos ricos, e os bordéis para o comum dos mercadores. Era uma devassidão abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam sempre seguidos por pajens, com toalhas e jarras de prata e bacias com água. Havia músicas e festas por toda a parte e as bandas de orquestras andavam constantemente nas ruas onde os mercadores expunham à venda o aljôfar em colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos estofos, e sobre as camisas brancas de algodão finíssimo vestiam-se túnicas de chamalote ou grã, cingidas por almejares com grandes adagas ornadas de ouro e prata e pedras preciosas. Os broquéis eram redondos, forrados de seda; os arcos acharoados, ou de corno de búfalo com cordas de seda. Usavam além do arco e da frecha, do escudo e da adaga, machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e tauxiadas de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um anel e a pedra Ormuz. Só a alfândega rendia meio milhão de xerafins (4).






As notícias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delícias. No porto havia, com efeito, uma poderosa armada que escondia as águas: eram centenas de naus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se arrestado os navios dos mercadores e do seio da frota estava a nau de Cambaia, a Meri, de mil tonéis, com gente basta e numerosa artilharia. Havia o melhor de duzentos galeões de remo com arrombadas de sacas de algodão tão altas que escondiam os remeiros. O persa que vestia os laudéis, em vez de corpos de aço, couraçava também de algodão os navios. As terradas alastravam o mar, carregadas de gente armada, com estandartes garridos «que era coisa fermosa para ver». Na terra, ao longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas músicas de trombetas e anafis. «As gritas do mar e terra eram tantas que parecia que se fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça desesperados, contavam como os seis, seis navios apenas portugueses! traziam no ventre uns monstros de fogo destruidores! E o soldão persa, aflito, não sabia de que modo receber a visita de Albuquerque e dos seus navios, que já estavam, terríveis mas quietos como um vulcão em paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Ormuz. Albuquerque exigia-lhe que abandonasse o persa (5), e se declarasse vassalo do português; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para que o deixassem em paz - quando o capitão, enfadado com as delongas e subtilezas, rompeu inopidamente o fogo. Começou a varejar em torno o estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de destroços, de naufrágios e de cadáveres que era horroroso de ver. Estava como um lobo no meio de um rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. Os fugidos nadavam num mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que os soldados matavam neles às lançadas e cutiladas. Da amurada das naus os grumetes e pajens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de vísceras flutuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim oitenta mouros. E enquanto a armada de Ormuz e as tropas do sultão eram chacinadas, desmanchava-se o lençol de barcos como uma teia cujas malhas se soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o mar sorvia uma atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam fugindo em chamas, como trombas de fogo correndo, vogando à mercê do vento «que era um grande espectáculo para ver». Ainda oito dias depois do sanguinário caso havia cadáveres boiando no mar, e os portugueses em lanchas ocupavam-se nessa particular espécie de pesca. A colheita era abundante, os cadáveres aos centos, os trajos ricos, e muitos os anéis, e alfinetes, as adagas e punhais tauxiados de ouro e prata com jóias engastadas. Denudados, vinham a bordo as famílias reconhecer os cadáveres e levá-los piedosamente, em lágrimas, aos seus sepulcros. A façanha fora tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos corpos as chagas das frechas, não havendo semelhante arma entre os nossos? (6) Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso tristemente revelador da confusão de combate com o novo Alexandre da Índia.

O pobre sultão de Ormuz, aflito, imediatamente acedeu a tudo: consentiu que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil xerafins de tributo. E deste concerto se fizeram duas cartas, uma em folha de ouro, a modo de livro, escrita em arábico com letras abertas a buril e suas brochas de ouro com três selos de ouro dependurados por cadeias; a outra em parsi, que era a linguagem comum da terra, e em papel com letras de ouro. E ambas estas cartas mandou Afonso de Albuquerque a el-rei D. Manuel.






Ormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque; mas isto mesmo desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam, cobiçosos de tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não compreendiam para que haviam de demorar ali, a construir uma fortaleza; quando, a não saquearem a cidade, mais valia partirem para o rendoso corso das naus de Meca, na boca do Estreito. A intriga insinuava-se, dizendo que o capitão-mor queria construir a fortaleza para si, e fazer-se rei de Ormuz, levantando-se contra o de Portugal: na Índia não havia ainda mais tradição do que a do saque marítimo, e o pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser compreendido. Nem em três anos, diziam, voltariam à Índia, perdendo ocasião de carregar as quintaladas que tinham de ordenado. A cobiça de mãos dadas com a violência e a cegueira agitavam perigosamente as guarnições. Albuquerque, impassível, prosseguia. De uma vez que lhe levaram um requerimento quando vigiava pessoalmente a obra da fortaleza, tomou-o assim dobrado como lho deram, e sem o ler meteu-o debaixo de uma pedra do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava cimentado com as queixas. Mas as lajes não pesavam bastante para as abafar, e recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20 000 xerafins pagos pelo de Ormuz, que, esperançado nestas desordens, confiado em promessas de sedição, e nos auxílios que o persa lhe enviava, ousou romper as hostilidades. Vieram com efeito o xaque Yar (Xaquear) trazendo consigo quatro mil árabes. Albuquerque estava num sério perigo, e outro qualquer perder-se-ia. Os capitães recusavam ir ao combate; mas ele, arrancando as barbas, aos punhados, ao capitão Nova, levou diante de si os soldados, sozinho, às cutiladas. Dos seis navios, porém, fugiram-lhe três, que vieram para a Índia contar ao vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam resistir ao seu mando terríbil, só lhes era dado fugir! Albuquerque retirou também de Ormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a empresa, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a Socotorá aprisionar as naus de Meca, e mais um navio que abandonou aí: nenhum podia suportar o férreo mando do herói.

Em Novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Ormuz, estava de regresso à Índia, em Cananor, onde abriu a carta de Lisboa, que lhe confiava o governo do Oriente. Nesse momento a violência do seu génio furioso arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados, queria sobretudo terminar o plano das suas conquistas; e foram necessários os rogos de D. Francisco de Almeida, a quem o filho acabava de morrer, para consentir na expedição naval de Diu. Só quando, meses depois, chegou à Índia a fidalga armada de D. Fernando Coutinho, puderam terminar as deploráveis contendas entre o vive-rei e o seu sucessor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu; e, cheio de bazófias, lançou-se na empresa em que achou a morte. Engolfados na matança e no saque, no meio de parte da cidade incendiada, os portugueses foram por sua vez trucidados, quando os inimigos os colheram dispersos e sem armas (in «História de Portugal», revisão e notas de J. Franco Machado, Guimarães Editores, 2007, pp. 189-195).







Notas:

(1) «Ao que se achou presente Tristão Álvares, que era feitor do capitão-mor, que não consentiu que ninguém tomasse nada e com João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram tudo ao capitão-mor, o qual logo tudo mandou quebrar e amassar e deu ao capitão e aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de prata e a Afonso de Albuquerque três, porque nunca estes capitães e fidalgos se apartaram para ir roubar» (G. CORREIA, Lendas, I, p. 677).

(2) Eis o que diz BARROS, quanto às represálias: «Aos quais Afonso de Albuquerque não quis mais perseguir, e se contentou com os lançar de suas casas e dar saco a suas fazendas, e per derradeiro mandar poer fogo a todo o lugar e a dez zambucos e três ou quatro naus que estavam no porto, no qual feito foram mortos três dos nossos e feridos vinte e tantos, e dos mouros se contaram pelas ruas setenta e tantos» (Ásia, 2.ª Déc., Liv. II, cap. I).

(3) O Autor segue a Gaspar Correia. Porém, Barros, Castanheda e até Góis, divergem profundamente no relato do sucesso, em particular no que se refere a atrocidades.

(4) O xerafim /as hrafi = 1 cruzado. Duarte Barbosa dá-lhe a equivalência de 300 réis.

(5) Segundo BARROS (loc. cit.) a exigência dizia respeito ao tributo que havia de pagar ao Rei de Portugal para que assim demonstrasse ser seu aliado na luta contra o Mouro.

(6) Deve dizer-se que as frechas ou setas eram arma entre os nossos. Quando, dias depois, dois embaixadores do rei de Xiraz vêm (já a cidade se confessava tributária de Portugal) «solicitar certo tributo que os reis de Ormuz já de muito tempo pagavam aos reis da Pérsia», Afonso de Albuquerque entrega-lhes como moeda do tributo «pelouros de ferro coado de artilharia e uns ferros de lanças e molhos de setas» (BARROS, Ásia, Década II, Liv. II, cap. IV).

Continua


terça-feira, 19 de março de 2013

Alexandre Magno (ii)

Escrito por Plutarco








«... de que [Alexandre] tivesse sido envenenado, ninguém suspeitou naquela altura, dizendo-se apenas que, tendo sido feito um legado a Olimpíada, aos oito anos, mandou matar muitos e espalhou aos ventos as cinzas de Iolas, então já morto, por ter sido ele quem lhe ministrou o veneno. Os que dizem que Aristóteles foi quem aconselhou esta acção a Antípatro, e que também proporcionou o veneno, designam um tal Agnotemis como divulgador desta notícia, tendo-se-a ouvido ao rei Antígono, e que o veneno foi uma água fria e gelada que emanava de uma pedra, próximo de Nonacris, a qual era recolhida como um orvalho muito ténue, conservando-a num vaso feito de casco de burro, pois nenhuns outros a podiam conter, visto que os fazia rebentar com a sua excessiva frialdade e aspereza. Mas a maior parte crê que esta referência ao veneno foi uma pura invenção, tendo para tal como poderoso argumento o facto de terem os generais altercado entre si durante muitos dias, sem terem cuidado de dar sepultura ao corpo, o qual permaneceu num sítio quente e não ventilado, sem que nenhum sinal de semelhante modo de destruição aparecesse, mas, pelo contrário, manteve-se sem a menor mancha e fresco».

Plutarco («Vidas Paralelas»).



(...) Reunidos os Gregos no Istmo, decidiram marchar com Alexandre para a guerra contra a Pérsia, nomeando-o general; e, como eram muitos os homens de Estado e os filósofos que o visitavam e lhe davam os parabéns, ele esperava que fizesse outro tanto Diógenes, o de Sinope, que residia em Corinto. Mas este não deu nenhuma importância a Alexandre e passava tranquilamente a vida no bairro chamado Craneto, e assim teve de ser Alexandre a passar por lá para o ver. Achava-se ocasionalmente estendido ao sol e, tendo-se endireitado um pouco com a chegada de tantas personagens, fixou o olhar em Alexandre. Saudo-o este e perguntou-lhe em seguida se se lhe oferecia dizer alguma coisa.

- Muito pouco, respondeu-lhe. - Apenas que não me tapes o Sol.

Diz-se que Alexandre, perante aquela espécie de menosprezo, ficou tão admirado de semelhante elevação e grandeza de ânimo que, quando, depois de se afastarem dali, os que o acompanhavam começaram a rir-se e a troçar, lhes disse:

- Pois eu, se não fosse Alexandre, de boa vontade seria Diógenes.

Quis preparar-se para a expedição com a aprovação de Apolo e, tendo passado por Delfos, quis o acaso que os dias em que lá chegou fossem nefastos, aqueles em que não é permitido dar resposta: contudo, a primeira coisa que fez foi chamar a sacerdotisa; mas, negando-se esta e objectando com o disposto na lei, dirigiu-se até onde ela se encontrava e trouxe-a à força para o templo. Ela, então, mostrando-se vencida por aquela determinação, exclamou:

- És invencível, ó jovem!






Ouvindo isto, Alexandre disse que não necessitava de mais nenhum vaticínio, pois ouvira da sua boca o oráculo que lhe convinha. Quando já se encontrava em marcha para a expedição, ocorreram diferentes prodígios e sinais, e entre eles o da estátua de Orfeu em Libetra, que era de cipreste, e que naqueles dias exalou copiosos suores. A muitos, este fenómeno inspirou medo, mas Alexandre exortou-os a terem confiança, dizendo-lhes:

- Isto significa que Alexandre cometerá façanhas dignas de serem cantadas e aplaudidas; as quais, no entanto, darão muito que fazer e que suar aos poetas e músicos que as hão-de celebrar.

(...) Quando ia invadir a Índia, como visse que o exército arrastava uma grande carga atrás de si, e que era difícil mover-se, devido à grande riqueza dos despojos, nessa mesma manhã, estando já prontos os carros, queimou primeiro os seus e os dos seus amigos, e depois mandou lançar o fogo aos dos Macedónios, ordem que pareceu mais dura e terrível em si do que na sua execução, porque mortificou muito poucos e, pelo contrário, os demais receberam-na com entusiasmo e com demonstrações de aclamação e de júbilo, distribuíram as coisas mais precisas entre os que as pediram, e as restantes queimaram-nas, criando assim maior arrojo e confiança no ânimo de Alexandre. Era já então feroz e inexorável no castigo dos culpados, de maneira que, tendo nomeado Menandro, um dos seus amigos, governador de um forte, porque este não queria ali ficar, tirou-lhe a vida, e, tendo-se revoltado os bárbaros, ele próprio trespassou com uma flecha Orsodates. Sucedeu por essa altura que uma ovelha pariu um cordeiro que tinha na cabeça a figura e a cor de uma tiara, e a forma também de uns testículos, de um e de outro lado, o que pareceu a Alexandre mau sinal, pelo que tratou de se mandar purificar por uns babilónios que, para esse efeito, cuidava sempre de levar consigo; acerca do que disse aos seus amigos que não fora por si próprio que se havia sobressaltado, mas por eles, não acontecesse que um mau génio, faltando-lhes eles, transferisse o poder para um homem cobarde e obscuro. Mas um sinal bom que observou logo fez esquecer esta impressão de desalento: foi que um macedónio, chefe das tapeçarias, chamado Proxeno, ao alisar o sítio em que devia ser armada a tenda do rei, junto ao rio Oxo, descobriu uma fonte de um licor contínuo e untuoso, e, pelo primeiro que recolheram, descobriram que se tratava de um azeite límpido e claro, sem se diferenciar desta substância nem ao cheiro nem ao sabor, sendo também igual a ela na cor brilhante e na untuosidade, e isto num país que não produzia azeite. Diz-se, pois, que a água do Oxo é também muito branda e que põe gordurosa a pele dos que nela se banham. Aconteceu que Alexandre se alegrou extraordinariamente com este sinal, como demonstra com o que escreveu a Antípatro, colocando o facto entre os maiores favores que recebera do deus. Os adivinhos consideravam-no prognóstico de uma expedição gloriosa, mas trabalhosa e difícil, porque o azeite foi dado aos homens por Deus para remédio das suas fadigas.






Foram, pois, muitos os perigos que correu naqueles encontros, e graves as feridas que recebeu, mas o maior mal que a sua expedição sofreu foi a falta das coisas de maior necessidade e a destemperança do clima. No que diz respeito a ele próprio, fazia empenho em contrapor à fortuna a ousadia, e ao poder o valor, pois nada lhe parecia ser inacessível para os ousados, nem forte e seguro para os cobardes (11). Diz-se, portanto, que, tendo cercado o castelo de Sisimitres, que estava num rochedo muito elevado e inacessível, como os soldados já começassem a perder a confiança, perguntou a Oxiartes que espécie de homem era Sisimitres, quanto ao ânimo; e, respondendo-lhe este que era o mais tímido dos mortais, ripostou:

- Isso quer dizer que posso tomar o rochedo, pois aquele que manda nele não é forte.

Tomou-o, pois, bastando-lhe intimidar Sisimitres. Mandou contra outro castelo, igualmente escarpado, os mais jovens dos Macedónios e, saudando um que se chamava Alexandre, disse-lhe:

- A ti compete-te ser valente, mais que não seja pelo nome que tens.

Pelejou, efectivamente, aquele jovem com grande denodo, mas morreu na acção, o que causou a Alexandre grande pesar. Punham os Macedónios dificuldades em acometer a fortaleza chamada Nisa, por estar banhada por um rio profundo, e, estando ele presente, retorquiu:

- Pois, miserável de mim, não aprendi eu a nadar?




E, tendo já o escudo sobraçado, dispunha-se a passar. Deteve a acção por virem até ele com rogos embaixadores da cidade sitiada, os quais ficaram logo maravilhados por o verem em armas, sem nenhum acompanhamento. Trouxeram-lhe depois um almofadão e, pegando-lhe, mandou que se sentasse nele o mais ancião de entre eles, que se chamava Acufis. Admirado este ainda mais com tais mostras de benignidade e de humanidade, perguntou-lhe que haviam de fazer para se poderem contar entre os seus amigos; e, como lhes respondesse que a primeira coisa era nomearem-no chefe e príncipe de todos, e a segunda mandarem-lhe como reféns um cento dos melhores, pondo-se a rir, Acufis respondeu:

- Muito melhor farei, ó rei!, mandando-te os piores em vez dos melhores!

Diz-se que Taxiles, que possuía na Índia terrenos que não eram menores do que o Egipto em extensão, e abundantes e férteis como os melhores, e sendo homem de muito siso, saudou Alexandre e lhe disse:

- Que necessidade temos, ó Alexandre, de guerras e de batalhas entre nós, se não vens tirar-nos a água nem os alimentos necessários, que são as únicas coisas pelas quais é forçoso que os homens pelejem? No que toca às demais, que se chamam bens ou riquezas, se sou melhor do que tu, estou pronto a fazer-te o bem, e, se valho menos, não recuso mostrar-me agradecido pelo que receber de ti.

Satisfeito, Alexandre estendeu-lhe a mão direita e replicou:

- Pois pensas que, com essas palavras e essa bondade, o nosso encontro há-de ficar sem contenda? Fica sabendo que nada adiantas, porque me baterei e pelejarei contigo à força de benefícios, a fim de que não pareças melhor do que eu.






Recebendo, pois, muitos bens, e dando muitos mais, acabou por lhe dar um presente de mil talentos em dinheiro, como que desagradou sobremaneira aos amigos, mas fez com que muitos dos bárbaros se lhe mostrassem menos contrários. Os mais belicosos entre os da Índia eram pagos para defender com ardor as cidades e causavam-lhe grandes danos. Tendo, pois, estabelecido tréguas com eles numa delas, apanhando-os depois no caminho, quando retiravam, deu-lhes morte a todos; e entre os seus feitos de guerra, em que sempre se conduziu justa e regiamente, este é o único que pode ter-se como uma mancha. Não lhe deram os filósofos menos que fazer do que os bárbaros, indispondo contra ele os reis que se lhe haviam unido e fazendo revoltar-se os povos livres, pelo que lhe foi preciso enforcar muitos.

O relativo a Poro, foi o próprio Alexandre quem nas suas cartas escreveu como se passara, porque diz que, correndo o Hidaspes entre os dois acampamentos, tinha Poro colocado na frente do seu os elefantes, para guardarem a passagem, e que ele, pela sua parte, todos os dias fazia muitos movimentos e grandes alvoroços no seu campo, a fim de fazer com que os bárbaros a eles se acostumassem e não os temessem; que numa noite muito invernosa, em que a Lua não brilhava, levando algumas tropas apeadas e a fina flor da cavalaria, afastou-se muito dos inimigos e passou para uma ilhota de pequena dimensão; que ali foi surpreendido por uma grande chuvada, e, sendo muitos os relâmpagos e os raios que pareciam dirigir-se ao acampamento, de tal modo que muitos eram atingidos e calcinados por eles, saiu da ilhota para passar para a margem oposta, mas, como Hidastes ia muito cheio e fora do leito, por causa da tempestade, fizera uma grande abertura e inundação, correndo por ela as águas em notável quantidade, e que conseguiu firmar-se no terreno intermédio, mas com muito pouca segurança, por o terreno ser resvaladiço e estar molhado. Conta-se ter proferido ali a seguinte exclamação:

- Acreditaríeis agora, ó Atenienses, quantos trabalhos suporto, para ser celebrado entre vós!








Mas isto quem refere é Onesícrito; o próprio Alexandre diz que, deixando as lanchas, passaram armados a inundação, com água pelo peito. Depois de ter passado, adiantou-se com a cavalaria uns vinte estádios, fazendo conta que, se os inimigos acometessem com esta arma, melhor os venceria e, se quisessem travar batalha, também a sua infantaria chegaria até ele com antecipação; e sucedeu a primeira destas coisas: porque, tendo carregado com mil cavalos e sessenta carros, e morto trezentos homens, entendeu com isto Poro que o próprio Alexandre já estava daquele lado, pelo que pôs em movimento todo o seu exército, à excepção de algumas tropas que foi preciso deixar para trás para estorvarem a passagem aos Macedónios. Alexandre, por temor dos elefantes e do grande número dos inimigos, diz-se que carregou obliquamente pela ala esquerda, dando ordem a Geno para que acometesse pela direita, que por uma e outra foram os inimigos rechaçados, e, retirando-se sempre em direcção aos elefantes, os que iam de vencida embaraçavam-se e confundiam-se ali; e que, tendo o combate começado a ser travado ao nascer do Sol, com dificuldade fizeram ceder os inimigos à hora oitava. Isto é o que o próprio condutor desta batalha referiu nas suas cartas. A maioria dos historiadores concorda que Poro ultrapassara a estatura média em quatro côvados e um palmo, e que, montado, nada lhe faltava para ficar igual ao elefante quanto ao porte e robustez do corpo; e isto apesar de o elefante que usava ser dos maiores. Este animal mostrou naquela ocasião uma extraordinária inteligência e um cuidado extremo com o rei, pois, enquanto este conservou o vigor, defendendo-o encolerizado dos que o atacavam, fazendo-os em pedaços, mas, quando percebeu que estava a desfalecer, devido ao grande número de dardos e feridas, receoso de que caísse de repente, inclinou-se brandamente até ao chão, dobrando os joelhos, e, segurando depois suavemente com a tromba os dardos, foi-os arrancado um a um. Perguntando Alexandre a Poro, quando este foi feito prisioneiro, como queria que o tratasse, respondeu-lhe:

- Regiamente!

E, perguntando-lhe Alexandre se não tinha mais nada a acrescentar, retorquiu:

- Ao dizer regiamente, está tudo dito!

Deixou-lhe então autoridade não apenas sobre os seus antigos súbditos, com o nome de sátrapa, mas também lhe concedeu novos territórios, tendo-lhe submetido os povos livres, que eram quinze nações, em várias cidades (12) principais e muitas aldeias. Conquistou ainda outra região três vezes maior, da qual nomeou Filipe, um dos seus amigos.

Em consequência da batalha contra Poro, morreu Bucéfalo, não imediatamente, mas sim ao fim de algum tempo, quando, segundo a maioria, já se estava a curar das suas feridas, mas, segundo disse Onesícrito, fatigado por um trabalho que já não conseguia suportar devido à sua velhice, pois tinha trinta anos quando morreu.

Sentiu-o pronfudamente Alexandre, considerando que perdera nada menos do que um amigo e um servidor, pelo que mandou edificar em sua memória uma cidade junto ao Hidaspes, chamando-lhe Bucefália. Diz-se que, tendo perdido tambem um cão chamado Peritas, que havia criado e do qual gostava muito, edificou outra cidade com o seu nome. Sócion escreve que ouviu dizer isto a Potamon de Lesbos.






- O combate de Poro desanimou muito os Macedónios, dissuadindo-os de se quererem internar mais na Índia, pois ainda mal haviam derrotado este, que lhes fizera frente com vinte mil infantes e dois mil cavaleiros, quando já se voltava de novo a oferecer resistência a Alexandre, que queria forçar a passagem do rio Ganges, cuja largura sabiam ser de trinta e dois estádios e a sua profundidade de cem braças, e que a margem oposta estava guarnecida por grande número de homens armados, com cavalos e elefantes, porque se dizia que o estavam esperando os reis dos Gandaritas e dos Préssios, com oitenta mil infantes, oito mil carros e seis mil elefantes de guerra. E não se considere isto um exagero, pois Adrócoto, que reinou pouco depois, ofereceu a Seleuco um presente de quinhentos elefantes, e, com um exército de seiscentos mil homens, correu e subjugou toda a Índia. Ao princípio, dominado pela ira e pela raiva, Alexandre retirou-se para a sua tenda e ali permaneceu encerrado, dizendo que nada agradecia do que fora feito antes se não passasse o Ganges, e que considerava aquela retirada uma confissão de inferioridade e derrota. Mas, fazendo-lhe os amigos ver o que era conveniente e rodeando os soldados a sua tenda com lamentos e vozes em que lhe faziam rogos, condescendeu por fim e levantou o acampamento, tendo recorrido, para criar ilusão acerca da sua glória, a arbítrios estúpidos e a estranhas invenções, porque mandou construir armas muito maiores, e pesebres e freios de muito maior peso para os cavalos, e foi-os deixando espalhados pelo caminho. Erigiu também altares aos deuses, onde ainda hoje vão rezar os reis dos Préssios, deslocando-se àqueles locais e oferecendo sacrifícios, à maneira grega. Andrócoto, que era ainda muito jovem, viu Alexandre ter-se tornado dono de tudo, em face do desprezo com que era olhado o rei, devido à sua maldade e à sua origem.

Formou então Alexandre o projecto de ir dali ver o mar exterior (13) e, construindo muitos transportes e lanchas, navegava sossegadamente pelo rio. Mas nem por isso esta viagem era tranquila e sem perigo, pois, saltando em terra e acometendo as cidades, ia-as subjugando a todas. Sem dúvida que contra os chamados Málios, que se diz serem os mais belicosos da Índia, muito pouco faltou para não morrer. Porque com frechadas fez aqueles habitantes retirar das muralhas e, postas as escadas, foi o primeiro a subir, mas, tendo-se quebrado a escada, os bárbaros que estavam colocados junto à muralha causaram-lhe de lá de baixo vários ferimentos, mas ele, apesar de ter muito pouca gente consigo, teve o arrojo de se deixar cair no meio dos inimigos, ficando, por sorte, em pé; e, como as armas sofreram um súbito movimento, pareceu aos bárbaros que um resplendor e uma aparência extraordinária brotava dele. Assim, ao princípio, fugiram e dispersaram-se, mas, ao verem-no apenas com dois escudeiros, voltaram a correr para ele e alguns, embora ele se defendesse, conseguiram feri-lo de perto com espadas e lanças, e um que estava mais longe disparou com o arco uma seta com tal força e rapidez que, trespassando a couraça, se lhe cravou entre as costelas, junto ao mamilo. Cedeu o corpo ao golpe e também se transtornou um tanto, e o atirador correu para lá, sacando o alfange que usam os bárbaros, mas Pucestas e Limneu puseram-se na frente e, sendo ambos feridos, este perdeu a vida, mas Peucestas aguentou-se e Alexandre deu morte ao bárbaro. Recebera muitos golpes e, ferido por fim com uma maça junto ao pescoço, teve de se apoiar à muralha, ficando a olhar os inimigos. Acudiram neste momento os Macedónios e, recolhendo-o já sem sentidos, levaram-no para a sua tenda, e, ao princípio, correu no exército o rumor de que morrera. Tiraram-lhe, não sem grande dificuldade e trabalho, o cabo da seta, que era de madeira, depois do que foi possível desapertar-se a couraça, embora também a muito custo, pondo-se assim a descoberto a ferida e verificando-se que a ponta que, segundo se diz, tinha três dedos de comprimento e quatro de largo, se encontrava cravada num dos ossos. Quando lha estavam a tirar, teve desmaios em que julgaram que se iria ficar, mas logo se restabeleceu. Embora tivesse ficado fora de perigo, aquilo deixou-o muito débil, e teve de passar muito tempo a dieta e a medicar-se, mas, sentindo um dia, da parte de fora, os Macedónios alvoraçados e inquietos com o desejo de o ver, pôs as suas roupas e saiu para onde eles se encontravam. Sacrificou depois aos deuses e, voltando a embarcar e a largar as velas, subjugou novas regiões e muitas cidades.






Caíram em seu poder dez dos filósofos gimnosofistas, aqueles que com as suas persuasões mais tinham contribuído para que Sabas se revoltasse e que maiores males haviam causado aos Macedónios. Como tinham fama de ser muito hábeis em dar respostas breves e concisas, propôs-lhes certas perguntas obscuras, dizendo que mandaria matar primeiro aquele que pior respondesse, e assim por esta ordem, intimando o mais ancião a julgar. Perguntou ao primeiro se, na sua opinião, eram mais os vivos ou os mortos, e a resposta foi que eram mais o vivos, pois os mortos já não eram. Ao segundo, perguntou qual é que criava maiores animais, se a terra ou o mar, respondendo-lhe ele que era a terra, porque o mar fazia parte dela. Ao terceiro, qual era o animal mais astuto, sendo-lhe dito: «Aquele que o homem ainda não conheceu». Perguntando ao quarto com que fim fizera com que Sabas se revoltasse, respondeu-lhe ele: «Com o desejo de que vivesse bem, ou morresse mal». Sendo perguntado ao quinto qual lhe parecia que havia existido primeiro, o dia ou a noite, respondeu-lhe que o dia precedera a noite num dia, e acrescentou, vendo que o rei se mostrava admirado, que, sendo enigmáticas as perguntas, também o deviam ser as respostas. Mudando, pois, de método, perguntou ao sexto como é que uma pessoa poderia conseguir ser a mais amada entre os homens, respondendo-lhe ele: «Se, sendo o mais poderoso, não se fizer temer». Dos demais, interrogado um acerca de como é que uma pessoa podia passar de homem a deus, disse-lhe: «Se fizesse coisas que ao homem são impossíveis de fazer». E, perguntando a outro qual podia mais, se a vida ou a morte, respondeu-lhe que era a vida, pois era capaz de suportar tantos males. Perguntando ao último até quando deveria o homem ter por bem viver, este respondeu-lhe: «Enquanto não preferir a morte à vida». Voltou-se então para o juiz, mandando-lhe que se pronunciasse, e, tendo este dito que todos haviam respondido o pior possível, Alexandre se declarou:

- Pois tu serás o primeiro a morrer, por julgares dessa maneira.

Ao que aquele replicou:

- Isso não pode ser, ó rei, a menos que te contradigas, pois disseste que morreria primeiro o que pior respondesse.



Deixou, pois, ir estes livres, havendo-lhes ainda dado presentes, e aos que, tendo também fama, viviam à sua conta, deu ordem a Onesícrito que lhes dissesse que o fossem ver. Era Onesícrito um filósofo dos da escola de Diógenes, o cínico, e diz-se que Calano lhe mandou com desdém e má cara tirar a túnica e escutar nu as suas lições, pois de outro modo não lhe dirigiria a palavra, nem que viesse da parte de Júpiter, mas que Dandamis o tratou com mais soçura e, tendo-lhe ouvido falar de Sócrates, de Pitágoras e de Diógenes, dissera que lhe pareciam homens apreciáveis, embora, em seu entender, tivessem vivido com demasiado submissão às leis. Outros são de opinião de que Dandamis não terá dito mais do que isto:

- Pois, com que fim é que Alexandre fez uma viagem tão grande, para vir até aqui? (in ob. cit., pp. 84-94).


Notas:

(11) O sentido desta passagem é que o valor acaba sempre por vir ao de cima e para a cobardia não existe posto algum suficientemente forte e seguro.

(12) No original diz-se que foram cinco mil as cidades, mas neste número naturalmente que há algum erro, pelo que se considerou preferível não o determinar.

(13) O mar Eritreu, por oposição ao Mediterrâneo, ou mar interior.


sábado, 16 de março de 2013

Alexandre Magno (i)

Escrito por Plutarco 




Héracles


«Héracles é filho de Alcmena e de Anfitrião, mas, na realidade, o seu verdadeiro pai é Zeus. Este aproveitara a ausência de Anfitrião, que saíra em expedição contra os Teléboas, para enganar Alcmena, assumindo a forma e o aspecto do seu marido e, no decurso de uma longa noite, por si prolongada, engendrou o herói. Anfitrião regressou pela manhã, deu-se a reconhecer e fez Alcmena conceber um segundo filho, Íficles, o irmão gémeo de Héracles, mais novo que ele uma noite. Contava-se que, para se fazer reconhecer por Alcmena e retirar-lhe qualquer possibilidade de dúvida, Zeus lhe enviara como presente uma taça de ouro que fora de Ptérelas, o rei dos Teléboas. Contou-lhe, além disso, como se fossem suas, as façanhas cometidas pelo verdadeiro Anfitrião. Quando este regressou, ele interveio para reconciliar marido e esposa, e Anfitrião resignou-se, diz-se, a ser apenas o pai adoptivo.

(...) Os Heraclidas são, na acepção mais lata do termo, não apenas os filhos de Héracles, mas todos os seus descendentes até à geração mais afastada. Na época helenística, muitas famílias reais pretendiam ainda fazer-se passar por "Heraclidas" e faziam recuar a sua estirpe até ao herói. Na lenda, chama-se mais concretamente Heraclidas aos descendentes imediatos de Héracles e Dejanira, que colonizaram o Peloponeso».

Pierre Grimal («Dicionário da Mitologia Grega e Romana»).


«Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como crêem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as acções que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma acção una.

Assim, parece que tenham errado todos os poetas que compuseram uma Heracleida ou uma Teseida ou outros poemas que tais, por entenderem que, sendo Héracles um só, todas as suas acções haviam de constituir uma unidade.

Porém, Homero, assim como se distingue em tudo o mais, também parece ter visto bem, fosse por arte ou por engenho natural, pois ao compor a Odisseia não poetou todos os sucessos da vida de Ulisses, por exemplo, o ter sido ferido no Parnaso e o simular-se louco no momento em que se reuniu o exército. Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, não se seguia necessária e verosimilmente que a outra houvesse de acontecer, mas compôs em torno de uma acção una a Odisseia - una, no sentido que damos a esta palavra - e de modo semelhante a Ilíada.

Por conseguinte, tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando o seja de um objecto uno, assim também o mito, porque é imitação de acções, deve imitar as que sejam unas e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo».

Aristóteles («Poética»).




ALEXANDRE MAGNO


Alexandre o Grande (Museu Britânico).


(...) Que Alexandre era, por parte do pai, heráclida (1), descendente de Carano, e que era eácida (2) por parte da mãe, cuja origem remontava a Neoptólemo, são coisa em que, geralmente, todos estão de acordo. Diz-se que Filipe, tendo sido iniciado em Samotrácia juntamente com Olimpíada, embora sendo muito jovem, se enamorou desta, que era ainda menina e orfã de pai e de mãe, e que concertou o seu casamento com o irmão dela, chamado Arimba. À esposa pareceu-lhe que, antes da noite em que se reuniram no tálamo nupcial, tendo trovejado, lhe caiu um raio no ventre, e que desse golpe se acendeu muito fogo, o qual, dividindo-se depois em chamas, que se espalharam por todas as partes, se dissipou. Filipe, algum tempo depois de celebrado o casamento, teve um sonho, em que lhe pareceu estar a selar o ventre de sua mulher, e que o selo tinha gravada a imagem de um leão. Os outros adivinhos acreditavam que aquela visão só podia significar que Filipe necessitava de exercer uma vigilância mais atenta sobre o seu matrimónio; mas Aristandro de Telmísio disse que aquilo significava que Olimpíada estava grávida, porque o que está vazio não se sela, e que estava a gerar um menino valoroso e parecido na sua índole com os leões. Viu-se também um dragão, o qual, estando Olimpíada adormecida, se lhe enredou no corpo, do que resultou, segundo se diz, que se enfraquecesse o amor e o carinho de Filipe, fazendo escassear as vezes que repousava junto dela; isto talvez por temer que ela usasse alguns encantamentos ou malefícios contra ele, ou porque lhe repugnasse dormir com uma mulher que tivera relações com um ser de natureza superior. No entanto, corre outra história acerca destas coisas, e essa diz-nos que todas as mulheres daquele país, desde tempos muito remotos, estavam iniciadas nos mistérios órficos e nas orgias de Baco; e, sendo designadas por Clodones e Mimalones, faziam coisas muito parecidas com as que executavam as edónias e as trácias, habitantes do monte Hemo (3): de onde resultara que o verbo triscar se aplicasse para significar sacrifícios abundantes e levados ao excesso. Assim, no que respeita a Olimpíada, que se entregava mais do que todas as outras a esse fanatismo e que as excedia no entusiasmo de tais festas, levava para as reuniões báquicas grandes serpentes domesticadas por ela, as quais, saindo muitas vezes da hera e do crivo místicos e enroscando-se nos tirsos (4) e nas coroas, assustavam os presentes.






Diz-se, na verdade, que, tendo Filipe enviado Querão, o Megalopolitano, a Delfos, depois do sonho, este lhe trouxe do deus um oráculo, segundo o qual ele deveria sacrificar a Amon (5) e venerá-lo especialmente entre todos os deuses; e também consta que perdeu um olho por ter visto, por uma frincha da porta, que o deus se entregava aos prazeres com a mulher dele, em forma de dragão. Acerca de Olimpíada, refere Eratóstenes que, ao despedir-se de Alexandre, quando este se preparava para partir com os exércitos, lhe revelou apenas a ele o segredo do seu nascimento, exortando-o a comportar-se de forma digna das suas origens; mas outros asseguram que sempre olhou com horror semelhante fábula, dizendo: «Será possível que Alexandre não deixe de me desacreditar junto de Juno?» Nasceu, portanto, Alexandre, no mês Hecatombéon (6), a que os macedónios chamavam Loon, no dia sexto, o mesmo em que se incendiou o templo de Diana Efesina, o que deu ocasião a que Hegésias, o Magnésio, utilizasse um chiste o qual, pela sua frieza, seria capaz de apagar aquele incêndio: porque disse que não era estranho ter-se queimado o templo estando Diana ocupada em assistir ao nascimento de Alexandre. Todos os magos que se deslocaram nessa altura a Éfeso, tomando o que acontecera ao templo como prenúncio de outro mal, corriam, lastimando-se, cobrindo os rostos e dizendo uns após outros que aquele dia produzira outra grande desventura para a Ásia. Acabava Filipe de tomar a Potideia quando recebeu, ao mesmo tempo, três notícias: que vencera os Ilírios numa grande batalha, através de Parménio, que nos jogos olímpicos havia vencido na prova de cavalos de montar, e que nascera Alexandre. Regozijava-se com elas, como era natural, e os adivinhos aumentaram ainda mais a sua alegria, anunciando-lhe que aquele menino, nascido entre duas vitórias, seria invencível.




As estátuas que mais exactamente representam a imagem do seu corpo são as de Lísipo, que era o único por quem queria ser retratado; porque este artista foi quem soube representar com mais vida aquela ligeira inclinação do pescoço para o lado esquerdo e aquela flexibilidade do olhar, que com tanto cuidado procuraram depois imitar muitos dos seus sucessores e dos seus amigos. Apeles, quando o pintou com o raio, não lhe imitou bem a cor, pois o fez mais moreno e ardoroso, sendo ele branco como dizem, de uma brancura rosada, principalmente no peito e no rosto. A sua cútis expirava fragrância, e a boca e a carne exalavam o melhor odor, que penetrava a sua roupa, se acreditarmos no que podemos ler nos Comentários de Aristoxeno. A causa podia ser a compleição do seu corpo, que era ardente e fogoso, porque o bom odor nasce da cozedura dos humores por meio do calor, segundo opinião de Teofrasto; é por isso que os lugares secos e ardentes da Terra são os que produzem em maior quantidade os mais suaves aromas; e é o sol que dissipa a humidade da superfície dos corpos, que é a matéria de toda a corrupção; e, a Alexandre, o ardor da sua compleição fê-lo, segundo parece, bebedor de grande alento. Sendo ainda muito jovem, logo se manifestou a sua continência: pois, apesar de ser para tudo o mais arrojado e veemente, no que se referia aos prazeres corporais era pouco sensível e gozava-os com grande sobriedade, ao passo que a sua ambição demonstrou desde logo uma ousadia e uma magnanimidade superiores ao normal para a sua idade. Porque nem toda a glória lhe agradava, nem todas as suas causas - ao contrário de Filipe, o qual, como se fosse um sofista, se gabava de saber falar eloquentemente e mandava gravar em moedas as vitórias que alcançava nas provas de carro em Olímpia - quando os seus familiares lhe propuseram que se candidatasse ao prémio dos estádios, pois era muito rápido na corrida, respondeu-lhes que só no caso de ter reis como competidores. Em geral, parece que era muito indiferente a todos os géneros de combates atléticos, pois que, custeando muitos festivais de trágicos, de flautistas, de citaristas, e ainda dos rapsodistas ou recitadores das poesias de Homero, e dando simulacros de caçadas de todos os géneros e de jogos de esgrima, jamais de sua própria vontade propôs qualquer prémio para o pugilato ou para o pancrácio (7).



Olimpíada



Achando-se ausente Filipe, teve de ser ele a receber e a obsequiar uns embaixadores enviados pelo rei da Pérsia, e mostrou-se tão amigo deles, pelo seu trato agradável e por não lhes fazer nenhuma pergunta infantil ou que pudesse parecer frívola, querendo conhecer apenas a distância de uns lugares aos outros, o modo de viajar, obter informações acerca do próprio rei e de qual a sua disposição em relação aos inimigos, e saber qual a força e poder dos Persas, que eles ficaram admirados e não tiveram em grande conta a celebrada sagacidade de Filipe, comparada com as qualidades inatas e os elevados pensamentos do filho. De todas as vezes que chegaram notícias de que Filipe havia tomado alguma cidade importante, ou que vencera alguma memorável batalha, não se mostrava satisfeito por a ouvir, mas limitava-se a dizer para os da sua idade: «Será possível, amigos, que o meu pai se antecipe e conquiste tudo, sem nos deixar a nós nada de brilhante e glorioso em que possamos distinguir-nos?». Não ambicionando prazeres nem riquezas, mas apenas méritos e glória, parecia-lhe que, quanto mais o pai deixasse conquistado, menos lhe ficaria a ele para vencer; e crendo, por isso, que quanto mais se aumentava o Estado, mais decresciam as suas futuras façanhas, o que desejava não eram riquezas, nem presentes, nem prazeres, mas apenas um império que lhe oferecesse combates, guerras e possibilidades de engrandecer a sua glória. Eram muitos, como se pode saber, os que estavam destinados a orientar a sua educação, havendo entre eles nomes de famosos aios e mestres, sobre todos os quais presidia Leónidas, varão austero nos costumes e parente de Olimpíada; no entanto, como não gostava da designação de aio, embora ela representasse uma profissão honesta e recomendável, era tratado por todos os outros, devido à sua dignidade e parentesco, por nutrízio e director de Alexandre; e o que se dava todos os ares e aparato de aio era Límaco, natural de Arcânia, o qual, apesar de toda a sua originalidade se limitar a atribuir-se a si próprio o nome de Fénix, a Alexandre o de Aquiles e a Filipe o de Peleu, agradava muito com esta simplicidade e ocupava o segundo lugar.

Trouxe o tessálico chamado Filónico o cavalo Bucéfalo para vender a Filipe por treze talentos, e, tendo descido a um descampado para o experimentarem, mostrou-se arisco e completamente indómito, sem admitir cavaleiro, nem suportar a voz de nenhum dos que acompanhavam Filipe, pois a todos ameaçava erguendo as patas dianteiras. Desagradou isto a Filipe, que deu ordem para que o levassem, por ser feroz e  insubmisso; mas Alexandre, que se encontrava presente, disse:

- Que cavalo perdem, só por não terem conhecimento nem decisão para o dominar!

Filipe, ao princípio calou-se, mas, como ele repetia, lastimando, muitas vezes aquela decisão, replicou-lhe:

- Censuras os que têm mais anos do que tu, como se soubesses ou pudesses manejar melhor o cavalo.




Ao que ele contestou:

- É evidente que o dominarei melhor do que ninguém.

- Se não fizeres o que dizes - retorquiu o pai - qual há-de ser o castigo pela tua temeridade?

- Por Júpiter - disse - pagarei o preço do cavalo.

Puseram-se a rir e, tendo chegado a acordo acerca da aposta, ele dirigiu-se para o local onde estava o cavalo, segurou-o pelas rédeas e, voltando-se, colocou-o de frente para o Sol, pensando, ao que parece, que o cavalo se agitava era por ver a sua sombra, que batia e se movia junto dele. Passou-lhe depois a mão pelo pêlo e afagou-o por alguns instantes e, vendo que lhe dominava o fogo e os brios, foi tirando pouco a pouco o manto, lançando-o ao solo, e, de um salto, montou sem dificuldade. Ao princípio, puxou-lhe um bocado o freio e, sem o castigar, nem sequer o tocar de esporas, fê-lo estar quieto. Quando verificou que ele não representava nenhum risco, mas que ansiava por correr, foi-lhe dando rédeas e incitou-o com voz forte e aplicando-lhe os calcanhares. Filipe e os que com ele se encontravam começaram por se sentir muito preocupados e mantiveram-se em silêncio, mas, quando o viram dar uma volta com facilidade e desenvoltura, mostrando-se contente e alegre, todos os demais irromperam em aclamações; mas, acerca do pai, conta-se até que chorou de alegria e que, beijando-lhe a testa logo que desmontou, lhe disse:

-Procura, meu filho, um reino igual a ti, pois na Macedónia não cabes.

Observando que ele era de carácter pouco flexível e daqueles que não podem ser levados pela força, mas que pela razão e pelo discurso se conseguia conduzi-lo facilmente ao que era decoroso e justo, o pai decidiu por si próprio procurar persuadi-lo mais do que mandá-lo; e, não tendo suficiente confiança na capacidade dos mestres de música e das demais habilidades comuns para o poderem instruir e formar, por isto exigir maior inteligência e ser, segundo a expressão de Sófocles,


obra de muito alento e de muita astúcia,


mandou chamar o filósofo de mais fama e de mais vastos conhecimentos, que era Aristóteles, a quem deu um honroso e conveniente prémio pelos seus ensinamentos, pois reedificou de novo a cidade de Estagira, de onde era natural Aristóteles, e que o mesmo Filipe destruíra, e restituiu-a aos seus antigos cidadãos, que se haviam tornado fugitivos ou escravos. Concedeu-lhes para escolas e para os seus exércitos o bosque vizinho de Mieza, onde ainda agora se podem ver os assentos de pedra de Aristóteles e os locais protegidos do sol por onde passeava. Parece que Alexandre não só aprendeu ética e política, como também tomou conhecimento de todos aqueles ensinamentos graves e reservados que os filósofos designam pelos nomes técnicos de acroamáticos (8) e de epópticos (9), e que não comunicam a muita gente. Por ter sabido, já depois de ter alcançado a Ásia, que Aristóteles publicara nos seus livros algumas destas doutrinas, escreveu-lhe, falando-lhe sem rodeios sobre a matéria, a carta que a seguir se reproduz: «Alexandre a Aristóteles, felicidades. Não fizeste bem em publicar as doutrinas acroamáticas; porque, em que é que nos diferenciaremos dos demais, se as ciências em que nos instruístes hão-de ser comuns a todos? Pois eu antes quero sobressair nos conhecimentos úteis e honestos do que no Poder. Que os deuses te guardem». Aristóteles, para não ferir esta nobre ambição, defendeu-se acerca destas doutrinas dizendo que não as devia considerar divulgadas, embora ele as tivesse publicado, pois, na realidade, o seu Tratado de Metafísica não era útil para aprender e se instruir, pois escrevera-o logo de modo a servir apenas como índice, ou memorandum aos já iniciados.

Alexandre e Aristóteles


Tenho por certo ter sido também Aristóteles quem principalmente inspirou a Alexandre o seu entusiasmo pela medicina, pois não só se dedicou ao seu estudo teórico, como também assistia aos seus amigos doentes e lhes prescrevia o regime e os medicamentos convenientes, como se pode deduzir pelas suas cartas. Em geral, tinha uma inclinação natural para as letras, para aprender e para ler; e, como tomasse a Ilíada por guia de doutrina militar, embora lhe desse esse nome, usava, corrigida pela mão de Aristóteles, a cópia a que chamavam «A Ilíada da caixa», a qual, juntamente com a espada, guardava sempre debaixo da almofada, segundo escreve Onesícrito. Não abundavam os livros na Macedónia, pelo que deu ordem a Harpalo que lhos enviasse; e este enviou-lhe os livros de Filisto, muitas cópias das tragédias de Eurípides, de Sófocles e de Ésquilo, e os ditirambos de Telestes e de Filoxeno. Ao princípio admirava Aristóteles e não lhe tinha, segundo ele próprio dizia, menos amor do que a seu pai, pois, se a um devia o viver, a outro devia o viver bem; mas, com o tempo, resfriou-se com ele, não até ao ponto de o ofender no que fosse, mas o facto de os seus obséquios não terem já o calor e a vivacidade de antes dava mostras dessa disposição. Mas não restam dúvidas de que o amor e o desejo pela filosofia que aquele lhe incutiu nunca mais se separaram da sua alma, como comprovam a honra que dispensou a Anaxarci, os cinquenta talentos que enviou a Xenócrates e o amparo que nele encontraram Dandamis e Calano (10).

(in «Vidas Paralelas», Amigos do Livro, pp. 18-26).


Notas: 

(1) Heráclidas era a designação adoptada pelas dinastias gregas do Peloponeso, de Corinto, da Lídia e da Macedónia, que pretendiam descender de Héracles, ou Hércules.



Héracles



(2) Eácidas era o nome dado aos descendentes de Éaco, tais como Peleu, Aquiles, Pirro, Neoptólemo, etc.

(3) Antigo nome dos Balcãs.

(4) Bastões enfeitados de hera e pâmpanos e terminados em forma de pinha, usados por Baco e pelas bacantes.

(5) Deus egípcio do Sol. Os Gregos identificaram-no com o seu Júpiter.

(6) Sétimo mês dos Atenienses até ao ano de 450 a. C., em que se tornou o primeiro do calendário olímpico.

(7) Combate ginástico típico da antiguidade grega, que compreendia a luta e o pugilato, e que permitia o emprego de todos os recursos da luta.

(8) Escutados da própria boca dos mestres.

(9) Referentes à terceira fase da iniciação nos mistérios de Elêusis.

(10) Dois filósofos indianos.


Continua