sábado, 29 de maio de 2010

Minimum e Maximum em Aristóteles (ii)

Escrito por Mário Ferreira dos Santos






Um movimento contínuo é um tender a um termo (limite-peras) como a um fim (telos). É este fim que dá ao tender a sua unidade. O movimento é uma modal, como nos mostra Suarez, do que é movido (quod), ao qual é inerente e absolutamente inseparável. O tender é pura passividade, mas activo na causa eficiente do movimento. A unidade do movimento prova a influência de uma causa final. O movimento de um corpo forma uma unidade, uma totalidade, com uma estrutura coerente, que é característica da tensão, que permite construir o seu esquema matemático, que é uma matematização do esquema concreto que nêle se dá.

(...) Apesar de muitos, actualmente, considerarem homogeneamente tempo e espaço, reduzindo-os a um só, já tivemos ocasião de mostrar em "Filosofia e Cosmovisão" o nosso pensamento, que se filia àqueles que aceitam a heterogeneidade e a irredutibilidade específica de um ao outro, embora, no ser, ambos, como modais, possam identificar-se, como as espécies se identificam no gênero, sem perder, contudo, as suas características específicas, e muito menos a sua diferença. Mas entre o tempo e o espaço, há uma antinomia patente, pois entre eles não há apenas uma diferença, o que é próprio das espécies em um gênero, mas uma diversidade, o que implica a colocação de um e outro em gêneros diversos.

Estas palavras de Einstein são valiosas para o que desejamos dizer: "... o tempo e o espaço estão bem fundidos num mesmo e único continuum, mas este não é isótropo", e isto por que não apresentam as mesmas propriedades em todas as direcções. E prossegue: "esses caracteres do elemento distância espacial e os do elemento duração permanecem distintos uns dos outros, e até na fórmula que dá o quadrado do intervalo de universo de dois acontecimentos infinitamente vizinhos". Um campo de intensidade das qualidades não pode ser incluído totalmente nas dimensões espaciais. Uma intensidade que aumenta sucede no tempo.

A atomística moderna não é democrítea. Os átomos, para a ciência actual, são mundos de uma complexidade extrema. Para Demócrito, a nova substância surgia da agregação dos átomos que permaneciam o que são e o que eram. Mas a constituição de uma molécula química não é a de mero agregado, e o corpo químico também não o é, pois, no composto, surge uma nova substância, uma totalidade, em que as partes estão modificadas. O próprio átomo é uma nova substância em relação aos seus componentes, os quais sofrem no átomo, mutações.

Esta conquista da química moderna põe em crise o mecanicismo que julgava poder explicar tudo em termos de agregação e desagregação, em que o relacionamento dos átomos seria suficiente para explicar o surgimento de uma nova substância que seria apenas uma figura. Tal não é verdade em face dos actuais conhecimentos, pois há mutações dos componentes, quando tomam parte em uma totalidade. Este princípio é um dos fundamentais da "Teoria Geral das Tensões", e é algo que se verifica em toda a ordem ôntica, e que pode obter um enunciado ontológico, como veremos naquela obra, e que mostra a possibilidade que dispomos de construir uma visão hólica (de holos, totalidade), que é aplicável em todas as esferas do pensamento epistêmico, permitindo, assim, que se possam estabelecer algumas das coordenadas de uma visão unificadora do universo.






Esse pensamento já estava implícito no aristotélico e na obra maior dos medievais. Aproveitar o que as observações científicas actuais contribuem para a precisão deste tema, é o que fazemos naquela obra, onde construímos uma visão tensional, que inclui e não exclui, dialéctica portanto, no sentido eminente em que empregamos este termo.

Numa totalidade, como um ser vivo, a unidade é actual e a multiplicidade, dos componentes, é potencial. Tal afirmativa não quer dizer que os componentes sejam totalmente potenciais, mas que, no composto, como partes, estão em potência, porque nele, actualizam a unidade. Assim a matéria prima é potencial num corpo. No ser vivo, enquanto vivo, os elementos minerais, são potenciais, não totalmente, mas parcialmente, o suficiente para que a totalidade seja distinta de suas partes.

Na totalidade, actualizam certos aspectos e virtualizam outros, que são actualizados, por sua vez, quando da decomposição, como são virtualizados os que anteriormente estavam em acto. É o que nos mostra hoje a química biológica, e, aliás, a química inorgânica também.

Os componentes estão presentes em potência no composto, mas essa potência não é pura potência. Pode-se dizer que, no composto, há graus de potencialidade dos elementos componentes, que nele são diferentes do que eram quando não o compunham. Na filosofia escolástica dizia-se que tais elementos estão virtualmente no composto, e esse termo era bem preciso e adequado ao verdadeiro conteúdo.

A virtualidade é uma potencialidade prestes a realizar-se no pleno exercício da actualidade. Esta idéia já estava implícita no pensamento aristotélico, pois a dynamis, na mixis, na mistura, como mostra Aristóteles, é uma virtualidade e não uma pura potência. As dispositiones praevias dos escolásticos e as dispositiones proximas referiam-se a essas virtualidades, as primeiras do ser que nasce (geração), ou sejam: há no ser, que aí está, disposições prévias que estão a ponto de actualizar a sua corrupção e, também, disposições próximas da nova substância que surgirá. Dessa forma, damos claramente o sentido de tais termos, embora exigissem outros esclarecimentos em face da problemática que surge, que não seria possível tratar neste livro.

Mas cabem aqui, alguns comentários que passaremos a fazer. Num mixto, os elementos componentes têm uma natureza que é específica deles. Mas o mixto, por sua vez, tem a natureza do mixto. A primeira fica, em parte, virtualizada no composto, enquanto a segunda, neste, é plenamente actualizada. A natureza dos componentes é potência determinada a uma nova natureza, a do mixto. Os elementos permanecem virtualizados, conservando a sua natureza virtualmente. Um problema que surgiu aqui, foi o de se saber se esses elementos componentes conservavam a sua natureza ou a perdiam para integrarem-se na natureza do mixto.


Ibn Sina (Avicena).






Ibn Sina e a musa da medicina



Os árabes e muitos escolásticos admitiram a permanência da natureza, integralmente em acto, dos componentes, embora com certas divergências menores na maneira de conceber essa tese. Neste caso, o mixto (mixis) seria apenas um agregado, e perdia-se desse modo a unidade substancial do mixto. Mas tais afirmativas levariam fatalmente a considerá-lo como uma unidade e simultaneamente como uma multiplicidade, o que contrariava a lei da não-contradição.

A solução de Tomás de Aquino é mais consentânea ao pensamento aristotélico, pois admite a natureza actual do mixto e a virtualidade dos componentes, e também mais consentânea com os actuais conhecimentos da física e da química. Os elementos componentes estão em potência mais próxima do mixto, como este daqueles.

A superfície de uma esfera, de um elissóide, de um cilindro (formados pela mesma substância), exemplifica Hoenen, tem, cada uma, necessariamente uma única forma geométrica, e a primeira é em potência mais próxima à segunda que à terceira. Uma superfície esférica se diferencia pouco de um elissóide e mais longínqua de um elissóide, que se aproxima de um cilindro. A forma esférica é mais próxima de um elissóide que de um cilindro.

Nada impede que um ser seja ao mesmo tempo um e múltiplo. A dialéctica, como a concebemos, opera sobre as antinomias e contrários. Um ser humano, por exemplo, pode simultaneamente ver, ouvir, tocar e pensar. Todas essas actividades são múltiplas e heterogêneas. Mas o ser humano, substancialmente considerado, como ser humano, é um, embora múltiplo em suas manifestações acidentais. O princípio formal de não-contradição aplica-se ao mesmo aspecto, o qual não pode ser este e simultaneamente o seu contrário. No homem, podem dar-se os contrários, não, porém, sob o mesmo aspecto. Ouvir é ouvir, pensar é pensar, embora ouvir seja outro que pensar.

Admitir-se que há na unidade substancial apenas uma homogeneidade de qualidades foi erro que cometeram muitos, não porém vultos como os grandes escolásticos que compreendiam que uma unidade substancial não excluía uma multiplicidade de acidentes e, consequentemente, das qualidades. Diferenças de qualidades nas diversas partes de uma unidade substancial, de uma substância, era admitida, como o mostrava a própria experiência, e a científica ainda mais, como até era admitida uma possível heterogeneidade no contínuo. A unidade da forma substancial funda-se na unidade da substância, a qual não implica uma homogeneidade no próprio corpo. A experiência hoje o comprova, sem por isso destruir a unidade, e comprova que tais heterogeneidades podem ser transeuntes como até perdurantes.

A própria afirmativa de que a geração de um corpo é a corrupção de outro, que o perecer é um devir, nos mostra essa dialéctica. Uma unidade revela uma estrutura heterogênea (daí, no bom sentido pitagórico, ter um arithmós plethos, que é possível de ser estabelecido ou não, mas que se dá, de qualquer forma, porque há aí um numeroso, que permite ser numerado, sempre naquele sentido, o que não se deve nunca esquecer). A microscopia moderna favorece a aceitação dessa tese que era pitagórica e que Tomás de Aquino apadrinha, na escolástica, embora tivesse ele uma visão falsa de Pitágoras (2). A heterogeneidade dos componentes permanece na unidade, embora não totalmente, e cabe à experiência estabelecer os graus. Não possuíam os medievais meios suficientes e hábeis de experimentação. Portanto, não é de admirar que alguns negassem a heterogeneidade inorgânica (o próprio Tomás de Aquino a aceitou, embora em têrmos). A aplicação dos métodos científicos actuais (como os raios X) permitem estabelecer essa tese. Também admitiam os escolásticos maiores até uma heterogeneidade específica, o que nos levaria, se aqui a estudássemos, a penetrar em campos filosóficos que cabem a outros trabalhos.


O Anjo da Escola



Quando uma unidade é produto apenas de uma agregação, aquela deve ter como propriedade as constantes dos componentes, ou as que normalmente deveriam surgir destes. Mas desde o momento que a unidade apresenta propriedades outras que as do componente, estamos em face de uma totalidade. Quando de uma agregação de elementos surgem propriedades totalmente diversas de as dos componentes, estamos em face do surgimento de uma nova substância. No primeiro caso, temos o surgimento de propriedades resultantes da agregação, no segundo, resultantes da totalidade. Era o que os medievais chamavam "resultantia". No primeiro caso, as propriedades não estavam presentes em acto nos componentes, mas inclusas como possibilidades próximas diversas. No segundo caso, há o surgimento de propriedades diversas, isto é, genericamente outras de as dos elementos componentes (in ob. cit., pp. 169-172).



(2) Essa visão falsa é compreensível pelo facto de Tomás de Aquino conhecer o pensamento pitagórico através de Aristóteles, que o entendia segundo a obra exotérica de alguns pitagóricos de graus de paraskeiê (grau de aprendiz). Aristóteles havia também deformado o pensamento platônico. Tais factos são constantes na filosofia, e desses erros não se eximem inclusive os grandes. O que Tomás de Aquino combatia no pitagorismo era a caricatura que dele se fazia, julgada como o genuíno pensamento pitagórico. Na verdade, o pensamento pitagórico só em nossos dias está sendo reconstruído pela acção de estudiosos devotados, o que será tema de nossa obra, de próxima publicação "Pitágoras e o Número".


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