Um movimento contínuo é um tender a um termo (limite-peras) como a um fim (telos). É este fim que dá ao tender a sua unidade. O movimento é uma modal, como nos mostra Suarez, do que é movido (quod), ao qual é inerente e absolutamente inseparável. O tender é pura passividade, mas activo na causa eficiente do movimento. A unidade do movimento prova a influência de uma causa final. O movimento de um corpo forma uma unidade, uma totalidade, com uma estrutura coerente, que é característica da tensão, que permite construir o seu esquema matemático, que é uma matematização do esquema concreto que nêle se dá.
(...) Apesar de muitos, actualmente, considerarem homogeneamente tempo e espaço, reduzindo-os a um só, já tivemos ocasião de mostrar em "Filosofia e Cosmovisão" o nosso pensamento, que se filia àqueles que aceitam a heterogeneidade e a irredutibilidade específica de um ao outro, embora, no ser, ambos, como modais, possam identificar-se, como as espécies se identificam no gênero, sem perder, contudo, as suas características específicas, e muito menos a sua diferença. Mas entre o tempo e o espaço, há uma antinomia patente, pois entre eles não há apenas uma diferença, o que é próprio das espécies em um gênero, mas uma diversidade, o que implica a colocação de um e outro em gêneros diversos.
Estas palavras de Einstein são valiosas para o que desejamos dizer: "... o tempo e o espaço estão bem fundidos num mesmo e único continuum, mas este não é isótropo", e isto por que não apresentam as mesmas propriedades em todas as direcções. E prossegue: "esses caracteres do elemento distância espacial e os do elemento duração permanecem distintos uns dos outros, e até na fórmula que dá o quadrado do intervalo de universo de dois acontecimentos infinitamente vizinhos". Um campo de intensidade das qualidades não pode ser incluído totalmente nas dimensões espaciais. Uma intensidade que aumenta sucede no tempo.
A atomística moderna não é democrítea. Os átomos, para a ciência actual, são mundos de uma complexidade extrema. Para Demócrito, a nova substância surgia da agregação dos átomos que permaneciam o que são e o que eram. Mas a constituição de uma molécula química não é a de mero agregado, e o corpo químico também não o é, pois, no composto, surge uma nova substância, uma totalidade, em que as partes estão modificadas. O próprio átomo é uma nova substância em relação aos seus componentes, os quais sofrem no átomo, mutações.
Esse pensamento já estava implícito no aristotélico e na obra maior dos medievais. Aproveitar o que as observações científicas actuais contribuem para a precisão deste tema, é o que fazemos naquela obra, onde construímos uma visão tensional, que inclui e não exclui, dialéctica portanto, no sentido eminente em que empregamos este termo.
Numa totalidade, como um ser vivo, a unidade é actual e a multiplicidade, dos componentes, é potencial. Tal afirmativa não quer dizer que os componentes sejam totalmente potenciais, mas que, no composto, como partes, estão em potência, porque nele, actualizam a unidade. Assim a matéria prima é potencial num corpo. No ser vivo, enquanto vivo, os elementos minerais, são potenciais, não totalmente, mas parcialmente, o suficiente para que a totalidade seja distinta de suas partes.
Na totalidade, actualizam certos aspectos e virtualizam outros, que são actualizados, por sua vez, quando da decomposição, como são virtualizados os que anteriormente estavam em acto. É o que nos mostra hoje a química biológica, e, aliás, a química inorgânica também.
Os componentes estão presentes em potência no composto, mas essa potência não é pura potência. Pode-se dizer que, no composto, há graus de potencialidade dos elementos componentes, que nele são diferentes do que eram quando não o compunham. Na filosofia escolástica dizia-se que tais elementos estão virtualmente no composto, e esse termo era bem preciso e adequado ao verdadeiro conteúdo.
Mas cabem aqui, alguns comentários que passaremos a fazer. Num mixto, os elementos componentes têm uma natureza que é específica deles. Mas o mixto, por sua vez, tem a natureza do mixto. A primeira fica, em parte, virtualizada no composto, enquanto a segunda, neste, é plenamente actualizada. A natureza dos componentes é potência determinada a uma nova natureza, a do mixto. Os elementos permanecem virtualizados, conservando a sua natureza virtualmente. Um problema que surgiu aqui, foi o de se saber se esses elementos componentes conservavam a sua natureza ou a perdiam para integrarem-se na natureza do mixto.
Ibn Sina (Avicena). |
Ibn Sina e a musa da medicina |
A solução de Tomás de Aquino é mais consentânea ao pensamento aristotélico, pois admite a natureza actual do mixto e a virtualidade dos componentes, e também mais consentânea com os actuais conhecimentos da física e da química. Os elementos componentes estão em potência mais próxima do mixto, como este daqueles.
Nada impede que um ser seja ao mesmo tempo um e múltiplo. A dialéctica, como a concebemos, opera sobre as antinomias e contrários. Um ser humano, por exemplo, pode simultaneamente ver, ouvir, tocar e pensar. Todas essas actividades são múltiplas e heterogêneas. Mas o ser humano, substancialmente considerado, como ser humano, é um, embora múltiplo em suas manifestações acidentais. O princípio formal de não-contradição aplica-se ao mesmo aspecto, o qual não pode ser este e simultaneamente o seu contrário. No homem, podem dar-se os contrários, não, porém, sob o mesmo aspecto. Ouvir é ouvir, pensar é pensar, embora ouvir seja outro que pensar.
Admitir-se que há na unidade substancial apenas uma homogeneidade de qualidades foi erro que cometeram muitos, não porém vultos como os grandes escolásticos que compreendiam que uma unidade substancial não excluía uma multiplicidade de acidentes e, consequentemente, das qualidades. Diferenças de qualidades nas diversas partes de uma unidade substancial, de uma substância, era admitida, como o mostrava a própria experiência, e a científica ainda mais, como até era admitida uma possível heterogeneidade no contínuo. A unidade da forma substancial funda-se na unidade da substância, a qual não implica uma homogeneidade no próprio corpo. A experiência hoje o comprova, sem por isso destruir a unidade, e comprova que tais heterogeneidades podem ser transeuntes como até perdurantes.
A própria afirmativa de que a geração de um corpo é a corrupção de outro, que o perecer é um devir, nos mostra essa dialéctica. Uma unidade revela uma estrutura heterogênea (daí, no bom sentido pitagórico, ter um arithmós plethos, que é possível de ser estabelecido ou não, mas que se dá, de qualquer forma, porque há aí um numeroso, que permite ser numerado, sempre naquele sentido, o que não se deve nunca esquecer). A microscopia moderna favorece a aceitação dessa tese que era pitagórica e que Tomás de Aquino apadrinha, na escolástica, embora tivesse ele uma visão falsa de Pitágoras (2). A heterogeneidade dos componentes permanece na unidade, embora não totalmente, e cabe à experiência estabelecer os graus. Não possuíam os medievais meios suficientes e hábeis de experimentação. Portanto, não é de admirar que alguns negassem a heterogeneidade inorgânica (o próprio Tomás de Aquino a aceitou, embora em têrmos). A aplicação dos métodos científicos actuais (como os raios X) permitem estabelecer essa tese. Também admitiam os escolásticos maiores até uma heterogeneidade específica, o que nos levaria, se aqui a estudássemos, a penetrar em campos filosóficos que cabem a outros trabalhos.
O Anjo da Escola |