sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O guru da Nova Ordem Mundial

Escrito por Olavo de Carvalho









Diário do Comércio, 3 de abril de 2006


Alguns leitores estranham que, em plena ascensão do comunismo na América Latina, eu me desvie da atualidade explosiva para me empenhar, aqui e em outras publicações, num combate aparentemente extemporâneo contra Immanuel Kant e o iluminismo.

Há quem chegue a imaginar que criei birra do anãozinho corcunda de Koenisberg por sua semelhança física com o de Turim (Antonio Gramsci). Mas nada tenho contra anãozinhos, exceto quando por dentro são monstros enormes. Num livro publicado em 1999 descrevi brevemente o segundo. Seu antecessor alemão parece bem menos perigoso. Com freqüência, surge na mídia com as feições risonhas de um amante da paz e da liberdade. Ninguém pode negar que isso ele era realmente, mas em filosofia as palavras não valem pelo seu sentido-padrão dicionarizado, e sim pelo conceito específico e plenamente desenvolvido que nomeiam. Quando examinamos o que Kant entendia por paz e liberdade, sabendo que assim as entendem também os atuais candidatos a governantes do mundo, não podemos deixar de perceber que a parecença do filósofo com o fundador do Partido Comunista Italiano não é só anatómica, mas também moral, sobretudo na capacidade que ambos tinham de embelezar com uma linguagem idealística as forças históricas mais feias que estavam plantando no solo do futuro.

De modo geral, a influência cada vez maior e mais organizada dos intelectuais nos centros de poder mundial e a adoção generalizada da "guerra cultural" como instrumento primordial de dominação tornam a política incompreensível a quem não consiga acompanhar de perto a marcha das idéias. É uma ilusão mortífera imaginar que ainda existe uma esfera "prática" separada do debate cultural, religioso e filosófico. Os políticos ou líderes empresariais soi-disant "pragmáticos", que se gabavam de olhar com desprezo as discussões aparentemente bizantinas dos acadêmicos, são hoje uma raça em extinção. Para destruí-los, basta à intelectualidade ativista conceber estratégias que passem longe do horizonte de visão do seu imediatismo praticista. A vitória do gramscismo no Brasil explica-se, em boa parte, pela indolência intelectual dos líderes políticos e empresariais de fora da esquerda. Nos EUA, nada se debate no parlamento, se decide no judiciário ou se empreende no executivo sem ter passado, muito antes, pelo crivo dos think tanks, onde intelectuais de grosso calibre criam as categorias de pensamento que depois orientam toda a discussão subseqüente. Se você tenta acompanhar o desenrolar dos acontecimentos sem conhecer os pressupostos intelectuais mais remotos por trás dos conflitos de poder, acaba não entendendo nada. Um desses pressupostos é a filosofia de Kant. Exposta num estilo abstruso que repele até os estudantes de filosofia, ela é a última coisa pela qual um "homem prático" poderia se interessar. Por isto mesmo, ela vai se tornando realidade bem diante dos narizes deles, sem que tenham a menor idéia de para onde ela ameaça levá-los.

Umas poucas observações bastam para realçar a gravidade do assunto.

Em primeiro lugar, a noção kantiana de "paz eterna", tão própria a seduzir os sentimentais pela sua vaga ressonância bíblica, não significa outra coisa senão "governo mundial". Num estudo importantíssimo, o Pe. Michel Schooyans (1), filósofo belga que já leccionou no Brasil, mostra que as novas legislações uniformizantes que a ONU vem impondo ao mundo, como por exemplo o abortismo obrigatório a que me referi num dos artigos anteriores, são de inspiração diretamente kantiana. O governo mundial que a ONU está construíndo com rapidez desnorteante é a tradução jurídica exata do que Kant entendia como "comunidade humana". Essa comunidade, segundo o filósofo, emergia espontaneamente do fa[c]to de que os homens são todos dotados da mesma faculdade da "razão". Mas a razão, para Kant, não é a mesma coisa que era para os antigos e medievais. Estes a entendiam como o simples dom da fala e do raciocínio coerente, reflexo longínquo da Razão divina que criou e sustenta o mundo. Graças a esse dom, o ser humano podia apreender algo da ordem divina e cósmica do mundo, ordenando por ela, na medida de suas limitadas capacidades, a vida da sua própria alma. Para Kant, ao contrário, a razão é a autoridade legisladora suprema e insuperável, que não tem satisfações a prestar nem a uma ordem divina pré-existente, nem a quaisquer fa[c]tos do mundo real que não se enquadrem na sua auto-regulação soberana. Os estudantes de história da filosofia não ignoram que o iluminismo, de um modo geral, se caracterizara pela apologia da universalidade abstrata, com pleno desprezo pela variedade dos fa[c]tos singulares. Na Revolução Francesa, milhares de cabeças singulares foram decepadas para enquadrar as restantes na linha da universalidade da razão. Kant adorou isso. Imaginem agora o que pode resultar da transformação disso em princípio regulador da ordem mundial. Eliminar do mapa as nações que não se enquandrem na perfeição da nova ordem global será tão fácil quanto guilhotinar dissidentes. Se a cultura colombiana, por exemplo, é refratária ao aborto por querer permanecer fiel às suas origens cristãs, corta-se o crédito internacional da Colômbia como outrora se cortou a cabeça do poeta André Chenier ou do físico Lavoisier. Isso está de fa[c]to acontecendo, e é uma solução tanto mais tentadora porque o governo colombiano move uma bem suedida guerra contra o narcotráfico, que a ordem global em gestação preferiria, ao contrário, liberar como comércio legítimo (2). Para quem quer enquadrar o planeta num modelo jurídico uniforme, esmagando os adversos e recalcitrantes com a boa consciência de um apóstolo da paz eterna, nada mais inspirador do que os abstratismos de Kant.

Mas muito antes de insuflar essas idéias malignas nas cabeças dos burocratas de Genebra, Kant já havia feito um mal irreparável à inteligência humana. Ao consagrar o império da "razão" uniforme sobre a multiplicidade dos fa[c]tos, ele criou o dogmatismo cientificista que permite abolir continentes inteiros da realidade, sob o pretexto de que são refratários ao estudo científico, dando em seguida, a essa mesma ciência que admite sua incapacidade em estudá-los, a autoridade de declarar que não existem. Essa idolatria do método produziu resultados tragicômicos. A epidemia de charlatanismo antropológico no século XX esteve entre eles. Baseando-se na premissa kantiana de que de um juízo de fa[c]to não se pode deduzir um juízo de valor, cientistas sociais bisonhos professaram abster-se asceticamente de proferir julgamentos de valor sobre as realidades culturais que estudavam e acabaram tirando desse voto de castidade a conclusão de que, nesse campo, as diferenças de valor não existiam mesmo. A igualdade das culturas perante a suprema Razão kantiana é hoje um dogma imposto a todas as nações pelos pedagogos politicamente corretos da ONU. É imensurável a bibliografia destinada a persuadir o mundo de que, por exemplo, os rituais astecas de sacrifícios humanos eram um costume tão decente quanto a caridade franciscana.


















Quando o Prof. Peter Singer afirma resolutamente os direitos humanos das galinhas, estendendo às diferenças entre géneros animais o mesmo preceito que obteve tanto sucesso no concernente às diferenças entre culturas, ele está sendo rigorosamente kantiano.

Da mesma inspiração vem aquela regra sublime de que, como a ciência genética não consegue perceber nenhuma diferença entre um ser humano e um chipanzé aos três meses de gestação, os seres humanos não são realmente diferentes dos chipanzés. Fortalecida pela autoridade de Kant, cada ciência se crê autorizada a proclamar que tudo aquilo que está fora do alcance dos seus métodos é perfeitamente inexistente. Qualquer faxineiro sabe que um embrião humano, uma vez crescido, pode se tornar Platão ou Michelangelo, e que nenhum embrião de chipanzé pode esperar um futuro igualmente promissor. Mas, como a embriologia não estuda nada do que sucede aos embriões depois que eles deixam de ser embriões, essa diferença é kantianamente abolida em prol da soberania do método. E há muito tempo a supressão dessa diferença deixou de ser uma pura especulação acadêmica; ela já virou lei, e as cabeças que sua aplicação vai arrancando pelo caminho não são de chipanzés nem de galinhas.

Outro malefício incalculável que o kantismo trouxe à humanidade é a separação rígida e estereotipada entre "ciência" e "religião". Segundo Kant, a primeira diz respeito àquilo que podemos "saber", a segunda àquilo que podemos apenas "esperar", quer dizer, desejar e imaginar. Em suma, vigora aí a diferença entre "conhecimento" e "crença". Uma teoria científica você prova ou contesta. Numa doutrina religiosa, você apenas crê ou não crê, sem possibilidade de arbitragem racional. Essa distinção impregnou-se tão profundamente na alma ocidental que acabou por determinar o uso diário das palavras respectivas na mídia, nas escolas, nas discussões públicas e privadas. Esse é talvez o dogma terminológico de maior sucesso em todos os tempos. Até no automatismo do inconsciente a religião tornou-se "fé", e ponto final. Mas isso é um conceito pueril e insustentável, uma idiotice completa. Nenhuma religião do mundo começa com "crença". Começa sempre com uma sucessão de fa[c]tos que assinalam a súbita e humanamente inexplicável penetração coletiva numa esfera de realidade mais alta, de onde toda a existência aparece transfigurada por um novo sentido. Digo "fa[c]tos" porque é disso que se trata. A travessia do Mar Vermelho pode ter se transformado em objeto de "crença" para as gerações subseqüentes, mas, para aqueles que viveram o acontecimento, não foi nada disso. Jesus Cristo podia dizer ao cego e ao paralítico curados: "Tua fé te salvou". Mas é pura metonímia: a cura, se fosse pura matéria de fé e não um fa[c]to da ordem física, seria fraude e nada mais. Com a passagem do tempo, esfumando-se a memória viva dos testemunhos, o acesso a esses fa[c]tos pode requerer alguma "fé", mas não tem sentido confundir a natureza de um fa[c]to com o modo de conhecê-lo séculos depois. Ou esses milagres aconteceram, ou não aconteceram. E deslocar o problema para um passado remoto é só fugir do problema. Setenta e seis por cento dos médicos americanos acreditam hoje em curas miraculosas, porque as vêem acontecer diariamente e sabem que elas são até mais freqüentes do que a cura pelos meios terapêuticos usuais. O próprio Jesus Cristo, quando perguntaram se Ele era mesmo o enviado de Deus ou se seria preciso esperar por algum outro, não respondeu com uma "doutrina" para ser crida ou descrida, mas com fa[c]tos para ser confirmados ou impugnados (3). As religiões só se transformam em matéria de "crença" para um público que está muito afastado, no espaço ou no tempo, das suas fontes originárias. O conhecimento direto e o estudo cientificamente responsável dos acontecimentos miraculosos são as únicas vias do acesso intelectualmente válido à religião. O resto é uma discussão oca entre ignorantes tagarelas sentados na periferia da realidade. Hoje em dia, porém, qualquer fa[c]to tido por miraculoso está afastado, automaticamente, da discussão oficial, a não ser quando é uma fraude ou uma ilusão, isto é, quando, precisamente por não ser miraculoso de maneira alguma, pode ser explicado por algum psicologismo ou sociologismo fácil. Expulsos os dados inconvenientes, a "razão" kantiana impera absoluta no seu buraco de toupeira. O kantismo, consagração da covardia intelectual que foge de tudo aquilo que não conhece, bloqueia a possibilidade de vir a conhecê-lo. Nenhum autoritarismo dogmático, ao longo da história, foi tão mesquinho e tão danoso quanto esse. São inumeráveis os exemplos de seus efeitos desastrosos na cultura, na história e na vida moral.

E que ninguém me venha com aquela conversa mole de que Kant tinha a melhor das intenções, de que foi tudo culpa do zelo exagerado de discípulos incompreensivos. As conseqüências perversas do kantismo, como as do hegelianismo e do marxismo, não vieram séculos ou milênios depois: foram quase imediatamente subseqüentes. Um pensador que se acha capaz de virar do avesso o universo inteiro dos conhecimentos humanos não tem desculpa para ignorar os efeitos mais obviamente previsíveis da difusão de suas idéias. É indecente passar da arrogância intelectual suprema aos gemidos de inocência fingida. Não se pode conceder esse direito a Kant, como não se pode concedê-lo a Hegel, a Karl Marx ou mesmo a Nietzsche, malgrado o atenuante da loucura. Quem quer que anuncie ter compreendido o sentido integral da História humana tem a obrigação estrita de prever com acerto o próximo episódio, ao menos no que diz respeito ao seu próprio campo limitado de atuação pessoal. Se nem isso o cidadão consegue fazer, é porque não alcançou a plenitude da autoconsciência filosófica de um Platão, de um Aristóteles, de um Tomás de Aquino ou de um Leibniz. E, nesse caso, é só por devoção idolátrica que continuamos a considerá-lo um grande filósofo e não apenas um pensador interessante.



Notas:

(1) La face caché de l'ONU, Paris, Ed. Sarment Fayard, 2000.

(2) Uma vasta campanha nesse sentido é subsidiada pelo sr. George Soros, que ao mesmo tempo investe pesadamente na construção da nova ordem e na compra de terras... na Colômbia.

(3) Confira em Mateus, 11:1-6.












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