Aldous Huxley |
«Todos os sistemas oficiais de educação são sistemas para bombear os mesmos conhecimentos pelos mesmos métodos, para dentro de mentes radicalmente diferentes. Sendo as mentes organismos vivos e não caixotes do lixo, irredutivelmente dissimilares e não uniformes, os sistemas oficiais de educação não são como seria de esperar, particularmente afortunados. Que as esperanças dos educadores ardorosos da época democrática cheguem alguma vez a ser cumpridas parece extremamente duvidoso. Os grandes homens não podem fazer-se por encomenda por qualquer método de ensino por mais perfeito que seja. O máximo que podemos esperar fazer é ensinar todo o indivíduo a atingir todas as suas potencialidades e tornar-se completamente ele próprio...».
Aldous Huxley («Proper Studies»).
«Em 1937, desencantado com a "Europa dos Ditadores" que, após o ter inspirado a escrever Admirável Mundo Novo, se preparava agora para mergulhar o planeta na II Guerra Mundial, Huxley emigrou para os Estados Unidos da América acompanhado pela mulher e por Gerald Heard. Instalando-se nas colinas de Los Angeles, passou a alternar a escrita de romances e ensaios com a de argumentos para os estúdios de Hollywood, e a manifestar os novos caminhos que trilhava no seio da high life da Meca do cinema. Tornou-se vegetariano, praticou meditação vedanta no círculo de Swami Prabhavananda, relacionou-se com o místico indiano Krishnamurti e dedicou-se a coligir uma antologia de textos espirituais em que procurava identificar os traços comuns - a "filosofia perene" - de todas as religiões ocidentais e orientais.
(...) Ciente dos perigos totalitários do "ataque farmacológico" possibilitado pela tecnologia moderna, nem por isso Huxley excluía que a via química pudesse levar à elevação espiritual. A sua curiosidade na matéria fora despertada em 1931 ao ler Phantastica, um tratado do farmacólogo alemão Louis Ludwig Lewin sobre as substâncias visionárias usadas ritualmente desde o alvorecer da humanidade, hoje considerado a primeira obra de etnobotânica: "[A] história da ingestão de drogas constitui um dos capítulos mais curiosos e creio que também mais significativos da história natural dos seres humanos", considerou Huxley após ter lido o tratado "de ponta a ponta com um apaixonado e crescente interesse".
À época as drogas visionárias eram desconhecidas da ciência ocidental à excepção da mescalina, que foi sintetizada laboratorialmente em 1919 e que suscitara o interesse da psiquiatria devido aos seus efeitos "psicotomiméticos" ou "alucinogénicos", isto é, geradores de estados de insanidade que podiam ajudar a compreender e tratar as patologias mentais. A ideia de Huxley era porém radicalmente diferente: queria saber quais os efeitos destas drogas nos "relativamente sãos" e, acreditando contar-se entre estes, ansiava servir de cobaia.
(...) Huxley está presente na origem do próprio termo "psicadélico", criado em 1955 numa troca de correspondência que manteve com Osmond. Tentando encontrar uma designação adequada para a nova categoria das drogas visionárias sintéticas, Huxley sugeriu num verso a palavra grega fanerotime, que significa "tornar a alma visível": "Para tornar este mundo trivial sublime, / Tome meio grama de fanerotime". Ao ler isto, ocorreu a Osmond um neologismo derivado do grego, "psicadélico", literalmente "que manifesta a psique", apresentando a sua sugestão a Huxley na mesma veia poética: "Para abraçar o inferno ou fazer um voo angélico, / Tome uma pitada de psicadélico". Estava encontrado o termo por que seriam designados os agentes químicos de expansão da consciência até à última década do século XX, quando o termo "psicadélico" passou a ser preterido em prol de "enteógeno", "que manifesta a divindade interior".
"Num certo sentido", escreveu Huxley, "podemos dizer que a experiência visionária é por assim dizer simultaneamente uma manifestação do belo e do verdadeiro, da beleza e realidade intensas, e que enquanto tal não carece de alguma outra forma de justificação".
Assim sendo, para Huxley, o valor ético, sociológico e espiritual da experiência visionária ultrapassava a vivência do êxtase transcendente. "Estas coisas são graças, são-nos dadas, não nos esforçamos para obtê-las. Vêm até nós e são gratuitas, o que quer dizer que não são nem necessárias nem significativas para a salvação, a iluminação ou o que quisermos chamar-lhe. Se forem porém devidamente usadas, se com elas colaborarmos, se sentirmos que a memória que delas temos é importante e se trabalharmos conformemente ao que ocorre na visão, então poderão ser de um inestimável valor e de uma grande importância para a mudança nas nossas vidas". E considerou que a forma de beneficiar duradouramente desta "graça gratuita" consistia em recorrer ao "misticismo aplicado", que definiu como "uma técnica para ajudar as pessoas a tirarem o máximo partido da sua experiência transcendental e fazerem uso das revelações do 'outro mundo' nas questões d'este mundo".
Quanto ao "misticismo instantâneo" que o acusavam de promover, Huxley replicou: "Quem ficar ofendido com a ideia de que engolir um comprimido pode contribuir para uma experiência genuinamente religiosa deverá recordar que todas as modificações normais - o jejum, a vigília voluntária e a autoflagelação - que os ascetas de todas as religiões se auto-infligem com o objectivo de adquirir mérito são também, como as drogas alteradoras da mente, poderosos dispositivos para alterar a química do corpo em geral e o sistema nervoso em particular".
Para Huxley, a religiosidade suscitada por estados de transcendência mística - quer alcançados com o auxílio de drogas quer não - era claramente superior à que os crentes das religiões organizadas podiam aspirar; segundo uma máxima sua da época, "a religião é para aqueles que ainda não tiveram uma experiência espiritual". Acreditava que o poder transformador da experiência visionária induzia sanidade individual e colectiva ao confrontar as pessoas com estados de consciência que revelavam a relação íntima que mantinham com os seus semelhantes e o universo.
Finalmente, para Huxley era crucial aproveitar uma curta janela de oportunidade para aplicar a terapia psicadélica de choque à cultura humana: "O ritmo cada vez mais acelerado do avanço tecnológico, os preparativos bélicos e a sobrepopulação deixam à espécie humana muito pouco tempo para escapar à desordem prevalecente", escreveu em 1957. "Aqueles de nós que trabalharam com drogas psicadélicas acreditavam que neste curto período de tempo devíamos tentar educar uma minoria suficiente e efectiva de indivíduos capazes de tirar partido da língua e da cultura sem por elas serem estultificados ou enlouquecidos, capazes de alterar padrões comportamentais obsoletos de modo a que a humanidade pudesse viver em conformidade não com desastrosos lemas e dogmas do passado mas com o processo da vida, com a Talidade (Suchness) essencial do mundo".
"Como deverão ser administrados os psicadélicos? Em que circunstâncias, com que tipo de preparação e acompanhamento?", escreveu Huxley em Culture and the Individual, um texto publicado pouco antes de falecer no qual mostra a sua predilecção por uma abordagem científica da questão de como introduzir estes métodos de expansão da mente na sociedade. "Devemos responder empiricamente a estas questões, através da experimentação em larga escala. (...) A experimentação pode dar-nos a resposta, pois o sonho é pragmático; as hipóteses utópicas podem ser testadas empiricamente".
Huxley acreditava que a iniciação em condições controladas de um número suficiente dos "melhores e mais brilhantes" espíritos da época poderia ser suficiente para catalizar uma transformação da cultura ocidental. Com este objectivo em mente, juntamente com Osmond, Smythies e o psiquiatra Abram Hoffer, concebeu um projecto que visava ministrar mescalina a uma centena de cientistas e intelectuais, com o objectivo de testar as suas reacções à experiência visionária. Apresentado à prestigiada Fundação Ford, e apesar de esta ser dirigida por um amigo de Huxley, o projecto foi de imediato recusado, com a justificação de que a fundação não alargava as suas actividades à medicina. Porém, Huxley não teve dúvidas: a rejeição devera-se à aversão à mudança característica dos cérebros "sáurios" instalados nas cadeiras do poder.
A oportunidade para colocar o plano em marcha surgiria em breve, porém. No Outono de 1960, Huxley apresentava um semestre de conferências no Massachusetts Institute of Technology quando conheceu Timothy Leary, um psicólogo de 40 anos recém-chegado à vizinha Universidade de Harvard para aí realizar um projecto pessoal de investigação. Leary estava idealmente receptivo ao "cenário psicadélico" que Huxley promovia: seu admirador desde a leitura de As Portas da Percepção, poucos meses antes tivera a sua própria epifania psicadélica por efeito de cogumelos psico-activos no México. (Estes haviam sido recentemente descobertos pelos micólogos Gordon e Valentina Wasson na remota província mexicana de Oaxaca, onde eram usados em rituais xamânicos milenares; o seu princípio activo, a psilocibina, fora sintetizado em 1958 por Albert Hofmann).
Huxley foi pois a eminência parda do "Projecto Psilocibina" de Harvard, lançado em 1960 sob a direcção de Leary com o objectivo declarado de explorar os efeitos da psilocibina sintética (e mais tarde LSD) na personalidade e na criatividade, e que viria a consagrar-se como o epicentro da revolução psicadélica ao iniciar nas drogas visionárias figuras como Jack Kerouac, Alan Watts e Allen Ginsberg - isto antes do programa ter sido cancelado em 1963, na sequência do alarme que as heterodoxas investigações psicadélicas causaram entre os membros mais conservadores de Harvard.
De facto, a metodologia subscrita por Huxley e Leary estava nos antípodas da prática convencional da investigação psicológica. "Não iríamos limitar-nos ao ponto de vista patológico. Não iríamos interpretar o êxtase como mania ou a serenidade calma como catatonia; não iríamos diagnosticar o Buda como um esquizóide isolado, Cristo como um masoquista exibicionista, a experiência mística como um sintoma, o estado visionário como uma psicose-modelo", escreveu Leary em High Priest. "A partir destes encontros [com Huxley] desenvolveu-se o plano de um estudo-piloto naturalista, no qual os voluntários seriam tratados como astronautas - cuidadosamente preparados e informados sobre todos os factos disponíveis, esperava-se que conduzissem as suas próprias naves, que fizessem as suas próprias observações e que no regresso elaborassem um relatório para o controlo terrestre. Os nossos voluntários não eram pacientes passivos mas heróis exploradores".
Mau grado o bom relacionamento pessoal entre Huxley e Leary, cedo a visão elitista do escritor introvertido e cerebral se confrontou com o populismo inato de Leary. "Estas questões são evolucionistas", disse Huxley a Leary após este ter manifestado vontade de propagandear indiscriminadamente o uso de LSD, "não é possível apressá-las. Trabalhe em privado. Inicie artistas, escritores, poetas, músicos de jazz, cortesãos elegantes, pintores e boémios ricos e estes iniciarão os ricos inteligentes. É assim que tudo o que respeita à cultura, à beleza e à liberdade filosófica tem sido transmitido". Huxley advogava a máxima cautela, pois muito embora o LSD fosse uma droga farmacêutica legítima, estava ciente de que usá-lo como catalizador para a transformação cultural perturbaria os "filisteus" - "do Vaticano a Harvard, os gestores da consciência estão no ramo há muito e não fazem tenção de abrir mão do seu monopólio". A propósito, disse a Leary: "Há pessoas nesta sociedade que farão tudo quanto estiver ao alcance do seu considerável poder para impedir a nossa investigação".
O problema era que mesmo que se procedesse com a possível discrição, a divulgação dos psicadélicos acarretava um efeito de bola de neve, pois como Huxley e Leary, a maioria dos que experimentavam o êxtase químico tornavam-se prosélitos do seu uso. Assim, o "ácido" passara a ser liberalmente prescrito por psicoterapeutas, muitos dos quais se iniciaram também no LSD. Um deles, o psicólogo Oscar Janiger, introduziu um milhar de voluntários ao psicadélico no seu consultório de Berverly Hills, entre os quais o próprio Huxley, a escritora Anaïs Nin, os actores Cary Grant e Jack Nicholson e o compositor e maestro André Previn. Cedo o uso de LSD extravasou das clínicas para os salons de metrópoles anglo-saxónicas como Los Angeles, Nova Iorque e Londres, desaparecendo no processo qualquer veleidade das sessões psicadélicas decorrerem em contextos terapêuticos científicos. O importante era "abrir as portas da percepção" que davam acesso ao "Outro Mundo" da transcendência extática e a chave estava à distância de uma dose de LSD.
Na América desta época nem sequer era preciso pertencer às elites para experimentar o Mysterium tremendum. A quem desejasse tomar LSD bastava oferecer-se como voluntário para uma das inúmeras investigações sobre psicadélicos aprovadas oficialmente; entre os muitos que foram assim iniciados no êxtase químico conta-se o então estudante Ken Kesey que, começando por escrever Voando Sobre um Ninho de Cucos sob o efeito da mescalina, se tornaria, com o seu grupo de agitação cultural Merry Pranksters, um dos mais empenhados missionários do psicadelismo. Havia até quem tomasse LSD sem ter conhecimento do facto, como vítimas do projecto secreto MK-ULTRA da CIA, que se socorria de cidadãos insuspeitos para testar o potencial da droga no controlo da mente. O LSD terá mesmo chegado à Casa Branca, que a partir de Janeiro de 1960 passara a ser ocupada pelo mais jovem presidente norte-americano de sempre - persistem rumores de que John F. Kennedy terá sido iniciado na "droga do amor" por uma da suas amantes, Mary Pinchot Meyer.
Neste curto período em que além de ser legal o LSD mantinha uma imagem social positiva, foram realizadas inúmeras investigações sobre o seu uso terapêutico, contando-se aos milhares as monografias científicas que detalhavam o tratamento mediante o psicadélico de dezenas de milhar de casos de alcoolismo, depressão, autismo, neuroses sexuais, síndromes compulsivas e psicopatologia criminal, reivindicando por vezes elevadas margens de sucesso. (Mesmo no Portugal de Salazar foram realizadas investigações sobre o uso terapêutico de alucinogéneos como as documentadas em A Psicose Experimental pela Psilocibina, tese de licenciatura do médico Emílio Guerra Salgueiro, publicada em 1963).
Por esta época, Huxley fora afectado por graves infortúnios pessoais. Em 1960 foi-lhe diagnosticado um cancro na garganta, que passou a combater com quimioterapia; no ano seguinte, um incêndio reduziu a cinzas a sua residência em Los Angeles, deixando o escritor, nas suas próprias palavras, "um homem sem bens nem passado".
Ainda assim, no que viriam a ser os seus últimos anos de vida, em conferências e congressos nos Estados Unidos e na Europa, o "sábio transatlântico" continuou a promover incansavelmente os benefícios terapêuticos e educativos dos psicadélicos. Enquanto isto, ocorria a sua consagração literária: juntou-se a Churchill e a Somerset Maugham ao receber o título de Companion of Literature da Sociedade Real de Literatura Britânica, e a Hemingway e Thomas Mann quando em 1959 a Academia Americana de Artes e Letras lhe concedeu o Prémio para o Romance; há quem considere que só não recebeu o Prémio Nobel devido às suas posições excêntricas em favor dos psicadélicos.
(...) No final da manhã de 22 de Novembro de 1963 - praticamente no momento em que as cadeias de televisão norte-americanas interrompiam a programação para informar que o presidente Kennedy fora assassinado em Dallas - Aldous Huxley, moribundo numa cama de hospital em Los Angeles, escrevia num pedaço de papel as suas últimas palavras: "Tenta LSD - intramuscular - 100 mcg". Tendo entregado a nota à mulher, Laura, passados alguns minutos ministrou-lhe a injecção do psicadélico que solicitou e uma hora depois outra idêntica, enquanto lhe lia passagens de uma tradução do Livro Tibetano dos Mortos, um manual budista para manipular o estado da consciência na altura da morte e assegurar uma transição pacífica para a "Clara Luz do Vazio". Horas depois, Huxley expirava tranquilamente. Numa carta que escreveu a parentes e amigos descrevendo os últimos momentos da vida do marido, Laura Huxley diria: "Aldous morreu como viveu, fazendo o melhor possível para desenvolver plenamente em si próprio uma das coisas essenciais que recomendava aos outros: a consciência".
Huxley morreu sob o efeito de LSD precisamente quando o uso do psicadélico começava a assumir proporções incontroláveis. Com os jovens norte-americanos da classe média a lançarem-se em massa na senda da auto-transcendência química, desencadeou-se uma reacção anti-LSD alimentada pelos média, que resultou - alguns meses antes do "Verão do Amor" de 1967 em São Francisco, considerado o apogeu do movimento hippie - na proibição não apenas do uso de psicadélicos como também de qualquer investigação sobre os mesmos. A responsabilidade por esta situação, que até hoje se mantém praticamente inalterada, costuma ser assacada a Timothy Leary que, ignorando os avisos de Huxley, embarcara na apologia do uso livre dos psicadélicos como detonador da ruptura com o "Sistema", posição resumida no seu famoso lema turn on, tune in, drop out ("ligar-se, sintonizar-se, desligar-se" [da sociedade]. Deste modo, Leary garantiu o lugar na história que Huxley recusara, o de "guru dos psicadélicos".
Não obstante a repressão e demonização de que foram vítimas, o interesse pela exploração de substâncias psico-activas não desapareceu, recrudescendo até em décadas recentes. Para tanto contribuiu o trabalho de uma nova geração de antropólogos e etnobotânicos como Richard Schultes, Terence McKenna e Jeremy Narby, que comprovaram junto de culturas "primitivas" remotas do nosso planeta o que Huxley constatara cinco décadas antes ao ler Phantastica: o uso de drogas visionárias é tão antigo quanto os próprios seres humanos. Como resultado das investigações conduzidas in loco, o mundo "civilizado" ficou a conhecer plantas usadas sacramentalmente há milénios (como a amazónica Banisteriopsis caapi, a partir da qual é preparada a poção xamânica ayahuasca) cujos efeitos visionários estão ordens de magnitude além dos psicadélicos tradicionais, induzindo alegadamente verdadeiras experiências interdimensionais.
Em anos recentes e com o aliviar do tabu sobre os psicadélicos, voltou a ser permissível abordar a relação entre as drogas visionárias e a religiosidade. Assim, a maior autoridade norte-americana actual em questões religiosas, Huston Smith (amigo e "discípulo assumido de Huxley), escrevia no ano de 2000 em Cleansing the Doors of Perception (Purificar as Portas da Percepção): "Não vejo como seja possível negar que a perspectiva tradicional e teomórfica do eu humano subscrita pelos enteógenos seja mais nobre que a que o senso comum e a ciência moderna (mal interpretada) trouxeram". Na mesma obra, admitindo que "o secularismo moderno, o cientismo, o materialismo e o consumismo conspiraram para formar uma carapaça que a Transcendência tem agora dificuldade em perfurar", Smith pergunta-se, ecoando Huxley quase meio século antes, se "não haverá uma necessidade, talvez uma necessidade urgente" de legitimar socialmente "o uso construtivo e vivificante das drogas enteogénicas propiciadoras do céu e do inferno".
Começa também a emergir do estrito underground intelectual a que estivera remetida a ideia de que as plantas e fungos visionários desempenharam um papel fulcral na evolução da cultura ocidental, a começar pela religião. Assim, em The Botany of Desire, um best seller recente que aborda a relação mutuamente benéfica das plantas domesticadas com a humanidade, Michael Pollan argumenta que novos ramos da história natural mostrariam que "a experiência humana do divino tem raízes profundas nas plantas e fungos psico-activos". Quanto à literatura, o crítico David Lenson escreve: "Por mais que a crítica tenha tentado higienizar o processo, temos de aceitar o facto de que embora alguns dos nossos poetas e estudiosos canónicos pareçam estar a falar sobre a imaginação, na realidade referem-se a um estado de inebriamento (getting high)". E a propósito dos celebrados Mistérios de Elêusis realizados anualmente na antiga Grécia, nos quais os participantes, que incluíam os maiores pensadores da Antiguidade, consumiriam uma poção alucinogénea, Pollan levanta a questão: "Será absurdo perguntar se tal experiência poderá ter ajudado a inspirar a metafísica sobrenatural de Platão?"
(...) A passagem para o terceiro milénio assistiu à consolidação planetária da tendência mais espiritualista da contracultura no fenómeno New Age, cuja origem é normalmente situada no "movimento do potencial humano" lançado em 1962 no Instituto de Esalen (Califórnia) por Michael Murphy e Richard Price, dois psicólogos influenciados pelas ideias de Huxley sobre o autodesenvolvimento espiritual; não é por acaso que aos 94 anos Laura Huxley é hoje informalmente considerada a grande dame da New Age, continuando empenhada em concretizar a utopia que o marido exprimiu em A Ilha. Prefigurações da visão utópica de Huxley podem aliás ser concentradas na cultura rave ou trance, e em comunidades alternativas espalhadas pelo mundo. A própria contracultura não se aposentou ou foi inteiramente cooptada. Pode mesmo estar a conhecer uma renovação, como sugere o sucesso crescente do festival anual Burning Man, durante o qual, numa cidade efémera propositadamente construída num deserto do Nevada (Estados Unidos), a fusão entre todas as sensibilidades contraculturais é levada ao limite.
A associação do psicadelismo a mundivisões "alternativas" obscurece porém o papel crucial que drogas como o LSD assumiram na génese do mundo contemporâneo. Relativamente à sociedade da informação, logo em 1969 Marshall McLuhan, o teorizador dos média, assinalou que "o LSD consiste numa forma de emular o mundo electrónico invisível"; três décadas mais tarde, Jaron Lanier, pioneiro da realidade virtual, garantia que "quase todos os fundadores da indústria dos computadores pessoais eram hippies do tipo psicadélico". Quanto ao ciberespaço, o próprio termo foi popularizado por John Perry Barlow, letrista da banda psicadélica arquetípica Grateful Dead e co-fundador da Electronic Frontier Foundation, organização dedicada a proteger a liberdade de expressão na Internet. Dizendo-se inspirado a ligar o mundo em rede pela visão do universo que lhe fora revelada pelo LSD, Barlow comentou a propósito dos muitos acidheads anónimos que partilham a sua missão: "É como se o seu futuro estivesse a ser criado por um culto secreto".
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Por outro lado, soube-se recentemente que o LSD está associado à descoberta mais importante do século XX a par da fusão nuclear: o biólogo britânico Francis Crick "estava sob a influência de LSD quando deduziu a estrutura da dupla hélice do ADN há quase 50 anos". (Esta descoberta, feita em colaboração com James Watson, valeu-lhe o Prémio Nobel e o epíteto de "o homem que descobriu o segredo da vida"). O despacho noticioso contendo a revelação surgiu apenas 10 dias após a morte de Crick, ocorrida a 29 de Julho de 2004, informando ainda que o cientista obrigara os seus próximos a fazerem completo segredo do facto. A notícia adianta que Crick era "um entusiasta do romancista Aldous Huxley", tendo sido um dos fundadores de um grupo britânico para a legalização da canábis chamado Soma, no final dos anos 60.
Sendo raras as personalidades que ousam assumir em vida o efeito positivo das substâncias psico-activas nas faculdades mentais, o seu número vem porém aumentando. Uma delas é o biólogo norte-americano Kary Mullis. Prémio Nobel da Química em 1993 pela invenção da PCR (Polymerase Chain Reaction, "reacção em cadeia da polimerase"), uma técnica de amplificação exponencial do ADN que abriu caminho à revolução biotecnológica, Mullis afirmou numa entrevista à BBC ter dúvidas de que teria feito a descoberta se não tivesse tomado LSD, cujo uso, garantiu, o tornara mais inteligente. Outro exemplo: Mark Pesce, co-inventor da linguagem de programação de realidade virtual VRML, não esconde o facto desta descoberta ter sido "especificamente catalizada numa experiência psicadélica".
Em Tecnognose, Erik Davis assinala um aspecto menos aparente da influência dos psicadélicos no mundo actual, "a integração de certas técnicas contraculturais de êxtase no tecido da sociedade da informação": "Um dos grandes boatos paranóicos dos anos 60 era o de que os freaks tencionavam despejar LSD na rede de abastecimento de água; pode vir a acontecer que os dispositivos digitais e a máquina dos média acabem por drogar a população, infundindo um modo de cognição inegavelmente psicadélico na cultura geral. Os modems desatarraxam a 'válvula redutora' mental de Huxley e deixam entrar a Mente sem Limites (Mind at Large ligada em rede. (...) Os computadores e os média electrónicos estão a 'ligar' todas as pessoas e o ciberespaço a tomar forma enquanto paisagem virtual mutável da mente colectiva fundida. As energias libertadoras do êxtase, definido como a expansão explosiva do eu para o exterior das suas fronteiras quotidianas, e incensadas pelos ideólogos da contracultura dos anos 60, são hoje um facto tecnológico».
Luís Torres Fontes (prefácio de 2005 in Aldous Huxley, «As Portas da Percepção/Céu e Inferno»).
«...Tomara o meu comprimido às onze horas. Uma hora e meia mais tarde estava sentado no meu escritório, olhando atentamente para uma pequena jarra de vidro. Continha apenas três flores - uma rosa Belle Portugaise rosa-amarelado em plena florescência com uma pincelada de um matiz mais quente e flamejante na base de cada pétala, um grande cravo carmim e creme, e um vistoso e heráldico lírio púrpura-pálido no extremo do seu caule partido. Fortuito e provisório, o pequeno bouquet quebrava todas as regras do bom gosto tradicional. Durante o pequeno-almoço naquela manhã ficara impressionado com a dissonância cheia de vida das suas cores, mas agora tal já não acontecia. Agora já não via um arranjo floral invulgar mas o que Adão vira na manhã da sua criação - o milagre, momento a momento, da pura existência.
- É agradável? - perguntou alguém. (Durante esta parte da experiência todas as conversas foram registadas num gravador de voz, o que me tornou possível refrescar a memória do que fora dito).
- Nem agradável nem desagradável, - respondi - é apenas. Istigkeit - não era a palavra que Meister Eckhart gostava de usar? "Estado de ser" (is-ness). O Ser da filosofia platónica - salvo que Platão parece ter cometido o enorme e grotesco erro de separar o Ser do devir e de identificá-lo com a abstracção matemática da Ideia. O pobre nunca poderia ter visto um ramo de flores a brilhar com a sua própria luz interior, mas só quase que estremecendo sob o peso da significação que lhe havia sido imputada. Nunca poderia ter compreendido que o que aquela rosa, aquele lírio e aquele cravo tão intensamente significavam era nada mais nada menos que o que era - uma transitoriedade que não obstante era a vida eterna, um perecimento perpétuo que ao mesmo tempo era puro Ser...
(...) É assim que devíamos ver - repeti uma vez mais. E poderia ter acrescentado: "É para este tipo de coisas que devíamos olhar". Coisas sem pretensão, a que basta serem meramente elas próprias, suficientes na sua talidade, não representando um papel, não tentando insanamente lutar sozinhas, isoladas do Darma-Corpo [o Vazio], desafiando diabolicamente a graça de Deus.
- A melhor aproximação - disse - seria um Vermeer. Sim, um Vermeer.
Oficial e moça sorridente (1658), de Johannes Vermeer. |
Vista de Deft (1660-1661). |
Cristo na Casa de Marta e Maria (1654-1655). |
Moça com pichel de água (1662-1663). |
Rapariga com Brinco de Peróla (1665-1666). |
Alegoria da pintura (1666-1667). |
O Geógrafo (1669). |
(...) Subitamente senti que isto já ia longe de mais. Longe de mais, ainda que a ida fosse no sentido de uma beleza mais intensa, de uma significação mais profunda. Analisado retrospectivamente, esse medo era o medo de ser esmagado, de me desintegrar sob o peso de uma realidade muito mais poderosa do que a que uma mente habituada a viver a maior parte do tempo no mundo confortável dos símbolos poderia suportar. A literatura sobre a experiência religiosa é abundante em referências ao sofrimento e terror que esmagam os que confrontam demasiado subitamente uma manifestação do Mysterium tremendum. Na linguagem teológica, este medo é atribuído à incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina, entre o seu apartamento, agravado por ele próprio, e a infinidade de Deus. De acordo com Böhme e William Law, podemos dizer que para as almas pecadoras o pleno resplendor da Luz divina só pode ser apreendido como um fogo queimante, do purgatório. Uma doutrina quase idêntica pode ser encontrada no Livro Tibetano dos Mortos, onde a alma do defunto é descrita a recuar em agonia perante a Clara Luz do Vazio e mesmo perante as Luzes menores e menos intensas, precipitando-se nos braços da reconfortante escuridão da individualidade sob a forma de um ser humano renascido ou mesmo de um animal, um fantasma infeliz, um habitante do inferno. Tudo menos o brilho queimante da Realidade não mitigada - tudo!
(...) Num mundo onde a educação é predominantemente verbal as pessoas com um elevado nível cultural consideram quase impossível prestar a devida atenção a tudo o que não seja palavras e noções. Há sempre dinheiro e doutorados para a tontice erudita da investigação sobre o que os académicos consideram o problema sumamente importante: quem influenciou quem para dizer o quê quando? Mesma na era da tecnologia, as Humanidades verbais são reverenciadas. As Humanidades não verbais - as artes da consciência directa dos factos reais da nossa existência - são quase completamente ignoradas. Um catálogo, uma bibliografia, as obras completas com a ipsissima verba de um poestrato de terceira categoria, um formidável índice que ponha fim a todos os índices - qualquer projecto genuinamente abstruso tem aprovação e apoio financeiro garantidos. Mas quando se trata de saber como cada um de nós, os nossos filhos e netos nos poderemos tornar mais perceptivos, mais intensamente conscientes da realidade interna e externa, mais abertos ao Espírito, menos passíveis, devido a vícios psicológicos, de ficarmos fisicamente doentes e mais capazes de controlar o nosso sistema nervoso autónomo - quando se trata de uma forma de educação não verbal mais fundamental (e mais susceptível de uma utilização prática) que a ginástica sueca, nenhuma pessoa realmente respeitável em nenhuma universidade ou igreja respeitável fará alguma coisa. Os verbalistas desconfiam do não verbal, os racionalistas temem o facto real não racional, os intelectuais consideram que "o que apreendemos visualmente é-nos estranho enquanto tal e não deverá impressionar-nos profundamente". Além disso, esta questão da educação no âmbito das Humanidades não verbais não vai encaixar em nenhuma das categorias estabelecidas. Não se trata de religião nem de neurologia, ginástica, moralidade ou educação cívica, e nem mesmo de psicologia experimental. Assim sendo, em termos académicos e eclesiásticos esta disciplina não existe e pode ser completamente ignorada sem qualquer problema, ou relegada com um sorriso condescendente àqueles a quem os fariseus da ortodoxia verbal chamam aves raras, curandeiros, charlatães e amadores sem qualificações».
Aldous Huxley («As Portas da Percepção»).
«...GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA
O Ministério da Verdade tinha, segundo se dizia, três mil salas acima do nível do solo, e outras tantas ramificações subterrâneas. Espalhados por Londres havia apenas outros três edifícios com aspecto e dimensões semelhantes. Esmagavam tão completamente a arquitectura circundante que, do telhado das Mansões Vitória, era possível ver todos os quatro ao mesmo tempo. Tratava-se das sedes dos quatro Ministérios entre os quais se repartia todo o aparelho governativo. O Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, dos divertimentos, do ensino e das belas-artes. O Ministério da Paz, que se ocupava da guerra. O Ministério do Amor, que garantia a lei e a ordem. E o Ministério da Riqueza, responsável pelos assuntos económicos. Os seus nomes, em novilíngua: Minivero, Minipax, Minamor e Minirrico.
(...) "Quem controla o passado", dizia a palavra de ordem do Partido, "controla o futuro; quem controla o presente controla o passado". E no entanto o passado, embora por natureza alterável nunca tinha sido alterado. A verdade actual era verdade desde todo o sempre e para todo o sempre. Para tal bastava uma série contínua de vitórias de cada qual sobre a sua própria memória. "Controlo da realidade", assim se lhe chamava; ou, em novilíngua, "duplopensar".
(...) Saber e não saber, ter uma noção de absoluta veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as contraditórias e acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral, acreditar na inviabilidade da democracia e que o Partido é o guardião da democracia; esquecer o que quer que fosse preciso esquecer, para depois o trazer de volta à memória quando necessário, e em seguida de novo o esquecer prontamente; e, acima de tudo, aplicar este mesmo procedimento ao próprio procedimento. Tal era a suprema subtileza: induzir conscientemente a inconsciência, para depois, num segundo passo, tornar-se inconsciente do acto de hipnose acabado de levar a cabo. A própria compreensão da palavra "duplopensar" implicava o recurso ao duplopensar.
(...) - Como é que vai o Dicionário [de Novilíngua]? - disse Winston...
- Vai avançando devagar - retorquiu Syme. - Estou agora nos adjectivos. É fascinante.
(...) A décima primeira edição vai ser a definitiva - disse. - Estamos a dar ao idioma a sua forma final, a forma que há-de ter quando ninguém falar nenhuma outra língua. Quando chegarmos ao fim, pessoas como tu terão de a aprender de novo. Talvez penses que a nossa principal tarefa é inventar palavras novas. Mas não é nada disso! Estamos é a destruir palavras, dezenas, centenas de palavras por dia. Estamos a reduzir a língua ao seu esqueleto. A décima primeira edição não há-de conter uma única palavra susceptível de se tornar obsoleta antes do ano de 2050.
(...) Coisa magnífica, a destruição de palavras. Claro que a grande quebra é nos verbos e nos adjectivos, mas também há centenas de substantivos que podem ser dispensados. E não são só os sinónimos; há também os antónimos. Afinal de contas, qual a razão de ser de uma palavra que seja simplesmente o contrário de outra? Cada palavra contém em si o seu próprio contrário. Olha, "bom", por exemplo. Se temos a palavra "bom", para que é que precisamos da palavra "mau"? "Imbom" faz o mesmo efeito. Melhor, até, porque é rigorosamente o oposto de "bom", coisa que "mau" não é. Ou ainda, se queremos uma versão mais forte de "bom", que sentido faz termos toda uma gama de palavras vagas e inúteis como "excelente", "esplêndido" ou outras que tais? "Extrabom" cobre perfeitamente este sentido; ou "duploextrabom", se se pretender um termo ainda mais forte. É, claro, nós já usamos estas formas, mas na versão final da novilíngua não haverá outras. No fim todo o conceito de bondade e maldade será abarcado apenas por seis palavras... que são, no fundo, uma única. Não vês a beleza de tudo isto, Winston? É claro que a ideia inicial foi do G.I. [Grande Irmão] - acrescentou Syme à guisa de esclarecimento.
(...) - Tu não aprecias verdadeiramente a novilíngua, Winston - disse quase com tristeza. - Mesmo quando nela escreves continuas a pensar em velhilíngua. Já tenho lido algumas das coisas que escreves para o 'Times'. Não são más de todo, mas são traduções. No teu íntimo, preferias que se conservasse a velhilíngua, com toda a sua imprecisão e os seus inúteis matizes de sentido. Não compreendes a beleza da destruição das palavras. Sabias que a novilíngua é a única língua do mundo cujo vocabulário diminui ano após ano?
(...) Não vês que a finalidade da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensamento? Acabaremos por conseguir que o crimepensar seja literalmente impossível, pois não haverá palavras para o exprimir. Todos os conceitos de que possamos ter necessidade serão expressos, cada um deles, exclusivamente por uma palavra, de significação rigorosamente definida, sendo eliminados e votados ao esquecimento todos os seus sentidos subsidiários. Na décima primeira edição já não estamos longe desse objectivo. Mas o processo continuará muito depois de tu e eu termos morrido. Ano após ano, cada vez menos palavras, e o alcance da consciência cada vez mais limitado. Mesmo hoje, como é evidente, não há motivo ou desculpa para se cometer um crimepensar. Simples questão de autodisciplina, de controlo da realidade. Mas no futuro nem mesmo isso será necessário. A Revolução ficará completa quando a língua for perfeita. A novilíngua é Socing e o Socing é a novilíngua - acrescentou com uma espécie de exaltação mística. - Já alguma vez pensaste, Winston, que no ano 2050, o mais tardar, não haverá um único ser humano capaz de entender uma conversa como a que estamos a ter agora?
(...) Em 2050 (provavelmente até antes) todo o verdadeiro conhecimento da velhilíngua terá desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron só existirão em versões de novilíngua, não simplesmente transformados numa coisa diversa, mas no contrário daquilo que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mesmo as palavras de ordem mudarão. Poderá subsistir um slogan como "liberdade é escravidão" quando o próprio conceito de liberdade tiver sido abolido? Toda a atmosfera mental será diferente. No fundo, não haverá pensamento, tal como hoje o entendemos. A ortodoxia significa ausência de pensamento: ausência da necessidade de pensar. A ortodoxia é inconsciência.
Um dia destes, pensou Winston com súbita e profunda convicção, Syme vai ser vaporizado. É demasiado inteligente. Vê as coisas com excessiva lucidez e fala com excessiva franqueza. O Partido não gosta de gente assim. Um dia destes ele vai desaparecer. Está-lhe escrito na cara.
(...) - Agora - segredou.
- Aqui não - respondeu ela, também num sussurro. - Vamos para o esconderijo. É mais seguro.
Rapidamente, fazendo estalar um ou outro ramo seco, dirigiram-se de novo para a clareira. Quando se viram no meio do círculo de árvores novas, ela parou e voltou-se para ele. Estavam os dois ofegantes, mas o sorriso voltara a surgir nas comissuras dos lábios de Julia. Ficou por instantes a fitá-lo, depois procurou com os dedos o fecho do fato-macaco. E foi, sim, como no sonho de Winston. Ela despiu-se praticamente com tanta presteza como ele imaginara, e quando atirou a roupa para o chão foi com aquele gesto magnífico que parecia aniquilar uma civilização inteira. O seu corpo branco cintilava ao sol. Mas só decorridos alguns segundos ele a olhou; tinha os olhos presos àquele rosto sardento, ao leve sorriso atrevido. Ajoelhou diante dela e pegou-lhe nas mãos.
- Já fizeste isto alguma vez?
- Claro que já fiz. Centenas de vezes. Bem, dezenas, pelo menos.
- Com membros do Partido? - Sim, sempre com membros do Partido.
- Do Partido Interno?
- Não, com esses javardos não. Mas muitos deles também haveriam de gostar, se tivessem oportunidade. Não são tão santos como se fazem. O coração dele deu um pulo. Ela fizera aquilo dezenas de vezes: oxalá tivessem sido centenas, milhares. Tudo quanto sugerisse corrupção enchia-o sempre de louca esperança. Quem sabe, talvez o Partido estivesse podre por dentro, talvez o seu culto do esforço e da abnegação não passasse de simples máscara a esconder iniquidade. Estivera na sua mão infectá-los a todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo o que pudesse corrompê-los, miná-los! Puxou-a para baixo, fazendo-a ajoelhar à sua frente.
- Escuta. Quanto mais homens tiveres possuído, maior o meu amor por ti. Percebes?
- Percebo perfeitamente.
- Odeio a pureza, odeio a virtude! Só desejo que não haja no mundo uma única alma virtuosa. Quero toda a gente corrupta até à medula.
- Bem, neste caso, devo ser a pessoa ideal para ti. Sou corrupta até à medula.
- Gostas de fazer isto? Quero dizer, mesmo que não fosse comigo? Gostas da coisa em si?
- Adoro!
Era precisamente o que ele queria ouvir. Não o mero amor humano, mas o instinto animal, o simples desejo indiscriminado: essa força que havia de destruir o Partido. Deitou-a na relva, entre as campainhas espalhadas. Desta vez nada o impedia. Pouco depois, o arquejar serenava, os peitos retomavam a sua oscilação normal, e com agradável sensação de moleza tombaram cada um para seu lado, sonolentos. Winston estendeu a mão para o fato-macaco, tapando o corpo de Julia. Quase instantaneamente deixaram-se dormir durante cerca de meia hora.
- Winston foi o primeiro a acordar. Sentou-se, ficou a olhar aquele rosto sardento, ainda tranquilamente adormecido, apoiado na palma da mão. À excepção da boca, não podia dizer-se que Julia fosse bela. Observando-a com atenção, descobriam-se-lhe algumas rugas à volta dos olhos. O cabelo curto e escuro era extraordinariamente espesso e macio. Winston lembrou-se de que ainda não sabia nem o apelido dela, nem onde morava.
Esse corpo jovem e forte, agora indefeso no sono, despertou nele sentimentos de piedade e protecção. Mas já não conseguia experimentar a ternura descuidada que sentira debaixo da aveleira, enquanto o tordo cantava. Afastou para o lado o fato-macaco, pondo a descoberto o flanco alvo e macio. Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma rapariga, achava-o desejável, e pronto. Mas agora já não podia haver amor puro ou puro desejo. Nenhuma emoção era pura, pois em tudo se infiltrara o medo e o ódio. O enlace dos seus dois corpos fora uma batalha, o clímax uma vitória. Um golpe contra o Partido. Um acto político.
(...) Com Julia, todos os caminhos iam dar à sua própria sexualidade. Sempre que, por uma razão ou por outra, se abordava o tema, ela revelava grande perspicácia. Ao contrário de Winston, compreendera o sentido oculto do puritanismo sexual do Partido. Não se tratava apenas de o instinto sexual criar um mundo próprio à margem do controlo do Partido, devendo por isso ser destruído, se possível. O mais importante residia no facto de a privação sexual provocar uma desejável histeria, podendo esta ser transformada em ímpeto guerreiro e em culto do chefe. Julia punha a questão do seguinte modo:
- Quando fazes amor estás a gastar energia; e a seguir sentes-te bem e estás-te lixando para o resto. Eles não suportam que uma pessoa se sinta assim. Querem que estejamos sempre cheios de energia. Toda esta treta de andar cá e lá a dar vivas e a agitar bandeiras é simplesmente a forma que o sexo toma quando azeda. Se uma pessoa se sentir bem na sua pele, como é que há-de ficar excitada com o Grande Irmão e os Planos Trienais e os Dois Minutos do ódio e as outras tretas que eles inventam?
Realmente, pensou Winston. Ali estava a relação directa e íntima entre castidade e ortodoxia política. De facto, como poderiam manter-se nos níveis desejados o medo, o ódio e a louca credulidade que o Partido exigia dos seus membros, a não ser reprimindo um instinto poderoso e utilizando-o como força propulsora? O impulso sexual era perigoso para o Partido, o Partido conseguira usá-lo em seu proveito. Com o instinto parental a manobra fora semelhante. A família não podia ser totalmente abolida, por isso as pessoas eram até incitadas a gostar dos filhos, quase à velha maneira. As crianças, em contrapartida, iam sendo sistematicamente viradas contra os pais e ensinadas a espiá-los e a denunciar os seus desvios. A família convertera-se, afinal, numa extensão da Polícia do Pensamento. Dispositivo mediante o qual cada indivíduo acabava dia e noite rodeado de informadores que o conheciam na intimidade.
(...) Conversando com ela [Julia], Winston percebeu a facilidade em exibir uma aparente ortodoxia sem se ter a menor noção do que era a ortodoxia. De certo modo, a visão que o Partido fomentava do mundo e das coisas impunha-se com maior êxito às pessoas incapazes de a compreender. Podia-se levá-las a aceitar as mais flagrantes violações da realidade, porque nunca viam claramente a enormidade do que se lhes pedia, nem se interessavam suficientemente pela vida pública para se aperceberem do que estava a acontecer. Graças à falta de entendimento, conservavam saúde de espírito. Engoliam tudo e mais alguma coisa, e o que engoliam não lhes faria mal, pois não deixava atrás de si o menor resíduo, como grãos de milho entram e saem pelo corpo de um pássaro sem serem digeridos.
(...) [Winston] pensou no telecrã, nos ouvidos sempre à escuta. Espiavam as pessoas dia e noite, mas mesmo assim, se se conservasse o sangue-frio, conseguia-se ludibriá-los. Por muito clarividentes que fossem, nunca resolveriam o enigma de saber quais os pensamentos dos outros seres humanos. Talvez não fosse bem assim, depois de uma pessoa lhes cair nas mãos. Ninguém sabia o que se passava dentro do Ministério do Amor, mas dava para adivinhar: torturas, drogas, delicados instrumentos que registavam as reacções nervosas do preso, esgotamento gradual pela privação do sono, pelo isolamento e pelos interrogatórios constantes. Factos, em todo o caso, tornava-se inviável ocultá-los. Eles podiam reconstituí-los procedendo a averiguações, ou arrancá-los ao preso com torturas. Mas se o objectivo, em vez de ser continuar vivo, for continuar a ser-se humano, bem vistas as coisas, tudo o mais que diferença faria? Eles não podem alterar os sentimentos... Aliás, nem nós próprios poderíamos alterá-los, mesmo que quiséssemos. Podiam pôr a nu, com todo o pormenor, quanto houvéssemos feito, dito ou pensado; mas o mais fundo do coração, há-de ser sempre inexpugnável.
(...) Espera-se de qualquer membro do Partido que não tenha sentimentos pessoais nem quebras de entusiasmo. Pretende-se que viva num frenesi contínuo de ódio aos inimigos estrangeiros e aos traidores internos, de euforia pelas vitórias e de auto-aviltamento ante o poder e a sabedoria do Partido. O descontentamento advindo da sua vida miserável e insatisfatória encontra-se deliberadamente canalizado para o exterior e dissipado de dispositivos como os Dois Minutos de Ódio, e as especulações que poderiam dar origem a atitudes cépticas ou rebeldes antecipadamente sufocadas numa disciplina interior precocemente adquirida. O primeiro e mais simples estádio dessa disciplina, que pode ser ensinado até mesmo a crianças de tenra idade, chama-se em novilíngua pára-crime. Pára-crime significa a faculdade de parar, como por instinto, no limiar de qualquer pensamento perigoso. Inclui a faculdade de não captar certas analogias, de omitir erros de lógica, de não compreender argumentos elementares se forem hostis ao Socing, e de sentir enfado ou repulsa por qualquer raciocínio susceptível de tomar um rumo herético. Pára-crime, em resumo, significa estupidez protectora. Mas a estupidez não basta. Muito pelo contrário, a ortodoxia, no pleno sentido do termo, exige dos indivíduos um domínio tão completo dos próprios processos mentais como o que um contorcionista tem do corpo. A sociedade oceânica assenta, em última análise, na convicção de que o Grande Irmão é todo-poderoso e o Partido é infalível. Mas como na realidade nem um é todo-poderoso nem o outro é infalível, torna-se necessária, a todo o instante, certa flexibilidade infatigável na abordagem dos factos. Aqui, a palavra-chave é pretobranco. Como tantas outras palavras da novilíngua, também esta tem dois sentidos antagónicos. Aplicada a um opositor, significa o hábito de afirmar despudoradamente que o preto é branco, contrariando a evidência dos factos. Aplicada a um membro do partido, designa a lealdade diligente em afirmar que o preto é branco quando a disciplina do Partido assim o exige. Mas significa também a capacidade de acreditar que o preto é branco, e mais ainda, de saber que o preto é branco, e esquecer que alguma vez se tenha pensado o contrário. Isto implica a constante alteração do passado, só possível pelo sistema de pensamento que na verdade abarca tudo o resto, e que se designa em novilíngua pela palavra duplopensar.
(...) - Como é que um homem afirma o seu poder sobre outro, Winston?
Winston reflectiu.
- Fazendo-o sofrer - disse.
- Exactamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como posso eu ter a certeza de que obedeceu à minha vontade e não à dele? O poder consiste em infligir dor e humilhação. O poder consiste em desagregar a mente humana para a reconstituir sob uma forma nova, sob a forma que entendermos dar-lhe. Começas agora a ver que tipo de mundo estamos a criar? Precisamente o oposto das estúpidas utopias hedonistas que os antigos reformadores imaginaram. Um mundo de medo, traição e tortura, mundo onde se pisa e se é pisado, mundo que se tornará mais impiedoso, e não menos, à medida que se for aperfeiçoando. O progresso, neste nosso mundo, será um progresso no sentido de cada vez maior sofrimento. As antigas civilizações afirmavam basear-se no amor ou na justiça. A nossa baseia-se no ódio. Não haverá lugar para outras emoções além do medo, da raiva, da humilhação e do triunfo. Tudo o mais será por nós destruído. Tudo! Já hoje estamos a liquidar hábitos mentais que sobreviveram dos tempos anteriores à Revolução. Cortámos os laços entre filhos e pais, entre homem e homem, entre homem e mulher. Já ninguém se atreve a confiar na própria mulher, no filho ou nos amigos. E no futuro suprimiremos esposas e amigos. Os filhos serão tirados às mães à nascença, como se tiram os ovos às galinhas. O instinto sexual também será suprimido. A procriação transformar-se-á numa formalidade anual, como a renovação dos cartões de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Os neurologistas já estão a estudar o assunto. Não restará lealdade, senão a lealdade ao Partido. Nem amor, senão o amor ao Grande Irmão. Nem riso, senão o riso da vitória sobre um inimigo aniquilado. Nem arte, literatura ou ciência. Desaparecerá a distinção entre beleza e fealdade. Não haverá curiosidade, nem o gozo de viver. Todos os prazeres que possam fazer concorrência ao Partido serão destruídos. Mas haverá sempre (nunca te esqueças disto, Winston), haverá sempre a embriaguez do poder, cada vez mais intensa, cada vez mais subtil. Sempre, a todo o momento, a emoção da vitória, a sensação de esmagar um inimigo indefeso. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota a pisar um rosto humano. Para sempre.
Fez uma pausa, como se esperasse de Winston alguma reacção. Winston tentava de novo enterrar-se mais na cama. Não conseguia dizer nada, tinha o coração gelado. O'Brien prosseguiu:
- E não te esqueças de que isto é para sempre. Há-de lá estar sempre esse rosto pisado. O herege, o inimigo da sociedade, estará sempre presente, para ser de novo derrotado e humilhado. Tudo aquilo por que passaste desde que caíste nas nossas mãos, tudo isso vai continuar, vai tornar-se ainda pior. A vigilância policial, as traições, as prisões, as execuções e os desaparecimentos nunca acabarão. Será um mundo tanto de terror como de triunfo. Quanto mais poderoso o Partido, menos tolerante há-de ser; quanto mais ténue a oposição, mais cerrado o despotismo. Goldstein e as suas heresias viverão para sempre. Todos os dias, a todo o instante, serão derrotados, desacreditados, ridicularizados, cobertos de escarros; e no entanto subsistirão sempre. A peça de teatro que para ti representei durante sete anos há-de ser representada vezes sem conta, geração após geração, sob formas cada vez mais subtis. Havemos de ter sempre o herege aqui à nossa mercê, gritando de dor, arrasado, desprezível... e por fim completamente arrependido, salvo de si próprio, rojando-se aos nossos pés de livre vontade. É esse o mundo que estamos a preparar, Winston. Um mundo de vitórias sobre vitórias, triunfos sobre triunfos: assédio constante, constante, constante, ao âmago do poder. Vejo que começas a perceber como será esse mundo. Mas por último não te limitarás a perceber. Aceitá-lo-ás, saudá-lo-ás, passarás a fazer parte dele.
Winston recompusera-se o suficiente para conseguir falar:
- Não podem! - disse debilmente.
- Que queres dizer com esse comentário, Winston?
- Não podem criar um mundo como o que acabas de descrever. É um sonho. É impossível.
- Porquê?
- É impossível fundar uma civilização sobre o medo, o ódio e a crueldade. Nunca poderia durar.
- Porque não?
- Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia.
- Que disparate. Estás convencido de que o ódio é mais esgotante do que o amor. Porque havia de ser assim? E se fosse, que diferença faria? Imagina só que decidimos consumir-nos mais depressa. Imagina que aceleramos o ritmo da vida humana a pontos de os homens ficarem senis aos trinta anos. Mesmo isso, que diferença faria? Não percebes que a morte do indivíduo não é a morte? O Partido é imortal.
Como de costume, aquela voz reduziria Winston à impotência. Além disso, ele receava que, ao persistir naquela discordância, O'Brien tornasse a puxar a alavanca. Contudo, não conseguiu ficar calado. Debilmente, sem argumentos, sem nada a que se apoiasse senão o horror indistinto pelo que O'Brien acabava de dizer, voltou ao ataque.
- Não sei... não me interessa. Vocês hão-de falhar. Alguma coisa irá acontecer-vos. A vida há-de vencer-vos.
- Nós controlamos a vida, Winston, a todos os níveis. Tu imaginas que existe uma coisa chamada natureza humana que vai ficar indignada com o que fazemos, virando-se contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os homens são infinitamente maleáveis. Se voltaste à tua antiga ideia de que os proletários ou os escravos se hão-de erguer para nos derrubar, tira daí o sentido. Eles estão impotentes, como animais. A humanidade é o Partido. Os outros situam-se fora... são irrelevantes».
George Orwell («1984»).
«Os inacreditáveis horrores da Guerra dos Trinta Anos ensinaram alguma coisa aos homens, e durante mais de cem anos os políticos e generais da Europa resistiram conscientemente à tentação de usar os seus recursos militares até ao limite da sua capacidade de destruição, ou (na maior parte dos conflitos) de continuar a lutar até que o inimigo fosse completamente aniquilado. Eram agressivos, bem entendido, ávidos de lucro e de glória; mas eram igualmente conservadores, resolvidos a conservar intacto, a todo o preço, o seu mundo, na medida em que o consideravam uma florescente empresa. Durante os últimos trinta anos, não têm existido conservadores; apenas tem havido radicais nacionalistas das esquerdas e radicais nacionalistas das direitas. O último homem de Estado conservador foi o quinto marquês de Lansdowne; e quando ele escreveu uma carta ao Times sugerindo que se pusesse fim à Primeira Guerra Mundial através de um compromisso, como havia sido feito na maioria das guerras do século XVIII, o redactor-chefe desse jornal outrora conservador recusou publicá-la. Os radicais nacionalistas fizeram o que lhes apeteceu, com as consequências que todos nós conhecemos - bolchevismo, fascismo, inflação, crise económica, Hitler, a Segunda Guerra Mundial, a ruína da Europa e a fome praticamente universal.
Admitindo, pois, que sejamos capazes de tirar de Hiroxima uma lição equivalente à que os nossos antepassados tiraram de Magdeburgo, podemos encarar um período, não certamente de paz, mas de guerra limitada que seja apenas parcialmente ruinosa. Durante esse período, pode-se admitir que a energia nuclear seja aplicada a usos industriais. O resultado, e o facto é bastante evidente, será uma série de mudanças económicas e sociais rápidas e mais completas do que tudo o que até agora foi visto. Todas as formas gerais existentes da vida humana serão quebradas, e será necessário improvisar formas novas que se adaptem a esse facto não humano que é a energia atómica. Procusto moderno, o sábio de pesquisas nucleares, prepara a cama em que a humanidade se deverá deitar; e se a humanidade não se adaptar a ela, tanto pior para a humanidade. Será necessário proceder a algumas ampliações e a algumas amputações - o mesmo género de ampliações e amputações que teve lugar desde que a ciência aplicada se pôs realmente a caminhar com a sua própria cadência; mas, desta vez, serão consideravelmente mais rigorosas do que no passado. Estas operações, que estarão longe de ser feitas sem dor, serão dirigidas por governos totalitários eminentemente centralizados. É uma coisa inevitável, pois o futuro imediato tem grandes probabilidades de se parecer com o passado imediato, e no passado imediato as mudanças tecnológicas rápidas, efectuando-se numa economia de produção de massa e entre uma população em que a grande maioria dos indivíduos nada possui, têm tido sempre a tendência para criar confusão económica e social. A fim de reduzir essa confusão, o poder tem sido centralizado e o controlo governamental aumentado. É provável que todos os governos do mundo venham a ser mais ou menos totalitários, mesmo antes da utilização prática da energia atómica; que eles serão totalitários durante e após essa utilização prática, eis o que parece quase certo. Só um movimento popular em grande escala, tendo em vista a descentralização e o auxílio individual, poderá travar a actual tendência para o estatismo. E não existe presentemente nenhum sinal que permita pensar que tal movimento venha a ter lugar.
Não há nenhuma razão, bem entendido, para que os novos totalitarismos se pareçam com os antigos. O governo por meio de cacetes e de pelotões de execução, de fomes artificiais, de detenções e deportações em massa, não é somente desumano (parece que isso não inquieta muitas pessoas, actualmente), é - pode demonstrar-se - ineficaz, e, numa era de técnica avançada, a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo. Um estado totalitário verdadeiramente eficiente será aquele em que o todo-poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de directores terá o controlo de uma população de escravos que será inútil constranger, porque todos terão amor à sua servidão. Conseguir que eles a amem - tal será a tarefa atribuída, nos estados totalitários de hoje, aos ministérios de propaganda, aos redactores-chefes dos jornais e aos mestres-escola. Mas os seus métodos são ainda grosseiros e não-científicos. Os Jesuítas gabavam-se outrora de poder, se lhes fosse confiada a instrução da criança, responder pelas opiniões religiosas do homem; mas aí tratava-se de um caso de desejos tomados por realidades. E o pedagogo moderno é, provavelmente, menos eficaz no condicionamento dos reflexos dos seus alunos do que o foram os reverendos padres que educaram Voltaire. Os maiores triunfos, em matéria de propaganda, foram conseguidos, não com fazer qualquer coisa, mas com a abstenção de a fazer. Grande é a verdade, mas maior ainda, do ponto de vista prático, é o silêncio a respeito da verdade. Abstendo-se simplesmente de mencionar alguns assuntos, baixando aquilo a que o Sr. Churchill chama uma "cortina de ferro" entre as massas e certos factos que os chefes políticos locais consideram indesejáveis, os propagandistas totalitários têm influenciado a opinião de uma maneira bastante mais eficaz do que teriam podido fazê-lo por meio de denúncias eloquentes ou das mais convincentes e lógicas refutações. Mas o silêncio não basta. Para que sejam evitadas a perseguição, a liquidação e outros sintomas de atritos sociais, é necessário que o lado positivo da propaganda seja tão eficaz como o negativo. Os mais importantes Manhattan Projects do futuro serão vastos inquéritos, instituídos pelo governo, sobre aquilo a que os homens políticos e os homens de ciência que nele participarão chamarão "o problema da felicidade"- noutros termos, o problema que consiste em fazer amar aos indivíduos a sua servidão. Sem segurança económica, não tem o amor pela servidão nenhuma possibilidade de se desenvolver; admito, para resumir, que a todo-poderosa comissão executiva e seus directores conseguirão resolver o problema da segurança permanente. Mas a segurança tem tendência a ser muito rapidamente dada por garantida. A sua realização é simplesmente uma revolução superficial, exterior. O amor à servidão não pode ser estabelecido senão como resultado de uma revolução profunda, pessoal, nos espíritos e nos corpos humanos. Para efectuar esta revolução necessitaremos, entre outras, das descobertas e invenções seguintes: Primo, uma técnica muito melhorada da sugestão - por meio do condicionamento na infância e, mais tarde, com a ajuda de drogas, tais como a escopolamina. Secundo, um conhecimento científico e perfeito das diferenças humanas que permita aos dirigentes governamentais destinar a todo o indivíduo determinado o seu lugar conveniente na hierarquia social e económica. (As cunhas redondas nos buracos quadrados têm tendência para ter ideias perigosas acerca do sistema social e para contaminar os outros com o seu descontentamento). Tertio (pois a realidade, por mais utópica que seja, é uma coisa de que todos temos necessidade de nos evadir frequentemente), um sucedâneo do álcool e de outros narcóticos, qualquer coisa que seja simultaneamente menos nociva e mais dispensadora de prazeres que o gin ou a heroína E quarto (será isto um projecto a longo prazo, que exigirá, para chegar a uma conclusão satisfatória, várias gerações de controlo totalitário), um sistema eugénico perfeito, concebido de maneira a padronizar o produto humano e a facilitar, assim, a tarefa dos dirigentes. No Admirável Mundo Novo esta standardização dos produtos humanos foi levada a extremos fantásticos, se bem que talvez não impossíveis. Técnica e ideologicamente, estamos ainda muito longe dos bebés em proveta e dos grupos Bokanovsky de meio-imbecis. Mas quando for ultrapassado o ano 600 d.F., quem sabe o que poderá acontecer? Daqui até lá, as outras características desse mundo mais feliz e mais estável - os equivalentes do soma, da hipnopédia e do sistema científico das castas - não estão provavelmente afastadas mais de três ou quatro gerações. E a promiscuidade sexual do Admirável Mundo Novo também não parece estar muito afastada. Existem já certas cidades americanas onde o número de divórcios é igual ao número de casamentos. Dentro de alguns anos, sem dúvida, vender-se-ão licenças de cães, válidas para um período de doze meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de um animal de cada vez. À medida que a liberdade económica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação. E o ditador (a não ser que tenha necessidade de carne de canhão e de famílias para colonizar os territórios desabitados ou conquistados) fará bem em encorajar esta liberdade. Juntamente com a liberdade de sonhar em pleno dia sob a influência de drogas, do cinema e da rádio, ela contribuirá para reconciliar os seus súbditos com a servidão que lhes estará destinada.
Vendo bem, parece que a utopia está mais próxima de nós do que se poderia imaginar apenas há quinze anos. Nessa época projectei-a à distância futura de seiscentos anos. Hoje parece praticamente possível que esse horror se abata sobre nós dentro de um século. Isto, se nos abstivermos, até lá, de nos fazer explodir em bocadinhos. Na verdade, a menos que nos decidamos a descentralizar e a utilizar a ciência aplicada, não com o fim de reduzir os seres humanos a simples instrumentos, mas como meio de produzir uma raça de indivíduos livres, apenas podemos escolher entre duas soluções: ou um certo número de totalitarismos nacionais, militarizados, tendo como base o terror da bomba atómica e como consequência a destruição da civilização (ou, se a guerra for limitada, a perpetuação do militarismo); ou um único totalitarismo internacional, suscitado pelo caos social resultante do rápido progresso técnico em geral e da revolução atómica em particular, e desenvolvendo-se, sob a pressão da eficiência e da estabilidade, no sentido da tirania-providência da Utopia. É pagar e escolher».
Aldous Huxley (in Prefácio de 1949 ao «Admirável Mundo Novo»).
Carta a George Orwell, por ocasião da publicação de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949).
Para George Orwell (E.A. Blair)
Wrightwood, Califórnia
21 de Outubro de 1949
Caro Sr. Orwell,
Foi muito gentil da sua parte ter pedido aos editores que me enviassem um exemplar do seu livro. Recebi-o quando estava a meio de um trabalho que me exigiu muitas leituras e uma extensa consulta de referências; e, dado que a minha fraca vista me obriga a restringir as leituras que faço, tive de aguardar bastante tempo antes de me aventurar em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.
Uma vez que estou de acordo com todas as opiniões dos críticos, escusado será repetir a profunda importância e a qualidade do seu livro. Permita-me antes falar do tema - a derradeira revolução?
O prenúncio de uma filosofia da derradeira revolução - a revolução que ultrapassa a política e a economia e que visa a total subversão da psicologia e da fisiologia do indivíduo - encontra-se já em Marquês de Sade, que se considerava um seguidor, e um consumador, de Robespierre e de Babeuf. A filosofia da minoria dirigente em Mil Novecentos e Oitenta Quatro é um sadismo levado às últimas consequências pela superação, e negação, do sexo. Se, de facto, a política da bota-na-cara pode prosseguir indefinidamente, é algo que me parece duvidoso. É minha convicção que a oligarquia dirigente encontrará formas menos árduas e esgotantes de governar e de satisfazer a sua ânsia de poder, formas estas que se assemelharão às que descrevi em Admirável Mundo Novo. Tive recentemente ocasião de me debruçar sobre a história do magnetismo animal e do hipnotismo, e fiquei bastante impressionado por ver que, durante cento e cinquenta anos, nos recusámos a reconhecer com seriedade as descobertas de Mesmer, Braid e Esdaile, entre outros. Em parte devido ao materialismo prevalecente, e em parte também devido a uma respeitabilidade igualmente prevalecente, os filósofos e os cientistas do século XIX não estavam dispostos a investigar os factos mais invulgares da psicologia, para que os pragmáticos - os políticos, os soldados e os agentes da autoridade - os aplicassem no domínio da governação. Graças à ignorância voluntária dos nossos antecessores, o advento da derradeira revolução foi adiado por cinco ou seis gerações. Outro feliz acaso foi a inépcia de Freud no que toca ao hipnotismo e a sua consequente rejeição por este psicanalista. Este aspecto atrasou o recurso generalizado ao hipnotismo na psiquiatria pelo menos quarenta anos. Mas, actualmente, a psicanálise e a hipnose complementam-se; e esta última tornou-se acessível e indefinidamente abrangente devido ao uso de barbitúricos, que induzem um estado hipnótico e sugestionável até nos indivíduos mais recalcitrantes. Creio que, na próxima geração, os governantes do mundo descobrirão que o condicionamento de crianças e a narco-hipnose são mais eficazes, enquanto instrumentos de governação, do que as associações e as prisões, e que a ânsia de poder pode ser igualmente satisfeita quer sugestionando os indivíduos para que adorem a sua escravidão, quer forçando-os a obedecerem pelo chicote e pela violência. Ou seja, penso que o pesadelo de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro está destinado a converter-se gradualmente no pesadelo de um mundo que tem mais afinidades com aquele que imaginei em Admirável Mundo Novo. A mudança ficará a dever-se à manifesta necessidade de maior eficácia. Até lá, claro, talvez ocorra uma guerra atómica e biológica em grande escala - e nesse caso, teremos pesadelos de outra natureza e dificilmente imagináveis.
Agradeço-lhe novamente o exemplar.
Cordialmente
Aldous Huxley
Agradeço-lhe novamente o exemplar.
Cordialmente
Aldous Huxley
Princípios da Novilíngua
A novilíngua era a língua oficial da Oceânia e fora concebida para satisfazer as necessidades ideológicas do Socing, ou socialismo Inglês. No ano de 1984 não havia ainda ninguém que usasse a novilínguia como exclusivo meio de comunicação, quer oralmente quer por escrito. Os artigos de fundo do Times vinham redigidos em novilíngua, mas constituía isso um tour de force, só podendo ser levado a cabo por especialistas. Esperava-se que a novilíngua tivesse finalmente destronado a velhilíngua (ou inglês-padrão, como é correcto dizer-se) por volta do ano 2050. Entretanto, ia constantemente ganhando terreno, uma vez que todos os membros do Partido tendiam a usar cada vez mais, na linguagem quotidiana, palavras e construções gramaticais da novilíngua. A versão em vigor em 1984, consistia numa versão provisória contendo muitas palavras supérfluas e formações arcaicas destinadas a serem suprimidas mais tarde. A que aqui nos ocupa é a versão final aperfeiçoada, a que a décima primeira edição do Dicionário de Novilíngua dá corpo.
O propósito da novilíngua pretendeu não apenas proporcionar um meio de expressão para a visão do mundo e os hábitos mentais específicos dos adeptos do Socing, mas também tornar impossíveis todas as formas de pensamento. Pretendia-se que, quando a novilíngua fosse definitivamente adoptada e a velhilíngua caísse no esquecimento, todo o pensamento herético - isto é, qualquer pensamento divergente dos princípios do Socing - se tornasse literalmente impensável, pelo menos na medida em que o pensamento depende da palavra. O vocabulário da novilíngua era construído de modo a exprimir com exactidão, e muitas vezes com grande subtileza, qualquer sentido que um membro do Partido pudesse legitimamente querer exprimir, excluindo, ao mesmo tempo, todos os outros sentidos, e também a possibilidade de chegar a eles por meios indirectos. Conseguia-se isto em parte através da invenção de novas palavras, mas principalmente eliminando as palavras indesejáveis e despojando as que restavam dos seus sentidos não ortodoxos, e tanto quanto possível de todos e quaisquer sentidos secundários. Para dar apenas um exemplo: a palavra livre continuava a existir na novilíngua, mas só podia ser usada em frases como «Este cão está livre de pulgas», ou «Este campo está livre de ervas daninhas». Não podia ser usada na velha acepção de «politicamente livre» ou «intelectualmente livre», uma vez que as liberdades política ou intelectual já nem sequer existiam enquanto conceitos, sendo portanto necessariamente inomináveis. Mesmo quando não se tratava de suprimir palavras manifestamente heréticas, encarava-se a redução do vocabulário como um fim em si, e não se permitia a sobrevivência de qualquer palavra dispensável. A novilíngua foi concebida não para aumentar, mas para restringir o campo do pensamento, propósito indirectamente servido pela redução ao mínimo da gama das palavras.
A novilíngua baseava-se na língua inglesa tal como hoje a conhecemos, embora muitas das suas proposições, mesmo sem qualquer palavra criada de novo, fossem praticamente ininteligíveis para um falante inglês dos nossos dias. As palavras da novilíngua dividiam-se em três categorias distintas, conhecidas como vocabulário A, vocabulário B (as também chamadas palavras compostas) e vocabulário C. O mais simples será analisar separadamente cada uma destas classes, embora as particularidades gramaticais da língua possam ser desde logo analisadas na secção dedicada ao vocabulário A, dado as mesmas regras serem válidas para as três categorias.
Vocabulário A. O vocabulário A era constituído por palavras necessárias às actividades da vida quotidiana - acções como comer, beber, trabalhar, vestir-se, subir e descer escadas, deslocar-se em veículos, jardinar, cozinhar, e assim por diante. Compunha-se quase integralmente de palavras que já possuímos - palavras como bater, correr, cão, árvore, açúcar, casa, campo -, mas em comparação com o inglês actual cingia-se a um número extremamente pequeno, enquanto os seus significados eram muito mais rigidamente definidos. Haviam sido expurgadas de todas as ambiguidades e matizes de sentido. Na medida do possível, cada palavra desta categoria era, na novilíngua, um mero som staccato exprimindo um conteúdo claramente delimitado. Seria absolutamente impossível utilizar o vocabulário A para fins literários ou para debates políticos ou filosóficos. Destinava-se apenas a exprimir ideias simples e utilitárias, envolvendo, regra geral, objectos concretos ou acções físicas.
A gramática da novilíngua tinha duas particularidades dignas de nota. A primeira, uma permutabilidade quase total entre as diferentes partes do discurso. Qualquer palavra da língua (em princípio isto aplicava-se até mesmo a palavras tão abstractas como se ou quando) podia ser usada quer como verbo quer como substantivo, adjectivo ou advérbio. Entre a forma verbal e a forma nominal, sendo a raiz de ambas a mesma, nunca havia qualquer variação, implicando tal regra, por si só, a destruição de muitas formas arcaicas. A palavra pensamento, por exemplo, não existia na novilíngua. Em seu lugar utilizava-se pensar, servindo simultaneamente de substantivo e verbo. Não se seguia aqui nenhum princípio etimológico: em alguns casos era o substantivo original o escolhido para ser conservado; noutros casos, o verbo. Mesmo quando um substantivo e um verbo de sentido afim não estavam etimologicamente ligados entre si, um ou outro de entre eles acabava por ser muitas vezes suprimido. Por exemplo, a palavra cortar não existia, uma vez que o seu sentido estava suficientemente abrangido pelo substantivo-verbo faca. Os adjectivos formavam-se acrescentando ao substantivo-verbo o sufixo -ico, e os advérbios acrescentando -mente. Assim, por exemplo. velocidádico significava «rápido» e velocidademente significava «depressa». Conservavam-se alguns dos nossos actuais adjectivos, tais como bom, forte, grande, preto, macio, mas, na globalidade, eram raríssimos. Pouca falta faziam, visto que se podiam obter quase todos os sentidos adjectivados acrescentando -ico a um substantivo-verbo. Não se conservaram nenhuns dos advérbios actualmente existentes, excepto os já terminados em -mente (1): a terminação era invariável. A palavra bem, por exemplo, substituía-se por bommente.
Além disso, qualquer palavra - também esta regra se aplicava, em princípio, a todas as palavras da língua - podia tornar-se negativa mediante a anteposição do afixo im-, ou reforçada pelo afixo extra-, ou para uma ênfase ainda maior, pelo afixo duploextra-. Assim, por exemplo, imfrio significava «quente», enquanto extrafrio e duploextrafrio, significavam, respectivamente, «muito frio» e «muitíssimo frio». Era também possível, à semelhança do inglês actual, modificar o sentido de quase todas as palavras com prefixos como pré-, pós-, sub-, supra-, etc. Dada, por exemplo, a palavra bom, tornava-se desnecessária a palavra mau, uma vez que o sentido desejado podia ser correctamente expresso - ou melhor ainda - por imbom. Bastava, nos casos em que duas palavras formavam um par natural de opostos, decidir qual delas suprimir. Escuro, por exemplo, podia ser substituída por inclaro, ou claro por inescuro, conforme se preferisse.
A segunda característica distintiva da gramática da novilíngua residia na sua regularidade. Com algumas excepções, que adiante indicaremos, todas as flexões seguiam a mesma regra. Como tal, em todos os verbos o pretérito e o particípio passado eram idênticos e teminavam em -ado. O pretérito de fazer era fazado, o pretérito de dizer, dizado (2), e assim por diante, em toda a língua, abolindo-se por completo formas como ido, deu, trouxe, feito, teve, etc. Todos os plurais se formavam acrescentando -s ou -es, conforme os casos. Os plurais de cão, pão, lençol eram cãos, pãos, lençoles. O comparativo e o superlativo dos adjectivos formavam-se invariavelmente com mais, amais (bom, maisbom, amaisbom), suprimindo-se todas as formas irregulares.
As únicas classes de palavras onde continuavam a tolerar-se as flexões irregulares resumiam-se aos pronomes pessoais e relativos, aos adjectivos demonstrativos e aos verbos auxiliares. Todas estas seguiam as antigas regras de utilização, à excepção de cujo, que fora eliminado, por desnecessário, e do auxiliar haver, abandonado porque podia, em todos os casos, ser substituído por ter. Verificavam-se, porém, certas irregularidades na formação de palavras, devido à necessidade de falar rápida e fluentemente. Palavras difíceis de pronunciar, ou susceptíveis de serem incorrectamente ouvidas, eram ipso facto consideradas palavras más: ocasionalmente, portanto, por razões de eufonia, inseriam-se numa palavra letras suplementares ou conservava-se a formação arcaica. Mas esta necessidade fazia-se sentir principalmente em relação ao vocabulário B. O motivo por que se dava uma tão grande importância à facilidade de articulação será esclarecido mais adiante neste ensaio.
Vocabulário B. O vocabulário B compunha-se de palavras deliberadamente construídas para fins políticos, ou seja: palavras que não só tinham, em todos os casos, um sentido político, como se destinavam a impor uma atitude mental desejável à pessoa que as utilizava. Sem a plena compreensão dos princípios do Socing, seria difícil empregar correctamente estas palavras. Em alguns casos, era possível traduzi-las em velhilíngua, ou mesmo em palavras do vocabulário A, mas isso geralmente exigia uma longa paráfrase e implicava sempre a perda de certas conotações. As palavras B constituíam uma espécie de estenografia verbal, condensando muitas vezes todo um encadeamento de ideias em meia dúzia de sílabas, mostrando-se, pois, ao mesmo tempo mais precisas e mais eficazes do que a linguagem comum.
As palavras B eram sempre palavras compostas (3). Compunham-se de duas ou mais palavras, ou partes de palavras, unidas numa forma fácil de pronunciar. A amálgama daí resultante era sempre um substantivo-verbo, cujas flexões obedeciam às regras gerais. Para dar apenas um exemplo: a palavra bompensar, que significava pouco mais ou menos «ortodoxia», ou, caso se prefira considerá-la como verbo, «pensar de forma ortodoxa». Tinha as seguintes flexões: substantivo-verbo, bompensar; pretérito perfeito e particípio passado, bompensado; particípio presente, bompensando; adjectivo, bompensádico; advérbio, bompensadamente; substantivo verbal, bompensante.
As palavras B não se construíam com base em nenhum plano etimológico. Os fragmentos de que se compunham podiam ser quaisquer partes do discurso, dispostos por qualquer ordem e mutilados de forma a facilitar a sua pronúncia, conquanto não deixassem de indicar a sua derivação. Na palavra crimepensar (crime de pensamento), por exemplo, o pensar vinha em segundo, enquanto em pensarpol (Polícia do Pensamento) vinha em primeiro, perdendo na palavra final, polícia, as últimas sílabas. Dada a grande dificuldade em garantir a eufonia, as formações irregulares surgiam preferencialmente no vocabulário B. Por exemplo, formas adjectivadas de Minivero, Minipax e Minamor davam, respectivamente, Miniverídico, Minipacífico e Minamorável, simplesmente porque Miniveróico, Minipáxico e Miniamôrico se constatava serem ligeiramente difíceis de pronunciar. Em princípio, porém, todas as palavras B eram susceptíveis de flexão, e todas flectiam exactamente da mesma maneira.
Algumas das palavras B designavam sentidos extremamente subtis, praticamente ininteligíveis para quem não dominasse a língua no seu conjunto. Considere-se, por exemplo, numa frase tão típica, de um artigo de fundo do Times, como Velhopensantes inventressentir Socing. A versão mais curta possível desta frase em velhilíngua seria: «Aqueles cujas ideias foram formadas antes da Revolução não podem ter uma plena compreensão emocional dos princípios do Socialismo Inglês». Ainda assim, não estamos perante a tradução adequada. Antes de mais, para se apreender plenamente o sentido da frase em novilíngua acima citada, tornar-se-ia necessário ter ideias claras acerca do que significa Socing. E além disso, só uma pessoa profundamente enraizada no Socing seria capaz de avaliar toda a força da palavra ventressentir, que implicava aceitação cega, entusiástica, hoje difícil de imaginar; ou da palavra velhopensar, que se ligava inextricavelmente às ideias de perversidade e decadência. Mas a função específica de certas palavras da novilíngua, de que velhopensar é exemplo, não consistia tanto em exprimir significações como em destruí-las. O sentido de tais palavras, necessariamente em número reduzido, tinha vindo a alargar-se de modo a englobar baterias inteiras de outras palavras, as quais, logo que o seu significado estivesse suficientemente abrangido por um único termo mais amplo, logo seriam eliminadas e esquecidas. A maior dificuldade com que se defrontavam os compiladores do Dicionário de Novilíngua não era inventar novas palavras, mas sim, depois de as inventar, saber ao certo o que significavam; ou seja, saber ao certo que gama de termos a sua existência cancelava.
Como já vimos, no caso da palavra livre, palavras outrora portadoras de um sentido herético mantinham-se por vezes devido a razões de conveniência, só que expurgadas dos sentidos indesejáveis. Inúmeras outras palavras como honra, justiça, moralidade, internacionalismo, democracia, ciência e religião tinham simplesmente sido suprimidas, ao serem abrangidas por algumas palavras genéricas que, ao abrangê-las, as aboliam. Todas as palavras que se agrupavam em torno dos conceitos de liberdade e igualdade, por exemplo, foram concentradas numa única palavra, crimepensar, enquanto as palavras que giravam em torno dos conceitos de objectividade e racionalismo foram absorvidas pela palavra velhopensar. Precisão maior, seria perigoso. O que se pretendia dos membros do Partido era uma visão do mundo semelhante à dos antigos hebreus, que não iam muito além de saber que todas as nações à excepção da sua adoravam «falsos deuses». Ao hebreu tanto lhe fazia que esses deuses se chamassem Baal, Osíris, Moloch, Astaroth, e assim por diante; provavelmente, quanto menos soubesse acerca deles, melhor para a sua ortodoxia. Conhecia Jeová e os mandamentos de Jeová: por conseguinte, todos os deuses com nomes diferentes ou com outros atributos eram falsos deuses. De forma muito semelhante, um membro do Partido estava ciente do que constituía a conduta correcta e, em termos extremamente vagos e genéricos, sabia que tipos de desvio eram possíveis relativamente a ela. A sua vida sexual, por exemplo, encontrava-se inteiramente regulada por duas palavras em novilíngua: sexocrime (imoralidade sexual) e bom-sexo (castidade). Sexocrime cobria todos e quaisquer delírios sexuais: a fornicação, o adultério, a homossexualidade e as outras perversões; além disto, englobava igualmente a relação sexual normal praticada apenas por prazer. Era desnecessário enumerar separadamente estes crimes, uma vez serem todos condenáveis e, em princípio, puníveis com a morte. No vocabulário C, que se compunha de termos científicos e técnicos, talvez fosse preciso atribuir nomes especializados a certas aberrações sexuais, mas ao cidadão comum de nada serviam. Este sabia somente o que significava bom-sexo - isto é, a relação normal entre marido e mulher, com a procriação por única finalidade, sem prazer físico do lado da mulher: tudo o mais era sexocrime. Em novilíngua raramente se tornava viável seguir um pensamento herético para lá da consciência de que era herético: para além desse ponto as palavras necessárias não existiam.
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Nenhuma palavra do vocabulário B era ideologicamente neutra. Muitas delas eram eufemismos. Palavras como campalegre (campo de trabalhos forçados) ou Minipax (Ministério da Paz, ou seja, Ministério da Guerra) significavam quase o perfeito oposto daquilo que pareciam significar. Certas palavras, em contrapartida, traduziam uma percepção franca e desdenhosa da verdadeira natureza da sociedade oceânica. Um bom exemplo verificava-se em nutriprole, termo que designava os divertimentos medíocres e as notícias espúrias que o Partido destinava às massas. Havia ainda algumas palavras ambivalentes, tendo a conotação de «bom» quando aplicadas ao Partido e de «mau» quando aplicadas aos seus inimigos. Mas além destas, usava-se um grande número de palavras que, à primeira vista, pareciam meras abreviaturas e cuja coloração ideológica derivava não do seu sentido, mas da sua estrutura.
Na medida do possível, tudo quanto tivesse ou pudesse vir a ter qualquer tipo de relevância política integrava-se no vocabulário B. Os nomes de todas as organizações, ou agrupamentos de indivíduos, doutrinas, países, instituições ou edifícios públicos, surgiam invariavelmente reduzidos à forma familiar; ou seja, uma única palavra de fácil pronúncia, com o número mínimo de sílabas, susceptível de preservar a sua derivação original. No Ministério da Verdade, por exemplo, ao Departamento de Arquivos, onde Winston Smith trabalhava, designavam-no por Arquidep, ao Departamento de Ficção por Ficdep, ao Departamento de Programas Televisivos por Teledep, e assim sucessivamente. O objectivo disto não consistia apenas em poupar tempo. Já nas primeiras décadas do século XX as palavras ou expressões abreviadas constituíam um dos aspectos característicos da linguagem política, sendo notória e marcante a tendência para empregar abreviaturas deste tipo nos países ou organizações com características totalitárias. Palavras como Nazi, Gestapo, Comintern, Inprecor, Agitprop são disso bons exemplos. Na origem, tal prática tinha sido adoptada como que por instinto, mas na novilíngua utilizava-se com propósitos bem conscientes. Verificou-se que ao abreviar deste modo um nome se reduzia subtilmente o seu sentido, eliminando a maior parte das ilações que de outro modo se fariam em torno dele. O termo Internacional Comunista, por exemplo, evoca numa imagem compósita a fraternidade humana universal, as bandeiras vermelhas, as barricadas, Karl Marx e a Comuna de Paris. A palavra Comintern, em contrapartida, sugere simplesmente uma organização coesa e um corpo doutrinal bem definido. Refere-se a algo quase tão fácil de identificar, e tão limitado nos seus fins, como uma cadeira ou uma mesa. Comintern surge-nos como uma palavra que pode ser pronunciada quase sem pensar, enquanto Internacional Comunista é uma expressão sobre a qual somos obrigados a reflectir minimamente. De modo idêntico, as ilações suscitadas por uma palavra como Minivero são menos numerosas e mais controláveis do que as suscitadas por Ministério da Verdade. Esse propósito justificava apenas o hábito de abreviar sempre que possível, como também o cuidado quase excessivo que se punha numa pronúncia fácil, acessível.
Em novilíngua, a eufonia sobrepunha-se a todas as outras considerações, excepto à clareza do sentido. A regularidade gramatical era-lhe sacrificada sempre que necessário. Justificava-se que assim fosse, uma vez que o pretendido, principalmente no âmbito político, eram palavras curtas e abreviadas, de sentido inequívoco, que pudessem ser rapidamente pronunciadas e provocassem a mínima ressonância possível no espírito do falante. As palavras do vocabulário B ganhavam até mais força pelo simples facto de serem praticamente todas muito semelhantes. Quase invariavelmente, tais palavras - bompensar, Minipax, nutriprole, campalegre, Socing, ventressentir, pensarpol, e tantas outras - compunham-se de duas ou três sílabas (4), com o acento tónico repartido igualmente entre a primeira e a última sílabas. O seu emprego dava origem a um tipo de elocução rápida, ao mesmo tempo sacudida e monótona. E era exactamente isto que se pretendia. A intenção, no referente a temas não ideologicamente neutros, residia em tornar a fala tanto quanto possível independente da consciência. No domínio da vida quotidiana afigurava-se sem dúvida necessário, pelo menos às vezes, reflectir antes de falar, mas um membro do Partido chamado a emitir um juízo político ou ético devia ser capaz de disparar as opiniões correctas tão automaticamente como uma metralhadora dispara balas. O treino preparava-o para isso mesmo, a língua fornecia-lhe instrumentos quase infalíveis, e a textura das palavras, com a sua sonoridade áspera e alguma fealdade deliberada coadunando-se com o espírito do Socing, reforçava ainda mais todo o processo.
Ver 1, 2, 3, 4, 5 e 6 |
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Vocabulário C. O vocabulário C era complementar aos outros dois e compunha-se inteiramente de termos científicos ou técnicos. Assemelhavam-se aos termos científicos actuais, sendo construídos a partir das mesmas raízes, mas havia o cuidado habitual de os definir com rigidez e de os despojar de sentidos indesejáveis. Seguiam as mesmas regras gramaticais que as palavras dos dois outros vocabulários. Utilizavam-se muito poucas palavras C, quer na linguagem de todos os dias, quer no discurso político. Cada técnico ou trabalhador científico tinha acesso às palavras todas de que necessitava, na lista própria da sua especialidade, mas raramente ia além do conhecimento superficial das palavras que ocorriam nas outras listas. Muito poucas eram as palavras comuns a todas as listas, e nenhum vocabulário exprimia a função da Ciência como hábito mental ou método de pensamento, independentemente dos seus diversos ramos. Não existia, aliás, qualquer palavra para «Ciência», pois todos os sentidos que uma tal palavra pudesse denotar estavam já suficientemente abrangidos pelo termo Socing.
Por este resumo se perceberá que em novilíngua a expressão de opiniões ortodoxas, acima de um nível extremamente rudimentar, era praticamente impossível. Claro que se conseguia proferir heresias de tipo muito grosseiro, blasfémias, por assim dizer. Seria possível, por exemplo, dizer O Grande Irmão é imbom. Mas a afirmação, que para ouvidos ortodoxos apenas exprimia um evidente absurdo, nunca poderia ser defendida com argumentos fundamentados, pois as palavras necessárias para isso tinham desaparecido. As ideias adversas ao Socing só podiam ser pensadas de forma vaga e inarticulada, e só se conseguia nomeá-las em termos extremamente imprecisos, amalgamando e condensando grupos inteiros de heresias, sem que isso as definisse. Na realidade, só havia a possibilidade de utilizar a novilíngua para fins heterodoxos traduzindo ilegitimamente algumas das palavras para velhilíngua. Por exemplo, todos os homens são iguais era uma frase possível em novilíngua, só que apenas do mesmo modo que Todos os homens são ruivos surge em velhilíngua: não continha qualquer erro gramatical, mas exprimia uma inverdade palpável - ou seja, que todos os homens têm idêntica altura, idêntico peso ou força. O conceito da igualdade política desaparecera, por conseguinte a palavra igual fora expurgada desta acepção secundária. Em 1984, quando a velhilíngua ainda constituía o meio normal de comunicação, existia teoricamente o perigo de que, ao usarem termos de novilíngua, as pessoas se lembrassem do seu sentido original. Na prática, quem conhecesse bem os princípios do duplopensar não tinha dificuldade em evitá-lo, mas dentro de uma ou duas gerações até mesmo a possibilidade de um tal deslize teria desaparecido. Indivíduo que crescesse tendo por único idioma a novilíngua nunca descobriria que igual tivera outrora a acepção secundária de «politicamente igual», ou que livre já significara «intelectualmente livre», tal como indivíduo que nunca tivesse ouvido falar de xadrez poderia alguma vez conhecer as acepções secundárias de rainha ou torre. Muitos dos crimes ou erros existentes, não estaria na sua mão cometê-los, simplesmente por serem inomináveis e por conseguinte inimagináveis. Era de prever que com o passar do tempo as características distintivas da novilíngua se acentuariam - palavras cada vez mais escassas, os respectivos sentidos cada vez mais rígidos, e cada vez menor a possibilidade de as utilizar indevidamente.
Quando a velhilíngua estivesse definitivamente abolida seria cortado o último elo de ligação ao passado. A História já tinha sido reescrita, mas subsistiam aqui e ali fragmentos da literatura do passado, imperfeitamente censurados, e enquanto alguém conservasse os seus conhecimentos de velhilíngua ia havendo a possibilidade de os ler. No futuro, tais fragmentos, ainda que porventura sobrevivessem, seriam ininteligíveis e intraduzíveis. Tornar-se-ia impossível traduzir para novilíngua qualquer passagem de velhilíngua, a menos que se referisse a qualquer processo técnico ou acção quotidiana elementar, ou fosse já de tendência ortodoxa (bompensante seria a expressão em novilíngua). Na prática, isto significava que nenhum livro escrito antes de 1960, aproximadamente, podia ser traduzido na íntegra. A literatura pré-revolucionária só podia ser objecto de tradução ideológica - isto é, uma mudança não apenas de língua mas também de sentido. Tomemos como exemplo a conhecida passagem da Declaração da Independência:
Tomamos como verdades evidentes que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que, para garantir estes direitos, são instituídos entre os homens Governos cujos poderes derivam do consentimento dos governados. Que, sempre que qualquer forma de Governo se torne contrária a estes fins, tem o Povo o direito de a alterar ou abolir, e de instituir novo Governo...
Seria absolutamente impossível traduzir este trecho em novilíngua respeitando o seu sentido original. A solução mais próxima de uma tradução fiel seria englobar toda a passagem numa única palavra, crimepensar. A tradução desenvolvida só poderia ser uma tradução ideológica, mediante a qual as palavras de Jefferson se converteriam em panegírico do governo absoluto.
Boa parte da literatura do passado já estava, de resto, em vias de ser transformada deste modo. Razões de prestígio tornavam desejável preservar a memória de certas figuras históricas, sintonizando, ao mesmo tempo, as suas obras com a filosofia do Socing. Vários escritores, como Shakespeare, Milton, Swift, Byron, Dickens e alguns outros estavam, por conseguinte, a ser traduzidos; quando a tarefa ficasse concluída, os seus escritos originais, juntamente com tudo o mais que subsistisse da literatura do passado, seriam destruídos. Estas traduções constituíam um trabalho longo e difícil, e não se esperava que estivessem concluídas antes da primeira ou segunda década do século XXI. Havia também um grande volume de literatura meramente utilitária - manuais técnicos indispensáveis e outras obras de natureza semelhante - que iria sofrer o mesmo tratamento. Fora principalmente para dar tempo a esse trabalho preliminar de tradução que a adopção definitiva da novilíngua havia sido fixada para a longínqua data de 2050 (George Orwell, 1984, Antígona, 2012, Apêndice, pp. 301-315).
Notas:
(1) No original: «except for the very few already ending in -wise». Em inglês são raros os advérbios formados com o sufixo -wise, enquanto em português os advérbios em -mente são frequentíssimos; daí a pequena alteração que se tornou necessário introduzir na tradução. (N. da T.).
(2) Neste parágrafo e no seguinte, optei por uma tradução não literal, escolhendo palavras e construções gramaticais portuguesas que apresentassem alguma analogia formal (se não de conteúdo) com os exemplos ingleses escolhidos pelo autor (N. da T.).
(3) No vocabulário A encontramos também, é claro, palavras compostas como falascreve, mas estas são meras abreviaturas cómodas, sem qualquer coloração ideológica particular.
(4) Na tradução para português o número de sílabas quase sempre aumenta (N. da T.).
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