quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Fernando Pessoa, poeta e filósofo

Escrito por Álvaro Ribeiro







«Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e os fins a que tende na sua actividade metafísica.

O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente - interiormente e exteriormente - percipiente, nunca se pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que se esforce por chegar, e até certo ponto chegue, a uma concepção monística há um dualismo. Mesmo que dos dois elementos constitutivos da Experiência - matéria e espírito - se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência - o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o espírito, um dualismo.

O género de dualismo, porém, depende de, é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta, a realidade realmente real; e é a procura dessa realidade que é o fim da especulação metafísica. O espírito não pode admitir duas realidades: a ideia de realidade absoluta envolve a ideia de unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita, como em alguns sistemas - e flagrantemente no espiritualismo clássico - dois princípios, com igual objectividade, reais, é forçado a admitir que o género de realidade de um desses princípios é superior ao da do outro.

Temos, pois, que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema pura e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico.

Todo o sistema filosófico, sendo, portanto, a tentativa para reduzir a um monismo o dualismo essencial do nosso espírito, é de subentender que represente uma sistematização de elementos da Experiência em torno àquela parte da Experiência - matéria ou espírito - que o filósofo, por causas que, em sua essência, são de temperamento, considera a Realidade. Temos, pois, que, consoante para o filósofo o espírito ou a matéria se apresenta como a realidade essencial, um de dois sistemas pode directamente surgir - o espiritualismo ou o materialismo. - Para o materialista a forma essencial da realidade, seja ela especializadamente qual for no seu especial sistema, é sempre uma realidade de que forma parte inalienavelmente um elemento ou espacial, ou, pelo menos, de inconsciência. - Para o espiritualista, através das várias formas que pode tomar o espiritualismo, há sempre de central e essencial um elemento, o elemento consciência, que é o que o espírito imediatamente concebe como sua base própria. Daqui partem todas as teorias características do espiritualismo - a imortalidade da alma (concebida impossibilidade de anular a consciência), o livre-arbítrio (concebida superioridade do consciente sobre o inconsciente) e a existência de um Deus clara ou obscuramente tido como pessoal, isto é, como consciente.

A ideação metafísica pode, porém, tentar monismo de outro modo mais queridamente absoluto. Não há, é certo, outros elementos da Experiência que não a matéria e o espírito; o pensamento, porém, de certo modo tenta suprimir este dualismo. E de três modos o pode fazer: 1.º Negando toda a realidade objectiva a um dos elementos da Experiência, isto é (consoante já passim vimos), reduzindo o dualismo ao minimamente dualístico (ainda que impossivelmente de todo monístico) dualismo de realidade-aparência. Conforme é o espírito ou a matéria o elemento eliminado, temos o materialismo absoluto ou o espiritualismo absoluto. - 2.º Admitindo a realidade igual de ambos os elementos da Experiência; ora, como isto resulta num absurdo de sistema - dado que a existência de duas, iguais, realidades é impensável -, fatalmente essa dupla realidade tira o seu carácter de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer cousa em sua essência tida por nem matéria nem espírito, ainda que somente existente e real naquelas suas manifestações. Se essa substância as transcendesse, isto é, fosse outra cousa, existisse substancialmente à parte da sua manifestação através de matéria e espírito, estaríamos então piorados para três realidades. 3.º - Negando a realidade a ambos os elementos da Experiência, considerando-os apenas como manifestação, não real mas ilusória, de uma transcendente e verdadeira e só realidade. - Temos assim, além dos citados materialismo e espiritualismo absolutos, no segundo sistema citado o panteísmo, e no terceiro o transcendentalismo».

Fernando Pessoa («A Nova Poesia Portuguesa»).









Fernando Pessoa, poeta e filósofo


O perene diálogo entre a poesia e a filosofia é um dos mais belos capítulos da história da espiritualidade humana. Nunca as duas actividades confundem os seus silêncios ou as suas vozes nas personalidades representativas das épocas e dos povos; cada uma fala por sua vez, com uma regularidade de sentido admirável.

Os híbridos mal designados por «filosofia poética» ou «poesia filosófica» não têm condições de duradoura existência no mais alto plano espiritual; fictícios produtos de dois factores de origens diversas e irredutiveis, mal resistem depois a um estudo que ultrapasse o método analítico das condições do verbo transfigurador. Errada vai a exegese que pretendia atingir a filosofia dos poemas ou a poesia dos filosofemas, julgando reversível a ordem da verdade; diferentes sistemas de categorias determinam os dois tipos de pensamento, sem que qualquer deles possa reivindicar mais alto grau de universalidade.

O que importa averiguar em cada ciclo de cultura é tanto a doutrina pelo filósofo elaborada acerca da poesia como a opinião do poeta a respeito da filosofia, para das mutuais relações aferir a qualidade da alma dos homens e dos povos. Por até agora se ter feito a crítica demasiado literária à poesia e crítica demasiado científica à filosofia, contrariando indevidamente a audácia especulativa, parece ilegítimo o método proposto neste género de estudos; mas as dificuldades que apresenta a reconstituição do diálogo, longe de deprimirem o ânimo do investigador, logo se tornam progressivos estimulantes de uma actividade espiritual de deslumbramento imprevisto.

Os estudos de Leonardo Coimbra acerca da poesia portuguesa, embora ocasionais e fragmentários, podem contudo oferecer o exemplo da mais compreensiva atitude filosófica; do outro lado, Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, marcando diversas atitudes de simpatia para com a actividade filosófica, deram uma contribuição notável para a interpretação do génio português. Se tais páginas admiráveis dos quatro citados escritores fossem com atenção lidas pelos críticos e historiadores da literatura, já a espiritualidade portuguesa teria adquirido maiores possibilidades de desenvolvimento e melhor reputação no concílio dos povos.






Profunda e conscientemente nacional, o movimento da «Renascença Portuguesa» (1911-1915) teve a dupla expressão poética e filosófica; na literatura, na ciência e na política outros movimentos, que surgiram depois, tiveram por fim solidarizar Portugal com os destinos da cultura europeia, e conseguiram de facto maior aceitação no público de mediana leitura; nenhum apresentou, porém, a característica da originalidade: o diálogo da poesia com a filosofia.

A doutrina deste movimento não foi obra isolada de Teixeira de Pascoais. É certo que este escritor proferiu notáveis conferências que elucidaram alguns aspectos da nova poesia; mas por muito insistir na teoria romântica da saudade - sentimento que não se projecta no passado histórico, mas no passado mítico -, a doutrinação de Teixeira de Pascoais foi por vezes mal interpretada. Ao novo movimento foi atribuída uma intenção regressiva e passadista, cuja ameaça política alterou a confiança do povo que esperava entrar numa época de optimismo heróico.

A obra dos poetas da «Renascença Portuguesa» deu motivo a duas interpretações de ordem filosófica: a de Fernando Pessoa, nas páginas de A Águia, e a de Leonardo Coimbra, no livro intitulado O Criacionismo e em outros escritos menores. É sabido que Leonardo Coimbra foi o primeiro filósofo português do seu tempo, e que exprimiu, numa obra complexa, difícil e por vezes enigmática, um drama espiritual que terminou pelo acto da conversão religiosa. Mas quanto a Fernando Pessoa, há quem ignore que ele escreveu alguns ensaios de estética e de metafísica que enriquecem o património filosófico dos portugueses.

A poesia de Fernando Pessoa começou já a ser estudada, e o poeta, desconhecido pelo grande público durante a vida inteira, tem hoje o preito das moças gerações. Os escritos filosóficos não têm sido considerados com igual atenção; são, porém, outras tantas obras-primas de uma inteligência penetrante que não se detém perante os mistérios da alma e os segredos da cultura. Um estudo revelará mais tarde a unidade de pensamento de um escritor que se dissocia em vários heterónimos; à primeira leitura o que bem impressiona é a variedade, e portanto a riqueza, dos pontos de vista que Fernando Pessoa sucessivamente adoptou, deliciado talvez com o espectáculo de incompreensão que lhe davam os contemporâneos. (Leonardo Coimbra, pelo contrário, sofria com as manifestações de intolerância e de desinteligência dos seus conviventes).

A doutrinação de Fernando Pessoa nas páginas de A Águia surgiu subitamente como um escândalo nos círculos literários e mundanos. O caso é que Fernando Pessoa profetizava para breve «o aparecimento do poeta supremo da nossa raça», «o poeta supremo de todos os tempos»: «... a alma portuguesa atingirá em poesia o grau correspondente à altura a que em filosofia já está erguida». Anunciava, enfim, «o próximo aparecer de um super-Camões na nossa terra».






De certo, este elemento de profecia não estava já na linha de coerência do pensador, e representava intencionalmente um exagero perturbante; porque todo o valor do extenso ensaio sobre a nova poesia portuguesa consistia, pelo contrário, no carácter de lógica necessidade, copiosamente fundamentada, do gradual desenvolvimento da mais alta poesia. Tal doutrina ia de encontro aos hábitos da cultura franco-portuguesa, onde tudo é considerado contingente, casual, fortuito ou caprichoso na história literária, para que não se dilua a iniciativa das respeitadas figuras no fundo movente da nação e da humanidade. É patente a influência da filosofia de Hegel - «essa catedral do pensamento», «exemplo único e eterno» do transcendentalismo panteísta - nesta fase doutrinária de Fernando Pessoa. Também Leonardo Coimbra se encontrava, na mesma época, perto do sistema hegeliano, de que mais tarde se afastou. Não que os dois portugueses aceitassem as categorias lógicas e o movimento sintético do filósofo alemão; ambos foram construindo sistemas filosóficos próprios e originais, procurando o sentido inscrito na história da humanidade, e considerando a marcha necessária da cultura que atrai para o infinito a poesia como a filosofia. Mas a filosofia de Hegel, fora, contudo, o «exemplo único e eterno».

É impossível resumir a doutrina de Fernando Pessoa, para a qual julgamos dever chamar a atenção. Fernando Pessoa estuda os movimentos poéticos designados por Renascença e Romantismo, vendo como características predominantes, do primeiro a poesia da Alma e do segundo a poesia da Natura, o que, estabelecido com uma argumentação lúcida e poderosa, permite considerar a nova poesia portuguesa como a conciliação superior. Para justificar este ponto de vista, Fernando Pessoa estabelece uma nova classificação dos sistemas filosóficos. Diz ele: «... todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção da realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema puro e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico». A tendência monista leva a afirmar o materialismo ou o espiritualismo, satisfazendo-se, porém, a exigência dualista ao considerar o termo oposto como redutível e inferior. Mas além destes dois sistemas, mais acessíveis ao vulgo, outros se apresentam aos pensadores de escol: o materialismo e o espiritualismo absolutos, o panteísmo e o transcendentalismo, materialistas ou espiritualistas, e, finalmente, o transcendentalismo panteísta. E ao expor as linhas fundamentais deste sistema, Fernando Pessoa escreve: «... a essência do universo é a contradição do Irreal - uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E assim, complexa - e indefinidamente...».



Transitando do pensamento e da filosofia para o sentimento e para a poesia, Fernando Pessoa escreve agora: «... ao atentar bem nos característicos que deduzimos como devendo ser os da poesia transcendentalista, revela-se-nos imediatamente que estamos em Portugal e em plena descrição da poesia de Antero. Concluímos, pois, que especiais condições de raça fazem do sentimento transcendentalista apanágio de Portugal. Não é preciso mais do que atentar na mera expressão da nossa nova poesia para nos encontrarmos em pleno transcendentalismo panteísta. Logo no vestíbulo da investigação nos aparece a característica contradição deste sistema. 'Materialização do espírito' e 'espiritualização da matéria', 'choupos de alma', quedas que são ascensões, folhas que tombam, que são almas que sobem - não é preciso mais, repetimos. Eis, em seu pleno estado emotivo, o transcendentalismo panteísta».

Uma poesia capaz de corresponder no plano sentimental ao mais elevado sistema filosófico, tal como a que estava acontecendo no nosso país, deveria anunciar o terceiro movimento poético dominante na Europa, tal como a Renascença e o Romantismo outrora o foram.

Fernando Pessoa não acompanhou por muito tempo a «Renascença Portuguesa» nem propagou a doutrina que junto dela tinha explicitado. Nos ensaios estéticos e metafísicos que mais tarde escreveu para a revista Athena, manteve o dualismo fundamental do seu modo de pensar: sentimento - conhecimento, sensibilidade - entendimento, etc., e a sua aspiração unitarista para o divino. A colaboração dada àquela revista é, talvez, a mais significativa do ponto de vista filosófico. Além do artigo sobre a hierarquia das artes, têm particular interesse os ensaios em que Fernando Pessoa preconiza a transformação das ciências virtuais, a metafísica e a sociologia, em artes reais, e a substituição da ideia de beleza pela ideia de força na poética moderna.

Fernando Pessoa era poeta e filósofo, ouvia dentro de si as falas do diálogo eterno. Era também um profeta. Não foi arrancar a realidade portuguesa às trevas do inexistente, com a candeia de historiador ou de passadista: viu-a imediatamente, de olhos erguidos para o Céu, à luz brilhante dos mitos.






Terá o povo que esperar alguns anos pela publicação integral da obra filosófica, estética e política, de Fernando Pessoa. Se, durante esse prazo, nos convencermos definitivamente de que não nos cumpre receber lições do passado, nem do estrangeiro, chegará o público amadurecido à compreensão de uma obra original. Será o momento próprio de determinar os valores autênticos da espiritualidade portuguesa pelo diálogo constante entre a poesia e a filosofia (in prefácio a A Nova Poesia Portuguesa, de Fernando Pessoa, Lisboa, 1944, pp. 7-13, 2.ª ed.).


domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um Alberto Caeiro

Escrito por Agostinho da Silva








«(...) Começando por alguma coisa que, sem o ser, ainda se poderia considerar mais externa, Alberto Caeiro logo revelou a Álvaro de Campos quanto a sua forma era inteiramente desajustada ao que tinha realmente para sentir, ao que tinha realmente para exprimir; a um homem que até aí se sentira preso, e desajeitadamente, a uma forma digamos tradicional, como preso se sentira a tédios de suecas e de condes, Alberto Caeiro quebrou as peias de servidão, mostrando-lhe como a forma tem de ser como a marca exterior da personalidade que se exprime e como a um homem novo tem efectivamente de corresponder a forma nova. Quanto a ele mesmo, Alberto Caeiro, o problema se simplificara, porquanto a sua quase nula educação, evitando-lhe as deformações que a escola sempre provoca, não o metera nunca pelos caminhos da métrica habitual; o verso de Caeiro era, escrevendo, o descuidado, irreflexivo, anti-reflexivo passeio e anti-discursiva contemplação que adoptara como seu tipo de vida. E depõe a favor do que de melhor havia em Álvaro de Campos que, tendo-lhe sido a forma nova revelada por Alberto Caeiro, tendo sofrido a impressão de absoluta serenidade e de majestade que, sem o querer, o poeta impunha, o seu verso seja, no entanto, tão diferente do de Caeiro. Neste, o ritmo é, como nos passeios com o Menino Jesus, o do caminho que houver; em Álvaro de Campos o que se deu foi o despedaçar de uma forma pelos surtos de energia: aldeias alinhadas e caiadas que erupções destroem.

Efectivamente, a influência de Alberto Caeiro exerceu-se em domínio muito mais profundo do que poderia faser supor o exame do campo da métrica. Deu a Álvaro de Campos a lição suprema de que a única obrigação que a alguém cabe, o único dever a que não pode faltar, é o ser ele próprio; e o único pecado que pode cometer contra o Espírito Santo é o de não ser ele próprio, em toda a sua plenitude, aceitem ou não os outros sua maneira de ser. Assim, Caeiro, num mundo de reflexivos e de metafísicos era, ou pelo menos pretendia ser, o não-metafísico, o não-discursivo, o não-reflexivo; cumpria-lhe ser calmo, porque o era, cumpria-lhe ser, porque o era, uma coisa entre as coisas. A coragem de ser, eis aí o que daria a Álvaro de Campos o remédio de seus insondáveis tédios.

(...) É evidente, no entanto, que a escola é apenas um dos elementos de um sistema; a pedagogia está ligada à sociologia, à economia e à teologia racionais por laços muito mais íntimos do que se pensa; tudo são fabricações de adultos. Pensam eles, os pobres, que pode jamais haver no mundo alguma forma satisfatória de governo organizado, de economia organizada ou de discurso do sobrenatural, a não ser que os pensemos sempre dentro de um mundo de adultos: fora dele, num universo de qualidades infantis, num Paraíso, - e é por isso, porque os adultos aí eram crianças com Adão e Eva, e só as houve depois que, para podermos comer e se vestir, principiaram eles a ser adultos, - num Paraíso, todo o governo que não for amar será absurdo, toda a economia que não for colher será absurda, toda a teologia que não for contemplar será absurda.

Poderia parecer que por este caminho se poderia Fernando Pessoa opor a todo o crescimento da técnica; mas é técnico Álvaro de Campos nos melhores momentos de si próprio e, se não exerce a sua profissão, é decerto pelos seus arrebatos melancólicos, mas também porque se não percebe um engenheiro naval num País que não mais constrói navios - embora possa, como a Holanda, fabricar paquetes ou cargueiros: e o grupinho de Pessoa sabe perfeitamente através dele que é exactamente pela técnica, mas pela técnica tomada como um jogo geral e não como um meio individual de ganhar dinheiro ou poder, que pode o homem abrir o seu caminho de regresso ao Paraíso: mas, para tomar a técnica como um jogo, é preciso que se seja anteriormente criança: a conversão religiosa ao Menino Jesus deve preceder a revolução social. O contrário seria materialismo, coisa de padres sem religião, como dizia Alberto Caeiro; o que também se poderia afirmar da religião que avassalou Portugal a partir do século XVI.






Ligando os pecados da Europa ao que foi Portugal antes de a noite vir, poder-se-ia pensar que o D. Sebastião da Mensagem, o Encoberto, o que há-de voltar na manhã de mais cerrado nevoeiro, quando toda a esperança parecer perdida, é ao mesmo tempo o Menino que jamais se resignou a ser adulto no Rei de Alcácer e o Menino que jamais se resignou a ser adulto nos melhores homens do mundo; a grandeza qual a Sorte a não dá seria, não a grandeza deste mundo em que logo se pensa, mas a grandeza do Reino que Jesus afirmava ser o seu e que seria povoado dos pequeninos que a si chamava e que apontava como modelo a seus discípulos; e à volta de D. Sebastião, iniciando no mundo o novo Império, cada homem e cada mulher, redimindo-se de ser adultos, iria oferecer a um Deus também Menino, libertado finalmente de sua Cruz e de seu distante céu, o seu ramo infantil de contempladas flores.

É por esse Império, que nem ele nem os seus companheiros têm a coragem ou a força ou a hora de construir, porque numa história movida por Deus tudo vem a ser o mesmo; é por esse Império, que não tem lugar marcado nos mapas porque vive no sorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por esse Império, que se tornará consciente ou inconsciente a nós, como se torna consciente ou inconsciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir; é por esse Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa; é por esse Império, o que já foi aurora de realidade e que hoje é apenas o cavo passo que se escuta em palácios desertos, que Fernando Pessoa pensa, escreve, concebe génios, sofre recolhido e ignorado morre. Mas sobre ele reina, como já reinou sobre nós outros, aquele Menino Imperador que, em oposição ao Imperador germânico, o Imperador dos adultos, e iniciando seu Império pela abertura das prisões e pela abundância para os pobres, coroavam, por amor do Futuro, os portugueses do melhor tempo; e que ainda hoje coroam os homens de Santa Catarina, entre os quais vivo e escrevo: aqui, também, esperemos, por amor do Futuro».

Agostinho da Silva («Um Fernando Pessoa»).





Um Alberto Caeiro


Nascido em 1889, dois anos depois de Ricardo Reis, e em Lisboa, Alberto Caeiro passou, no entanto, quase toda a sua vida fora da cidade, numas propriedades do Ribatejo que possuía um primo seu e onde veio a conhecê-lo Álvaro de Campos, cujas notas, juntamente com algumas de Fernando Pessoa, são os únicos elementos de que dispomos para aquilo que poderíamos chamar a biografia externa do poeta. De estatura média, um pouco mais baixo do que Ricardo Reis, era de frágil compleição, embora o não aparentasse; usava cara rapada e o cabelo, sobre o abundante, era louro, acastanhando-se um tanto quando a luz lhe faltava; os ombros baixos, os malares salientes, a cor um pouco pálida, as mãos para o delgado poderiam indicar, a um bom observador, que qualquer fraqueza interna o derrubaria de um instante a outro. Contudo, o calmo, intemerato, infantil, directo olhar azul, o sorriso que era como que uma afirmação ou uma constatação da plenitude de existir, a testa alta de poderosa brancura, a voz igual, média, natural e, depois, no decurso das conversas, o tranquilo, inocente, seguro discorrer, tudo nele dava, por outro lado, a impressão de que o fim não poderia estar muito próximo. Durou, porém, apenas vinte e seis anos, tendo falecido anos antes de Ricardo Reis, de quem era amigo, ter embarcado para o Brasil.




Deste poeta, que, à pergunta que lhe fora feita de se estava contente consigo, respondeu apenas que estava contente, o que significa que o seu contentamento era apenas o contentamento de existir ou que tinha tantas ou tão poucas razões de estar contente consigo como com nuvens, aves, vagas ou perfumes, tão partes como ele de um reino natural, não se poderia naturalmente esperar uma obra feita com o meticuloso, exacto cuidado de um Ricardo Reis, o homem para o qual a mentira era detestável por ser sempre uma inexactidão; nada de tarefa regular lhe seria provavelmente suportável, como igualmente não o prenderiam nem a submissão a rigorosas regras métricas nem sequer o trabalho de revisão que se supõe indispensável a todo o artista. E sabemos, efectivamente, que grande parte da produção poética de Alberto Caeiro foi escrita a jactos de inspiração e composição, podendo depois passar directamente das mãos do escritor para as do tipógrafo. Só no dia 8 de Março de 1914, mais ou menos um ano antes de morrer, escreveu os trinta e tantos poemas de O Guardador de Rebanhos.

O pensador ou o imaginador, ou o fantasiador, que seria talvez o termo exacto para reunir as duas categorias geralmente separadas que, juntamente com o artista, formam o poeta, é naturalmente em Alberto Caeiro muito semelhante ao escritor. Embora declare que sabe igualmente fazer conjecturas, a verdade é que tem consciência, plena ou confusa, de que na conjectura há, até etimologivamente, o voluntário reunir de ideias que andavam dispersas e o esforço de as lançar todas juntas a um determinado alvo. Ora, para Caeiro, o ideal é que se não junte coisa alguma daquelas que o mundo, naturalmente, nos apresenta separadas; que se viva sem esforço de existir; e que, finalmente, não quebre o homem a harmonia da vida distribuindo os seres pelas três classes dos arqueiros, das setas e dos alvos.

A conjectura, além de tudo, segundo lhe parece, a nada conduz senão àquilo a que anteriormente se for levado apenas por se deixar flutuar na própria corrente da vida. Que se poderia descobrir ao fim de um longo, difícil, angustioso filosofar? Aquilo mesmo que se descobre sem filosofar, e tendo-se ainda poupado a amargura de, para dissecar, ter transformado em cadáver o que era ser vivo.



Agostinho da Silva



Realmente, pensa Caeiro, o fazer conjecturas levá-lo-á à conclusão de que em cada coisa existe, animando-a, dando-lhe o ser, aquilo que ela é; na planta é a exterior ninfa pequena que a abandona quando seca; no animal, já interior, é como uma confusa inspiração longínqua, não trágica, no entanto, porque no animal se contém e com ele desapareceria se morresse; no homem é a alma que é ele, que vive com ele, mas que não tem o mesmo tamanho que seu corpo, o que igualmente não é trágico desde que o homem aceite a diferença de tamanhos e, na impossibilidade de fazer comungar a sua alma com coisas tão diferentes como a exterior ninfa pequena da planta e o ser interior longínquo do animal, reconheça que só lhe é possível a comunhão dos corpos; a única dúvida que se poderia pôr era pelo que respeita a outros seres humanos; e, mesmo aí, talvez não subsista: se a alma é a distinção entre ser e ser, todas elas serão diferentes umas das outras e portanto impossível será a coincidência total, o que já não acontece com o corpo. Por fim, vêm os deuses: nesses, o que eles são tem naturalmente de ocupar a totalidade do que são, visto que, caso contrário, haveria neles alguma coisa que não era divino; por outro lado, a substância tem de ser una, sendo por conseguinte absurda, quanto a deuses, qualquer distinção entre o corpo e alma; os deuses são então alguma coisa que corresponda ao que em nossa linguagem se chama o espaço; mas aquilo que entre nós ocupa espaço chama-se corpo: logo os deuses são só alguma coisa idêntica ao que entre nós se chama corpo. É evidente também que têm os deuses de ser eternos, primeiro, porque só ocupam espaço, e depois porque, caso contrário, o ser superior do mundo não seria nenhum deus, mas a Morte, conclusão que todo o instinto vital de Caeiro se recusa aceitar: o que é perfeitamente compreensível num homem essencialmente visado pela morte. Se os deuses são só corpo, será então o corpo e não a nossa alma ou espírito o que existe de imortal; o que estará certo em nós é, portanto, aproximar-nos o mais possível da estabilidade, da segurança, da pureza, diríamos da virgindade do corpo; e não nos importarmos muito com as fraquezas, as fragilidades e as corruptas imaginações da alma.

A tudo isto se pode chegar, como dizíamos, ou tudo isto se pode ser, se assim se preferir, apenas sendo. O vício de pensar é porventura dos mais daninhos que se abateu sobre a humanidade e quanto mais felizes seríamos se pudéssemos regressar a tempos que, simbolicamente, chamaríamos de ante-socráticos, quando a filosofia ainda não aparecera com a pretensão de substituir o conto de fadas, ou até antes disso, quando o conto de fadas ainda não aparecera com a presunção de substituir a vida. O primeiro remédio para nossos males será o de nos convencermos que há metafísica bastante em não pensar em nada; que a única coisa realmente misteriosa do mundo é haver gente que, em lugar de viver, passa o seu tempo, seu limitado tempo, pensando no mistério; e que é totalmente absurdo andarmos procurando o sentido íntimo das coisas, quando elas não têm sentido íntimo algum senão esse de serem coisas e de não terem, por conseguinte, sentido íntimo. Quem sabe viver, vive, não se interroga sobre a vida; substitui o pensamento pela sensação: pensa, como os deuses, pelos pés, pela boca, pelos ouvidos, pelos olhos. E, para resumir tudo, o Deus que Alberto Caeiro está disposto a adorar não é um Deus teológico, abstracto, que não se vê, que não se ouve, mas um Deus que é as flores, as árvores e os montes, um Deus ao qual se pode amar sem pensar nele ou um Deus que se pensa ouvindo e vendo.




Neste mundo de coisas, de corpos, de sensações e de perfeito negar-se ao pensamento, até os sonhos são tão nítidos, tão ordenados, tão contempláveis em sossego como uma fotografia; e pela afirmação deste facto principia Alberto Caeiro o que é talvez o seu poema fundamental. Jesus desce dos céus e vem ter com o poeta, fugindo a tudo que sobre ele lançaram as invenções dos homens que pensam; Cristo abandona no céu a sua cruz, os seus instrumentos de suplício, seu Padre Eterno, demasiado adormecido e sua Eternidade, S. José, tão velho que o não pode ver como Pai, sua Mãe que não amara antes de o ter, e o Espírito Santo que, sendo criança, apenas vê como Pomba. Para fugir do céu teve que usar de dois milagres: do primeiro para que ninguém soubesse que ele tinha fugido, do segundo para deixar eternamente pregado na cruz um eterno Cristo sofredor. O terceiro milagre que é, porém, o mais importante: com ele ganha Cristo a liberdade de ser eternamente humano e menino.

Menino, pois, vem Jesus viver com o poeta, naturalmente o único ser cuja inocência é compatível com a sua e o único que jamais teria tentações de construir sobre a fuga e a nova vinda à Terra uma complicada teologia de terceira Revelação, quando se trata ainda da segunda, oculta pelos homens. Vem viver para a aldeia, exactamente como Alberto Caeiro, porque o ar da cidade se encontra demasiado corrompido pela acumulação de metafísicas, não sendo o próprio urbanismo, provavelmente, mais do que a consequência de uma falta de naturalidade; e vem viver não para ser um pregador da bondade e da justiça, ambas daninhas por serem abstracções ou sobre abstracções terem seu alicerce, mas para chapinhar nas poças de água, limpar o nariz ao braço direito e atrever-se até, a outras mais ousadas artes. Ligada a esta, a de ser uma criança natural, tem ainda outra missão, a de ensinar o poeta a olhar para as coisas, a descobrir todos os encantos, por serem coisas, que na flor existem ou que existem nas pedras quando devagar as tomamos e lentamente as vamos deixando ser. É ele, pegando Alberto Caeiro pela mão, que o leva de passeio, enquanto a outra mão do Menino se dá a tudo quanto existe, e vão os três andando, não pelo caminho que há e em que demasiado é patente a obra e a determinação dos que pensam, mas pelo caminho que houver; o que, por ser, existir. Tão bem se dão os dois, que até nessa relação de humano a humano foi possível desaparecer o pensar: não pensam um no outro; juntos são, por um acordo íntimo. E a prece final do poeta é para que, um dia, o Menino Jesus, a ele o tomando como criança, o deite em sua cama e o conserve dormindo, dormindo e sonhando, até que nasça aquele outro dia que só Jesus sabe qual é.






Para que esta paz se estabelecesse foram precisos três milagres de Cristo. Num mundo de adultos e de adultos habituados a pensar, Jesus teria de crescer, para pregar, porque os homens só entendem a pregação e não a vida, e para de novo ser crucificado, porque eternamente os homens estão crucificando, pelo que os não vale, o melhor de si próprios. E, num mundo de pensadores, logo os metafísicos viriam com o argumento, já não falando de contradições, de que toda a filosofia de Caeiro peca pela base: pensar que se não deve pensar; chamar coisa a uma coisa, ou flor a uma flor ou amarelo ao que é amarelo é entrar imediatamente no reino da abstracção; e supor eterna uma criança, ou tê-la como Mestre supremo envolve, imediatamente, uma Concepção do Universo e uma Teoria da História. A doutrina de Caeiro é tão frágil como a sua saúde: ambas estão ameaçadas por infecções, o raciocínio e a tuberculose, que sendo infecções são fenómenos de vida e têm de ser explicados na vida, mesmo para serem destruídos. O destino do poeta foi o de morrer como homem e como pensador, embora sobreviva como artista e como profeta: e foi perante o desaparecimento do profeta, apesar de o saber redivivo no Futuro e de o saber fazendo do Nada alguma coisa de luminoso e alto, que confessou a sua angústia e a sua tristeza o que foi o maior amigo e o maior discípulo do poeta: Álvaro de Campos (in Um Fernando Pessoa e Antologia de Leitura, Guimarães Editores, 1996, pp. 51-63).


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Alberto Caeiro e o Menino Jesus

Escrito por Fernando Pessoa







«O meu olhar é nítido como um girassol...».

Alberto Caeiro


«(...) o sentimento da natureza tem hoje duas formas essenciais: é, por um lado, o sentimento estético da paisagem ou, mais precisamente, o sentimento fotográfico da paisagem; é, por outro lado, o sentimento higiénico das forças naturais, a pele queimada pelo sol, o ar puro dos pinheiros. Nestes dois aspectos se configura o desejo de um regresso à natureza numa humanidade lassa, fabril, ou febril, burocrática, vazia.

É curioso verificar que um grande poeta e um grande homem, Fernando Pessoa, não escapou, no modo como concebeu a vivência paradisíaca da natureza, ao fascínio fotográfico da paisagem, próprio de qualquer vulgar turista de fim-de-semana. Referimo-nos a Alberto Caeiro. Através deste herenónimo, Fernando Pessoa parece ter pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a personifica e macula de alma e de sentimento. Cai, porém, no engano de que é olhando as coisas em plena luz, na sua maior nitidez próxima, bem de frente, de chapa, que elas se revelam. Essa coisa, quase impossível, de querer ver o mundo do sol e de fixar as formas desse mundo por uma operação instantânea, em que não está o pensamento, constitui a consequência de uma superior teoria poética, que podemos resumir assim: não há natureza, o que há são coisas - as árvores, os montes, as pedras, os rios, as flores; "as coisas não têm nome nem personalidades", são o fenómeno puro, o fenómeno em si próprio, o autofenómeno; estão absolutamente presentes no próprio "aparecer".

Todavia, sob esta teoria interpretável à luz do "nominalismo" ou do "zen" ou da fenomenologia de Husserl, insinua-se o paradigma fotográfico. É assim que o poeta escreve que as coisas se revelam "em dias de luz perfeita e exacta", quando "a natureza bate de chapa na cara dos sentidos". Quase ouvimos o disparar da máquina. A impressão pura de luz no "olhar nítido como um girassol" não sofre a inversão nem se projecta numa câmara escura. A revelação é imediata sem passagem pelo negativo. A natureza é a paisagem, uma película luminosa de cor. Mas dentro, no interior da alma, também não há sombras; "Tive um sonho como uma fotografia". O célebre poema de Alberto Caeiro poderia ser todo traduzido sem erro ou distorção na forma de uma película cinematográfica».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).






«(...) "... tive um sonho como uma fotografia..." Claro que se não trata de um verso e o que nele se significa, e resume todo o sentido do poema, é ainda menos poético do que as palavras em que está dito. Perante o cadáver real de António, ali presente nos seus braços, Cleópatra sonha com "um imperador que também se chama António", isto no que é, talvez, o mais belo poema de Shakespeare que Pessoa tanto queria para modelo. Transitar da realidade ao sonho é, sim, sinal de poesia. Mas o contrário? E, para mais, não à realidade mas à fotografia, aos "fotógrafos" como Almada dizia de certos pintores realistas e abstractos...».

Ernesto Palma («A Inflação de Fernando Pessoa»).




«(...) Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única essência é não pensar...»

Alberto Caeiro



«Há sistemas para todas as coisas que nos ajudam a saber amar, só não há sistemas para saber amar!»







Alberto Caeiro e o Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter mãe e pai
Como as outras crianças -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam  fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o completamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno,
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

(in Poesias. Heterónimos, Porto Editora, pp. 37-42).


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Pequenas e grandes cidades

Escrito por Miguel de Unamuno





Miguel de Unamuno



«Afirmei que o romance de Enrique Larreta representa um generoso e feliz esforço artístico do seu autor; e assim é, em boa verdade. É um generoso e feliz esforço por penetrar na alma de Espanha do século XVI e, portanto, na alma da Espanha de todos os tempos e lugares.

Em primeiro lugar, de todos os tempos porque a Espanha teve um processo muito mais homogéneo do que se julga, uma verdadeira continuidade espiritual íntima, e isto é precisamente o que lhe confere mais valor e mais consistência, ainda que, em certos aspectos, possa, hoje por hoje, parecer que isso em parte a prejudica. E essa íntima e permanente alma espanhola, se alguma vez chegou à revelação e à florescência, foi, sem dúvida, no século XVI. Desde então temos progredido muito, e continuamos a progredir; no entanto, as qualidades que nos darão, a nós espanhóis, significado e valores históricos universais no mundo são as qualidades que então realçámos, embora acomodadas a novos empreendimentos e sob novas formas. Poderemos deixar de ser católicos, deixaremos de o ser, no sentido ortodoxo da Igreja Romana - essa é a minha fé e o meu mais ardente desejo e esperança -, porém com qualquer outra crença, mostraremos o mesmo espírito que, como campeões da Contra-Reforma, os nossos avós mostraram.

A alma da Espanha de todos os lugares é também o que nos mostra Larreta, no seu livro A Glória de D. Ramiro. É claro que, ao dizer isto, pensava na pátria natal do autor do romance, a Argentina, que também é a Espanha, pese a quem pesar, e muito mais na Espanha do que os próprios argentinos imaginam. Mais uma vez, a centésima pelo menos, e não será a última, mais uma vez vou repetir que a língua é o sangue do espírito e que num idioma está implícita uma certa filosofia, um certo modo de pensar e, mais do que pensar, de sentir a vida. Sejam quais forem os cruzamentos de raças, seja qual for o sangue material que se misture ao primitivo, enquanto um povo falar espanhol pensará e sentirá em espanhol também».

Miguel de Unamuno («Por Terras de Portugal e de Espanha»).


«Sendo o Português no geral bondoso, sofredor, espanta que se transmude intrepidamente em violento e cruel.

É a "ira do manso", a pior, segundo Unamuno. Outros autores assinalaram esse aspecto revelado em certas páginas breves, mas extremamente brutais da nossa História, em que há lances de cólera cega. Tais episódios parecem desmentir a brandura do carácter e dos costumes, a baixa criminalidade do nosso povo.

(...) A brandura, o carácter amoroso, a generosidade humana dos Portugueses parece-nos uma constante, certificada em todas as épocas, mediante literatura, arte, obras pias e o trato com a restante Humanidade. Outra constante, por igual certificada pelos séculos, é a do heroísmo, da bravura no combate.

Já a violência é intermitente, por explosivismo dos recalques de um povo sofredor e resignado, por atiçamento passional sobre as circunstâncias que destemperam a nossa peculiar sensibilidade, quais sejam o cálculo pérfido, a traição, a usura desapiedada. Isso exprime-se em condescendência beneficiária daqueles que, perdendo a razão por decepções sentimentais, acaso foram cruéis; dos violentos cheios de razão; dos que, possuídos por um idealismo apaixonado, esquecendo-se de si próprios, também puderam incorrer nalgumas desatenções ou desvios de sensibilidade

Dispensamo-nos de apresentar exemplos, visto que são flagrantes; de uma História Pátria que é das menos sangrentas ressaltam com nitidez as violências perdoadas e as não perdoadas. E pelas razões expostas».

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).


«Tal como o povo galego, o povo português tem fama de ser um povo sofredor e resignado, que tudo aguenta protestando apenas de uma forma passiva. No entanto, com povos desses é preciso agir com cuidado. A raiva mais terrível é a raiva dos mansos.

(...) A religiosidade portuguesa, tal como a galega, a que alguém chamou, não sei com que fundamento, religiosidade céltica, há que procurá-la por baixo das formas regulares e canónicas da religião oficial. Por baixo delas, palpita e vive ainda um certo naturalismo, que tem muito de pagão e não pouco de panteísta.

Aqui, há sempre latente uma certa religiosidade pagã, diferente da castelhana, que nos recorda mais a religiosidade dos povos semitas.



El Cristo de Velázquez



O Cristo espanhol, dizia-me uma vez Guerra Junqueiro, está sempre no seu papel trágico: nunca desce da cruz, onde, cadavérico, estende os braços e alarga as pernas cobertas de sangue; o Cristo português anda pelas encostas e prados e montes, brincando com a gente do povo, ri com eles, come com eles, e de vez em quando, para representar o seu papel, recolhe-se por um pouco à sua cruz.

No entanto, a religiosidade portuguesa não é tão risonha e alegre como a irreverente parábola do imaginativo poeta poderia fazer crer. Aqui, existe o culto da morte; só que, em vez de ser trágico como em Espanha, é elegíaco e tristonho».

Miguel de Unamuno («Por Terras de Portugal e de Espanha»).


«(...) Camões, n'Os Lusíadas obedecendo ao instinto da sua raça, não hesitou em casar as Divindades do Olimpo e Jesus Cristo. Parece que Almeida Garrett não quis perceber a lógica daquele aparente contra-senso...

Camões respondeu em português ao movimento da Renascença italiana. Foi muito espontaneamente ao seu encontro, fazendo ouvir, em todo o mundo, o canto imortal d'Os Lusíadas.

(...) Sob a influência da Saudade as formas inferiores da Natureza, formas ainda de existência e não de vida, atingem o seu corpo de lembrança, o seu modo imaginário de ser, o estado angélico perfeito - a Imagem. E por meio dela comunicamos também com a Família, Pátria, Humanidade, Deus. O homem, em virtude do seu poder saudosista, de lembrança e esperança, eleva-se da própria miséria e contingência à contemplação do Reino Espiritual. Vemos Deus pelos olhos da Saudade; e assim reconstruímos espiritualmente a sua figura que, sendo por nós reconstruída, participa de nós também. Por isso, a imagem de Deus nos aparece vestida de humanidade, cristianizada, e é Jesus.

Orfeu, Apolo, Hércules foram homens divinizados pela nossa faculdade mitológica; Jesus Cristo é Deus humanizado para nosso conforto e salvação. Depois de o homem subir a Deus, baixou Deus ao homem, porque se a Esperança divinizou o homem, a Lembrança humanizou Deus.

Eis o sentido do nosso Cristianismo familial e patriótico, abençoando a Família no culto da Virgem Mãe, e consagrando a Pátria no Campo de Ourique.

Como se vê, o nosso Idealismo é religioso e anti-intelectual, porque as ideias consideradas em si, na sua pureza olímpica e longínqua, esterilizam-se. É preciso que sejam sentimentais, que se confundam com o nosso próprio ser e representem estímulos direccionais da sua actividade.

E é antimecanista, contrário à Filosofia que concebe a Vida como simples jogo mecânico de forças determinadas, roubando-lhe todo o poder de iniciativa e de sonho fecundo, dissecando a criatura e reduzindo-a a uma sombra inerte de egoísmo e cepticismo.

O nosso Idealismo é saudoso, porque o animam a esperança e a lembrança; e é religioso e popular. Desejaríamos tornar sentimental a VERDADE PORTUGUESA demonstrada neste livro, para que ela desse nova energia aos portugueses.

Também o platonismo, tornado sentimental e popular, originou o Cristianismo que abriu uma nova era à alma humana...».

Teixeira de Pascoaes («Arte de Ser Português»).





PEQUENAS E GRANDES CIDADES


Catedral de Salamanca


Já disse aos meus pacientes leitores de La Nácion que, em algumas destas minhas correspondências, pretendi entretê-los um pouco falando da influência respectiva das pequenas e das grandes cidades na formação do espírito.

Sinto não ter à mão um ensaio do tão conhecido Guillermo Ferrero, sobre este mesmo assunto. Li esse ensaio não sei em que revista; mas lembro-me que me interessou muitíssimo. Ferrero abordava a questão com dados e considerações de carácter histórico e sociológico; eu, que não sou nem historiador nem sociólogo, vou abordá-lo, como é hábito meu, baseando-me em considerações estritamente pessoais e de impressão individual. (É este o meu hábito e nem mesmo assim consigo livrar-me dos que se empenham em alcunhar-me de sábio por troça e falam das minhas teorias, eu que não tenho teorias. O que tenho são impressões e sensações).

Ora, visto que não posso encabeçar estas linhas com algum texto de Ferrero - isto de se apoiar numa autoridade alheia é uma forma convencionalmente enganosa de conferir uma aparência de objectividade às nossas afirmações -, vou iniciá-las com umas palavras de Georges Meredith, o subtilíssimo romancista inglês, quando diz no seu romance The Egoist que Villoughby «abandonou Londres, que odiava como um cemitério do homem individual», as the burial-place of the individual man.

Neste momento a minha crença é como a de Villoughby, ou seja, que as grandes cidades nos desindividualizam, ou, melhor dito, nos despersonalizam. E talvez isso dependa do facto que, se não sou um egoísta como o herói do romance de Meredith, sou, na opinião de Ramiro Maeztu (1), um egoísta até hoje incorrigível.

As grandes cidades nivelam, erguem o que está em baixo e rebaixam o que está no alto, realçam as mediocridades e deprimem as sumidades. Efeitos da massa, que são poderosos tanto em química como na vida social.

Pouco depois de chegar a esta velha e hoje para mim tão querida cidade de Salamanca - cidade que conta cerca de trinta mil almas -, escrevi a um amigo dizendo-lhe que se, passados dois anos de aqui estar, viesse a saber que eu jogava ao voltarete todos os dias, dava voltas à praça durante uma ou duas horas e me deitava à sesta, me considerasse um homem perdido; mas que se, passado esse tempo, eu continuasse a estudar, a meditar, a escrever e a lutar pela cultura em debates públicos, me considerasse aqui muito melhor do que em Madrid. E foi o que aconteceu.

Rio Manzanares (Madrid).


Recordo que a conclusão de Ferrero em relação à Grécia, à Itália do Renascimento e à Alemanha de há um século, e de acordo com outros dados, era que, para a vida do espírito, o melhor são as pequenas cidades, com uma população como a desta, e não as aldeiazinhas nem as grandes cidades que ultrapassam as cem mil almas.

Tudo depende, claro está, dos espíritos de que se trata. Estou convencido de que o claustro monástico, que tantas almas anulou e que embotou em triste rotina tantas inteligências regulares, exaltou uns quantos espíritos excepcionais pela sua têmpera vigorosa.

As grandes cidades são fundamentalmente democráticas; e devo confessar que sinto pelas democracias um invencível receio platónico. A cultura difunde-se e dispersa-se nas grandes cidades, mas vulgariza-se. As pessoas põem de lado a leitura sossegada de um livro para irem ao teatro, essa escola de vulgaridade. Sentem a necessidade de estar juntos; acirra-lhes o instinto gregário; precisam de ver-se uns aos outros.

Parece-me que foi Taine quem fez a observação que a maior parte dos génios franceses ou foram aldeões ou filhos de aldeões. E garanto que me custa a crer no génio de um parisiense filho de parisienses.

Dizia-me uma vez Guerra Junqueiro: «Que felicidade a sua! Você vive numa cidade em que qualquer pessoa pode caminhar por uma rua sonhando, sem receio que lhe interrompam o sonho!». Com efeito, nas ruas de Madrid não se pode caminhar sonhando, não tanto com medo das carruagens, trâmueis e automóveis, quanto pela contínua descarga de tantos rostos desconhecidos. Esse bulício de grande cidade, bulício de que tanto gostam os que precisam de preencher a sua fantasia com alguma coisa, seja o que for, tem de molestar os que procuram que não lha esvaziem. Para o meu gosto, não há nada mais monótono do que um boulevard parisiense. As pessoas parecem-me sombras. Não resisto a uma multidão de desconhecidos.

Em Madrid, tenho-lhe medo, quer dizer, tenho medo de mim mesmo quando lá vou. Porque é muito fácil dizer que nas grandes cidades cada um pode fazer a vida que mais lhe agrada: é mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. Quando lá estou, todas as noites volto para casa lamentando ter ido à reunião ou tertúlia a que fui, e prometendo não voltar, mas reincidindo no dia seguinte. Um letal ambiente de condescendência envolve-me, cinge-me, penetra em mim. Ambiente que brota da chamada vida de sociedade.

Plaza de Cibeles (Madrid).


Sempre senti aversão a isso que chamam vida de sociedade e cujo fim útil é cultivar relações. Há alguma coisa mais terrível do que uma visita? Nela, passam-se em revista todos os mais gastos lugares-comuns. Juntamente com o teatro, as visitas são as grandes fontes de vulgaridade.

Um homem de sociedade, um homem que resulta agradável às damas em visita ou em salão, é um homem cujo cuidado principal consiste em afogar a espontaneidade e em não deixar transparecer a sua própria personalidade, incomoda outros. As pessoas gostam de se encontrar com o homem médio, com o homem corrente, que não é excepcional em nenhum aspecto. A excepção incomoda sempre. Quantas vezes não ouvi a frase terrível: «Pesa-me o homem!» E assim é, «o homem» pesa-nos, e a luta mais difícil para o que se sente assim é a luta para conquistar o respeito à individualidade. Tudo vantagens da democracia citadina.

Quando, algumas das pouquíssimas vezes que fui ao teatro, ouvi ao sair críticas sobre se era ou não verosímil o que ali se tinha representado e se era ou não possível que se traçasse um carácter como o desta ou daquela personagem representada, sempre disse para comigo: que uma coisa tenha podido acontecer uma única vez, já é verosímil; e resulta muito certo o paradoxo daquele que afirmou que, correndo atrás da verosimilhança, foge-se da verdade. E eu acrescentava para comigo mesmo: esta gente só vem aqui para ver se os põem em cena, continuando com os seus falatórios fúteis; e se surge em cena o reflexo de alguma coisa que não pertence ao seu mundo ou que é excepcional, protestam de uma forma ou doutra. Eu, por mim, não vou ao teatro para continuar a ouvir as ingenuidades que ouço diariamente, e é por isso que não aprecio aquilo a que chamam a alta comédia. Iria, isso sim, ver e ouvir Prometeu, Macbeth, Hamlet, Carlos Loor, Segismundo, D. Álvaro, Brand; mas não todos esses senhores bem-educados que me incomodam.

E numa cidade pequena? O seu cenário social é muito reduzido, as pessoas depressa se aborrecem e se cansam dos papéis que representam e aparecem por baixo dos homens, com as suas fraquezas, ou seja, aquilo que os faz homens. Sinto uma grande afeição pela vida provinciana, porque nela é mais fácil descobrir a tragédia, por baixo de uma calma aparente. E assim, na medida em que aborreço a comédia, na mesma medida amo a tragédia. E sobretudo a tragicomédia.


Tenho ouvido dizer que não há tropel de rancores e discórdias internas como um navio-mercante ou um convento; que, em medida em que uns quantos homens se vêem obrigados a viver juntos e separados dos restantes, logo entram em conflito nas suas entranhas personalidades, naquilo que realmente são. E parece-me que esta é a única forma de se conhecerem a si mesmos, o que deve ser o nosso supremo anelo. Parece-me quase impossível que chegue a conhecer-se alguém que se encerre num ermo e que passe os dias contemplando-se... A melhor forma de uma pessoa se conhecer é entrar em choque com um semelhante, entranha contra entranha, ou seja, rocha contra rocha.

Já sei que o leitor vai dizer-me que me deixo levar pelo amor ao paradoxo; eu, porém, digo, se é certo que as mais ardentes admirações são as que se nos apresentam sob a forma de inveja, muitas vezes as mais fortes atracções assumem a aparência de ódio. Conheço, numa destas pequenas cidades trágico-cómicas, ou melhor dizendo, cómico-trágicas, dois homens que, tendo de se ver continuamente e de tratar um com o outro, não se cumprimentam na rua e afirmam detestar-se mutuamente. No entanto, no fundo, sentem-se atraídos um pelo outro, e cada um deles é a preocupação mais constante do outro.

Estes irreconciliáveis grupos em que tão frequentemente estão divididas as pequenas cidades são muito mais favoráveis ao desenvolvimento de uma poderosa personalidade do que a branda comédia das grandes metrópoles, onde se abraçam entre bastidores os que em cena travaram um duelo de morte. Julgais possível numa cidade milionária - refiro-me ao número de habitantes - a tragédia de Romeu e Julieta?

Digam-me, de imediato: uma pessoa que, ao fim do dia, vê uma multidão de pessoas, que hoje ouve este, amanhã aquele, mais adiante outro, e assiste a vinte ou trinta conferências, julgam que essa pessoa consegue manter a sua integridade espiritual sem qualquer diminuição? Com uma vida assim, um ouriço vai acabar em borrego, transformando-se os picos em velos de lã, e, quanto a mim, prefiro ser ouriço a ser borrego.




Há poucos dias contemplava eu, melancolicamente, uma perdiz branca encerrada numa gaiola, e a grande quantidade de ranhuras marcadas num arco de madeira que cingia a gaiola, onde a pobre ave prisioneira afiava o bico. Para quê? Certamente não era para comer. E acham que, se metêssemos o ouriço numa gaiola - felizmente para ele, não canta -, não arranjaria maneira de afiar os seus picos? E uma grande cidade, uma cidade milionária, é uma gaiola muito maior do que uma cidade pequena; cada um dos seus para nós desconhecidos habitantes faz de arame, de grade. E entre todos nos aprisionam.

Assim percebo por que motivo Villoughby fugiu de Londres como de um certo cemitério do homem individual. Não é uma coisa terrível percorrer uma, duas ou três léguas numa cidade, cruzar-se com um, dois ou três milhares de pessoas, e não encontrar uma única cara conhecida, donde tomar pé para as nossas reflexões humanas? É mais doce um olhar de ódio de um inimigo conhecido do que o olhar de indiferença, quando não de desdém, de um desconhecido. Porque o homem adquiriu o hábito de desdenhar dos desconhecidos e parece supor que todo o indivíduo deve ser considerado um imbecil até prova em contrário.

E os que afirmam aborrecer-se numa cidade pequena? É porque não tocaram nos seus fundos trágicos, a severidade augusta dos fundos da sua monotonia.

Estou convencido de que nas grandes cidades os orgulhosos se convertem em vaidosos, ou seja, os picos transformaram-se em lã.

Para os que exercem uma determinada acção pública que pode ser exercida à distância, para o escritor, para o artista, a cidade pequena oferece a vantagem inestimável de viver longe do seu público e de ser mais fácil conseguir que não lhe cheguem, a não ser muito joeirados, os efeitos produzidos pela sua obra. Pode viver uma certa independência do seu público, sem por ele se deixar influenciar, que é a única maneira de fazer um público para si em vez de ser ele a fazer-se para o público.

Poderia dizer-se, perante isto, que talvez ainda melhor do que uma pequena cidade seria uma vila, uma aldeia, talvez um lugarejo. Não, porque lhe faltaria um mínimo de sociedade orgânica, sem a qual a nossa personalidade corre tantos riscos como pode vir a correr no seio de uma metrópole.


No fundo, numa certa ordem de relação do sociológico com o psicológico - isto destina-se aos que se empenham em chamar-me sábio por troça -, trata-se do problema talvez mais fundamental, de um problema de máximos e de mínimos. Esses problemas são o nervo da mecânica física e o nervo também da mecânica social, ou seja, da economia. Trata-se sempre de obter o máximo resultado, ou o máximo de proveitos com o mínimo de esforço e de gastos, o maior rendimento com o menor dispêndio. É também um problema fundamental de estética; é a raiz de todos os problemas da vida.

No ponto sobre o qual neste momento discorro, trata-se de obter o máximo de personalidade própria no mínimo da sociedade alheia. Menos sociedade, ou sociedade menos complexa, diminuiria a nossa personalidade e também diminuiria mais sociedade, ou sociedade aparentemente mais complexa. E digo aparentemente porque não acho que um elefante seja mais complexo do que uma raposa.

Ora bem: todo aquele que não sente a sua própria personalidade e não está disposto a sacrificá-la no altar da sociabilidade, esse que vá perder-se na grande metrópole milionária. Para aquele que sente amor pelo Nirvana, é melhor ela do que o deserto; para inundar o próprio eu, melhor as ruas de uma grande cidade do que os páramos de um ermo.

De vez em quando, não faz mal ir até à grande cidade e lançar-se no mar das suas multidões; mas logo se deve voltar a subir para terra firme, a sentir-se pisando o solo. Por mim, como me interessam as pessoas individualmente, tu, João, que estás a ler isto, e tu, Pedro, e tu Ricardo, porém não interessam apenas as massas que eles formam quando se juntam, fico na pequena cidade, vendo todos os dias, às mesmas horas, as mesmas pessoas, com cujas entranhas alguma vez chocaram, e talvez dolorosamente, as minhas, e fujo das grandes metrópoles, onde me açoitam a alma com azorragues de gelo os olhares desdenhosos dos que nem me conhecem nem eu os conheço a eles. Pessoas que nem posso chamar pelo nome... Que horror!

Madrid


É tudo o que posso dizer sobre as minhas impressões. Se desejam considerações menos pessoais, mais objectivas, mais documentadas, talvez menos arbitrárias, devem averiguar onde escreveu Ferrero o ensaio ao qual me referi no início desta correspondência. Por outra via, chegou a uma conclusão análoga à minha.

Salamanca, Junho de 1908.


(in Por Terras de Portugal e de Espanha, Nova Vega, 2009, pp. 122-126).


(1) Ramiro de Maeztu (1875-1936) - escritor espanhol pertencente à geração de 98. Foi preso e fuzilado pelas forças republicanas, no início da Guerra Civil de Espanha. (N. do T.).