domingo, 4 de novembro de 2012

A mensagem de Fátima (ii)

Escrito por Joseph Ratzinger




Oliveira Salazar e Óscar Carmona


«Houve também um milagre de reforma política e social, segundo os princípios sociais católicos. A seguir à Consagração de 1931, subiu à Presidência do Conselho em Portugal um líder católico, António de Oliveira Salazar, que pôs em acção um programa católico e contra-revolucionário. Esforçou-se por criar, tanto quanto possível, uma ordem social católica em que as leis da governação e as instituições sociais se harmonizassem com a lei de Cristo, do Seu Evangelho e da Sua Igreja. Adversário convicto do socialismo e do liberalismo, Salazar opunha-se a “tudo quanto diminui ou dissolve a família”.

(...) Além destas espantosas mudanças religiosas e políticas, deu-se um duplo milagre de Paz: Portugal foi poupado ao terror comunista, especialmente durante a Guerra Civil que crucificava a Espanha. Portugal foi também poupado às devastações da 2ª Guerra Mundial.

A respeito da Guerra Civil de Espanha, os Bispos portugueses fizeram voto, em 1936, de exprimirem a sua gratidão a Nossa Senhora, se esta protegesse Portugal, renovando a Consagração Nacional ao Imaculado Coração de Maria. Cumprindo o seu voto, renovaram a Consagração em 13 de Maio de 1938, em acção de graças pela protecção de Nossa Senhora. Como o Cardeal Cerejeira reconheceu publicamente: "Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 (…) desceu sobre a terra de Portugal uma bênção especial de Deus (…) se nos recordarmos dos dois anos que passaram desde a nossa promessa, não podemos deixar de reconhecer que a mão invisível de Deus protegeu Portugal, poupando-o ao flagelo da guerra e à lepra do comunismo ateu".

Portugal, 1940: Comemoração do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). Ver aqui




Bandeira da Exposição













Pavilhão de Honra e de Lisboa






















Planta da Exposição



D. Afonso Henriques






























































































Até o Papa Pio XII exprimiu o seu espanto por Portugal ter sido poupado aos horrores da Guerra Civil Espanhola e à ameaça comunista. Numa alocução ao povo português, o Papa falou do "perigo vermelho, tão ameaçador e tão próximo de vós, e apesar disso evitado de maneira tão inesperada".

Os portugueses passaram incólumes este primeiro perigo, mas logo a seguir viram-se de caras com outro: a Segunda Guerra Mundial estava a começar. Em cumprimento de mais outra profecia da Santíssima Virgem a 13 de Julho de 1917, a guerra começaria "no reinado de Pio XI", anunciada por "uma noite alumiada por uma luz desconhecida (...)".

Em 6 de Fevereiro de 1939, sete meses antes da declaração de guerra, a Irmã Lúcia escreveu ao seu Bispo, D. José Correia da Silva, avisando-o de que a guerra estava iminente - mas acrescentando em seguida uma promessa maravilhosa. Escreveu ela que "nesta guerra horrível, Portugal seria poupado devido à consagração nacional ao Imaculado Coração de Maria feita pelos Bispos"».

(«O Último Combate do Demónio», editado e compilado pelo Padre Paul Kramer).


«... E agora permite ao amigo esta pergunta q. não demanda resposta: e tu não poderás lá dar um salto no dia 13? Nossa Senhora tem-te protegido tanto até agora! Foste tu o escolhido pela Providência pa. realizares tão grandes coisas quase miraculosamente. Mas novos furacões se levantam diante do teu caminho e do de Portugal. Mais do que ninguém precisas das luzes de Deus e da protecção de N. Senhora, contra os perigos de toda a ordem q. te ameaçam e a todos nós, e para bem guiares o barco português nos difíceis caminhos do presente. Precisas de levar ao fim, na inteira fidelidade a ela, a missão que Deus te deu: na graça de Deus, na paz da tua consciência, na serenidade do teu espírito, na liberdade do teu coração. E o milagre de Fátima está à vista. Tu estás ligado a ele: estavas no pensamento de Deus quando a Virgem Santíssima preparava a nossa salvação. E ainda tu não sabes tudo... Há vítimas escolhidas por Deus pa. orarem por ti e merecerem pa. ti. Abraço-te afectuosamente, Manuel...».

Carta de Manuel Cerejeira para Oliveira Salazar datada de 8-5-1946 (in Franco Nogueira, Salazar, IV, O Ataque, 1945-1958).





«A guerra vai acabar. Mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre».

Terceira aparição: 13 de Julho de 1917.


«Para a Irmã Lúcia não representava maior dificuldade o facto de entender habitualmente que a guerra começou somente sob o pontificado de Pio XII. Observa ela que a anexação da Áustria - e poderíamos acrescentar vários outros acontecimentos políticos do fim do reinado de Pio XI - constituem autênticos prolegómenos da conflagração, a qual se configuraria inteiramente como tal algum tempo depois (cf. entrevista ao Padre Iongen, em De Marchi, p. 309).

(...) Lúcia julgou ver "o grande sinal" na luz extraordinária - que os astrónomos tomaram como uma aurora boreal - que iluminou os céus da Europa, na noite de 25 para 26 de Janeiro de 1938 (das 20h45 até 1h15, com breves intermitências). Convencida de que a guerra mundial - que "havia de ser horrível, horrível" - ia deflagrar, redobrou de esforços para obter que se atendesse aos pedidos que lhe tinham sido comunicados. Escreveu uma carta directamente ao papa Pio XI, nesse sentido (cf. De Marchi, p. 92; Walsh, pp. 179-181; Ayres da Fonseca, p. 45)».


António Augusto Borelli Machado («As aparições e a mensagem de Fátima nos manuscritos da Irmã Lúcia»).


«Na noite do mesmo dia 23 de Agosto [de 1939], após o jantar, deparou-se um espectáculo inesperado a Hitler e aos seus convivas: por detrás de Unterberg, o céu começou por se colorir de azul-turquesa, em seguida de violeta e, depois, passou a vermelho-vivo - um fenómeno que se costuma designar como "luz do Norte" e que era muito raro por aquelas paragens. Von Below observou, então, ao Führer que se tratava de um presságio de que a guerra seria sangrenta; se ela iria ser sangrenta, respondeu-lhe aquele, que mais valia que começasse depressa, porque quanto mais o tempo passasse, mais sangrenta se tornaria».

Marlis Steinert («Hitler»).





«O mais admirável dos espectáculos de coloração terrestre manifesta-se por intermédio das luzes polares, mais particularmente na aurora borealis e na aurora australis. São no fundo emanações de luz multicolor. Para os cientistas tais emanações são apenas refulgência magnética. Porém, para o indagador clarividente elas são irradiações áureas do Espírito Crístico que anualmente penetra e circunda a Terra. As vibrações aurorais são gradualmente absorvidas pelos invólucros aúreos da Terra, os quais tendem a purificar e a espiritualizar o planeta e os seres que o habitam. Tornam-se apenas visíveis nas regiões polares na medida em que estão virtualmente destituídas de seres vivos. Áreas habitadas absorvem esta força de tal modo que nada permanece visível para o olho humano. Quando a dimensão espiritual deste grandioso fenómeno chega a ser compreendida, passamos a encarar o seu poder com profundo e reverente temor.

(...) "Estamos convictos que a aurora borealis é um fenómeno ligado ao magnetismo da Terra", diz-nos o Sr. Madill. "O facto de que a zona de maior frequência auroral decorra perto do pólo boreal magnético da Terra é bastante significativo. Nesta zona de clara exposição das 'luzes do norte' ocorrem as mais variadas perturbações eléctricas e magnéticas, tanto internas como externas".


"Agora estamos certos de que a aurora tem por causa uma energia invisível oriunda do sol", assevera o astrónomo, "provavelmente raios ultravioletas que afectam os gases rarefeitos da alta atmosfera".


O Sr. Madill conclui: "Se o espectáculo fosse manifestação corrente nas regiões habitadas, e não estivesse apenas confinado, como na maioria dos casos, às desabitadas zonas Árcticas e Antárcticas, as maravilhas da aurora seriam ainda mais cantadas pelos poetas do que o simples nascer e pôr-do-sol"».


Corine Heline («Cura e Regeneração através da Cor»).


«Mas nesse arquivo [do Vaticano] não se encontram também os famosos segredos das profecias?

Só me lembro de Fátima; se temos outras profecias, não sei.


Quem tem acesso a esse segredo?


O segredo de Fátima só pode ser conhecido pelo próprio Papa e pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; outras pessoas precisam de autorização pessoal do Papa.




João Paulo II e Joseph Ratzinger



O círculo das pessoas que tomou conhecimento desses segredos é conhecido ou sabe-se quantas pessoas são?

Não devem ser, certamente, mais de três ou quatro pessoas.


Pronunciou-se uma vez sobre a profecia de Fátima, na medida em que disse que era o que "o próprio Jesus lembra muitas vezes, quando Ele não hesita em dizer: "Se não vos converterdes, morrereis todos". A profecia abalou-o?


Não.


Porque não?


Porque não vai além do que a mensagem cristã contém, como tal.


Mas pensa que nela se fala do fim do mundo?


Não posso agora dizer nada sobre isso. Em todo o caso, não deparei com nada de particularmente horrível».


Cardeal Ratzinger («O Sal da Terra», uma entrevista com Peter Seewald»).





A estrutura antropológica das revelações privadas


Tendo nós procurado, com estas reflexões, determinar o lugar teológico das revelações privadas, devemos agora, ainda antes de nos lançarmos numa interpretação da mensagem de Fátima, esclarecer, embora brevemente, o seu carácter antropológico (psicológico). A antropologia teológica distingue, neste âmbito três formas de percepção ou «visão»:  a visão pelos sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis). É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da percepção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa. Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da visão do Inferno (descrita na primeira parte do «segredo» de Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do «segredo», mas pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo porque não eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos «videntes». De igual modo, é claro que não se trata duma «visão» intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível.






Este ver interiormente não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos». Trata-se de verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma. A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis. Talvez assim se possa compreender por que motivo os destinatários preferidos de tais aparições sejam precisamente as crianças: a sua alma ainda está pouco alterada, e quase intacta a sua capacidade interior de percepção. «Da boca dos pequeninos e das crianças de peito recebeste louvor»: esta foi a resposta de Jesus - servindo-se duma frase do Salmo 8 (v. 3) - à crítica dos  sumos sacerdotes e anciãos, que achavam inoportuno o grito hossana das crianças (Mt 21, 16).

Como dissemos, a «visão interior» não é fantasia, mas uma verdadeira e própria maneira de verificação. Fá-lo, porém, com as limitações que lhe são próprias. Se, na visão exterior, já interfere o elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O sujeito, o vidente, tem uma influência ainda mais forte; vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de tradução, desempenhando o sujeito uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece. A imagem pode ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais visões não são em caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende.

Isto é patente em todas as grandes visões dos Santos; naturalmente vale também para as visões dos pastorinhos de Fátima. As imagens por eles delineadas não são de modo algum mera expressão da sua fantasia, mas fruto duma percepção real de origem superior e íntima; nem se hão-de imaginar como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade pura, como esperamos vê-lo na união definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe, isto é, das crianças. Por tal motivo, a linguagem feita de imagens destas visões é uma linguagem simbólica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano: «Não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração não especificadas». Esta sobreposição de tempos e espaços numa única imagem é típica de tais visões, que, na sua maioria, só podem ser decifradas a posteriori. E não é necessário que cada elemento da visão tenha de possuir uma correspondência histórica concreta. O que conta é a visão como um todo, e a partir do conjunto das imagens é que se devem compreender os detalhes. O que efectivamente constitui o centro duma imagem só pode ser desvendado, em última análise, a partir do que é o centro absoluto da «profecia» cristã: o centro é o ponto onde a visão se torna apelo e indicação da vontade de Deus.





Uma tentativa de interpretação do «segredo» de Fátima


(...) Os pastorinhos experimentaram, durante um instante terrível, uma visão do Inferno. Viram a queda das «almas dos pobres pecadores». Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para «salvá-las» - para mostrar um caminho de salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro que diz: «Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a salvação das almas» (1,9). Como caminho para se chegar a tal objectivo, é indicado - de modo surpreendente para pessoas originárias do ambiente cultural anglo-saxónico e germânico -: a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto, deveria bastar uma breve explicação. O termo «coração», na linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O «coração imaculado» é, segundo o Evangelho de Mateus (5,8), um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat - «seja feita a vossa vontade» - se torna o centro conformador de toda a existência. Se porventura alguém objectasse que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades: «Imitai-me» (cf. 1 Cor 4, 16; FI 3, 17; 1 Ts 1, 6; Ts 3, 7,9). No Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?

Chegamos assim finalmente à terceira parte do «segredo» de Fátima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.


Do mesmo modo que tínhamos identificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do «segredo», a frase «salvar as almas», assim agora a palavra-chave desta parte do «segredo» é o tríplice grito: «Penitência, Penitência, Penitência!». Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: «Paenitemini et credite evangelio» (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso.

Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força que se contrapõe ao poder da destruição: o brilho da Mãe de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência. Deste modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem: o futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente, mas exactamente o contrário: o seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do «segredo» que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.


As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente à visão, cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto apenas «como que num espelho, de maneira confusa» (cf. 1 Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do «segredo». O lugar da acção é descrito com três símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana: a história como árdua subida para o alto, a história como lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de destruições pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da montanha, está a cruz: meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição é transformada em salvação; ergue-se como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma.

Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco («tivemos o pressentimento que era o Santo Padre»), outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e, naturalmente, homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa parece caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência, destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história de um século inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da montanha e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão, podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No «espelho» desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este respeito, é oportuno mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: «A terceira parte do "segredo" refere-se às palavras de Nossa Senhora: "Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas"».




Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do «segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras seguintes: «Foi uma  mão materna que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma «mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.

A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas. Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela. Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos (cf. Col. 1, 24). A sua própria vida tornou-se Eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se torna fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento, porque é a actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia salvífica.

Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o «segredo» de Fátima? O que nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do "segredo" de Fátima parecem pertencer já ao passado». Os diversos acontecimentos, na medida em que lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em geral não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece - dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do «segredo» - é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.






Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do «segredo» que justamente se tornou famosa: «O meu Imaculado Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele «Sim», Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso nesta frase: «No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa (in ob. cit., pp. 45-55).


«Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará»


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