quinta-feira, 22 de julho de 2010

A Fé e a Razão (ii)

Escrito por Karol Wojtyla (João Paulo II)








2. A novidade perene do pensamento de S. Tomás de Aquino

Neste logo caminho, S. Tomás ocupa um lugar absolutamente especial, não só pelo conteúdo da sua doutrina, como também pelo diálogo que soube entabular com o pensamento árabe e hebreu do seu tempo. Numa época em que os pensadores cristãos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga, e mais directamente da filosofia aristotélica, teve o grande mérito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razão e a fé. A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus, argumentava ele, por isso, não se podem contradizer entre si (14).

Indo mais longe, S. Tomás reconhece que a natureza, objecto próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação divina. Deste modo, a fé não teme a razão, mas solicita-a e confia nela. Como a graça supõe a natureza e a leva à perfeição (15), assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão. Esta, iluminada pela fé, fica liberta das fraquezas e limitações causadas pela desobediência do pecado e recebe a força necessária para se elevar até ao conhecimento do mistério de Deus Uno e Trino. Embora sublinhando o carácter sobrenatural da fé, o Doutor Angélico não esqueceu o valor da racionalidade da mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de tal racionalidade. Efectivamente, a fé é de algum modo «exercício do pensamento»; a razão do homem não é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conteúdos da fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente (16).

Precisamente por este motivo, S. Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao recto modo de fazer teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o que escreveu o meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da morte do Doutor Angélico: «Sem dúvida, S. Tomás possuiu, no máximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito ao enfrentar os novos problemas, a honestidade intelectual de quem não admite a contaminação do cristianismo pela filosofia profana, mas também não defende a rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do pensamento cristão como um pioneiro do novo caminho da filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a essência da solução que ele deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade da sua intuição profética, foi o da conciliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, a tendência anti-natural que nega o mundo e os seus valores, mas, por outro lado, sem faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural» (17).

Entre as grandes intuições de S. Tomás, conta-se a de atribuir ao Espírito Santo o papel de fazer amadurecer, como sapiência, a ciência humana. Desde as primeiras páginas da Summa theologiae (18), S. Tomás quis mostrar o primado daquela sapiência que é dom do Espírito Santo e que introduz no conhecimento das realidades divinas. A sua teologia permite compreender a peculiaridade da sapiência na sua ligação íntima com a fé e o conhecimento de Deus: conhece por conaturalidade, pressupõe a fé e chega a formular rectamente o seu juízo a partir da verdade da própria fé: «A sapiência, elencada entre os dons do Espírito Santo, é distinta da mencionada entre as virtudes intelectuais. De facto, esta adquire-se pelo estudo; aquela, pelo contrário, "provém do alto", como diz S. Tiago. Mas é também distinta da fé, porque esta aceita a verdade divina tal como é, enquanto é próprio do dom da sapiência julgar segundo a verdade divina» (19).






Mas ao reconhecer a prioridade desta sapiência, o Doutor Angélico não esquece a existência de mais duas formas complementares de sabedoria: a filosófica, baseada sobre a capacidade que tem o intelecto, dentro dos próprios limites naturais, de investigar a realidade; e a sabedoria teológica, que se funda na Revelação e examina os conteúdos da fé, alcançando o próprio mistério de Deus.

Intimamente convencido de que «omne verum a quocumque dicatur a Spiritu Sancto est» (20), S. Tomás amou desinteressadamente a verdade. Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se, colocando em relevo a sua universalidade. Nele, o Magistério da Igreja viu e apreciou a paixão pela verdade; o seu pensamento, precisamente porque se mantém sempre no horizonte da verdade universal, objectiva e transcendente, atingiu «alturas que a inteligência humana jamais poderia ter pensado» (21).

É, pois, com razão que S. Tomás pode ser chamado «apóstolo da verdade» (22). Porque se consagrou sem reservas à verdade, soube, no seu realismo, reconhecer a sua objectividade. A sua filosofia é verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do simples parecer.


3. O drama da separação da fé e da razão

Quando surgiram as primeiras universidades, a teologia começou a relacionar-se mais directamente com outras formas de pesquisa e do saber científico. Santo Alberto Magno e S. Tomás, embora admitindo uma ligação orgânica entre a filosofia e a teologia, foram os primeiros a reconhecer à filosofia e às ciências a autonomia de que precisavam para se debruçarem eficazmente sobre os respectivos campos de investigação. Todavia, a partir da baixa Idade Média, essa distinção legítima entre os dois conhecimentos transformou-se progressivamente em nefasta separação. Devido ao espírito excessivamente racionalista de alguns pensadores, radicalizaram-se as posições, chegando-se, de facto, a uma filosofia separada e absolutamente autónoma dos conteúdos da fé. Entre as várias consequências de tal separação, sobressai a desconfiança cada vez mais forte a respeito da própria razão. Alguns começaram a professar uma desconfiança geral, céptica ou agnóstica, quer para reservar mais espaço à fé, quer para desacreditar qualquer possível referência racional à mesma.

Em resumo, tudo o que o pensamento patrístico e medieval tinha concebido e realizado como uma unidade profunda, geradora dum conhecimento capaz de chegar às formas mais altas da especulação, foi realmente destruído pelos sistemas que abraçaram a causa de um conhecimento racional, separado e alternativo da fé.







As radicalizações mais influentes são bem conhecidas e visíveis, sobretudo na história do Ocidente. Não é exagero afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se desenvolveu num progressivo afastamento da revelação cristã, até chegar explicitamente à contraposição. No século passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo procuram, de diversos modos, transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas dialécticas racionalmente compreensíveis. Mas a esta concepção opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que apontavam a fé como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Não tiveram medo de se apresentar como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no plano político e social, em sistemas totalitários traumáticos para a humanidade.

No domínio da investigação científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não apenas se afastou de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou cair qualquer alusão à visão metafísica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de toda a referência ética, correm o risco de não manterem, no centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida. Mais, alguns deles, cientes das potencialidades contidas no progresso tecnológico, parecem ceder à lógica do mercado e ainda à tentação dum poder demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser humano.

Como consequência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo fascínio sobre os nossos contemporâneos. Os seus seguidores defendem a pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem possibilidade alguma de alcançar a meta da verdade. Na interpretação niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações e experiências onde o efémero detém o primado. O niilismo está na origem duma mentalidade difusa, segundo a qual não se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo é fugaz e provisório.

Por outro lado, é preciso não esquecer que, na cultura moderna, foi alterada a própria função da filosofia. De sabedoria e saber universal que era, foi-se progressivamente reduzindo a uma das muitas áreas do saber humano; mais, sob alguns dos seus aspectos, ficou reduzida a um papel completamente marginal. Entretanto, foram-se consolidando sempre mais outras formas de racionalidade, pondo assim em evidência o carácter marginal do saber filosófico. Em vez de apontarem para a contemplação da verdade e a busca do fim último e do sentido da vida, tais formas de racionalidade são orientadas, ou pelo menos orientáveis, como «razão instrumental» ao serviço de fins utilitaristas, de prazer ou de poder.






Como é perigoso absolutizar esta estrada, já o fiz notar na minha primeira carta encíclica, ao descrever: «O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz, ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com grande rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser não tanto objecto de "alienação", no sentido de que são simplesmente tirados àqueles que os produzem, mas sobretudo, pelo menos parcialmente, num círculo consequente e indirecto dos seus efeitos, tais frutos voltam-se contra o próprio homem. São de facto dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem. Nisto parece consistir o acto principal do drama da existência humana contemporânea, na sua dimensão mais ampla e universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no medo. Teme que os seus produtos, naturalmente não todos nem a maior parte, mas alguns e precisamente os que encerram uma porção especial da sua genialidade e da sua iniciativa, possam voltar-se de maneira radical contra si próprio» (23).

No seguimento destas transformações culturais, alguns filósofos, abandonando a busca da verdade por si mesma, assumiram como único objectivo a obtenção da certeza subjectiva ou da utilidade prática. Consequência disso foi o obscurecimento da verdadeira dignidade da razão, impossibilitada de conhecer a verdade e de procurar o absoluto.

Assim, o dado saliente desta última parte da história da filosofia é a constatação duma progressiva separação entre a fé e a razão filosófica.

É verdade que, observando bem, mesmo na reflexão filosófica daqueles que contribuíram para ampliar a distância entre fé e razão, se manifestam às vezes germes preciosos de pensamento que, se aprofundados e desenvolvidos com mente e coração recto, podem fazer descobrir o caminho da verdade. Estes germes de pensamento podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas análises sobre a percepção e a experiência, a imaginação e o inconsciente, a personalidade e a intersubjectividade, a liberdade e os valores, o tempo e a história. Inclusive o tema da morte pode tornar-se, para todo o pensador, um severo apelo a procurar dentro de si mesmo o sentido autêntico da própria existência. Todavia, isto não pode fazer esquecer a necessidade que a actual relação entre fé e razão tem de um cuidadoso esforço de discernimento, porque tanto a razão como a fé ficaram reciprocamente mais pobres e débeis. A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser.

Basílica de S. Pedro (Vaticano).


A esta luz, creio justificado o meu apelo, veemente e incisivo, para que a fé e a filosofia recuperem a unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito da mútua autonomia. Ao desassombro (paresia) da fé deve corresponder a audácia da razão (in ob. cit., pp. 60-23).


Notas:

(14) cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentiles, I, VII.

(15) «Cum enim gratia non tollat naturam, sed perficiat» [Idem, Summa theologiae, I, 1, 8 ad 2].

(16) cf. JOÃO PAULO II, Discurso aos participantes no IX Congresso Tomista Internacional (29 de Setembro de 1990): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Outubro de 1990), 9.

(17) Carta ap. Lumen Ecclestiae (20 de Novembro de 1974), 8: ASS 66 (1974), 680.

(18) «Praeterea, hac doctrina per studium acquiritur. Sapientia autem per infusionem habetur, unde inter septem dona Spiritus Sancti connumeratur» [Summa thelogiae, I, 1, 6].

(19) ibid., II, II, 45, 1 ad 2; cf. também II, II, 45, 2.

(20) Ibid., I, II, 109, 1 ad 1, que cita a conhecida frase do AMBROSIASTER, in prima COR 12,3: PL 17, 258.

(21) LEÃO XIII, Carta enc. Aeterni Patris (4 de Agosto de 1879): AAS 11 (1878-1879), 109.

(22) PAULO VI, Carta ap. Lumen Ecclesiae (20 de Novembro de 1974), 8: ASS 66 (1974), 683.

(23) Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 15: ASS 71 (1979), 286.





Continua


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