«Estar consciente da mente original, da natureza original -
Essa é a única grande doença do Zen!»
Zenrin
A identificação da mente com a sua própria imagem é, por conseguinte, paralisante, porque a imagem é fixa - forma definitiva e acabada. Mas é uma imagem fixa de alguém em movimento! Apegarmo-nos a ela é vivermos em constante contradição e conflito. Daí as palavras de Yün-men: «Ao andar, anda apenas. Ao sentares-te, senta-te apenas. Acima de tudo, não te disperses.» Por outras palavras, a mente não pode agir sem abandonar o projecto impossível de se controlar para além de um determinado ponto. Deve libertar-se a si própria, seja no sentido de confiar na sua memória e reflexão, como no de se mover espontaneamente em direcção ao desconhecido.Essa é a única grande doença do Zen!»
Zenrin
Esta a razão por que o Zen parece tantas vezes tomar o partido da acção, contra a reflexão, e por que se designa a si próprio como «não-mente» (wu-hsin) ou «não-pensamento» (wu-nien), e ainda por que os mestres do Zen respondem instantaneamente e fora de toda a premeditação às perguntas que lhes são dirigidas. Quando perguntaram a Yün-men qual era o segredo essencial do Budismo, replicou: «Pudim de maça!» Segundo as palavras do mestre japonês Takuan:
Quando um monge pergunta: «O que é o Buda?» o mestre poderá erguer o punho cerrado; quando lhe perguntam: «Qual a ideia essencial do Budismo?» ele poderá exclamar: «Um ramo florido de ameixoeira», ou «O cipreste no pátio». A questão está em que a mente que responde não «pára» em lado algum, antes responde directamente sem se preocupar, em absoluto, com o propósito da resposta (em Suzuki).
Eis o que significa permitir à mente que aja por si própria. Mas a reflexão é também acção, e Yüen-men poderia também ter dito: «Ao agir, age apenas. Ao pensar, pensa apenas. Acima de tudo, não te disperses.» Por outras palavras, se vamos reflectir, reflictamos apenas - mas não reflictamos sobre o reflectir. Contudo, o Zen não deixaria de concordar que a reflexão sobre a reflexão é também acção - desde que, ao fazê-lo, nos limitemos a essa tarefa e não tentemos derivar para a infinita regressão de procurar constantemente ficar acima ou fora do plano sobre o qual estamos a agir. Assim, o Zen é também uma libertação do dualismo de pensamento e acção, pois pensa como age - com o mesmo abandono, entrega ou fé. A atitude do wu-hsin não é, de modo algum, uma exclusão anti-intelectualista do pensamento. Wu-hsin é acção seja em que plano for, físico ou psíquico, sem tentar ao mesmo tempo observar e validar a acção de um plano exterior. Esta tentativa de agir e simultaneamente pensar sobre essa acção provém de identificação da mente com a representação que dela fazemos. Implica a mesma contradição que o postulado que postula algo sobre si próprio - «Este postulado é falso».
O mesmo se diga quanto à relação entre o sentir e o agir. Porque o sentir bloqueia a acção, e bloqueia-se a si próprio como modalidade de acção, no momento em que é apanhado por essa tendência para se observar e sentir reflexamente na própria acção - tal como, no preciso momento em que me estou a divertir, me examino a fim de verificar se estou a aproveitar o mais possível a situação. Não contente com sentir-me feliz, quero sentir-me a mim próprio sentindo-me feliz como para estar certo de nada perder.
Quer se trate de confiar na memória ou na mente, para que ajam por si próprias, chegamos ao mesmo resultado: em última instância temos de pensar e agir, viver e morrer, a partir de uma fonte que está para além do «nosso» conhecimento e controlo. Mas essa fonte somos nós próprios e, quando compreendemos isto, ela deixa de se erguer contra nós como um objecto ameaçador. Não há cuidado e hesitação, não há introspecção e busca das nossas motivações, que tragam qualquer diferença definitiva ao facto de a mente ser
Como um olho que vê, mas não se pode ver a si próprio.
Ao fim e ao cabo, a única alternativa contra uma arrepiante paralisia está em nos lançarmos na acção sem olharmos às consequências. Tal acção, neste estado de espírito, pode ser certa e errada de acordo com os padrões convencionais. Mas as nossas decisões na ordem convencional devem ser apoiadas na convicção de que, o que quer que façamos, e seja o que for que nos «aconteça», está, em última análise, «certo». Por outras palavras, devemos entregar-nos à acção sem «segundos pensamentos», sem o arrière-pensé do arrependimento ou da hesitação, da dúvida ou da auto-recriminação. Assim, quando perguntaram a Yün-men «o que é o Tau?» ele respondeu simplesmente: «Segue em frente! (ch'ü)».
Mas agir sem «segundos pensamentos», sem duplicidade da mente, não é uma simples regra a imitar. A verdade é que não podemos entender esta questão sem nos apercebermos de que não existe nenhuma outra forma de agir. Como diz Huang-po:
Os homens temem esquecer as suas próprias mentes, receando cair através do vácuo sem nada a que se agarrarem. Desconhecem que o vácuo não é realmente o vácuo mas sim a verdadeira região do Dharma... Não é procurada, nem compreendida por qualquer sabedoria ou conhecimento, nem explicada por palavras, nem materialmente (isto é, objectivamente), ou alcançada através de actos meritórios (em Chu Ch'an).
Ora esta impossibilidade de «agarrar a mente com a mente» é, quando bem entendida, a não-acção «wu-wei», o «sentado tranquilamente, nada fazendo» graças ao qual «a Primavera vem, e a erva cresce por si». Não é necessário que a mente tente libertar-se a si própria, ou que se esforce por não tentar. Teríamos então novos artificialismos. Mas, sob um ponto de vista psicológico da nossa conduta, nem há que tentar evitar artificialismos. Segundo a doutrina do mestre japonês Bankei (1622-1693), a mente que não pode agarrar-se a si própria é chamada o «não-nascido» (fusho), a mente que não surge ou aparece no plano do conhecimento simbólico.
Um leigo disse: «Aprecio muito a tua instrução acerca do Não-nascido, mas, por força do hábito, continuam a surgir-me segundos pensamentos (nien) e, na confusão por eles provocada, é difícil estar de perfeito acordo com o Não-nascido. Como poderei confiar inteiramente nele?».
Bankei respondeu: «Se tentas fazer parar os segundos pensamentos que surgem, então a mente que faz parar e a mente que é parada dividem-se e não há possibilidade de paz para a mente. É certo que, por afinidade kármica, através do que vês e do que ouves, tais pensamentos surgem e desvanecem-se temporariamente, mas não têm qualquer substância».
Tentar sacudir os pensamentos que surgem é como lavar sangue com sangue. Continuamos impuros porque nos lavámos com sangue, mesmo quando já desapareceu o sangue que havia anteriormente - e se continuarmos a agir assim, nunca nos libertamos da impureza. Isto acontece pela ignorância da natureza não-nascida, não-evanescente, e não-confusa, da mente. Se tomamos o segundo pensamento como realidade, continuamos a andar de roda no círculo do nascimento-e-morte. Deverás compreender que tal pensamento é apenas uma construção mental temporária, e não tentes mantê-la ou rejeitá-la. Deixa-a em paz, tanto quando ocorre como quando cessa. É como uma imagem reflectida num espelho. O espelho é límpido e reflecte tudo o que esteja em frente dele, e no entanto nenhuma imagem se prende ao espelho. A mente Buda (isto é, a mente real, não-nascida) é dez mil vezes mais límpida que um espelho e mais inexprimivelmente maravilhosa. Na sua luz, todos os pensamentos desaparecem sem deixar rasto. Se puseres a tua fé nesta compreensão, esses tais pensamentos tornam-se inofensivos, por mais força com que surjam na tua mente.
Esta é também a doutrina de Huang-po, que diz:
Se se considera que há algo estranho à mente a ser entendido ou atingido e que, a partir daí, a mente é utilizada para alcançar esse algo, (isso implica) naõ compreender que a mente e o objecto da sua busca são uma e a mesma coisa. A mente não pode ser usada na busca de algo da mente porque, mesmo depois da passarem milhões de kalpas, o dia do êxito nunca chegaria (em Chu Ch'an).
Não devemos esquecer o contexto social do Zen. Ele é, em primeiro lugar, um caminho de libertação para aqueles que dominam já as regras da convenção social, do condicionamento do indivíduo pelo grupo. O Zen é um remédio para os maus efeitos deste condicionamento, para a paralisia mental e a ansiedade que derivam de uma excessiva autoconsciência. Devemos encará-lo sobre o fundo de sociedades reguladas pelos princípios do Confucionismo, com a sua forte ênfase posta na propriedade e num ritual meticuloso. Também no Japão, deverá ser confrontado com a rígida disciplina requerida no treino da casta samurai, e com a tensão emocional a que o samurai estava exposto numa época de guerras constantes. Como remédio para estas condições, não procura derrubar as próprias convenções, mas, pelo contrário, encara-as como factos - o que facilmente se verifica em determinadas manifestações do Zen, como seja o Cha-no-yu ou «cerimónia do chá» no Japão. O Zen poderia, pois, ser um remédio muito perigoso num contexto social em que a convenção é fraca ou, no outro extremo, onde existe um espírito de revolta declarada contra a convenção, pronto a usar o Zen para fins destrutivos.
Tendo isto presente, poderemos observar a liberdade e naturalidade do Zen sem qualquer perda de perspectiva. O condicionamento social auxilia a identificação da mente com uma ideia fixa de si própria, como um meio de autocontrolo, e daí resulta o homem pensar-se a si próprio como «Eu» - o ego. Portanto, o centro de gravidade mental deriva da mente espontânea ou original para a imagem do ego. Depois disto, o próprio centro da nossa vida psíquica se identifica com o mecanismo de autocontrolo. Torna-se então quase impraticável discernir como poderá o «Eu» libertar o «eu-próprio», pois sou precisamente o meu esforço habitual para me agarrar a mim próprio. Descubro-me totalmente incapaz de qualquer acção mental que não seja afectada, intencional ou desprovida de sinceridade. Assim, tudo o que eu faça para me libertar, para deixar ir, será uma forma disfarçada do esforço habitual para agarrar. Não posso ser intencionalmente não intencional, ou propositadamente espontâneo. Logo que se torna importante para mim ser espontâneo, fortalece-se a intenção de o ser; não me consigo libertar desta e, no entanto, é ela que se atravessa no caminho da sua própria realização. É como se alguém me tivesse dado um remédio, avisando-me de que não teria efeito se eu, ao tomá-lo, pensasse num macaco.
Enquanto estiver preocupado em esquecer o macaco, encontro-me «entre a espada e a parede», em que «fazer» é «não fazer», e vice-versa. «Sim» implica «não», e «começa» implica «pára». Neste ponto, o Zen vem e pergunta-me: «Estás a fazer de propósito para não conseguires deixar de pensar no macaco?» Por outras palavras, tenho a intenção de ser intencional, o propósito de ser propositado? Subitamente compreendo que o meu próprio querer é espontâneo, ou que o meu Próprio controlador - o ego - nasce do meu Próprio não-controlado ou natural. Nesse momento, todas as maquinações do ego ficam em nada; é destruído na sua própria armadilha. Verifico que é verdadeiramente impossível não ser espontâneo. Porque aquilo que não posso deixar de fazer, faço espontaneamente, mas se, ao mesmo tempo, estou a tentar controlá-lo, interpreto-o como uma compulsão. Como disse um mestre Zen: «Neste momento nada te resta senão dar uma boa gargalhada.» (in O Budismo Zen, Editorial Presença, pp. 142-147).