quinta-feira, 31 de maio de 2018

Da gente ilustre portuguesa e do pátrio Marte

Escrito por Luís de Camões




Castelo de Guimarães



- Como?! Da gente ilustre portuguesa
Há-de haver quem refute o pátrio Marte?!
Como?! Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte
Há-de sair quem negue ter defesa?!
Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?!

Os Lusíadas (Canto IV, XV).



Castelo de S. Jorge















Porta de Martim Moniz


















Ver aqui


domingo, 27 de maio de 2018

A perda do Ultramar português e os relativos «mitos» e falácias propalados pela versão oficial dominante

Escrito por João José Brandão Ferreira







Conferência de Berlim (15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885).







«A acta final da [Conferência de Berlim] foi assinada a 26 de Fevereiro de 1885. Nela ficava definido o princípio da livre navegação e comércio nas bacias do rio Níger e Congo, passando-se, simultaneamente, a exigir a posse efectiva dos territórios e já não apenas a evocação vaga de um direito de precedência, como forma de prover à ocupação territorial apenas no litoral, mas não no interior, como raramente é referido. A Conferência de Berlim não procedeu à partilha do continente, como também é corrente afirmar-se, mas à margem dos encontros oficiais teve lugar uma intensa actividade diplomática que conduziu ao reconhecimento internacional do Estado Livre do Congo, entregue à tutela do rei dos belgas, Leopoldo II. Portugal ficou com a posse da margem esquerda do rio Zaire, assim como com os territórios de Cabinda e Molembo no Norte de Angola.

Em Portugal, estes resultados foram recebidos com natural desencanto, mas tiveram o condão de reavivar a atenção das elites dos governantes e da opinião pública para o estado de abandono a que estavam votadas as colónias. No quadro da corrida à posse efectiva dos territórios e já conhecedores do interesse manifestado pelas potências, tornava-se urgente para os líderes políticos portugueses proceder à ocupação dos vastos espaços situados no interior de Angola e Moçambique. Para além disso, tomava-se consciência de que tinha terminado de vez a era da hegemonia singular no campo colonial, até então assegurada pela Grã-Bretanha, passando-se para um mundo multipolar com a entrada em palco de novas potências ultramarinas como a Alemanha. Esta inversão da cena internacional iria obrigar Portugal a redesenhar os seus acordos diplomáticos com outros países cortando a tradicional dependência exclusiva em relação a Londres, que, aliás, tinha abandonado a representação lusitana à sua sorte durante a Conferência de Berlim.

A redefinição da política externa tendo em vista as disputas que se adivinhavam no campo colonial não comportava neste momento nenhum teor anti-britânico. O objectivo do Ministério português era procurar uma posição de força em futuras negociações com Londres. A subida ao poder, em Fevereiro de 1886, de um novo Governo, em Lisboa, entregue novamente ao Partido Progressista viria a tornar mais clara esta reorientação diplomática.

O novo ministro dos Negócios Estrangeiros era um antigo membro do Partido Reformista, uma força liberal radical cujo carácter nacionalista tinha ficado bem patente durante a crise ibérica de 1870. Henrique Barros Gomes, cujas simpatias germanófilas não eram segredo para ninguém, tentou introduzir um novo ponto de equilíbrio mais favorável às pretensões nacionais no contexto da aliança luso-britânica. O ministro não defendia o simples rompimento de aproximação histórica entre os dois países, mas achava que Portugal deveria apresentar as suas posições com mais firmeza, não afastando a hipótese de estabelecer acordos com a França ou até com a Alemanha, grandes rivais dos britânicos. Esta política predispunha-se a cumprir um duplo objectivo. Procurava-se garantir o apoio de Berlim para o projecto da construção de um Império na África Central, de Angola a Moçambique, concorrente dos interesses britânicos, representado pelo chamado "Mapa Cor-de-Rosa". Esta reprodução cartográfica tinha sido, refira-se, originalmente mandada realizar, em 1885, pelo ministro da Marinha e do Ultramar de então, Barbosa do Bocage, na sequência dos ajustes empreendidos pelo Governo regenerador com a França para a delimitação das possessões portuguesas e francesas na África Ocidental. Para além disso, pretendia-se lançar um conjunto de expedições militares e científicas no terreno, para negociar com a Inglaterra de acordo com os princípios da nova ordem colonial estabelecidos na Conferência de Berlim».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«Que ideia faremos da função militar? Ela é, simplesmente, a actuação da força organizada para a defesa do agregado social e a para a realização da justiça.

É tal o modo de ser do homem que exige do Estado a organização de uma força para conservar-se, para manter a paz social, a ordem, o equilíbrio das liberdades, sempre pronto a romper-se, quando falte a coacção externa. Nas relações de povo para povo, essa força tende a garantir a primeira e mais sagrada das liberdades, que é a independência.

(...) No aspecto individual, para que [a função militar] seja o que deve ser, exigem-se, nos que a buscam ou são chamados a exercê-la, algumas qualidades específicas, que chamaremos as virtudes militares: valor, lealdade, patriotismo. É tão essencial à função militar o exercício, em alto grau, destas virtudes, que as vemos constituírem o seu traço característico, definirem o seu espírito próprio: é necessário que existam, para que ela exista, e se desaparecem, deixa ela de existir. Compreende-se acaso um militar cobarde? Um camarada desleal? Um combatente traidor à Pátria? Não; porque, logo que surgem a cobardia, a deslealdade e a traição, já não há força, já não há soldados, já não há exército, mas só multidão armada, e, por isso mesmo, mais perigosa que qualquer outra.

O valor parece mais que uma virtude militar: é o próprio atributo da força.



Oliveira Salazar



Por definição, a força é valente, destemida, arrojada, dominadora, senhora de si, cônscia das suas possibilidades e da sua acção; não é desordenada, não é exaltada, não é violenta. Tem tempo para se impor - é paciente; não duvida de si - é calma; tem a segurança do triunfo - é generosa.

A força marcha em forma e em cadência - é a sua necessidade estrutural de ordem no espaço e no tempo; a força marcha erecta - é a revelação externa da confiança; a força tem o passo rígido e firme - domina, é senhora da terra em que avança. A força não se nega a si própria - "morre mas não se rende"; a força não descansa nem mesmo para morrer - "morre, mas devagar".

A força que é força e não violência é de si mesma leal, quer dizer, verdadeira, clara e sincera. Notai que a força marcha ao som dos clarins - anuncia a sua presença; a força faz rebrilhar ao sol as suas armas - expõe à vista os seus meios de ataque; a força comanda em voz alta - sabem-se em volta as suas intenções.

Na sua estrutura íntima a força não é um simples aglomerado de homens, é um organismo em que é indispensável união, colaboração, solidariedade; a lealdade, na força, é necessária para a certeza de que cada orgão cumprirá em cada momento o seu dever. Por isso não pode haver nela intriga, desunião, desconfiança mútua; ciosa como é, a força tem de expulsar de si, como corpos mortos, os elementos que lhe não pertencem de alma, e cujo coração não pulsa ao ritmo do seu.

A lealdade é a verdade do sentimento: é impossível ser desleal sem mentir à consciência, sem ludibriar a confiança alheia. Por essa razão a força não comporta conciliábulos nem combinações secretas: ela bate-se de frente, é desleal atacá-la pelas costas.

Todos somos obrigados a ser verdadeiros, e justos, e patriotas; e, no entanto, a preocupação da verdade é traço característico do sábio; a preocupação da justiça domina o juiz, como o patriotismo deve absorver e dominar a alma do soldado.

Para cada um de nós o patriotismo não pode desprender-se da família, do torrão natal, dos interesses e dos haveres, das recordações de infância, das saudades dos lugares ou das pessoas, dos vivos e dos mortos, das alegrias e tristezas - as pequenas ou grandes coisas que são nossas e constituem para cada qual, dentro da Pátria, o seu pequeno mundo. E tudo isto que nos prende diminui um pouco, na vida cotidiana, essa unidade augusta, esse todo indivisível que é a Pátria.

Para o soldado, porém, não há aldeia, a região, a província, a colónia - há o território nacional; não há a família, os parentes, os amigos, os vizinhos - há a população que vive e trabalha nesse território: só há, numa palavra, a Pátria, em toda a sua extensão material, no conjunto dos sentimentos e tradições, em toda a beleza da sua formação histórica e do seu ideal futuro. Ele deve-lhe tudo - a saúde, a comodidade, o descanso, o dia e a noite, a paz, a família, mesmo a vida. E parece que é por esse consumo de vidas que a Pátria se mantém, e aumenta a sua beleza e engrandece o seu poder. Diante do inimigo externo, que representa ameaça para a existência ou para a integridade da Pátria, esta é, para o soldado, material e tangível como um relicário de ouro em que se confiassem à sua guarda a independência, a liberdade, os bens e a vida dos cidadãos.

Fora do são nacionalismo, fora da noção e amor da Pátria não há, pois, vida nem força militar: há exércitos de parada ou hordas organizadas para a pilhagem.

Dentro duma função necessária, organizada com eficiência e tão proporcionado o custo à utilidade que ninguém a poderá acusar de parasitismo, o ideal militar consiste na realização plena, na posse em grau heróico das virtudes militares.

Espero que não tenhais medo das palavras e não receeis apelidar-vos homens de ideal - trabalhando por um ideal, vivendo para um ideal. Alguns que rastejam atrás dos pequenos interesses e das mesquinhas ambições, e se supõem positivos e práticos, conhecedores do mundo e dos seus segredos, mal podem compreender as almas que caminham, serenas, por estradas reais da vida, como ignoram que para segui-las é preciso elevar fachos de luz acima da cabeça ou deixar-se guiar pelas estrelas do céu. Na limitação natural das faculdades humanas a perfeição não existe, mas o aperfeiçoamento progressivo é lei da vida moral. Há que copiar pacientemente um modelo, não perder de vista os pontos de referência, realizar um pensamento de vida. A função do ideal-modelo, aspiração ou guia - é vincar a orientação superior das faculdades humanas, não deixando que se extraviem com as mil contingências da vida, com as mil contradições das doutrinas, com as mil adversidades do tempo».

Oliveira Salazar (No Quartel General do Governo Militar de Lisboa, em 30 de Dezembro de 1930, por ocasião da imposição das insígnias da grã-cruz de Cristo ao então governador militar, Brigadeiro Daniel Sousa, in «Discursos 1928-1934»).


Batalha de Coolela, travada em 7 de Novembro de 1895, durante a qual Mouzinho de Albuquerque esteve pela primeira vez debaixo de fogo.


«A vitória de Coolela e a ocupação de Manjacaze


Seja como for, nem todos se queixavam de falta de acção. A 26 de Outubro de 1895, cerca de 3000 auxiliares dos portugueses passaram a Ponte Chinavane sobre o Incomati, "lançando-se depois, como um verdadeiro vendaval, em razias até às proximidades do Limpopo". A 4 de Novembro de 1895, embora sem ter resolvido a maioria dos seus problemas, a coluna do norte pôs-se a caminho. Agora havia que evitar surpresas, como a ocorrida em Marracuene, quando o inimigo pela calada da noite se abeirara do quadrado português. Caldas Xavier, engenhosamente, adaptou a alguns carrinhos uma espécie de faróis que iluminavam até cerca de 60 metros de distância. Mouzinho de Albuquerque e os seus homens, agora reduzidos em número, ficavam com a tarefa de proceder à exploração do terreno. O avanço até à lagoa de Coolela, onde as tropas montaram acampamento, foi lento e difícil. Os animais iam ficando pelo caminho como que marcando de uma forma sinistra o terreno percorrido. Nunca as tropas portuguesas tinham estado tão próximas do kraal de Gungunhana, que distava agora apenas uma meia dúzia de quilómetros.

A noite de 4 para 5 de Novembro foi calma. O clarão dos holofotes denunciava a presença das forças europeias. Quando amanheceu a coluna colocou-se novamente a caminho, com os pelotões de Mouzinho de Albuquerque na dianteira. A dado momento os negros alvoroçaram-se. Os "impis" de Gungunhana esperavam a passagem da coluna estendendo-se numa linha de atiradores. Os portugueses, com uma calma rotineira, montaram imediatamente o seu quadrado. Os Vátuas logo revelaram a intenção de cercar os brancos. Trocaram-se tiros. Instalou-se a confusão. O capitão Sousa Machado foi ferido, mas não desmontou. Apenas mais tarde procurou tratamento, não desistindo de incentivar os seus homens. Eduardo Galhardo também permaneceu sempre a cavalo, de charuto na boca, impávido e sereno.

Pelas 4 horas da madrugada de 7 de Novembro de 1895, enquanto os brancos tomavam café, as tropas sofreram novo ataque na campina de Coolela por parte das forças afectas a Gungunhana, que contabilizariam uns 10 000 vátuas armados. Outras versões mais inflacionadas relataram um ataque levado a cabo por 16 000 a 20 000 vátuas. Muitos usavam espingardas Martini, mas de uma geração anterior às Kropatschek utilizadas pelos brancos. A força de Eduardo Galhardo contava menos de 600 homens. Os guerreiros vátuas desta vez não recuavam e partiam ao encontro da artilharia portuguesa com bravura. O quadrado português aguentou-se bem. Ao fim de 40 minutos tudo estava terminado. Quando soube da refrega António Enes comentou que "fora um rápido duelo do moderno armamento europeu com a força bruta do número, em que vencera facilmente o armamento porque o manejavam as tropas com imperturbável sangue-frio". Os portugueses sofreram 41 baixas, mas quase por milagre apenas contaram cinco mortos, apesar de três oficiais terem ficado feridos. Os brancos contabilizaram 305 baixas inimigas junto ao quadrado, sendo impossível apurar o número dos que tombaram a uma distância maior.

Tratava-se de mais um sinal de que as forças europeias iriam tomar conta da situação. Da refrega de Coolela, Eduardo Galhardo saiu como vencedor, dali seguindo com caminho aberto até Manjacaze. Mouzinho de Albuquerque também estivera em Coolela à frente da Cavalaria, mas apenas se limitara a assistir ao triunfo do coronel Eduardo Galhardo sem tomar um papel activo nas operações.

Mouzinho de Albuquerque assumiu um papel secundário em Coolela, onde fez o seu baptismo de fogo, mas até acabou por ser bafejado pela fortuna. Por pouco não foi atingido pelas balas dos africanos, mas perdeu o seu cavalo em pleno campo de batalha. Contou-se então a história da sua estranha premonição. Na véspera da refrega, quando um grupo de oficiais conversava sobre a possibilidade da ocorrência de um confronto com os nativos, Mouzinho de Albuquerque terá dito aos camaradas que "se a coluna se bater amanhã é necessário que algum oficial fique ferido", ao que alguém lhe perguntou por quê. Com o feitio altivo que o caracterizava, Mouzinho de Albuquerque, confiante, respondeu: "Para que se acredite que o combate foi sério". Outro replicou: "E se for o senhor?" O militar respondeu pronto: "Não desejo tanto, basta-me ter o cavalo morto debaixo de mim". Foi exactamente o que se passou menos de 24 horas depois.

O mito de Mouzinho de Albuquerque começava a tomar forma, mas a afirmação cheirava a bravata de quem não conhecia a realidade do mato. Com efeito, Mouzinho de Albuquerque nunca estivera debaixo de fogo. Pela primeira vez percebia que a guerra era algo bem concreto, admitindo que presenciara um "combate de povoação, pouco mais ou menos como os livros dizem que deve ser. Foi a primeira vez que fiz semelhante coisa e a vi fazer fora da serra do Monsanto".

Ao fim da tarde de 7 de Novembro realizaram-se as exéquias dos que tombaram em acção, num bosque próximo, debaixo das árvores, ficando o improvisado cemitério delimitado por um perímetro de arame farpado por causa das hienas. O coronel Eduardo Galhardo dirigiu as cerimónias fúnebres. Em dada altura ajoelhou-se e pediu uma oração pelos camaradas de armas desaparecidos em nome do rei de Portugal. Os homens seguiram-no no gesto. Todos se prostraram de cabeça descoberta e chapéu na mão. Seguiram-se três descargas do estilo e as cornetas tocaram em sinal de luto. O ambiente era extremamente emotivo.


Coronel Eduardo Galhardo



Ocupação de Manjacaze, última operação militar antes de Chaimite.




Mouzinho de Albuquerque no final da vida. Em Novembro de 1901, a escassas semanas da sua morte, foi promovido a tenente-coronel de Cavalaria.




Conjunto de espadas e o bastão de guerra de Mouzinho de Albuquerque.





Praça Mouzinho de Albuquerque (cerca de 1970).


Mouzinho de Albuquerque sentiu-se tocado pela cena. Nunca carta que dirigiu a um familiar, escreveu que perante tais circunstâncias "chega-se a ter inveja dos mortos". A atracção pelo fatalismo era já evidente. Agora era tempo de retemperar forças, tratar dos feridos mais graves e reabastecer os homens. Eduardo Galhardo pediu à Cavalaria para se deslocar a Chicomo, que ficava à distância de cerca de 60 quilómetros, com o objectivo de recolher víveres para soldados e animais, devendo servir-se do maior número de carregadores possível. Mouzinho de Albuquerque foi encarregado de tal tarefa, que não se adivinhava fácil. Tinha dois dias para a cumprir, devendo regressar a 10 de Novembro. Os acessos eram inexistentes e o caminho estava tomado pelos Vátuas. Ainda assim, retornou sem sobressaltos com 154 carregadores e mantimentos para três dias.

No dia seguinte, a 11 de Novembro, apenas quatro dias após a vitória de Coolela e com o ânimo retemperado, efectuou-se a marcha em direcção a Manjacaze. Os Vátuas, entre eles o próprio Gungunhana, já tinham abandonado a povoação. Supostamente, teria procurado santuário na África do Sul. Pelo caminho, os europeus sentiriam a presença de alguns nativos que pretendiam defender o kraal do seu líder. Seriam dispersados a tiro. As tropas depararam-se, então, com uma íngreme encosta que era necessário ultrapassar. Ao fim de uma hora de difícil escalada, a coluna chegou ao seu destino. O próprio Mouzinho de Albuquerque descreveu o que presenciou. Manjacaze era uma enorme povoação com cerca de 600 a 700 palhotas. No meio do recinto, destacava-se a palhota do régulo. O coronel Eduardo Galhardo deu instruções imediatas para se deitar fogo a esta cabana. As restantes seriam queimadas logo de seguida. O kraal encontrava-se abandonado. Mouzinho de Albuquerque lamentou-se de não ter mais 40 a 50 cavalos. Com as montadas convenientes teria apanhado o régulo que se pusera em fuga. O chefe vátua, sabedor da aproximação da tropa europeia, tratou de abandonar o local, retirada essa que animou ainda mais o espírito das tropas portuguesas.

A 14 de Novembro, todos regressaram a Chicomo. Agora era o tempo de fazer um balanço sobre os últimos sucessos militares. Aires de Ornelas, em carta para Lisboa, esclarecia que "o Xai-Xai já se avassalou, assim como todos os régulos chopes. O Bilene quer submeter-se e se o Punda o fizer fica realizado o que eu dizia: o país entre o Save, Chengane e o Limpopo está português". Com efeito, ainda antes de ser conhecido o desfecho da Batalha de Coolela, já alguns importantes chefes locais, como o de Xai-Xai, se tinham passado para o lado dos europeus. A sua fidelidade era importante não só porque se tratava de uma das mais importantes figuras das povoações ribeirinhas do Sul do rio Limpopo, como por ter abertamente hostilizado as gentes do Gungunhana para que os portugueses pudessem contar com a sua vassalagem. Outros, menos proeminentes, fizeram o mesmo. Dominava, ainda assim, um clima de terror entre estas aldeias, receosas dos castigos que poderiam vir a sofrer caso o "leão de Gaza" saísse vitorioso.

Todavia, os ecos da vitória branca de Coolela e do incêndio de Manjacaze surtiram o seu efeito, levando a que ainda mais chefes tribais passassem a prestar vassalagem aos brancos. Aires de Ornelas chegou a considerar que após a vitória de Coolela, o poderio militar dos nativos sofrera um duro golpe, ainda que faltasse proceder à captura de Gungunhana, que continuava em fuga. Pelo seu lado, Eduardo Galhardo e António Enes partilharam o entendimento de que, a partir de então, o temível vátua deixara de constituir uma ameaça.

Entretanto, aproximava-se a época das chuvas e, perante a perspectiva de agravamento das condições climatéricas, o bom senso aconselhava a suspensão temporária das operações militares. Para além do mais, os homens encontravam-se exaustos. Os desejos de Mouzinho de Albuquerque em relação a Gungunhana teriam de aguardar melhor oportunidade.

Quando as últimas notícias chegaram a Lourenço Marques, António Enes deu ordens para cessar as missões quando, eventualmente, se estava em condições de derrotar já o Império Vátua. O comissário, aparentemente, não procurava subjugar definitivamente o inimigo, mas apenas conter o seu ímpeto. Mouzinho de Albuquerque tinha uma opinião diferente. Para o capitão, o restabelecimento do domínio português apenas poderia ser conseguido à custa da derrota de Gungunhana, que estava ainda fugido. Pouco satisfeito com os últimos desenvolvimentos, terá comentado: "bem lamentado foi por todos que o diminuto efectivo da cavalaria e a vil cobardia dos auxiliares não permitissem efectuar uma perseguição que pudesse trazer-nos às mãos o régulo de Gaza».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«As Forças Armadas são o poder executivo da consciência nacional, o braço da Pátria, a Nação em Atalaia, a vigilância dos berços, o resguardo dos túmulos, a segurança do presente e do porvir. Nobreza não há maior que a da sua missão».

Batista Pereira (in «Directrizes de Rui Barbosa», 1938).




António Enes



Vista de Lourenço Marques em 1895. Nesta data o mais importante aglomerado urbano do Sul de Moçambique, elevado a cidade em 1887, contava apenas cerca de 3000 habitantes, dos quais aproximadamente 2000 seriam portugueses da Metrópole e da Índia.



Um aspecto do desenvolvimento urbano de Lourenço Marques no final do século XIX.




Alferes João Duarte Moreira, tenente Ayres de Ornelas e alferes Raul Costa, em Inhambane, em 1895, preciosos colaboradores de Mouzinho de Albuquerque durante as suas campanhas africanas.



Uma missa campal em celebração junto de um monumento erguido no local onde soldados portugueses combateram na Batalha de Magul (anos 1950). Ver aqui


«Uma das grandes inovações introduzidas pelo governo de António Enes, durante o seu segundo mandato, passou pela criação da chamada circunscrição indígena, novidade que seria colocada em prática no distrito de Lourenço Marques. Estas ditas circunscrições eram unidades administrativas que pretendiam substituir o poder dos chefes locais. As autoridades ao serviço dos europeus passariam a exercer as funções de administradores e de juízes, ou seja, teriam de zelar pelo inventário e distribuição de mão-de-obra, como também julgariam e puniriam todos os que abusassem dos critérios estabelecidos. Os nativos seriam divididos pelas tais circunscrições, encontrando-se estas subdivididas em regedorias.

Era necessário tratar a realidade daquelas paragens de acordo com as especificidades próprias da região, pois para o comissário "Moçambique precisa de um código administrativo, todo novo e feito de propósito para a província, e até com regras especiais para cada um dos seus distritos. Deixemo-nos de uniformidade e de simetrias! O vício fundamental da nossa legislação ultramarina é ser, em parte, a do Reino, em parte uma imitação, ou uma cópia (...) quando, pelo contrário, devia variar não só do Reino para o Ultramar, senão também de província para província do Ultramar, considerando também as variações naturais de toda a espécie que se dão dentro da mesma província". Já para os colonos, tal como na Metrópole, o território encontrava-se repartido por conselhos, e estes por freguesias. Na prática, a inovação introduzida pelo comissário visava dotar o governo colonial de uma maior autonomia, de modo a agilizar a gestão, o seu maior "cavalo-de-batalha" enquanto por lá andou.

António Enes também veio a revelar-se um comissário lúcido em termos militares. Apesar de ser um civil, foi a ele que a tropa ficou a dever o esquema global das campanhas de 1895. Em primeiro lugar, decidiu-se a resolver a questão da segurança nas "terras da Coroa". Foi igualmente graças à sua acção que os oficiais puderam contar com meios logísticos locais. Também defendeu desde a primeira hora o avanço no terreno baseado em colunas móveis e foi o comissário régio quem procedeu à reorganização militar da província. Sob a sua direcção política, nasceu a tal geração de jovens soldados que ganhou destaque nas campanhas de Moçambique. No seu tempo, a tropa adquiriu experiência de combate e obteve com custos mínimos os resultados que até então ninguém havia conseguido. No seu conjunto, as vitórias de Marracuene, Magul, Coolela e Manjacaze terão custado 14 baixas brancas, número insignificante quando comparado com os 5592 mortos deixados pela França em Madagáscar, na mesma altura. Foi este sucesso e traquejo operacional que esteve na base da criação de uma percepção muito característica dos chamados "africanistas". Para eles, o Império viria a revelar-se a própria razão de ser da nação. Sem Império, esta não se cumpria, ideologia [ou realidade] que os regimes políticos até 1974 não mais iriam abandonar.

Assim, os louros da campanha de 1895 ficaram a dever-se mais à acção estratégica, organizativa e política de António Enes do que ao voluntarismo de Mouzinho de Albuquerque, tardiamente chegado a Moçambique, ou à vitória obtida em Chaimite já no final do ano. A captura do Gungunhana (...) seria apenas um episódio, ainda que significativo, do esforço militar português na colónia do Índico. No seu conjunto, as operações desenvolvidas ao longo de 1895 representaram a primeira campanha "moderna" levada a cabo pelas Forças Armadas nacionais, vindo a servir de modelo para as que se seguiram.

Todavia, para a história, os feitos deste ano seriam associados ao militar, não ao paisano. Percebe-se a razão da preferência. António Enes, para além de não pertencer ao meio castrense, tinha um perfil discreto, um passado de homem de Letras cordato, apesar de se ter envolvido uma década antes em polémicas políticas contra a Coroa no jornal O Progresso. Já o capitão Joaquim Mouzinho de Albuquerque tinha uma aura diferente, mais própria dos heróis que conseguiam triunfar apesar de rodeados de dificuldades. A prisão do "leão de Gaza", o seu feito maior, levado a cabo por um punhado de brancos, que enfrentaram destemidamente milhares de africanos no seu reduto, tornou-se uma façanha difícil de igualar.

De resto, para além da sua figura cimeira, a campanha de 1895 iria ser o berço de uma geração de protagonistas como Eduardo Galhardo, Paiva Couceiro, Eduardo Costa, Freire de Andrade, Sanches de Miranda e Aires de Ornelas, a que se juntariam em breve Gomes da Costa e João de Azevedo Coutinho. Este grupo de "africanistas", os "centuriões" como lhes chamou René Pélissier, não contando Caldas Xavier, que morreu em Lourenço Marques logo nos inícios de 1896, iria tornar-se a curto prazo numa espécie de Ínclita Geração do final do século XIX. O heroísmo demonstrado por Mouzinho de Albuquerque à entrada de Chaimite só passou a encontrar comparação na Batalha de Aljubarrota.

A «geração» de Mouzinho de Albuquerque. Os companheiros de África. Sentados da esquerda para a direita: Dr. Baltasar Cabral, Mouzinho de Albuquerque e Aires de Ornelas. De pé, da esquerda para a direita: Andrade Velez, Gomes da Costa, Eduardo Costa, João de Azevedo Coutinho, João Galvão e Baptista Coelho.



Gungunhana na prisão em Lourenço Marques, acompanhado pelas mulheres capturadas pelas forças portuguesas.





O Kraal de Gungunhana em Manguanhana, estudado por Francisco Toscano.




Henrique Mitchell de Paiva Cabral Couceiro




(...) Este grupo de militares teve o condão de, pelas suas proezas nunca alcançadas nos anos recentes, despertar o país para a realidade colonial e de promover a afirmação de Portugal perante o exterior numa altura em que o prestígio nacional em África já tinha conhecido melhores dias. Os inimigos não eram as azagaias dos Vátuas, mas sim os apetites que a debilidade da presença portuguesa despertou nas potências europeias, nomeadamente na Grã-Bretanha e na rival Alemanha».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«Estudar com dúvida e realizar com fé».



«Portugal existe! É Portugal definido na Constituição e por cuja integridade nos batemos, a Nação toda, euro-afro-asiática, uma vez mais. Portugal que é de todos nós, asiáticos, africanos, europeus e seus miscigenados e que existe para todos nós, esses portugueses. Guiné, Angola, Moçambique, Metrópole... são de todos os portugueses e têm de existir para todos os portugueses, embora os que em cada parcela nascem ou se radicam tenham natural, espontaneamente, mais facilidades e mais possibilidades de se realizar localmente.

Mas é de todos, e todos os lugares têm de ser acessíveis a todos. De resto, na consolidação da nossa Nação, é evidentemente importante que os lugares de maior responsabilidade sejam cada vez mais preenchidos pelos melhores de todos os portugueses sem discriminações, como a Constituição prescreve. E os melhores, de entre cerca de vinte e cinco milhões de portugueses, hão-de ser de todo o Portugal! Por isso se considera errado (e de certo modo redundante) falar em termos de Angola para angolanos, de Cabo Verde para cabo-verdianos ou de Metrópole para metropolitanos... Portugal existe no seu povo, no seu território, na sua história, povo que somos todos, território que são todas as suas parcelas, história que é história de todas as populações, sempre a estudar melhor, a contar por forma mais entrelaçada, com mais compreensão, em termos mais humanos, globalmente mais autêntica.

Mas Portugal é também projecto. Todas as nações, se vivas, têm de o ser também. Nada que tenha vida é estático: vida é dinâmica, física e conceptual. As nações são alvos de projectos de outras nações e quase sempre se convertem em suas vítimas, se deixam de ser também projectos. Portugal começa a ser projecto na mente de D. Afonso Henriques. Continua a sê-lo quando se alarga até ao Algarve e o Infante D. Henrique impulsiona os Descobrimentos, é-o ainda ao longo da gesta de reis, navegadores, missionários, comerciantes e povo que, frente ao Oceano, arranca com o Oriente, o Brasil e a África, quando Salazar se bate por Goa, e agora que defendemos Guiné, Angola, Moçambique...

Não obstante, também conceitos ambíguos se infiltraram, por vezes, no pensamento das elites nacionais e deram lugar a acções contraditórias, à inclusão da Nação nos projectos de outras nações e aos estragos correspondentes.

Uma nação viva é, pois, sempre, também um projecto que implica a visualização do futuro, a sucessiva materialização dos objectivos nacionais: isso constitui vínculo que solidariza a cadeia das gerações e as compromete e responsabiliza. Vínculo, objectivo, futuro que ou estão presentes na mente, no coração, na personalidade dos responsáveis ou não haverá possibilidade de política, de governo, de destino próprio. É assim que às nações é corrente associar os guardiões de tais objectivos: Brasil/Itamaraty; Estados Unidos/Pentágono, Departamento de Estado; Rússia e China/Orgãos superiores do partido. Alguns tempos atrás: Inglaterra/Almirantado e Alemanha/Alto Estado Maior.

Entre nós, foi a instituição monárquica, muito tempo, por sua natureza e circunstâncias, guardiã dos objectivos nacionais. Após o advento da República, confiamos tal custódia, essencialmente, à pessoa do Presidente do Conselho, responsável pela estratégia nacional, solução que pode revelar-se demasiado frágil. Soubemos, até há pouco, de certa forma, compensarmo-nos, ostentando, na Constituição, em termos a ajustar, mas claros, simples e determinantes, o projecto da Nação que tem conduzido as grandes decisões dos responsáveis e que, felizmente, parece inscrever-se já no instinto da generalidade dos portugueses, como prova a adesão a tais decisões.

Portugal não é porém um vago e idealista projecto de Portugal. Seria poesia perigosa, arriscado idealismo, considerá-lo apenas em termos de atitude, de maneira de ser, de modo de estar, independente de corpo, só espírito. Portugal existe e é mais que aquilo que existe: a integridade, a unidade, agora uma vez mais ameaçada e pela qual nos batemos; a autenticidade na perfeita materialização de uma concepção original, humaníssima, que nos acrescenta, nos fortalece, nos projecta, nos agiganta a todos.





Vista geral de Lourenço Marques no primeiro decénio de 1900.



O paiol de Lourenço Marques, cerca de 1900. Foi demolido cerca de 1919 e o terreno foi aplanado como parte do grande Aterro da Maxaquene.



O cais de passageiros de Lourenço Marques, cerca de 1900.



Banda musical de uma missão religiosa na Beira, no início do século XX.













Meados do decénio de 1920. O Liceu 5 de Outubro ficava situado entre a Polana e o Alto da Maxaquene na Avenida 24 de Julho. Após a inauguração dos Liceus Salazar e Dona Ana da Costa de Portugal, nas suas traseiras, neste espaço passou a funcionar a Escola Comercial Azevedo e Silva.. Foi demolido no início do decénio de 1970.


A fachada a Nascente dos Avenida Buildings, na Avenida Aguiar, mais tarde Avenida Dom Luiz I (anos 1920).



O Jardim Vasco da Gama, meados do decénio de 1920. Foi considerado, após a "independência", o melhor jardim botânico em África.






Um leão no Jardim Vasco da Gama, meados do decénio de 1920. Todos os animais foram transferidos para o novo Jardim Zoológico em 1935.



O Jardim Zoológico de Lourenço Marques em construção (1933).










Anúncio de perfume n'O Ilustrado de Lourenço Marques (15 de Julho de 1933).



1933. Em primeiro plano, a Av. Pinheiro Chagas já parcialmente constituída em duas faixas.



À esquerda, o Aterro da Maxaquene, ainda "pelado".



À direita, junto ao Aterro da Maxaquene, os campos de futebol do Desportivo, ainda no local onde mais tarde foi feita a sede e a piscina, e a seguir o campo de futebol do Sporting.



À direita, o Aterro da Maxaquene e as instalações do Desportivo e do Sporting.







A construção da ponte Dona Ana sobre o rio Zambeze (1933).










1933


A Câmara Municipal de Lourenço Marques, pouco depois da sua inauguração, a 1 de Dezembro de 1947.



Acessos à Praia da Polana em Lourenço Marques (anos 1950).



Desfile de Carnaval na Baixa de Lourenço Marques (anos 1950).




Amália Rodrigues na inauguração da Tertúlia Festa Brava em Lourenço Marques (anos 1950).




Praça 7 de Março (início dos anos 1960).
















A casa avião, do arquitecto Pancho Guedes, em Lourenço Marques (anos 1960).



Eusébio (anos 1960).



A esquina da Avenida da República com a Rua Pêro da Covilhã, na Baixa de Lourenço Marques, cerca de 1970. 



Lourenço Marques (1960).


E será oportuno observar-se não parecer correcto que, na busca de melhores caminhos, alguns de nós nos apoiemos, sistematicamente, nas opiniões do fim do século XIX e princípio do século XX, pleno período colonialista, como se a história da doutrina da administração ultramarina se tivesse iniciado e cristalizado então. Arrimarmo-nos a tais opiniões para justificar, e preambular até, algumas decisões mais importantes, e mais discutidas, pode enganar-nos a todos. A notável geração que, em sua passagem fugaz mas incisiva, fulgurante, pela província, tanto ajudou a moldar a Moçambique, geração à qual se deve pensamento e acção nobilíssimos, e páginas as mais aliciantes da nossa literatura oficial ultramarina, pelo período conturbado em que viveu e pela distância a que actuou, cometeu, naturalmente, erros em várias das suas convicções e previsões, nos muitos sectores em que manifestou umas e arriscou outras. O Mundo, a África e o nosso País evoluíram de outra maneira... Se essa geração pudesse verificar que o código de trabalho rural se afasta cento e oitenta graus das suas concepções; que todos somos cidadãos iguais perante a Lei; que as Forças Armadas estão unificadas e que essa unificação terá sido condição essencial de não fracassar a luta contra a subversão; que a industrialização de Moçambique está em curso, mesmo a do algodão; que sem terem decorrido séculos, nem se haver modificado o clima de África, o alcoolismo não constitui bem o flagelo que imaginava; que os cajueiros - "árvore de vício e de ruína" - não só não foram arrancados, como constituem valor importante na economia da província; que os portugueses africanos e asiáticos não são como os descreve e julga; se essa notável geração, com seu íntegro carácter, pudesse aperceber-se dos erros em que naturalmente caiu, ela exultaria de satisfação, face aos resultados, corrigiria os seus pontos de vista, aderindo a novas perspectivas, e lamentaria reincidências, essas não justificadas, de outros... Não será, de resto, de estranhar que, tanto se gostando também de Angola, sejam apenas os homens que impulsionaram Moçambique, em período tão crítico, que se exaltam e se seguem?... Por que motivo esquecer as opiniões dos homens, menos antigos, que duraram mais, cujas concepções puderam ser mais correctas, de que tanto também nos orgulhamos (recordo a homenagem do Senhor Presidente do Conselho na sua última visita a Nova Lisboa) e que impulsionaram Angola? Não estaremos a revelar, a par da merecida veneração, estudo discriminado, carência imaginativa e sobretudo perigoso retrocesso?

Portugueses? O conjunto das populações de Portugal de todas as etnias, credos e religiões. Língua portuguesa: além do português, a língua da unidade, da unificação, mais rica, mais generalizada, os dialectos falados pelos portugueses, que tanto vão enriquecendo o português ["Da conquista da Ásia tomamos 'chatinar', por mercadejar, 'beniaga' por mercadoria, 'lascarim', por homem de guerra, 'sumbaia' por mesura e cortesia, e outros vocábulos que já são tão naturais na boca dos homens, que naquelas partes andaram, como o seu próprio português". De João de Barros, "em louvor da nossa linguagem", pórtico do "Pequeno Dicionário de Moçambique", de António Cabral (L. Marques, 1972)]. São os próprios movimentos terroristas Mpla, Paigc e Frelimo, que ensinam o português como língua de unidade. E enquanto alguns de nós passamos a exaltar a diversidade (sem reparar talvez que isso, nos limites, conduz lógica e inexoravelmente, à separação social, económica, étnica, política...), aqueles movimentos usam para o ensino, alguns livros comuns. Além de métodos, sistemas, doutrina e política...

Cultura portuguesa, as culturas dos portugueses, em natural e rápido processo de interpenetração, de aculturação, todas dando e recebendo, e tendo como núcleo, certamente, o que nessas culturas tiver mais valor, for mais resistente. Um quadro de Neves e Sousa, de Malangatana, de Preto Pacheco, uma poesia de Jorge Barbosa, de Bessa Victor, de Cochat Osório, um romance de Aquilino, um conto de Aurélio Gonçalves, uma morna, uma coladeira, um improviso dos chopes de Zavala, um batuque macua, um cantar goês, uma saudação bailunda, uma máscara quioca, uma cabeça maconde, um barro de Barcelos, um filigrama de Gondomar, de Bafatá, uma prata de Mocímboa, um mandrião de badia, um chapelinho de borla, um lenço de mulher cabinda... tudo são manifestações de cultura portuguesa. Mas já não é manifestação de cultura portuguesa, sendo, em muitos casos, antes agressão de mau gosto estrangeiro, destruir nomes vernáculos de terras para honrar pessoas ou outras terras...

Filosofia, ou pensamento autónomo, essencialmente o resultado desta concepção de País, Povo, Cultura e Língua, esta atitude, face ao mundo, de o construir a partir do heterogéneo, do disperso, do variado, numa parcela do mesmo mundo: Portugal. Unidade de variedade, unificação do variado, por estruturada harmonia em domínios mais amplos, implicando, fraterna e globalmente, movimento, caminhada, ascensão.

Filosofia que não é de confundir com a da unidade na diversidade de Rougemont. Este, suíço salvo erro, propõe a regionalização (verdadeira "cantonização") da Europa, com o objectivo de a destruir nas pátrias, para a poder reconstruir na federação das regiões.

Tal conceito aplicado à nossa Nação, dispersa e heterogénea, seria novo, moderno, mas perigosíssimo, fazendo correr o risco de se não ultrapassar a fase de destruição... É uma experiência a ser feita pelos outros e a ser observada (e usufruída) por nós...

De resto na sua entusiástica e interessante "Carta Aberta aos Europeus", que também é endereçada a portuguesas e portugueses, Denis Rougemont não refere uma só vez no texto, tanto quanto a nossa atenção permitiu descortinar, Portugal. Cita, uma vez, Lusitânia em transcrição de Paul Valéry ("Lusitânia é também um belo nome"). Não nos será difícil conjecturar em que "cantão" mentalmente nos inclui, e a partir de que efeméride entende dever ser corrigida a nossa História...».

Silvino Silvério Marques (Resposta, elaborada em Moçambique, em Maio de 1972, ao ínquérito conduzido por António Marques Bessa, Vítor Figueira Martins e Ana Maria Castelo Branco: «PENSAR PORTUGAL»).






Silvino Silvério Marques



Ao fundo, o Forte de São João Baptista de Ajudá na costa ocidental de África (Daomé, 1932), nos seus dois hectares de soberania portuguesa.


«Em todas as partes do mundo por onde andei, ao ver uma ponte perguntei quem a tinha feito, respondiam os portugueses; ao ver uma estrada fazia a mesma pergunta e respondiam: portugueses. Ao ver uma igreja ou uma fortaleza, sempre a mesma resposta, portugueses, portugueses, portugueses. Desejava pois que da acção francesa em Marrocos daqui a séculos seja possível dizer o mesmo».

Marechal Lyautey citado por Hélio Felgas («Estudos Ultramarinos», 25.º Caderno, p. 21, Academia Militar, Lisboa, 1967).


«Até à queda ocorrida no Forte de S. António, no Estoril, a 7 de Setembro de 1968, um incidente que incapacitou fisicamente António de Oliveira Salazar, fundador e ideólogo indiscutível do Estado Novo, as bases políticas que justificavam a presença de Portugal nos territórios situados para além do continente europeu eram sólidas e coerentes:

- eram eminentemente patrióticas;

- mantinham e reafirmavam a tradição histórica de séculos;

- apelavam a um alto ideal de humanidade, coesão política e integração social;

- estavam alicerçadas na moral e no direito;

- apelavam aos sentimentos profundos de autodefesa do povo português que lhes são próprios desde sempre;

- reflectiam, no essencial, no campo político e diplomático, a maneira portuguesa de estar no mundo, já com vários séculos de existência.

Enquanto estes ideais políticos fossem sentidos pela maioria da população e fossem vistos como corolário do imaginário da pátria portuguesa - que desde o século XV estava ligado à extraordinária expansão e diáspora dos portugueses - não haveria riscos de ruptura na nação lusa. Estes pressupostos estavam profundamente enraizados em todas as camadas da população e nas elites sociais. E nunca foi posta em causa, nem pelo povo, nem pela burguesia, nem pela nobreza, fossem eles cristãos-novos ou velhos, religiosos ou ateus, maçons ou jesuítas, liberais ou absolutistas, monárquicos ou republicanos. O consenso era geral e universal.

Apenas abriu brechas depois da fundação do PCP, em 1921, quando as resoluções das internacionais comunistas assim o determinaram. Até 1969, data da crise académica, esta atitude antinacional - como foram quase todas as defendidas por aquele partido - praticamente não se fez sentir, dada a sua reduzida implantação e ao combate que lhe foi movido pelas forças governamentais.

A partir de meados dos anos 60 do século XX, foi a vez da oposição dita democrática, herdeira das forças oriundas da I República, deixar de defender o projecto de Portugal do Minho a Timor, como sempre tinham feito. Recorde-se até que um dos ataques desferidos contra a monarquia tinha sido a adequada defesa e promoção dos nossos territórios fora da Europa.

Finalmente, grande parte da intelectualidade deixou-se seduzir pelo pensamento marxista, maoísta, trotskista e outros do género que abundavam então, sobretudo depois do desconchavo do Maio de 68 em França, desequilibrando-lhes o pensamento e a realidade das coisas, no que foram acolitados, noutro âmbito, pela tecnocracia económico-financeira, cujo eldorado era representado pela CEE. Tal ideário redutor, internacionalista e materialista acabou por se consubstanciar na fundação da SEDES (Sociedade de Estudos e Desenvolvimento Económico e Social), em 1970, já no consulado de Marcello Caetano. Foi este último, precisamente, o principal responsável pelas fissuras que puseram em causa a coesão do edifício político. Sobretudo por ter dado a entender que a situação que se vivia poderia ser transitória. Ora, ninguém pode pedir a um cidadão que morra definitivamente por uma solução transitória».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«O comportamento das populações de Cabinda, principalmente das elites e das personalidades mais influentes, sempre se revelou contrário à sua integração em Angola ou à simples dependência do governo de Luanda, invocando o tratado de Simulambuco que colocou o seu território e a população sob protectorado do rei de Portugal. [Pelo tratado de Simulambuco, assinado em 01 de Fevereiro de 1885, Cabinda passou a constituir um protectorado do rei de Portugal. A integração deste território em Angola parece resultar de um erro histórico por corrigir]. Por isso, sempre manifestou, de um modo geral, uma atitude de não colaboração com os movimentos angolanos de libertação, obstando a que as suas incursões tivessem êxito».

Tenente-General Manuel Vizela Cardoso (in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).










Cabinda



«"Pelos elementos já colhidos, os incidentes de Luanda foram provocados por grupos organizados, grupos extremistas pertencentes, essencialmente, ao Mpla e ao Fnla", revelou ontem o governador-geral de Angola, general Silvino Silvério Marques, numa entrevista de três horas concedida ao "Diário de Notícias" e durante a qual afastou as opiniões correntes segundo as quais a onda de violências, que durante uma semana causou cinquenta mortos e mais de duas centenas de feridos, teria sido provocada por dissidências raciais. Num comentário a recentes declarações públicas sobre o papel dos generais antes do Movimento do 25 de Abril, o Governador-Geral de Angola sublinhou haver "um grupo de generais que entenderam que só poderiam tomar uma posição firme e importante relativamente à situação que se passava no nosso País se obtivessem a convicção de que, com a posição que estavam resolvidos a tomar, não iam destruir a Instituição Militar, a sua Pátria, nem apunhalar pelas costas os camaradas que combatiam no Ultramar, nem desonrar a memória dos que ali tinham morrido".

Cinco malas de viagem, por abrir, estão juntas no átrio da residência do Governador-Geral. Quarenta e oito horas depois da inesperada vinda a Lisboa de Silvério Marques cinco malas ainda por abrir eram sintoma. Mas sintoma ambíguo: iminência de partida ou indefinição de permanência? E foi essa a primeira pergunta, momentos depois da saída do coronel Rebocho Vaz, antigo governador-geral de Angola, que nos precedera na sala onde decorreria a entrevista.

O general sorri, com o mesmo sorriso fatigado que lhe veríamos mais tarde quando o rádio portátil, aberto sobre a mesa de centro, transmitiu a notícia de que o matutino "a província de Angola" admitira, na sua edição de ontem, e citando fontes seguras, que "o general Silvino Silvério Marques não regressará ao posto de Governador-Geral do Estado". A mesma notícia, da agência noticiosa Lusitânia, acrescentava que o dr. Pinheiro da Silva era presentemente o Encarregado do Governo.


"Quanto à minha destituição, estão mais informados do que eu próprio", comentou o Governador-Geral, que sublinhou laconicamente: "Não sei nada a esse respeito". E corrigiu, depois: "O Encarregado do Governo não é o dr. Pinheiro da Silva, mas sim o dr. António Augusto de Almeida, a quem transmiti poderes antes de embarcar".

Cinco perguntas foram deixadas em suspenso por um jornalista da rádio, que ontem mesmo entrevistou o Governador-Geral de Angola. Ouvidas as respostas do general, meditadas as opiniões, o jornalista sintetizou as suas conclusões, perguntando:

1. É ou não verdade que são brancos os presos ligados ao princípio dos incidentes?

2. É ou não verdade que são presos negros apenas depois dos incidentes?


3. O Governador-Geral afirma não ter elementos concretos para saber apreciar os acontecimentos. Para ele, afinal os acontecimentos de Luanda dão-se porque há extremistas da ambos os lados. Não há grupos organizados, não há interesses espezinhados - não há, em suma, tensão racial.


É ou não é verdade que existe uma realidade colonial em Angola? É ou não é verdade que os brancos são a classe no poder e os negros a classe dominada?

4. O Governador-Geral de Angola acusa elementos da extrema-esquerda ligados ao Mpla e ao Fnla de estarem por detrás destes incidentes. São suposições tiradas de emissões de rádio ou possui provas concludentes do facto? Se sim, porque não foi feito já o processo?


5. O Governador-Geral de Angola, general Silvino Silvério Marques, não repudia o seu mandato de Governador-Geral de Cabo Verde e de Angola no tempo do anterior regime e afirma ser considerado geralmente como o defensor, o amigo, o pai dos africanos. Serão da mesma opinião os africanos de Cabo Verde e de Angola? 


Estas interrogações, deixadas "no ar", no final de uma emissão, ontem duas vezes radiodifundida, radicaram-se como dúvidas dos próprios ouvintes que as escutaram. Pertinentes, à luz das notícias chegadas a Lisboa nos últimos sete dias, elas ficariam, no entanto, sem resposta por parte do visado. E foi na curiosidade imediata de escutar o que Silvino Silvério Marques teria a dizer aos milhares de pessoas que ouviram o interrogatório pendente, que a nossa reportagem se alterou, hora e meia depois de iniciada. O General acedeu. Eis as suas respostas, precedidas dos indispensáveis comentários para a compreensão das perguntas, que pressupõem a extensa entrevista que fora concedida.












"Se efectivamente se considera o princípio dos acontecimentos a morte do motorista de táxi, e se apenas se tem em vista os presos, efectivamente os únicos que se prenderam foram europeus ligados ao incidente depois ocorrido no muceque. Que daqui se tirem grandes ilações, parece-me perfeitamente primário. Antes da morte do motorista, há todo um contexto de agitação, de enervamento, na cidade de Luanda, iniciado com as manifestações que decorreram na altura em que lá foi o senhor ministro e mantido com a liberalização da Rádio e da Imprensa e à qual se não estava habituado. É evidente que esse contexto desencadeou forças, ansiedades, aflições e preocupações, que não podemos deixar de ligar à cadeia dos acontecimentos".

Esta a resposta à primeira pergunta radiodifundida.


Nela, o Governador-Geral Silvino Silvério Marques sintetizou o que antes havíamos anotado: a sucessão dos incidentes no cinturão urbano de Luanda deveu-se - disse - a um conjunto de factores e não a uma atitude propagandeada, embora esta tivesse surgido depois, na sequência de um ambiente psicologicamente favorável.


"O incidente original que provocou estas perguntas (após a morte do motorista europeu) foi originado essencialmente por europeus. Talvez exclusivamente por europeus - o que eu neste momento não posso afirmar com segurança absoluta, porque é muito natural que num incidente como este, os presos - ou a maior parte deles - sejam europeus. Mas que daí se tirem grandes ilações, também me parece profundamente primário.

Esta resposta à segunda pergunta, concretiza a posição do general Silvério Marques, segundo a qual é errado forçar uma interpretação de divergência racial para explicar a última semana em Luanda.

Diria depois o general Silvério Marques, respondendo à terceira interrogação do nosso camarada da Rádio:


"Vamos por partes. Eu tenho elementos concretos e apreciei os acontecimentos. Dá-me a impressão que o entrevistador, ao fazer estas perguntas de fim de entrevista - que não sei se entre nós são comuns - achou que eu não teria elementos concretos para apreciar a situação. Mas é evidente que os possuo. Não serão documentos, na medida em que antes do final de um inquérito o que existe são informações colhidas por conversações com os inquiridores; relatos fornecidos por entidades directamente envolvidas nos problemas e na sua resolução; - são perguntas e respostas que fazemos a pessoas que consideramos importantes no processo. É tudo isso que pode fornecer dados concretos, embora os definitivos só apareçam, naturalmente, no fim do processo.

De resto, em casos de alteração da ordem pública, em casos de guerra, os elementos são fornecidos pelas pessoas e pelos documentos que se conseguem. Talvez aproveitasse a muita gente que tudo fosse sendo exposto no decorrer do inquérito - mas é mais eficiente e até mais leal fazer revelações definidas quando puderem aparecer em termos de conclusões. Portanto: existem elementos concretos, que recortam as opiniões de muita gente envolvida.

Quanto à existência ou não de grupos extremistas - sublinhou depois o Governador-Geral - a ideia que tenho é de que há efectivamente grupos organizados nos muceques, grupos extremistas pertencentes ao Mpla e ao Fnla. Esses grupos desencadearam o processo dos muceques. Do que eu não tenho conhecimento, embora admita que existam, é da existência de grupos de europeus ligados também a esses acontecimentos. Tanto quanto chegou ao meu conhecimento e tanto quanto sei, ao conhecimento do sr. general Comandante-Chefe, não foram detectados".

Respondendo à quarta pergunta, disse o general Silvino Silvério Marques:

"É muito complicado definir o que é uma realidade colonial. Se, por exemplo, os homens de Trás-os-Montes ou do Alentejo tivessem uma tez bastante escura, pois era possível haver quem dissesse, existir aqui uma realidade colonial. Se o que se pretende dizer, é que há umas determinadas pessoas que, mercê da história, mercê das circunstâncias, em Angola, como em muitas outras partes do mundo, detêm ainda as alavancas da economia - até certo ponto, e cada vez menos, as alavancas do poder constituído - e que ali essas alavancas são detidas por pessoas de origem europeia, com mais facilidades na sua educação e na sua ascensão, pois digo que sim. É patente a toda a gente. Mas que cada vez isso será menos assim (porque cada vez existe menos uma estrutura de auto-sustentação do sistema), também o afirmo".

Pausadamente, interrompendo-se aqui e além por um telefonema (dois de Luanda) ou por alguém que chegava, o general Silvério Marques parecia, no entanto, não perder o fio condutor do seu pensamento."



Funeral das cinco vítimas de 11 de Julho de 1974, no Cazenga.



Levantamento de 15 de Julho de 1974 contra a falta de segurança nos muceques de Luanda.










"As próprias dificuldades que o mundo português atravessa - disse também - farão com que cada vez seja menos representada por tons de pele a diferença entre as camadas humanas e os poderes detidos. E, de resto, cada vez os poderes se nivelarão mais".

Respondendo à mesma pergunta, que considerou repetição da que antecedeu, o general disse:

"O processo de inquérito em casos destes é muito complicado, como é evidente. Mas está em curso. E as suas conclusões serão publicadas. No entanto - e como já afirmámos -, haverá alguma demora. Das investigações está encarregada a Polícia Judiciária, dada a extinção de outras polícias a quem anteriormente incumbiam estas tarefas. Sobre ela pesa, de momento, grande sobrecarga de trabalhos".

Mais tarde, o Governador-Geral referiu-se às emissões de Rádio citadas pelo jornalista na sua pergunta. Tratava-se, com efeito, de um elemento importante que Silvério Marques nos havia igualmente mencionado, quando o interrogámos sobre a discrepância entre a sua afirmação de que elementos dos movimentos de libertação teriam instigado as desordens nos subúrbios e as declarações públicas de dirigentes desses movimentos, apelando para a calma e para a ordem. O general dissera-nos, então, não ter conhecimento desses apelos. Ao contrário, soubera de emissões de Rádio Brazzaville instigando à violência.

"Não estão por detrás das minhas convicções apenas emissões de rádio. Há outras provas: gente presa e todo um conjunto de fontes que nos deram a ideia exacta da forma como o processo se iria auto-sustentar: ao nível do Mpla vão passar-se em breve circunstâncias políticas de grande gravidade para a história do movimento e do seu futuro. Sabe-se que se procura a realização de um Congresso; que o Mpla está, no exterior, dividido em várias facções; que uma dessas facções procura, de qualquer forma, ganhar prestígio; que a Fnla acompanha, sempre em paralelo, o Mpla e procura que este se não distancie muito. De tudo isto, é de inferir que se criou uma situação muito propícia a tentar instalar a guerrilha urbana, de resto muito difícil - como acentuei - de radicar".

Agora, resolvem jogar tudo por tudo. E para quê?

O general Silvério Marques responde:


"O que se pretendia era, através de um certo número de incidentes nos muceques, destruir os comerciantes ali radicados; criar ali grandes carências; levar a população dos muceques, depois de destruídas as suas lojas, a ter necessidade de assaltar outras lojas - e criar assim, já fora dos subúrbios, uma acção auto-sustentada".

Depois de explicar o alcance das medidas tomadas - suprimento intensivo das populações e simultâneo corte das possibilidades de municiamento dos grupos responsáveis através de apertada fiscalização - o Governador-Geral precisou:

"Estou convencido de que não existem nos muceques hoje em dia, depósitos de armamento e que os planos referidos foram, como disse, um tanto precipitados, baseados sobretudo na confiança de que um grande movimento de massas manteria aceso o processo desencadeado".

Noutro passo da entrevista, e depois de frisar que ainda não foi apurada a autoria do assassínio do motorista de táxi, o Governador-Geral sublinhou que não houve no dia 11 - o primeiro da série de incidentes -, atrasos por parte do Governo-Geral na participação pormenorizada do que acontecera e do que podia acontecer a quem, presentemente, detém todos os efectivos policiais, militares e paramilitares capazes de garantirem a ordem pública.

A nível de Governo-Geral - afirmou o general Silvino Silvério Marques -, medidas como a da suspensão do Campeonato do Mundo de Hóquei ("havia informações de que a presença de equipas seria aproveitada para uma tentativa de alastramento das desordens"), não se fizeram esperar. E as restantes surgiram com a rapidez possível - disse. Nas suas declarações, acentuou depois, que "os incidentes deverão ligar-se ainda a mais dois tipos de incidentes programados: os que seriam provocados com a estada do conjunto espanhol "Aqua Viva" e os que estariam esboçados quando da visita do Presidente Spínola a Angola".





"Tudo isto em conjunto - sublinhou - proporcionou uma altura favorável à tal tentativa, a que chamei desesperada, de conseguir grandes efeitos a partir da massa humana dos muceques. Massa humana - disse também - que se não respeitou como até aí se tinha respeitado. Que correu sérios riscos e em relação à qual afinal, não aconteceram coisas gravíssimas, que podiam ter sucedido. Podia-se ter desencadeado retaliações sobre os muceques (terríveis retaliações que não houve), na medida em que os comerciantes daqueles bairros desapareceram todos. Nada disso, no entanto, aconteceu porque foi possível acudir à população. Apesar de todas as dificuldades, a segurança atingiu o nível necessário. Conseguiu-se valer aos próprios comerciantes, alojando-os e inclusivamente assegurando-lhes indemnizações".

Finalmente, em resposta à última interrogação colocada no referido programa de rádio, o general Silvino Silvério Marques disse:

"Será fácil à Informação saber o que pensam os cabo-verdianos do meu tempo e os angolanos do meu tempo, do meu governo. Perguntar aos cabo-verdianos de agora e aos angolanos de agora aquilo que foi o meu governo há dez anos atrás, é capaz de não propiciar uma opinião fiel. Os governos têm de ser vividos, compreendidos e julgados no seu tempo. Eu desafio a pessoa que fez a pergunta a interrogar os cabo-verdianos adultos desse tempo, os angolanos adultos desse tempo".

Três horas estavam decorridas. Silvino Silvério Marques escuta a última pergunta e responde:

"Quero significar, para não haver quaisquer dúvidas, que sou muito amigo e admiro muito o actual Comandante-Chefe de Angola. E considero importante a sua actuação em toda esta conjuntura.

Simplesmente, com a Revolução de Abril, com o Movimento das Forças Armadas e com determinadas disposições tomadas em Angola pelo sr. general Costa Gomes, tudo o que era informação - ou praticamente tudo - e tudo o que era segurança, passou à dependência do general Comandante-Chefe das Forças Armadas e do Movimento. Daí que aspectos ligados à informação e ligados à segurança, em que se pede que o Governador diga, concretize e responda, resulte de relatos, contactos e conversas e, sobretudo, do que chega à Polícia Judiciária, pois só essa depende de mim".

Depois de salientar a sua preocupação de "não intrometer as funções civis que desempenha com as funções militares dos generais seus camaradas", o Governador acentuou: "Relativamente aos generais, de resto, algumas restrições foram feitas, nos últimos tempos, por jovens oficiais generais".

E a terminar:

"Há um grupo de generais que entenderam que só poderiam tomar uma posição firme e importante relativamente à situação que se passava no nosso país, se obtivessem a convicção de que, com a posição que estavam resolvidos a tomar, não iam destruir a Instituição Militar, nem a sua Pátria, nem apunhalar pelas costas os camaradas que combatiam no Ultramar, nem desonrar a memória dos que ali tinham morrido"».

«EXPLICAÇÕES A INCRÉDULOS» (Entrevista a Silvino Silvério Marques concedida a Carlos Pinto Coelho e baseada nas perguntas lançadas para o ar, quando a gravação ia ser iniciada, por um locutor do «Rádio Club Português» como surpreendente remate de outra entrevista do autor que havia sido gravada dias antes por aquela estação. Publicada no «Diário de Notícias», de 23 de Julho de 1974).


«Na origem deste contexto da desolada vida angolana surgira em Luanda, em Julho de 1974, a "branca flor", o almirante de pacotilha Rosa Coutinho, com o seu braço armado, um triunvirato tenebroso constituído pelos majores Pezarat Correia e Emídio da Silva e pelo capitão Batalha, amparados por satélites do MFA, muito "esquerdistas". Pairando sobre esta camarilha, o comandante Correia Jesuíno, mentor da Comunicação Social. Na Junta Governativa, além de Rosa Coutinho, o general Silva Cardoso e o comodoro Leonel Cardoso.

Sou testemunha das felonias praticadas por eles. Da sua campanha de raivas desvairadas, inspirada em ideologias estranhas ao povo português e até à idiossincracia dos autóctones angolanos.



Pezarat Correia










Não os travaram escrúpulos para chegarem aos objectivos previamente marcados na estratégia leninista e em que os próceres revolucionários portugueses são meros comparsas, títeres puxados por cordelinhos visíveis, maorinetas que se agitam e estouvadamente dançam ao som e ao ritmo das "balalaikas", músicas aberrantes, que não podem ter eco no peito dos portugueses.

Assim se esboçou o bailado macabro de Rosa Coutinho, que vagueou pela castigada terra de Angola, Judas sem honra, sem integridade, sem patriotismo. Não vendeu os portugueses ao diabo por trinta dinheiros, mas, vilmente, trespassou-os em leilão de escravos, a quem pagou mais no mercado do Leste.

Rosa Coutinho empurrou-nos, inexoravelmente, para o abismo. Patrulhas do MPLA substituíram, por ordem do "almirante vermelho", os agentes da PSP. Raramente as autoridades portuguesas intervinham, mantendo-se à parte, no gozo mórbido de escandalosos desmandos. Quantos mais morressem, menos regressariam a Portugal. Isso não obstou a que se expulsassem os primeiros oito portugueses, entre os quais o capitão Mendonça. As vítimas pagaram como se tivessem sido algozes.

A nomeação do almirante Rosa Coutinho para presidente da Junta Governativa desfez as nossas últimas dúvidas, que de esperança já não falávamos. Demasiadamente conhecíamos a sua cor política, o ódio e o desejo de vingança que alimentava contra a FNLA que o aprisionara no Zaire, que o mantivera no cárcere, que o sujeitara a sevícias e indignidades que ele talvez só não perdoava, porque tinham sido praticadas em público. Que um elemento da PIDE tivesse arriscado a vida para o libertar não contava para ele. Ia para Luanda sem intuitos de equilíbrio ou de justiça. Ia, não para governar, mas para obedecer às ordens dos seus mentores políticos e para se vingar. De antemão o sabíamos.

O capitão Seara procurou-me para me comunicar que ele e o seu grupo iriam ao aeroporto abater Rosa Coutinho, mal ele desembarcasse do avião. Tentei dissuadi-lo num primeiro encontro. Insistiu. Veio de novo, acompanhado por três "gorilas". Medidos prós e contras, convenci-o de que a consumação do atentado acarretaria terríveis represálias para a etnia branca e prejudicaria, irremediavelmente a FRA.

Rosa Coutinho (a "branca flor") teve os seus percalços, possivelmente assustou-se com determinados tipos de alteração da ordem pública, decerto provocados, muitos deles, por infiltrações de elementos da LUAR e de agentes do PCP. Daí, impor o recolher obrigatório às 21 horas.

Na primeira noite, a população foi para a rua em massa. Intermináveis filas de automóveis buzinaram até o raiar do sol. As bandeiras da UNITA flutuaram em ruas e largos, agitadas com frenesi.

Um pandemónio, de absoluto desrespeito por Alva Coutinho. Desfeiteando-o abertamente, a multidão percorreu a noite, gritando e aclamando Portugal e a UNITA, vexou, agravou e insultou o presidente da Junta Governativa. "Democraticamente". Rosa Coutinho quedou-se, mudo, no palácio.

Fosse como fosse, a vida degradava-se, com a multiplicação de conflitos. Chegou-se à ofensa suprema de arriar a bandeira nacional no muceque do Golfe, de a espezinhar e rasgar, substituindo-a pela do MPLA, perante a passividade de forças portuguesas.

Isso foi razão de um episódio que retrata, fielmente, Rosa Coutinho.

Sentindo o insulto no coração, a etnia branca dirigiu-se ao palácio para manifestar a sua indignação. À frente, a senhora Emília Ferreira, vendedeira de peixe no mercado de Quinaxixe, Maria da Fonte angolana, que, ao volante de um camião se embrenhava na mata, a fim de transportar alimentos para a UNITA, de que era aderente.















Ver aqui e aqui



Maria Ferreira, com um grupo de companheiros, entrou no palácio e desafiou Rosa Coutinho. Das palavras se passou aos actos e houve quem deitasse as mãos ao pescoço do marinheiro fantoche, que, apavorado, saltou por cima da secretária, para fugir pela janela do gabinete.

Rosa Coutinho, que sempre se mantivera imperturbável, cumprindo ordens "vermelhas", que não atendia queixas, nem reclamações, porque, para ele, tudo se resumia a boatos, desta vez convenceu-se, finalmente, de que nem tudo eram boatos. Estou a imaginá-lo, orelhudo e ridículo, a pular para a mesa, na cobardia da fuga.

Descobriu, no incidente, uma das raras verdades que viria a proferir mais tarde, em Lisboa: Angola não era para timoratos.

(...) Rosa Coutinho viajou para Lisboa, onde produziu muitas afirmações interessantes, mas só duas verdadeiras: a de que 85 por cento da população de Angola ainda não optara por qualquer ideário político, cabendo aos brancos escolherem, de acordo com as suas convicções, um dos três movimentos de libertação [salvo seja!]; e que Angola não era para timoratos.

Simplesmente, o "almirante vermelho" olvidou que os brancos tinham de ser timoratos porque não podiam enfrentar, desarmados (e fora ele quem lhes roubara as armas), os militares, os movimentos de libertação e os marginais que infestavam a cidade.

Quem habita a civilização, uma cidade ordenada e em paz, não concebe o que foi a vida em Luanda nesses tempos. Saqueava-se, roubava-se e matava-se, dia e noite, no centro ou nos subúrbios.

Rosa Coutinho voltou a Luanda, quando se realizou a famosa conferência entre uma delegação portuguesa e outra da FNLA, a bordo do iate Mobutu, no rio Zaire. Perdi, como numerosíssimos documentos do meu arquivo pessoal, a minuta do encontro. Em todo o caso, sei que se esclareciam e definiam posições, comprometendo-se a FNLA a respeitar antigos combatentes e que aceitaria o prazo de um ano para a transferência de poderes. O acordo consta de um comunicado da FRA, que bastante contrariou os que o queriam manter em segredo.

Em 7 de Setembro de 1974, deu-se a revolta dos adversários da FRELIMO, como repúdio pela entrega de Moçambique, acordada em Lusaka, à minoria liderada por Samora Machel, e desagravo pelo enxovalho da bandeira nacional, arrastada pelas ruas de Lourenço Marques. Negros desvairados cometeram as maiores vilezas. Contra eles, os portugueses saíram de suas casas, entre os quais Gomes dos Santos, símbolo da razão dos homens espoliados; e o dr. Vitor Hugo Velez Grilo, meu amigo de sempre e irmão por ideal. A capital moçambicana estremeceu, no espasmo final de uma cidade civilizada.

(...) À lupa de um pragmatismo desapaixonado, o Acordo do Alvor fez recuar os angolanos em décadas de civilização. Vaal Neto, instruído e consciente, desabafou, eufórico, na vitória de um grande comissário, mal chegou a Luanda, vindo do Algarve: "Porreiro! Com a independência, irmãos, já não precisamos de trabalhar!" A Pátria dos angolanos eram os portugueses que lha davam. Os mentores do "25 de Abril" quiseram ignorá-lo. Negaram muitas das realidades positivas da acção dos portugueses em África.

Arredaram as causas para se aferrarem à superficialidade dos efeitos. Construíram sobre areia, viciaram o baralho, desfalcando-o do realismo e abusando da sincera honestidade dos parceiros.

Durante séculos, os portugueses ousaram lutar pelo seu destino. Em Alvor não enfrentaram os próprios sentimentos. Gatos a retirar sardinhas das brasas, taparam os ouvidos ao passado e assinaram a rendição do Ultramar. E os que lá estavam? E os que estavam cá?

Foi desprezada a História e a Razão. Em Alvor, calcaram honra e dignidade. Entretanto, séculos fora, oferecera-se uma Pátria aos que a não tinham. Uma língua aos que se desentendiam nos dialectos. A paz, aos que se combatiam. A valorização da economia, sem desarticular ancestralidades.

O Velho do Restelo apodou de loucura a era dos Descobrimentos. Alvor confirmou que foi ele o único português com os dons de um mágico profeta. Mas apetece dizer, como Dante, na Divina Comédia: "Por mim, por aqui, se vai parar à cidade das lágrimas e da dor".

O Governo de transição tomou posse em 31 de Janeiro de 1975.

De início se viu, pela heterogeneidade dos seus membros, pela sua vaidade, pelo seu orgulho "de destruição", que não dobrariam o Cabo das Tormentas.














Chegada de Agostinho Neto a Luanda (4 de Fevereiro de 1975).








Agostinho Neto e alguns dirigentes do MPLA






















Ministros e secretários, na arrogância de altos cargos para que não estavam preparados; no desconhecimento da actualidade angolana, motivado por anos e anos de exílio; na petulância do mando irreflectido, não aceitaram os préstimos da etnia branca, que, lealmente, queria colaborar na obra de um país novo. Astros guindados à pressa para o firmamento politico, cada qual "puxava" para o grupo étnico a que pertencia. Nenhuma bússola os pôde guiar para o caminho da unidade.

Tanto se desentendiam, que os comunicados oficiais eram lidos em português e repetidos em sete línguas que eles chamavam nacionais, mas que eram, apenas, dialectos. Uma como que unidade-desunião, que porfiaram por emendar pelos mais ineficazes meios.

Leis, ninguém as cumpria. Era a inversão dos valores, a anarquia em todos os sentidos.

Em princípios de Outubro, o MPLA, embora tivesse expulsado de Luanda os outros dois movimentos, escassas ilusões alimentava, porque a sua administração se confinava a parte dos distritos de Luanda, do Quanza Norte, do Quanza Sul e a bolsas de Malanje e de Henrique de Carvalho.

Em 11 de Novembro festejou-se a independência.

Na noite de 10 para 11, com mortos e feridos em funestos tiroteios, terminava euforicamente a presença portuguesa em Angola.

No céu escurecido, viam-se o rebentar das granadas de morteiros e as balas tracejantes em fogo de artifício que nos enlutava.

Dias antes, tinham sido retiradas as estátuas existentes em Luanda, excepto a de homenagem aos Combatentes da Grande Guerra, talvez pelo seu peso e volume, talvez porque pensem em a aproveitar, mudando-lhe as legendas. Fosse pelo que fosse, a "Maria da Fonte", como chamavam à estátua, lá ficou. As restantes foram despedaçadas entre arruaças e gritos da malta de selvagens, que nos fazia chegar lágrimas aos olhos. Tive a desfortuna de assistir à depredação dos monumentos a Luís de Camões e a Salvador Correia.

No dia 10, à tarde, o alto-comissário, Leonel Cardoso, mandou arriar a bandeira nacional, meteu-a debaixo do braço e embarcou numa fragata. Do navio, dirigiu a sua mensagem de despedida, fria e protocolarmente. Aparentemente, não o comoveu sentir que enterrava - maestro de uma peça fúnebre, que os vindouros condenarão - cinco séculos de História.

Agostinho Neto foi empossado, a 12, no cargo de Presidente da República Popular de Angola, numa cerimónia realizada no palácio.

Notou-se, de imediato, uma inesperada modificação dos negros. Mostravam-se menos arrogantes e ostentosos. Parecia ser possível restabelecer a convivência com eles, que se tinham quebrado barreiras de retraimento e desconfiança, acentuadas nos últimos meses.

Sol de pouca dura, todavia. A hipersensibilidade da população veio ao de cima, devido à escassez de alimentação. Protestavam e gritavam críticas ao Governo, já então angolano. "Que nos valeu mudar de bandeira e sermos independentes, se agora temos fome?" - ouvi num supermercado de prateleiras vazias.

E a fome é má conselheira. Os géneros em pequena quantidade e a preços fabulosos, produziram novos focos de desordem e de indisciplina social.

A "adjudicação" de Angola ao MPLA era, para nós, ponto assente pelo Governo de Lisboa, que, clara, sistemática e perseverantemente, apostara em retalhar o Ultramar português em Estados comunistas.

Descolonização, a partir do "original processo", é vocábulo de vergonha. Debruço-me sobre uma profecia, que alguém fez, em 1946: "Tempos houve em que os portugueses se dividiam acerca da forma de melhor servir a Pátria; talvez se aproximem tempos em que a grande divisão, o inultrapassável abismo, há-de ser entre os que servem a Pátria e os que a negam". Exemplar de genocídios - nisso o foi. Mais de trezentos mil mortos em Angola, segundo números divulgados pelos movimentos de libertação. Mais de trezentos mil mortos, em assassínios ou pela fuga desordenada ao martírio.




























Largo Diogo Cão (Luanda, anos 1960).






Benguela (anos 1950).





















Casino da Senhora do Monte (Sá da Bandeira, anos 1960).



Capela de Nossa Senhora do Monte (Huila, Sá da Bandeira, anos 1960).















Malanje (anos 1960).


Vila Salazar (anos 1960).



Pungo Andongo (anos 1960).










Fuga de Angola




















Catorze anos de guerra em 3 frentes coloniais não custaram tantas vidas [nem de perto nem de longe].


Pairando acima dos culpados, a figura em corpo inteiro dessa caricatura paradoxal de militar e político, balanceando-se, como boneco sempre-em-pé, entre o sim e o não, untuoso e ambíguo, aplaudindo prepotências e sancionando desmandos contra quem esteve a seu lado e o serviu: Costa Gomes, que foi comandante-chefe das Forças Armadas em Angola. Um general que mudou de pelo como a osga, requintado no mimetismo do camaleão. Leiam-se o "Extracto de Entrevistas que Definem a Doutrina Sócio-Político-Militar do Comandante-Chefe em Angola - general Francisco da Costa Gomes", edição da CCFAA, Luanda, 1972. E tirem-se conclusões, comparando o seu comportamento depois do 25 de Abril.

Deixei para o fim Mário Soares, ilusionista do socialismo, o "bolacha", como o alcunhavam os alunos do Colégio Moderno. (...) Mário Soares terá de ser julgado, por muito que me doa. Jactando-se de ter acabado com os ricos em Portugal (melhor fora que tivesse acabado com os pobres), Soares sujeitou o seu partido a cão de caça do PC, sujeitando-se a ser capa das sujas lucubrações de Cunhal. E ei-lo, misto de menino de coro e de menino-demónio, a precipitar a tragédia. A descolonização não pode ser descrita em algumas pinceladas, muito embora de cores sombrias. Há que lhe dissecar as causas, enumerar os malefícios, retratar os autores, carregar-lhe os contornos sem tibiezas, sem ódio sufocante, nem piedade hipócrita dos falsos cristãos. Para crime tão monstruoso é indispensável reflectir, averiguar onde começa a desonra dos responsáveis, onde acabou a desvergonha dos vendilhões.

A descolonização bem merece que se lhe dedique um livro branco, em que seja exposto e narrado em pormenor o calvário de quantos deixaram, em África, a  vida, os bens, o coração. Um livro branco sobre os vivos e os mortos, em que os vivos são os mortos e os mortos são os vivos. Um livro branco que estabeleça os parâmetros dos territórios onde pousou a traição.

Sorriam-se de troça ou a pele se lhes arrepiava de horror, quando os opositores do antigo regime repetiam a frase de Salazar: "Estamos orgulhosamente sós".

Passado o histerismo de uma liberdade que o não é, abertas as janelas do País para o Mundo, bradando, em gritos de "vencedores", que descolonizámos, ficámos "vergonhosamente sós".

"A Europa está connosco - vangloria-se Mário Soares: Qual Europa? Quais os estímulos moral e material que recebemos dela?

Desfaçatez? Desequilíbrio mental? Megalomania? Ginástica política?

A quem serve a demagogia?

Mário Soares, pregoeiro de um País em leilão, não se deteve no preço. Muito? Pouco? Nada? Como se desfolhasse malmequeres... Se a Europa está connosco!...

As lágrimas não podem ser gargalhadas. O silêncio, na barra do tribunal popular, é pactuar com os criminosos.

Eu, refugiado, não me calarei».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«No caso de Angola, aquando da nossa data de referência [24 de Abril de 1974], podemos afirmar que, pelo menos aparentemente, a guerra, naquela Província, estava ganha! Isto, se considerarmos que um conflito daquele tipo pode ser definitivamente ganho, o que não creio, pois as ideias permanecem.






(...) E assim, se é certo que a origem do problema continuava - a ideia e o desejo de alguns sectores da população pela independência de Angola - também é verdade que, sob o aspecto militar, o problema estava, naquele tempo, praticamente solucionado a nosso favor. Aliás, em declarações públicas de muitos dirigentes do MPLA, UNITA e FNLA, há o reconhecimento de que, na nossa data de referência, aquelas organizações estavam praticamente aniquiladas no plano militar.

Também a boa situação económica então vivida pela Província, com um desenvolvimento muito acentuado, dava plena satisfação às populações que, acima de tudo, o que queriam era viver bem e em paz. Este facto ajudava também muito a manter um forte e seguro controle militar, consolidando a segurança de todo o território».

Coronel José Moura Calheiros (in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).


«Meus caros

Estou a enviar-vos um documento que considero importante. O Ultramar, o conflito 1961/74, o 25 de Abril e o 25 de Novembro, a descolonização, a construção da Democracia em Portugal com todas as suas dificuldades marcaram completamente muitas das nossas vidas, como militares e combatentes, diplomatas, políticos e governantes, professores e investigadores, cidadãos interessados e até nas famílias, havendo sempre mais elementos que ajudam a uma melhor compreensão dos anos 60 e 70.


Este é um deles: ultimamente têm aparecido algumas teorias ideológicas que afirmam que a Guerra do (então) Ultramar estava ganha ou controlada.


Decorreu em 12/13ABR no Instituto de Estudos Superiores e Militares (IESM) mais um Seminário sobre o assunto: em 1996 e 1999 no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM) e em 1997 no Instituto de Defesa Nacional (IDN) também já haviam sido feitos Colóquios e Seminários sobre o assunto.


As conclusões oficiais deste último Seminário querem impor a tal versão da vitória ou do controlo.


Este texto, da autoria dos Coronéis Matos Gomes e Aniceto Afonso (que muito têm investigado e escrito sobre o conflito) vem contrariar tal tese com dados concretos e factuais, muitos desconhecidos da maior parte; não é um texto ideológico, é um texto de informação séria e muita rica.


Explica a situação concreta na Guiné, Angola e Moçambique, bem como as questões político-militares e sociais que se viviam nas 3 Províncias Ultramarinas, bem como em Portugal.


A descolonização é outra história.


Que cada um tire as suas conclusões.


Melhores cumprimentos,


Garcia Leandro



"A descolonização é outra história"

Outra história? Que outra história? Será assim tão difícil de ver que uma coisa decorre da outra?

Vejamos se entendo: O país lutava em três frentes de guerrilha, em três T.O. diferentes, separadas de milhares de km. Segundo os autores do documento a situação militar estava incontrolada e parece que o General Garcia Leandro também concorda; por causa disso o Movimento das Forças Armadas (não confundir com Forças Armadas) faz o golpe de Estado em 25 de Abril de 1974 - e eu a julgar que tinha sido por causa das ultrapassagens nas promoções pelos milicianos; a seguir a Junta de Salvação Nacional escorada no MFA, vê-se confrontada com uma atabalhoada sucessão de eventos que levam a um cessar-fogo e a uma transferência de poderes para a guerrilha em que nada se acautelou - parecia a derrocada da frente oriental na I Guerra Mundial depois dos alemães terem introduzido o Lenine, na Rússia, e os sovietes terem provocado a revolução de Outubro; a seguir produz-se, num curtíssimo espaço de tempo, a transferência de soberania para os movimentos de guerrilha (leia-se marxistas), sem quaisquer outras considerações, manobra que, em tempos, tiveram o despautério de classificar de "Descolonização Exemplar", com tudo o que isso acarretou, e agora o General Garcia Leandro vem dizer que isto é "outra história"?

Assembleia Legislativa, 1976. Garcia Leandro (à esquerda) foi enviado pelo MFA para Macau a seguir ao 25 de Abril; pouco depois substituiria Nobre de Carvalho no Palácio da Praia Grande.


Porquê? É à pala de quê?

Os intervenientes foram outros? Os responsáveis foram outros? Os figurões civis que, de repente, apareceram em cena foram chamados por quem? Quem é que lhes deu carta de alforria? Quem autorizou as forças partidárias a surgirem como cogumelos e anarquicamente?

Quem deixou o caos apoderar-se da rua?

Outra história? Perdão, a história é a mesma e os factos sucederam-se e encaixaram-se uns nos outros como numa luva.

Outra história era antes de se ter transformado uma situação vitoriosa numa sucessão criminosa de eventos.

Quando se dá um passo grave, como é o de fazer um golpe de estado, tem que se pensar no dia seguinte. Senão é uma irresponsabilidade.

Infelizmente as coisas passaram-se basicamente do seguinte modo:

Cerca de duas centenas de capitães e poucos majores, na sua maioria ingénuos e mal preparados, em termos de ciências sociais e sobre aquilo que se passava no mundo (quantos saberiam fazer uma redacção, de uma folha A4, a explicar o que era a Democracia? 20%, 30%? A avaliar pelo que se passou num dos últimos aniversários do 25 de Abril, ainda há alguns que não sabem...), resolveram avançar (e não parece ter sido por julgarem que a guerra estava perdida - ou já sabiam o que agora vem plasmado no documento?) para derrubar não só o governo de então, mas o próprio regime, que vigorava.

Após uma tentativa falhada (o 16 de Março) deixaram-se infiltrar pelo PCP e outros de fama duvidosa e lá se coordenaram melhor para a noite de 24 de Abril. Como o governo tinha desistido de resistir, as acções desencadeadas tornaram-se um quase passeio.

Vitoriosos, juntaram-se à pressa sete generais (os que não eram, graduaram-se nessa noite) - não ficava bem na fotografia ter capitães à frente do país - liderados por aquele que tinha deixado de acreditar na sua missão na Guiné ou em quem a ambição falou mais alto.

Sentindo-se cheio de si, embotou-se-lhe a inteligência e nada saiu certo.

Afinal Lisboa não era Bissau...

À sua ilharga colocaram um sabidão mas de carácter mais "dúctil", que poucos dias antes tinha dado entrada no HMP, à Estrela, não fosse o diabo tecê-las. Acabaram, zangados, sem se falarem, e inimigos. Pudera...

Promovê-los a Marechal não resolveu o problema, nem apaga o passado.

Gomes da Costa também acabou Marechal, mas no exílio açoriano...

No próprio dia do golpe perderam o controlo da situação por uma razão simples: não instauraram o estado de sítio. A seguir suicidaram-se, começando a prenderem-se e a sanearem-se uns aos outros, sem quaisquer regras. Isto rebentou com a cadeia hierárquica, logo com a disciplina e a coesão.

O Poder caiu na rua de onde foi dirigido pelo PCP (única força organizada que sabia o que andava a fazer), e demais forças de "esquerda" e toda a sorte de arruaceiros.

Entrou-se numa espiral de loucura e desagregação com os resultados já mencionados a nível militar e nas parcelas espalhadas pelo mundo.















Observadores estrangeiros mais atentos classificaram o país de "manicómio em autogestão". Não estiveram longe da verdade.

Quando o país conseguiu sair do manicómio, em 26 de Novembro de 1975, estava completamente dilacerado e aturdido. Ainda hoje não se encontrou.

A Instituição Militar, aos poucos, foi descobrindo que, por uma razão ou por outra, tinha ficado de mal com todos e consigo própria. Ainda hoje está a sofrer as consequências disso e não recuperou disso.

Não é fácil fazer-se pior em qualquer parte do mundo.

Por isso a história não é outra, é simplesmente um contínuo.

Por isso a descolonização não é "outra história", é apenas a consequência de um processo que quem o espoletou não soube, quis ou conseguiu controlar.

Considerar a "guerra" injusta - que não era; fazer crer que a actuação do governo e das FAs era ilegal e ilegítima - que não era; ou dar a luta como perdida no campo militar é, de facto, a única justificação que pode tentar desculpabilizar intenções, minimizar erros, ou serenar consciências.

É triste e é pena».


João José Brandão Ferreira («A Guerra no Ultramar 1961-1974», in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).



«A ocupação, pelas Forças Armadas, do edifício do antigo Ministério do Ultramar para instalação do Estado Maior General que, durante 13 anos, havia conduzido a guerra do modesto edifício da Cova da Moura, exactamente na altura em que as responsabilidades militares se reduziam com a entrega e o abandono da maior parte do país, e quando a avalanche dos refugiados chegava a Lisboa, e a consequente dispersão e destruição dos seus importantíssimos arquivos, constitui um dos grandes crimes do "processo revolucionário". Entre a delapidação de valores que pertencem a todos nós, tem-se conhecimento de que uma rica colecção de selos ultramarinos portugueses, desde sempre religiosamente conservada no Ministério do Ultramar, foi objecto de várias apropriações. Num dos actuais Ministérios encontravam-se, há meses, várias caixas com selos daquela proveniência que se destinavam a ser oferecidos a altas entidades revolucionárias...».


Silvino Silvério Marques («Portugal. E Agora?»).


«O movimento consumado no dia 25 de Abril de 1974, acarretou uma considerável viragem na história de Portugal, e os ventos da história saídos de tal movimento passaram a soprar de quadrante inverso.


Facto histórico particularmente afectado por esses novos ventos foi a guerra travada por Portugal, contra os movimentos que contra nós pegaram em armas, nos nossos territórios de África.


A muitos dos fazedores do 25 de Abril (recordamos que poucos foram os que de imediato perceberam o que aconteceria ao Ultramar e automaticamente se afastaram da aventura), marcados pelos interesses corporativos e pelo desejo de ver a guerra terminada, importou de imediato iniciar uma narrativa histórica que, por um qualquer processo esquizofrénico, alcandorou a heróis os que nos atacavam e infamou os militares portugueses que, com brio e orgulho, cumpriram o dever de defender Portugal nas paragens de África.


Uma historiografia vesga que insiste em glorificar desertores, ao invés de louvar os muitos portugueses (alguns vindos do estrangeiro onde estudavam) que se voluntariavam para o cumprimento daquele dever.


Enfim, uma historiografia arregimentada, na verdadeira expressão da palavra, que busca explicar como "face a uma guerra perdida" ou "impossível de ganhar", se tornava imprescindível o movimento que, por outras razões (o que parece hoje já claro) puseram em marcha.


Os camaradas e "historiadores" do actual regime comuno-socialista: Joaquim Furtado, Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso.





Praticada por verdadeiros historiadores do regime, marcados por inultrapassáveis condicionantes pessoais, a história que se vem fazendo da guerra travada em África entre 1961 e 1974 é tudo menos isenta, desapaixonada, e, sobretudo, desinteressada. Porque feita pelo regime, e para o regime, tenderá a alcandorar-se ao estatuto de versão oficial, senão única».

Humberto Nuno de Oliveira (in Introdução a «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).



«O isolamento do Presidente do Conselho no Quartel do Carmo no dia 25, contra o que estava planeado em caso de emergência, o diálogo travado no Carmo ("Isto poder-se-ia ter evitado", disse o gen. Spínola. "Não é altura para recriminações", respondeu o Presidente do Conselho), a ausência de ligações, naquele dia, com o Presidente da República e com os ministros mais responsáveis, são factos que confirmam aquilo que se ouviu de duas importantes fontes distintas: a revolução havia sido posta, pelos gen. Spínola e Costa Gomes, à disposição do Presidente do Conselho que não aceitou encabeçá-la, nem se sabe tenha tomado disposições para a dominar. Isso justificaria a inacção do executivo e os comportamentos estranhos, verificados naquele dia. O 25 de Abril teria sido o pretexto para uma abdicação. O fácil sucesso teria resultado mais dessa circunstância do que da acção militar. E aproveitou, evidentemente, do prestígio e popularidade do gen. Spínola».

Silvino Silvério Marques («Portugal. E Agora?»).


«Vejamos a questão do "revisionismo histórico" que os autores [Matos Gomes e Aniceto Afonso] apelidaram de "persistente" e "ideológico" e dão como tendo tido início com a publicação do livro "África, Vitória Traída", escrito por quatro generais, em 1977, que tiveram altas funções de comando em África. Naturalmente que este seminário é tido como a última expressão deste revisionismo (será que o Núcleo Impulsionador das Conferências da Cooperativa Militar também foi conivente?), não sendo dado mais nenhum exemplo ocorrido pelo meio.

Convém referir os nomes dos quatro generais pois não são "uns quaisquer": os generais Bettencourt Rodrigues, Silvino Silvério Marques, Kaúlza de Arriaga e Luz Cunha. Não consta que, sobre eles, exista a mais leve sombra que possa manchar a sua competência, a sua integridade, o seu carácter ou o seu patriotismo.

Não deixa de ser curioso como é feita a alusão, eivada de menosprezo por quatro oficiais com brilhantes folhas de serviço e provas dadas no comando de tropas e, até em altas funções político-militares. Será que podem ser considerados menos avisados ou conhecedores do que a generalidade dos capitães que conspiraram para o 25 de Abril (onde se incluem Matos Gomes e Aniceto Afonso), da realidade dos teatros de operações, que estes últimos pela sua juventude e experiência, apenas podia ser parcelar ou de "ouvir dizer"? Ou será que assumem hoje, passados 40 anos, que sabiam tanto na altura como sabem hoje?

Lembra-se, ainda, que as decisões dos protagonistas devem ser avaliadas com o conhecimento que têm na altura e não por outras circunstâncias.


A acusação de que o "revisionismo histórico" é "ideológico" não deixa de ser caricato. Então as forças políticas que tomaram conta da rua (e do Poder) durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC) - onde os ditos cujos autores "militaram" - é que impuseram uma verdadeira ditadura ideológica relativamente ao que se teria passado no Ultramar (e não só); fizeram uma autêntica lavagem ao cérebro da população e dos ex-combatentes; prolongaram essas mentiras e estribilhos no discurso oficial, na maioria dos "media" e dos livros da escola - o que ocorreu por manifesta cobardia moral da maioria da população, dos quadros e chefias das Forças Armadas, para já não falar do "politicamente correcto" da partidocracia existente - e agora vêm apelidar de ideológica qualquer outra análise que contrarie as suas [ou antes desmonte ou descredibilize as suas], quando se quer recuperar algum equilíbrio [ou melhor, repor a verdade histórica] nas interpretações dos factos históricos e nas intenções (por vezes mais importantes do que aqueles) dos principais actores?


Começaram por relegar um milhão de combatentes para a prateleira da ignomínia e do esquecimento; diabolizaram a História dos seus antepassados, sobretudo a mais recente; afirmaram-se as maiores barbaridades - tudo sem direito ao contraditório - e agora (há meia dúzia de anos) que começaram a perder o monopólio dos microfones e o palco das entrevistas e do mercado editorial, vêm lançar mão desse labéu? Tenham vergonha!».


João José Brandão Ferreira («A Guerra no Ultramar 1961-1974», in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).







«Os anos passaram. Muitos outros hão-de ainda passar e a História, como se diz, fará o seu juízo. Durante aqueles anos, aguardei que os mentores da descolonização de Angola, libertos do fervor revolucionário e amadurecidos pela sensatez dos anos, viessem dizer a verdade nua e crua ao País, e assumissem as responsabilidades que lhes cabem na tragédia permanente em que Angola passou a viver. Isso não aconteceu e assim ficámos a conhecer melhor a estrutura mental desses personagens. Pelo contrário, manipulando despudoradamente a opinião pública, conseguiram cativá-la para as suas teses e atravessaram incólumes este quarto de século.

Naquilo que me diz respeito, afirmo que a descolonização, tal como se cumpriu, será considerada como o episódio mais catastrófico, mais desprezível e mais estúpido de toda a História de Portugal; naquilo que me diz respeito, e que é Angola, sei que é meu dever contribuir para a formulação do juízo da História.


Este livro é o meu contributo».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Muitos dos nossos políticos de hoje foram, antes do 25 de Abril, apoios importantes do inimigo de então, contra o qual se batia e por vezes morria, a juventude portuguesa de todas as etnias. Tomaram parte nas suas conspirações, na sua propaganda, nos seus desfiles, ajudaram-nos na diplomacia e na política. Entre eles houve os que fugiram ao cumprimento das suas obrigações militares, com a Pátria em guerra. Outros, embora tivessem combatido no Ultramar, não o compreenderam, nem ao seu país, que já então para eles se reduzia ao rectângulo europeu: na medida em que assim era, o seu serviço tornara-se mercenário.


Baseado em sentimentos elevados ou em interesses desprezíveis (a História o determinará), este comportamento foi um facto. Como que a justificá-lo, como que evidenciando necessidade de libertação de um complexo insuportável, após o 25 de Abril, logo gente dessa intoxicou o nosso povo, lançando labéus de "colonialismo", "imperialismo", "exploração", "racismo", etc., etc., labéus que desde há muito o inimigo, em plena guerra, não encontrava clima para tão impúdica e profusamente gritar.


A chamada "descolonização", com seus trágicos erros e crimes, é a aplicação daquele desamor, daquela hostilidade para com o Ultramar».


Silvino Silvério Marques (Depoimento publicado no semanário "Rossio" em 29 de Setembro de 1976).



«(...) a situação agravou-se e o incêndio avançou até ao interior. A população branca estava positivamente em pânico e só queria fugir fosse para onde fosse. Organizaram-se colunas de viaturas com rumo ao Sul. Não tinham tempo a perder. Os pretos afectos à FNLA tinham invadido a cidade do asfalto e estavam concentrados por todo o lado, muito especialmente, em frente do palácio e junto ao Comando Naval. Uma mãe com o cadáver do filho nos braços pretendeu entregá-lo ao Alto-Comissário, tendo sido impedida pelos pára-quedistas. Por detrás duma das janelas ainda presenciei uma dessas cenas completamente derrotado e vencido pela comoção. Não era fácil olhar aquele mar de gente em desespero e nada poder fazer. Contactei o Leonel e disse-lhe, para com os navios de guerra disponíveis, começar a transportar aquela gente, vítima da traição que sobre o povo angolano caíra, para Sazaire onde dominava a FNLA. Assim se fez. Mas não era o suficiente porque o "incêndio" era, naquela altura, perfeitamente incontrolável e novos "focos" surgiam por toda a parte».


General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).



«Silva Cardoso confirmou nas suas memórias ter recebido instruções de Costa Gomes para travar o avanço da FNLA para Luanda, afirmando que isso significava "que teria de reforçar o MPLA, ou, pelo menos, cooperar com as FAPLA", acrescentando ainda de modo significativo:"Pareceu-me naquela altura ter decifrado o mistério da 'neutralidade activa': mantinhamo-nos neutrais mas passávamos a 'activos' quando o MPLA precisasse de ajuda!" O alto-comissário escreveu ainda que não cumpriu essa ordem do Presidente da República».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).


«O medo da derrocada, melhor, das consequências da derrocada, pôs em fuga as populações.


Desde logo, os menos afoitos, os menos corajosos, os mais interesseiros, os mais calculistas que, em apressado e egoísta balanço, avaliaram as vantagens e desvantagens de esperar pelos acontecimentos, escaparam-se do território. À formiga, disfarçadamente, contentes por salvar os bens.










Embarque para Luanda



Filas na TAP (Luanda).



Embarque no porto de Luanda


















Familiares de refugiados no quartel em Salazar, em Dalatando (1975).









A seguir, à medida que a instabilidade crescia, que a esperança se dissipava, maior foi o caudal dos que partiram. Luanda tinha, perante os olhos pávidos, a trágica repetição de Março de 1961: refugiados que vinham, frangalhos de seres humanos, despojados de tudo, até do vestuário. Esfomeados e feridos, na carne e no espírito. "Saneados" dos locais onde trabalhavam, onde muitos tinham nascido.

O êxodo principiou em Junho. Mas a grande avalanche verificar-se-ia em Agosto, Setembro e Outubro. O Governo de transição, com pouca eficácia, aliás, adoptou providências para facilitar a saída a quantos o desejassem, agrupados, nomeadamente, em Luanda, no Lobito e em Moçâmedes.


Numa insegurança sem fronteiras, a morte espreitava casas e artérias das povoações. Um minuto, um segundo de sobrevivência, desgraçadamente era dádiva de Deus. Até os mais animosos, os que teimavam em ficar, desistiam.


Horas e horas - infindáveis - as pessoas aguardavam a misericórdia de um lugar num avião ou num barco. Companhias nacionais e estrangeiras lhes valeram. Mas não a todas.


Dos que partiram, bastantes davam o salto para o desconhecido: nunca tinham pisado outras terras que não fossem angolanas. Alguns convenciam-se de que seriam acolhidos com humanidade em Portugal, como sucedia em férias endinheiradas. À chegada, aos que assim julgavam, a desilusão somou-se ao desgosto e à amargura de uma nova espécie de traição. Agora, não traziam dinheiro, nem prendas para familiares e amigos. Agora vinham rotos, sujos, estonteados de pavor, a febre nos olhos, as faces cavadas, ressequida a alma. Receberam-nos como indesejáveis contrapesos.

Se houve pessoas que, embora saindo precipitadamente, salvaram pequena parte dos bens, a esmagadora maioria deixou propriedades, depósitos bancários, viaturas, instrumentos de trabalho. Ainda menor foi o número dos que se furtaram a dias e dias de aflitiva espera no aeroporto, dormindo no chão, sem higiene, sem comer, numa horrorosa promiscuidade. Milhares de pessoas pejaram os acessos à salvação, rebanhos imundos e ansiosos, espreitando, insones, cada avião que chegava ou deslocava.

As comissões de trabalhadores do porto de Luanda, os sindicatos, o poder popular, sob qualquer pretexto opunham-se à saída de caixotes e viaturas. Roubaram automóveis, arrombaram malas, escolhendo, a seu bel-prazer, o que mais cobiçavam. Felizes os que embarcaram na base aérea, onde a correcção dos militares foi notável. Os restantes, porém, assistiram, impotentes, ao saque sistemático das suas bagagens, ante a passividade das Forças Armadas Portuguesas.

Luanda encheu-se do ruído dos caixotes, martelados dia e noite. Camionetas aguardaram, três e quatro dias, em filas de quilómetros, a oportunidade de descarregarem, no cais, toda a espécie de coisas, às vezes, nem sequer embrulhadas. Subiram, a níveis inauditos, os preços da madeira e dos fretes.

Em Outubro, o MPLA proibiu a saída de camiões e de carrinhas ou jipes de caixa fechada. Aflitos e acossados, os proprietários serram metais, desfizeram bancos, desmantelaram armações, no intuito de salvarem o que pudessem.

Na loucura que se apoderou de todos, a imaginação fervilhava. Os aviões e os navios não escoavam a torrente dos fugitivos. Organizou-se, por isso, uma caravana, de África para Portugal. Muita gente se entusiasmou. Tanta, que depressa tiveram de ser canceladas as inscrições. Cerca de dois mil veículos pesados e seiscentos ligeiros transportariam cerca de cinco mil pessoas. Tudo fora preparado: comunicações-rádio, assistência médica, cozinhas, alimentos, serviço de desempenagem. Estudaram um percurso que atravessava a Zâmbia, contornando a região de Brazzaville, prosseguida pelo Gabão e entrava em países mais hospitaleiros. Recorreram ao alto-comissário, à Cruz Vermelha, ao Governo de Lisboa, ao qual mandaram emissários. Foi animador o acolhimento e a compreensão que lhes dispensaram. No entanto, quebraram-se os elos da cadeia, porque o MPLA não os deixou passar pelas zonas sob o seu controlo.


"Tropas" do MPLA chegam para tomar a área da Baía de Luanda no dia 10 de Novembro de 1975.



O MPLA aquando da "independência" de Angola (11 de Novembro de 1975).




Material de guerra russo e cubano desembarcado no porto de Luanda, de Setembro a Novembro de 1975. 













Com a independência, o MPLA tornou-se ainda mais intransigente. Mais cruel. Mais desonesto... Impediu a saída de viaturas e haveres que considerava não pertencerem aos seus legítimos donos, mas a Angola. Máquinas de costura, tornos portáteis, pneus, ferramentas, um ferro eléctrico, passaram a ser do Estado angolano (ou de qualquer dos seus maiorais, como é o meu caso: o recheio da minha habitação conforta, hoje, um dos líderes do MPLA).

Durante este período, principalmente depois da chegada dos cubanos e das confrontações dos movimentos de libertação, quase toda a gente foi dominada pela psicose do medo, a par da obsessão da fuga, desordenada e sem atender às condições em que era empreendida. Das águas de Luanda, do Lobito, de Benguela e, principalmente, de Moçâmedes e Porto Alexandre, traineiras superlotadas levantaram ferro para a África do Sul, na maior parte para Walvis Bay. Houve naufrágios, nos quais muitos pereceram. Outros, arrojadamente, aventuraram-se a cruzar o Oceano, para Portugal e para o Brasil.

De Silva Porto, de Nova Lisboa, do Luso, grupos mais ou menos numerosos embrenharam-se na mata e calcorrearam a distância que os separava da África do Sul, onde os alojaram em campos de concentração e os trataram com humanidade. Para o norte foram os que queriam atingir Kinshasa. A etnia negra preferiu, em regra, acolher-se à Zâmbia e ao Zaire, pedindo às autoridades transporte para Lisboa, porque não queriam perder a cidadania portuguesa. Caminhadas dramáticas, sem alimentos e sob a intempérie. Em média, morreram oito crianças por dia.

É difícil calcular o tal dos fugitivos, até porque há que contar com o número indeterminado dos desaparecidos. Contudo, no Zaire, estiveram mais de vinte mil negros; na África do Sul, cinquenta mil pessoas, entre brancos, negros e mulatos, incluindo os que vieram de Moçambique; na Zâmbia, vinte mil.

Falei [já] nos mortos causados pela descolonização: trezentas mil pessoas. Acrescento agora que, ou foram pura e simplesmente assassinadas, nos centros populacionais; ou tombaram, durante a fuga, às balas dos movimentos "libertadores" e das tropas estrangeiras (leia-se cubanas e russas); ou por doença e inanição; ou porque a má-sorte os colocou no meio dos combates que o MPLA, a FNLA e a UNITA travavam.

Um exemplo, ao acaso, do genocídio angolano. Em Moçâmedes, quando homens, mulheres e crianças procuravam ir para bordo de rebocadores, de traineiras, de pequenos barcos a remos ou à vela, foram atacados por forças da UNITA, que se deram ao luxo de incendiar tudo o que estava no cais, viaturas e caixotes. Se alguns se salvaram, devem-no à intervenção dos guerrilheiros da FNLA.

(...) Um milhão e quatrocentos mil refugiados é o cômputo que faço do êxodo dos angolanos. Em Portugal, um milhão e duzentos mil. Os restantes distribuídos pela África do Sul, pela Rodésia, pela Zâmbia, pelo Zaire, pela Austrália, pelo Brasil, por vários países mais.

Em Angola, quedaram-se no máximo, vinte mil pessoas da etnia branca: aderiram ao MPLA, por oportunismo ou convicção. Quase todas, no entanto, por oportunismo. Há cidades despovoadas de brancos. Outras têm dois ou três. De qualquer maneira, a etnia branca em Angola dispersa-se, principalmente, por Luanda, Benguela e Lobito.

Vista aérea da baía do Lobito (1974).



Confrontos MPLA-FNLA no Luso



Guerrilheiros da UNITA



Malanje (1975).



Malanje: cidade-fantasma em plena guerra civil (1975).


Esses, os que ficaram, aceitaram um quotidiano de subserviência e enxovalhos. As raparigas (por informações dignas de confiança) sujeitaram-se às maiores indignidades, para captarem a simpatia dos aderentes do MPLA.

No que me toca, fui, repetidamente, ameaçado de morte. Resisti, enquanto pude, às angustiadas súplicas de minha mulher. Acabei por ceder, receando que ela enlouquecesse».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).



«(...) na mais recente descolonização dos povos africanos, explicará ela [a implicação entre o comunitarismo dos bens e o comunitarismo das mulheres] que, com a reivindicação dos bens dos colonizadores, os negros tenham reivindicado também a posse das mulheres dos brancos?».


Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).






A PERDA DO ULTRAMAR PORTUGUÊS E OS RELATIVOS «MITOS» E FALÁCIAS PROPALADOS PELA VERSÃO OFICIAL DOMINANTE


A Guerra era insustentável e impedia o desenvolvimento do País


«A identidade de interesses é o mais seguro dos vínculos entre Estados ou indivíduos».

Tucídides


Apesar de então se viver relativamente bem em quase todo o país - sem embargo da existência de algumas manchas de pobreza - e de não se ter verificado nenhuma recessão económica ou social, começou a espalhar-se o boato, sobretudo na metrópole, de que os recursos gastos nas operações militares estariam a invibilizar o desenvolvimento da nação nas suas diversas vertentes. Sendo assim a pergunta que se colocava aos espíritos mais timoratos e pusilânimes era esta: será que Portugal é capaz de aguentar um desafio tão colossal? Os «velhos do Restelo» da época, claro está, diziam que não. E, como sempre, estavam errados.

Portugal é uma nação consolidada desde finais do século XIV. É, além disso, a nação da Europa que mais cedo definiu as suas fronteiras, conseguindo mantê-las estáveis até à actualidade (Tratado de Alcanizes, de 1297). O povo português, apesar da mistura de sangues que lhe corre nas veias, possui uma notável homogeneidade cultural e um apego fora do comum à individualidade. As sequelas deixadas pela questão religiosa, imposta pela Inquisição, estavam há muito ultrapassadas. Mesmo as feridas da Guerra Civil entre Liberais e Miguelistas, ainda não completamente saradas, deixaram de ter peso político depois da proclamação da República. A manutenção do Ultramar constituía um objectivo nacional permanente dos últimos 550 anos, que nenhuma vicissitude, nenhum governo, nem nenhum regime tinha posto em causa. E, ao longo de todo este tempo, nunca os portugueses regatearam esforços ou pouparam vidas para defender tal objectivo.

Enquanto a maioria da nação fosse capaz de compreender e de aceitar tal desafio, a nossa capacidade de resistência iria até ao limite mais extremo. Chegados a este ponto, perguntamos: será que essa força para resistir chegou alguma vez a estar perto do seu limite? Efectivamente não esteve. É certo que morriam jovens, que outros eram feridos e ficavam mutilados para o resto da vida, um facto lamentável, sem dúvida. Todavia, a verdade é que, por ano, morria mais gente nas estradas de Portugal continental do que nas três frentes de luta em África. E essas mortes não eram, afinal, para defender uma causa suprema, considerada justa pela maioria da população, o preço que a nação teria de pagar se quisesse continuar a sê-lo?

Sempre houve, aliás, um preço: a Espanha invadiu-nos dezoito vezes e a França três. Já lutámos contra Sarracenos, Ingleses, Alemães, Holandeses, Turcos e toda a sorte de forças indígenas, um pouco por todo o mundo. As Invasões Francesas mataram cerca de 10 por cento da população. Só na Batalha da La Lys sofremos, em 24 horas, 14 mil baixas e muitos outros exemplos poderiam ser apontados. As campanhas do Ultramar, ocorridas entre 1961-1974, causaram-nos, por seu lado, perdas humanas, numa média de 1,9 homens/dia e cerca do triplo de feridos. Era uma guerra de fraca intensidade, de desgaste lento, de nervos e de paciência. Era uma guerra à nossa dimensão.
















A guerra consumia-nos recursos? Sem dúvida, mas também é certo que nunca pôs em causa o progresso económico na parte europeia de Portugal (além de não ter havido regressão, a economia metropolitana chegou a 1974 com um crescimento de 7 por cento ao ano), e fez disparar inclusivamente o desenvolvimento dos restantes territórios, aliás como nunca tínhamos assistido em nenhuma outra altura da nossa História. A moeda era forte, o país não tinha praticamente dívidas, os cofres estavam repletos de ouro e divisas e podíamos recorrer a todo o crédito que desejássemos. Mais a mais, os recursos disponíveis para explorar eram vastíssimos (1).

Olhando agora para a questão de outro ângulo, não se entende como é que alguns portugueses poderiam recusar sacrifícios quando a nação estava a ser atacada em algumas das suas parcelas. Como é que os cidadãos podem, numa situação em que alguns territórios e respectivas populações se encontravam em perigo, recusar-se a fazer sacrifícios? E como podem preterir a segurança, a defesa, o direito e a justiça de uma causa em nome do seu bem-estar económico e social?

O argumento de que os portugueses estavam cansados da guerra - durava há 13 anos, o que segundo alguns «era demasiado tempo» - é relativo. A verdade é que os portugueses estavam habituados a todo o tipo de conflitos, muito variáveis na sua duração, como aliás a história militar de Portugal amplamente o demonstra. Em termos militares, o país possuía homens, material, equipamento, liderança, doutrina, organização, logística e informações suficientes, assim como dominava as técnicas e as tácticas necessárias (embora com falhas e limitações) para enfrentar as ameaças que até então (1974) tinham sido lançadas contra os nossos interesses fundamentais. Todas as tentativas do inimigo para contrariar a nossa acção ou desequilibrar o nosso dispositivo e determinação a seu favor tinham fracassado. A adesão das populações à causa nacional portuguesa era um facto insofismável que qualquer observador independente facilmente podia constatar. As imagens que registaram as visitas que o Presidente da República, o Presidente do Conselho de Ministros e os mais diversos ministros efectuaram aos diferentes territórios ultramarinos - mesmo descontando a «mobilização» promovida pelas autoridades - constituem, a esse respeito, uma prova indesmentível. Se o ódio aos portugueses e à política do governo central estivesse tão difundido pela população, seria pouco plausível que aquelas personalidades tivessem podido sido alvo de tão entusiásticas manifestações de apoio e tivessem podido deslocar-se a todos os pontos das províncias sem nunca se ter verificado o mais pequeno incidente e com níveis de segurança impensável nos dias de hoje em qualquer cidade europeia.

Em síntese, a guerra era sustentável em termos políticos, militares, diplomáticos, económicos, financeiros e sociais. A única coisa necessária era preservar a vontade de lutar na defesa daquela «maneira única de estar no mundo» que individualizava positivamente os portugueses no concerto das nações civilizadas. Ficavam assim cumpridas as três provas da estratégia: a adequabilidade, a exequibilidade e a aceitabilidade. Por outras palavras, o objectivo traçado - manter a integridade de todo o território nacional - estava em total harmonia com os objectivos políticos e com a tradição histórica dos portugueses. E esse objectivo era independente do contexto internacional.

O objectivo era exequível, pois as diferentes estratégias, operacional, estrutural e genética, entretanto desenvolvidas, conseguiram gerar a organização, a doutrina, a estrutura e os recursos humanos, materiais e financeiros necessários para enfrentar as sucessivas ameaças que Portugal teve de suportar.

E nem o inimigo, consubstanciado nos movimentos de «libertação» de Angola, Guiné e Moçambique, bem como nos países que os apoiavam e que estavam espalhados um pouco por todo o mundo, tinha até então encontrado os instrumentos adequados para exercer uma pressão a nível político, diplomático, económico e militar, capazes de nos obrigar a ceder. De resto, havia apenas que conseguir que o ideal proclamado se mantivesse vivo no coração e na mente do povo português e das suas elites, demonstrando claramente que se tratava de um ideal pelo qual valia a pena combater e morrer.


Portugal, estava «orgulhosamente só» no mundo, e, como tal, isolado na comunidade internacional. E posicionava-se contra os «Ventos da História»


«A falta de personalidade das elites portuguesas constitui um perigo nacional permanente».

Artur Ribeiro Lopes


Ao longo destas páginas provámos sobejamente que a ideia acima transcrita não era correcta e que, além disso, precisava de ser enquadrada. Portugal sempre teve, desde a sua formação, a sua quota-parte de inimigos. Dois deles são clássicos: Castela, mais tarde Espanha, por nunca ter aceite que o nosso país se tivesse individualizado na Península Ibérica, o que sempre foi considerado pelos espanhóis como uma aberração geográfica e política; e os mouros, que mais tarde passaram a integrar a maior parte dos povos islâmicos - como os turcos - por se encontrarem em guerra com a cristandade (2).











Oração de D. Nuno Álvares Pereira antes da Batalha de Aljubarrota.















Os outros, depois de Filipe II ter unido as duas coroas, herdámo-los por serem inimigos de Espanha: os ingleses, os franceses e os holandeses, embora todos eles já estivessem habituados a desferir-nos ataques corsários no Atlântico, isto sem que os seus respectivos governos o reconhecessem oficialmente.

Posteriormente, e dada a espantosa epopeia dos Portugueses pelos quatro cantos do mundo, passámos a ter de defrontar muitas e diferentes forças gentílicas, sobretudo em acções de afirmação de soberania, cujos ataques eram inspirados, na maioria dos casos, pelas potências atrás referidas.

Finalmente, já no século XX, passámos a contar com um novo inimigo - a URSS - após o triunfo da revolução comunista de 1917. Além da União Soviética, por arrastamento natural, todos os países que no mundo professavam a doutrina marxista-leninista converteram-se igualmente em nossos inimigos. A explicação é muito simples: Portugal, desde o início, repudiou liminarmente o sistema de governo e a filosofia de vida que se baseavam nessa ideologia. Com o tempo, o nosso país transformou-se-mesmo num dos grandes bastiões contra as ideias comunistas. Além disso, e sobretudo, a URSS nunca esqueceu ou perdoou a tomada de posição do governo português durante a Guerra Civil de Espanha, que contribuiu decisivamente para o sucesso das forças nacionalistas e, concomitantemente, para a derrota dos republicanos, maioritariamente comunistas e anarquistas.

Sem dúvida, os ataques movidos, após a Segunda Guerra Mundial, contra a presença de Portugal em África, no Oriente e na Oceânia, bem como a respectiva defesa, devem ser vistos à luz da evolução histórica dos acontecimentos, nomeadamente quando os nossos interesses e os das outras potências entraram em choque. Mas foi sempre assim e esse é o preço que temos que pagar para existirmos individualizados no concerto das nações. Não vai mudar... Deste modo, a expressão «orgulhosamente sós», desvirtuada ad nauseum após o 25 de Abril, não deve ser encarada com um sentido pejorativo, mais a mais se tivermos em conta, como antes ficou demonstrado, que a razão jurídica e histórica estava do nosso lado.

Claro que não era agradável ter uma parte considerável da opinião pública internacional, onde se incluíam alguns países ditos nossos «amigos», contra os ideais portugueses. Isso não quer dizer, no entanto, que tivessem a razão do lado deles, apenas que estavam, isso sim, a defender os seus próprios interesses. Não faz qualquer sentido pensar que um Estado ou uma nação alienem coisas que para si são vitais para ganharem a simpatia alheia.

Ainda assim, a diplomacia portuguesa conseguiu assegurar apoios suficientes para a causa portuguesa e impedir que vingassem as acções que pretendiam prejudicar seriamente o nosso país. Na realidade, o tempo corria a nosso favor. É importante relembrar que o nosso país fora fundador da NATO, em 1949, que aderimos ao GATT (3) e ao Banco Mundial em 1962, e ainda ao Fundo Monetário Internacional. Em 1955 entrámos para a ONU, a pedido dos EUA e da Grã-Bretanha, de onde nunca nos tentaram expulsar (aliás, a ONU e a OUA eram e são dois fóruns completamente desacreditados e ineficazes). Finalmente, a partir de 1973, foi estabelecido um acordo favorável com a CEE.

À margem desse contexto institucional, a verdade é que conseguimos manter abertas as linhas de comunicação marítima e aérea, pelo que não sentimos qualquer problema em garantir o normal funcionamento das nossas relações comerciais. As sanções políticas e económicas nunca foram por diante, e conservámos uma série de apoios firmes em países do mundo ocidental, com destaque para a Espanha, a França, a Alemanha e algumas nações com importância no mundo, como o Brasil, a Tailândia, a Etiópia, as Filipinas, etc. Nenhum dos países que faziam fronteira com os Teatros de Operações tinha capacidade militar para nos tolher os movimentos e alguns, como o Malawi e o Senegal, adoptaram comportamentos moderados. E os dois países mais ricos de África, a Rodésia e a República da África do Sul, estavam do nosso lado, formando um bloco coeso no Sul do continente.

Embora a política da Inglaterra e dos EUA estivesse sujeita a algumas oscilações, dependendo dos partidos que estavam no poder, nunca as pontes políticas e comerciais foram quebradas. Tendo Portugal demonstrado a firme determinação de permanecer em África, ao mesmo tempo que dava provas de que tinha capacidade e meios para o fazer, alguns sectores daqueles dois países começaram a ver com bons olhos a postura dos portugueses, até porque as nossas posições geoestratégicas não lhes eram totalmente prejudiciais. É natural que muitos não gostassem da nossa política (desde há séculos que tem sido assim) e que outros não concordassem com ela. Porém, havia também alguns - e eram os mais significativos do ponto de vista de Portugal - que diziam compreender tanto as nossas razões históricas, como a lógica jurídica que sustentavam a nossa causa. Uma coisa é certa, todos nos respeitavam e quando Portugal falava a sua voz era escutada (ao contrário do que acontece hoje). Percebe-se: os nossos argumentos morais eram poderosos, as nossas posições económicas e estratégicas eram singulares, ao passo que os nossos inimigos agiam de má-fé, disfarçando o peso da sua consciência com a máscara da filantropia. Como alguém disse, «em diplomacia o que parece não é» (4).







Franco Nogueira



E, caros leitores, independente é isso mesmo: é tomar atitudes e decisões soberanas sem ter de prestar contas a ninguém ou estar por outros constrangido! Se nos virmos perante a circunstância de termos de defender a nossa opinião contra as maiorias, então que seja. Afinal, as maiorias nem sempre têm razão! Mais a mais quando essas maiorias tinham todo o interesse em atacar o património dos portugueses.


A Guerra durava há muito tempo


«Eu já estou [...], o imediato que assuma o comando [...], não se rendam [...]».

Comandante Cunha Aragão, após ser ferido gravemente no meio do combate que o navio Afonso de Albuquerque travou com a marinha indiana, a 18 de Dezembro de 1961.


Mais uma vez, o fulcro da questão reside na vontade e na determinação das gentes, algo que se nutre da crença na justiça e da bondade das causas em nome das quais se luta. É certo que a guerra durava há muito tempo. No entanto, D. Afonso Henriques, por exemplo, esperou 36 anos para ver a independência do Condado ser reconhecida pela Santa Sé (5). Mais tarde, estivemos em guerra contra Castela durante 26 anos (1385-1411), contra a Espanha durante 28 anos (1640-1668) e contra a Holanda durante cerca de 80 anos! (finais do século XVI e quase todo o século XVII). Guerras que decorreram em quatro continentes e em outros tantos mares. Já para não falar das invasões francesas, que nos obrigaram a manter uma guerra de 14 anos, onde perderam a vida entre 200 mil e 300 mil compatriotas nossos. Os exemplos nunca mais acabam: a Guerra da Sucessão de Espanha (1705-1715) e a Guerra dos Sete Anos (1761-1768); os conflitos no Norte de África e nos mares contra os mouros, que se estenderam ao longo de dois séculos (XV e XVI); as sequelas da Conferência de Berlim e da Primeira Guerra Mundial, que suportámos durante décadas; até que chegámos ao século XX e tivemos de realizar numerosas campanhas de pacificação em África e em Timor.

Aliás, nos últimos cinco séculos e meio, raros foram os anos em que não nos vimos envolvidos numa qualquer campanha ultramarina. Mesmo assim, «tudo suportávamos de boa mente», como dizia Mouzinho de Albuquerque na sua carta ao príncipe D. Luís Filipe, «porque servíamos el-rei e a Pátria e para outra coisa não anda no mundo quem tem a honra de vestir uma farda». A listagem está longe de ser exaustiva, mas chega para mostrar que a História de Portugal se confunde quase com a história das nossas Forças Armadas. Os portugueses, não sendo um povo agressivo e nunca tendo feito a guerra pela guerra, formam indubitavelmente uma nação de guerreiros, que se viram perante a fatalidade, durante toda a sua história, de ter de pegar em armas para se imporem e defenderem. E se numa das mãos erguiam a espada, na outra levavam a pena ou a charrua, sem esquecer a cruz, que transportávamos ao pescoço, pois esse é o símbolo da crença religiosa em que fomos criados e que procurámos - segundo os ensinamentos dos apóstolos - espalhar pelo mundo já conhecido e por aquele que ainda faltava conhecer.

Duvidar da nobreza destes princípios só é explicável pela falta de fé e solidariedade para com a nação (e pelo desconhecimento, para não lhe chamar ignorância, da nossa História). Argumentar que a guerra durava há demasiado tempo é sempre relativo. De facto, em questões como esta, como é que se pode medir o tempo? Na verdade, trata-se de uma desculpa que esconde uma má consciência. E não faz qualquer sentido que esse argumento possa ser usado por oficiais do quadro permanente, pois em teoria eles podem ter de combater desde que se formam até que se reformam. Mas para bem combater é preciso estar de «boa mente», como dizia Mouzinho de Albuquerque.

E alguns deixaram de estar.


Portugal ia perder a guerra militarmente


«Tais oficiais e soldados são o orgulho dos chefes que têm a honra de os dirigir, exaltam o seu país e o seu rei, e bem merecem da Pátria».

Coronel Galhardo (sobre o comportamento das tropas portuguesas no combate de Coolela, Moçambique, 1895).


O mito que esta ideia representa é facilmente desmontável por qualquer análise, mesmo que superficial, dos acontecimentos. O inimigo não tinha qualquer hipótese de nos derrotar militarmente: nem com o armamento de que dispunha, nem com o número de homens que integravam as suas fileiras, já para não referir a sua deficiente instrução e número de quadros nem pelas tácticas que utilizava, nem pelas condições de vida em que combatia. Depois, o apoio com que contava entre as populações era muito reduzido e além disso esteve sempre minado por divisões internas, promessas não cumpridas e falta de perspectiva. Por outro lado, os países limítrofes que apoiavam a guerrilha não possuíam quaisquer meios de coacção eficazes contra Portugal e não se atreviam a atacar-nos militarmente. Se o fizessem, corriam o sério risco de sofrer represálias.

As Forças Armadas portuguesas não tinham, porém, capacidade para erradicar completamente a guerrilha, que por natureza pode funcionar com pequenos grupos de pessoas e com poucos meios. Além disso, não tínhamos hipótese de impedir o fluxo logístico na retaguarda do inimigo; o máximo que poderíamos conseguir era causar danos irreparáveis à guerrilha caso atacássemos sistematicamente os seus santuários, mas isso poderia acarretar uma escalada na guerra e causar sérios problemas políticos e diplomáticos. Mesmo assim, a verdade é que a superioridade militar portuguesa em relação ao inimigo era mais que óbvia e a campanha psicossocial realizada junto das populações estava a deixar a guerrilha com cada vez menos apoios.






As baixas que sofríamos eram suportáveis e metade das mesmas não estavam directamente ligadas com o combate, resultavam antes de doenças, acidentes com armas de fogo e, sobretudo, desastres de viação. Registe-se que as maiores catástrofes de toda a guerra se ficaram a dever a acidentes ocorridos durante a travessia de rios: na Guiné, 47 mortos na travessia do rio Corubal, a 6 de Fevereiro de 1969; em Moçambique, 101 mortos na travessia do rio Zambeze (Chupanga), no dia 21 de Junho de 1969.

Sendo assim, desde que não se verificasse uma mudança qualitativa e catastrófica para nós nas capacidades do inimigo, ou uma redução acentuada nas nossas - como por exemplo, perdermos a superioridade aérea, ou interditarem-nos as linhas de comunicação marítima e aérea, ou ainda alguns países tomarem a decisão de entrar directamente na contenda - Portugal não corria o mais pequeno risco de vir a ser derrotado militarmente. Excepto por vontade própria. Sabe-se hoje, sem qualquer sombra de dúvida, que a situação militar em Angola estava praticamente resolvida quando em 1974 ocorreu o 25 de Abril, não sendo motivo de maiores cuidados.

Em Moçambique, embora a questão militar ainda não estivesse sanada, a verdade é que também não existia qualquer perigo iminente ou qualquer ameaça séria que não pudesse ser repelida. De facto, com o alastramento da sua acção ao distrito de Tete (para contrariar a sua desarticulação no Planalto dos Macondes e no Niassa, bem como as suas acções infrutíferas contra Cabora Bassa), a guerrilha obrigou as Forças Armadas portuguesas a alargar o seu dispositivo, isto depois do enorme esforço que representou o envio de mais meios para defender o referido empreendimento hidroeléctrico. Para piorar a situação, as 12 companhias de reforço pedidas pelo comandante-chefe de Moçambique, para serem transferidas de Angola, não foram enviadas. A falta de pessoal foi sendo minimizada com a formação de Grupos Especiais e Grupos Especiais de Pára-quedistas de recrutamento local.

A guerrilha estava a ser combatida com sucesso e se havia algo que era necessário contrariar decididamente era as consequências a nível psicológico dos ataques terroristas, como ficou bem visível na já referida manifestação de brancos (e só brancos) realizada na Beira, de insatisfação contra aquilo que consideravam uma má actuação do Exército, e que foi exponenciado pela actuação de alguns prelados (bispos da Beira e Nampula) e pela exploração internacional do caso de Wiriamu.

No entanto, é importante sublinhar que a extensão da área afectada pela subversão não causou problemas apenas às nossas tropas, mas também ao inimigo que não tinha efectivos nem capacidade logística para manter pressão em tantas áreas (6). Acresce que as nossas dificuldades em termos de pessoal estavam a ser colmatadas com recurso cada vez maior ao recrutamento local, além de que as tropas que estavam a actuar em Moçambique poderiam ser reforçadas com unidades vindas de Angola. Aí, como noutros territórios, os portugueses nunca perderam a iniciativa estratégica, operacional e táctica. O mesmo se podia dizer relativamente à Guiné, onde o PAIGC endureceu a sua luta após o assassinato do seu líder, Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973. Vale a pena reflectir um pouco sobre a morte deste homem, que passa por ser o mais carismático entre todos os dirigentes da guerrilha que combateram a presença portuguesa em África (7).

No dia 20 de Janeiro de 1973, ocorreu em Bokê uma conferência com a presença de Samora Machel. No entanto, Amílcar Cabral e Aristides Pereira não estiveram presentes, tendo acorrido antes a uma recepção na embaixada da Suécia em Conakri. Quando regressaram ao quartel-general (e residência dos dirigentes do PAIGC), tinham à sua espera três guerrilheiros (Inocêncio Kani, Mamadú Touré e Aristides Barbosa) com a incumbência de os prender. Primeiro apanharam Aristides Pereira e meteram-no num barco no porto de Conakri. Depois, esperaram por Amílcar Cabral, que chegou acompanhado da mulher, Ana Maria, e de um jornalista russo. Quando se deu conta do que se estava ao passar, Amílcar resistiu e foi abatido a tiro de pistola por Inocéncio Kani. A mulher foi logo avisar as autoridades da Guiné, bem como os restantes dirigentes do PAIGC, que mandaram fuzilar de imediato os três guerrilheiros.

Posteriormente, circularam alguns boatos segundo os quais teria sido a PIDE a preparar toda a operação. O que não é verdade, mas se fosse, era lícito, porque Amílcar Cabral era um combatente inimigo. Além de que a sua morte só veio prejudicar os interesses nacionais. Com efeito, a morte de Amílcar Cabral, um moderado com forte cultura lusíada, beneficiou objectivamente a linha dura e marxista do PAIGC, que era apoiada, de resto, pelo sanguinário Sekou Touré. Consta que o PAIGC já teria recebido os mísseis SAM 7 (a DGS deu conta da sua existência, em 1972) e que Cabral se opôs à sua utilização, já que isso representaria uma escalada na guerra e porque, na sua opinião, os portugueses tinham mais capacidade para enfrentar uma situação dessas que o próprio PAIGC (a verdade é que o primeiro míssil só foi utilizado a 20 de Março de 1973, exactamente dois meses após a sua morte).





Amílcar Cabral





A morte do dirigente do PAIGC foi uma das razões invocadas para se aumentar o esforço militar (e ao mesmo tempo tentar moralizar as suas «tropas») contra as forças portuguesas. Um esforço que se concentrou em ataques continuados a dois aquartelamentos, um a sul (Guilege) e outro a norte (Guidage), com o objectivo final de os tomar. Estas ofensivas seriam protegidas pelos mísseis SAM 7, que neutralizariam a ameaça aérea portuguesa, capaz de bater o inimigo no terreno e assim inviabilizar a manobra. Não se pode dizer que o esquema não tenha sido bem montado.

Já vimos anteriormente como a ameaça dos mísseis foi neutralizada pelas tácticas aéreas postas em prática e, depois, pelo esgotamento do stock de mísseis em estado operacional. Guilege sofreu ataques duríssimos, o que levou o major-comandante a abandonar o aquartelamento sem autorização superior. Fê-lo contudo em boa ordem, levando toda a população consigo (para Gadamael), não sem antes destruir tudo o que poderia servir ao inimigo. Tratou-se de um acto de indisciplina pontual, apesar das circunstâncias atenuantes, mas que teve um impacto no moral do resto das tropas e poderia ter tido consequências gravíssimas. O major ficou preso em Bissau e o quartel não voltou a ser ocupado.

Guidage foi também duramente atacada, mas neste caso foi possível reforçá-la com uma companhia de pára-quedistas. Para aliviar a pressão e castigar o inimigo, a 19 de Maio de 1973 (8) as forças portuguesas atacaram e destruíram a sua grande base de Cumumbori, no Senegal. Na sequência da ofensiva militar, o PAIGC declarou unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, em Madina do Boé (uma zona despovoada do leste, que o exército tinha abandonado por não ter interesse militar), no dia 24 de Setembro de 1973. Tal representava um estado fantasma, sem Guiné e sem Bissau. De qualquer forma, o que se pretendia era provocar um impacto na opinião pública e obter apoios a nível internacional, o que aliás foi conseguido, já que umas seis dezenas de países reconheceram, na ONU, o novo «Estado». Todavia, no campo das realidades práticas, isso não afectava em nada a posição de Portugal.

A ofensiva foi sustida e repelida, mas a verdade é que deixou marcas em alguns oficiais. De facto, a luta na Guiné não era fácil, como já vimos antes, desde logo porque qualquer ponto do seu território não distava mais de 100 km de qualquer uma das fronteiras, que eram assaz permeáveis e impossíveis de isolar.

A contra-ofensiva portuguesa pôs-se então em marcha. Após a visita, em Junho de 1973, do general Costa Gomes, o Comandante do Estado-Maior General das Forças Armadas, que nessa altura defendeu categoricamente a viabilidade da defesa, desde que não se perdesse a superioridade aérea - é importante lembrar que o general Costa Gomes, em termos militares, mostrou sempre grande competência - foi escolhido para governador e comandante-chefe da Guiné um dos melhores, senão mesmo o melhor general ao serviço das Forças Armadas portuguesas. Entretanto, tinham já sido concluídos os planos para remodelar todo o dispositivo militar, de modo a reduzir a área útil a defender, minorar a capacidade de flagelação do inimigo do outro lado da fronteira, concentrar meios, bem como reforçar e tornar ainda mais operacionais as unidades de reserva do comando-chefe. A aquisição de novo material e armamento para as nossas tropas estava também em marcha. Uma vez mais, a vitória dependia apenas da nossa vontade.

Em síntese, e sobre o conflito armado e sobre as acções de manutenção de soberania levadas a cabo pelas Forças Armadas em Angola, Guiné e Moçambique, é fundamental dizer ainda o seguinte:

- As Forças Armadas portuguesas conduziram uma guerra limpa com elevado sentido de missão, humanismo e ética;

- Em 14 anos de guerrilha, só se conhece um caso em que devido ao descontrolo de um comandante (de um nível inferior no escalão de comando) morreram vários civis. Referimo-nos ao chamado «massacre de Wiriamu», um acontecimento eticamente reprovável e condenável segundo o Direito da Guerra. Foi, sublinhe-se, um caso único na história militar ultramarina;

- Os militares portugueses desenvolveram uma acção psicossocial e de desenvolvimento económico notável sobre as populações, que eram, aliás, o objectivo fundamental da guerra de guerrilha;




Militar português no apoio sanitário, no âmbito da acção psicológica (APSIC).


- As Forças Armadas portuguesas registaram nas suas fileiras um número ínfimo de casos de deserção, mesmo considerando os militares do recrutamento local, o que também não existe paralelo em qualquer campanha contemporânea;

- As forças inimigas nunca conseguiram tomar qualquer aquartelamento do dispositivo português;

- As Forças Armadas portuguesas mantiveram sempre a liberdade de acção, deslocando-se a qualquer ponto do território nacional, embora com medidas de segurança varíáveis:

- No início da subversão, após a fuga de parte das populações, estas foram progressivamente regressando, durante os anos que duraram as operações, aos seus respectivos lares;

- As acções subversivas nunca conseguiram desarticular as actividades económicas e sociais, que aliás foram sempre crescendo à medida que o tempo passava;

- Registou-se um aumento constante de participações de militares do recrutamento local, alguns dos quais constituíam subunidades inteiras, com excelentes resultados;

- Registou-se um notável e progressivo aumento da capacidade da indústria nacional no fabrico de armamento, munições, fardamento e equipamento diversos (apesar das lacunas existentes);

- Conseguiu-se montar um serviço de informações que, pese algumas dificuldades de coordenação, prestou um excelente contributo para a decisão político-estratégica e para a coordenação das operações militares;

- Conseguiu-se montar uma rede de apoio logístico em todas as suas vertentes, algo que, possivelmente, não tem paralelo na história militar portuguesa. Este apoio logístico não se confinava às tropas e a sua acção beneficiou largamente as populações. Entre todos, destacava-se o serviço de saúde, que criou até a «mística» de que um ferido que chegasse ao hospital com vida já não morreria.

Em relação aos 13 anos que duraram as últimas campanhas ligadas à gesta descobridora e universal de Portugal, as Forças Armadas nacionais operaram um dos mais brilhantes feitos de armas de toda a sua já longa história e os bons portugueses deviam orgulhar-se muito legitimamente disso mesmo.


Portugal andava em contraciclo com os «Ventos da História» e devia ter descolonizado mais cedo


«A primeira lição que a história e a vida nos ensinou é a transitoriedade dos mitos, dos regimes e sistemas».

Jaime Cortesão


A expressão os «ventos da história» - que se tornou politicamente correcta - foi retirada de um parágrafo de um discurso do primeiro ministro britânico Macmillan, proferido na República da África do Sul, a 13 de Fevereiro de 1960, onde o político inglês se referiu aos «ventos de mudança» que sopravam por todo o continente africano. Que os ventos, quando sopram, afectam quem está no seu caminho, é uma coisa. Agora, que Portugal tivesse de aceitar a direcção que eles tomavam, já é outra coisa.

Aliás, se olharmos com atenção para os acontecimentos históricos, notamos facilmente que ao longo dos tempos os ventos foram sempre soprando com direcções e intensidades diferentes, mas sempre no sentido dos interesses da(s) grande(s) potência(s) de cada época.

Um rápido escrutínio sobre a evolução do Direito Internacional no que diz respeito à expansão ultramarina e à forma como nos afectou ilustra na perfeição o que queremos dizer. No início da expansão, Portugal procurou assegurar para si o reconhecimento do Direito às terras e gentes que ia descobrindo, ao mesmo tempo que tentava garantir a exclusividade da navegação nos mares que até então mais nnguém conhecia ou cruzara. Esta intenção, parece-nos, fazia todo o sentido. Como a autoridade supranacional de então era o Papa, diligenciou-se no sentido de que este consignasse em documentos - as bulas - esses mesmos direitos, como de facto aconteceu. As sentenças da Santa Sé eram acompanhadas ainda de direitos eclesiásticos relativamente à evangelização e estabelecimentos de dioceses. Resultado disso, acabaram por nos ser concedidos também os direitos de Padroado em África e no Oriente.

Quando os espanhóis quiseram seguir os passos dos portugueses, no intuito de usufruir das riquezas descobertas ou a descobrir, a Santa Sé tentou «dividir as águas» de modo a que os príncipes cristãos não entrassem em luta. Um objectivo que ficaria consagrado no Tratado de Alcáçovas/Toledo, de 1479/80, e no Tratado de Tordesilhas, de 1494. As potências europeias foram aceitando este statu quo, porque não estavam em condições de o contrariar, não possuíam ainda os conhecimentos nem os meios para se aventurarem no largo oceano e porque também não precisavam, já que podiam fazer todo o comércio lucrativo nos portos da Península Ibérica. Pela calada faziam guerra de corso.










Esta situação sofreu uma grande alteração por dois motivos principais: a cisão da Igreja de Roma, que deu origem ao protestantismo, ao calvinismo e ao anglicanismo, fazendo com que os países que se desligaram do catolicismo deixassem de obedecer à autoridade do papa; e a proibição, por duas vezes decretada por Filipe II de Espanha (1585 e 1595), das potências do norte, nomeadamente a Holanda e a Inglaterra, fazerem comércio na Península Ibérica. Consequentemente, estes povos tentaram ir buscar os produtos à origem. As guerras generalizaram-se e Portugal viu-se envolvido nelas. Era necessário mudar o Direito Internacional e, sobretudo, a noção do Mare Clausum, instituído por D. João II. Foi o que os holandeses fizeram, em 1608, com a teoria do Mare Liberum. À sua maneira, os ingleses tentaram adaptar a situação aos seus interesses, publicando o Acto de Navegação de 1651, que regulava o trânsito de mercadorias de e para as colónias. Portugal, entretanto, já tinha perdido todo o avanço científico de que antes dispusera, assim como deixara de ter «canhões» suficientes. Deste então, Portugal nunca mais foi capaz de influenciar os ventos da história.

Seguiram-se as questões relacionadas com a proibição do tráfico de escravos, que Inglaterra decretou a partir de 1810. Finalmente, pode dizer-se que as grandes mudanças contemporâneas dos «ventos da história» começaram na Conferência de Berlim de 1884-1885. Aqui, os direitos históricos deixaram de ter valor caso não fossem acompanhados pela ocupação efectiva dos territórios; seguiu-se a necessidade de promover a civilização dos indígenas, o chamado «fardo do homem branco». Portugal tentou, como se sabe, adaptar-se a tudo isto, o que lhe custou imensos sacrifícios e a experiência do ultimatum de 1890. Afinal, mesmo quando nos queríamos «adaptar» aos «ventos da história», não conseguíamos escapar às agressões. É certo que na altura já não havia corsários, mas havia, isso sim, companhias majestáticas, política da canhoneira e acordos secretos, assinados clandestinamente sem o conhecimento de Portugal.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, a Sociedade das Nações estabeleceu a política dos mandatos, e depois a dos duplos mandatos, em que as potências se digladiavam para ver quem controlava mais territórios umas das outras, grande parte dos quais não tinha qualquer afinidade com os novos «amos». Portugal foi sempre um mero espectador, até que chegou o fim da Segunda Guerra Mundial e começou a germinar a ideia da autodeterminação dos povos.

Outra questão que se deve ter em conta é que para impor certos interesses é preciso, muitas vezes, inventar princípios aparentemente filantrópicos. Sobre isso, o melhor exemplo continua a ser o da escravatura. É certo que houve causas genuinamente humanitárias que procuraram denunciar a chaga humana da escravatura, como foi o caso das acções levadas a cabo, em Inglaterra, ainda nos fins do século XVIII, pelo cidadão e deputado Wilberforce. Todavia, aquilo que realmente movia o governo britânico era o lucro. A Inglaterra tinha inventado a máquina a vapor e deu assim o pontapé de saída para a revolução na indústria e nos transportes. Como a produção de bens aumentou extraordinariamente, a Inglaterra precisava de conquistar mercados e eliminar a concorrência. Conseguir o fim da escravatura era o ideal: por um lado, aumentava o número de consumidores e, por outro lado, arrasava com a concorrência, «barata e desleal», afectando assim a capacidade económica dos Estados que com ela podiam competir.

Em conclusão, Portugal não estava contra os «ventos da história». Fez apenas o que sempre fez e que lhe competia de direito: defendeu-se como pôde. Assim, a essa afirmação de que deveríamos ter descolonizado mais cedo, poder-se-á responder com outras perguntas: em primeiro lugar, quando é que isso deveria ter sido feito? Em 1961, quando nos retalharam a carne e os haveres? Em 1947, só porque Nehru o exigiu? Em 1945, porque isso convinha aos russos e americanos? Em 1919, quando foram instituídos os mandatos? Em 1938, 1913 ou 1898, quando as potências estrangeiras (sobretudo a Inglaterra e a Alemanha) andavam a negociar, de forma traiçoeira, quem é que ficaria com o quê? Em 1885, para não termos de arrostar com o fardo do homem branco, aguentarmos umas dezenas de expedições militares e sujeitarmo-nos a um ultimatum humilhante?

Deveríamos ter abdicado dos nossos territórios quando outras nações armaram e subverteram povos indígenas, instigando-os contra a autoridade portuguesa, só para não passarmos pelo «aborrecimento» de ter de impor a ordem? Quando? E com que justificação? Acaso as outras potências que descolonizaram «mais cedo» ficaram livres de problemas? A descolonização correu-lhes bem? E a realidade alheia tinha, porventura, alguma semelhança com a nossa maneira de estar no mundo?

Aos inventores de mitos deixamos aqui uma solução que evitaria todos esses problemas: os portugueses não se deveriam ter lembrado de ir às Canárias (1340) e a Ceuta (1415). Tínhamos resolvido o problema da descolonização logo aí! Será que os Portugueses andaram enganados durante quinhentos anos? Será que monárquicos de várias tendências, republicanos, liberais e miguelistas, maçons e inquisidores, nobres e plebeus, reis e burgueses, tiveram uma visão tão curta, durante um período tão longo e só a solução e as ideias adoptadas no pós-25 de Abril de 1974 é que estão possuídas pelo elixir da razão?

Oliveira Salazar


Por todas estas razões, parece-nos descabido acusar o professor Salazar (e todo o regime do Estado Novo) de não ter tido a «visão» de descolonizar mais cedo. O professor Salazar não só continuou responsavelmente a obra herdada dos nossos antepassados mais ilustres, como ainda por cima a engrandeceu. Corrigiu abusos, desenvolveu, pôs ordem, estabeleceu leis, dignificou o Estado, pôs amigos e inimigos em respeito, não permitiu interferências estranhas, harmonizou economias, foi humano e tudo fez de boa mente e no interesse do engrandecimento da pátria portuguesa, livre e independente. Lutou por isso, sem desfalecer e não poucas vezes teve de carregar sozinho todo um povo, quando as dúvidas o assaltavam. Acusar o professor Salazar de ter actuado mal na questão ultramarina é uma falsidade histórica, uma desonestidade intelectual e uma injustiça flagrante, que só a ignorância ou a cegueira ideológica podem explicar. Insistir nestes termos, mais de três décadas depois dos dramáticos acontecimentos vividos no pós-25 de Abril, é um atentado à inteligência que envenena as relações sociais e compromete a construção do futuro.

Estaremos melhor agora, que andamos a combater nas guerras dos outros? Será mais digno combater no Afeganistão que no Estado Português da Índia? No Líbano que em Angola? Na Bósnia que na Guiné-Bissau? No Kosovo que em Moçambique? São estes os novos ventos da história? Ou será que o objectivo nacional é, hoje, deixarmo-nos espoliar da nossa zona económica exclusiva, como está em marcha através do que está consignado no último tratado da União Europeia, o de Lisboa? Haverá, algum dia, um vento da história a nosso favor?


A população dos territórios ultramarinos queria ser independente


«O inimigo atira pela porta da capela paroquial. Salvem-nos. Morremos portugueses».

Apelo pela rádio dos heróicos defensores de Mucaba antes de serem salvos pela acção da Força Aérea. 30 de Abril de 1961.


Esta era outra falácia recorrente. Mas para entendermos o que realmente se passou, é preciso reflectir sobre o modo como os portugueses se relacionavam com os povos dos territórios onde se fixavam.

Na verdade, a «colonização portuguesa» tinha características próprias que a individualizavam muito positivamente no concerto das nações. Começou por ter origem num alto desígnio: lutar pela cristandade e espalhar a palavra de Cristo pelas terras onde aportássemos, isto é, evangelizar. Esse propósito catapultou-nos até à Índia, num verdadeiro projecto escatológico de âmbito nacional e de alcance mundial, onde o primeiro objectivo era encontrar cristãos no Oriente, de cuja existência havia fortes indícios: os do rito do apóstolo S. Tomé, na Índia, e os coptas da Abissínia - o celebrado reino do Prestes João das Índias. Ou seja, o nosso intuito era unir os cristãos do Ocidente com os cristãos do Oriente sob o ceptro do Espírito Santo - a terceira pessoa da Trindade - pois era essa a figura que imperava no cristianismo português, sobretudo desde o reinado de D. Dinis, e indubitavelmente de inspiração templária.

Só depois deste objectivo cumprido - é essa a nossa convicção - é que veio a busca de especiarias, o que não se pode ter por desejo menos aceitável, já que não é pecado comerciar e criar riqueza. Claro que com o tempo, como é próprio da natureza humana, o primeiro desiderato foi esmorecendo, ficando ofuscado pelo segundo. A Santa Sé seguiu todo este processo com prudência, não só porque lhe levantava problemas teológicos novos (por exemplo, era tido como certo, até então, que os povos não cristãos não eram civilizados), como também porque o culto do Espírito Santo, que nessa época os portugueses professavam, bem como os ritos dos cristãos do Oriente, não eram propriamente católicos, apostólicos e romanos.

Tendo sido um projecto de âmbito nacional, que foi assumido pela coroa e que envolveu o país inteiro, de tal maneira que nobreza, clero e povo se associam sempre ao empreendimento - não é possível afirmar que a expansão portuguesa foi obra de aventureiros, de empresas privadas ou de simples acções de rapina, como aconteceu com os restantes países europeus e que se converteu, com o tempo, numa política puramente mercantilista e de exploração de recursos. Talvez por isso não lhes tenha sido difícil abandonar os territórios que ocupavam.

Com Portugal não era nada assim. Os portugueses tinham projectos e exportavam afectos. Sempre consideraram as terras e as gentes como fazendo parte da sua essência e incorporou-as de pleno na coroa. Eram, simplesmente, um prolongamento do território europeu. Os portugueses davam-se e ofereciam-se, criavam ligações de confiança e foram o único povo no mundo a oferecer armas às entidades com que contactava. A maneira de ser e estar dos portugueses foi inclusivamente reconhecida pelo papa João Paulo II na sua homilia em M'banza Congo, Angola, a 8 de Junho de 1992: «[...] Aqui, os colonizadores, apesar de tudo, conviveram com os povos que encontraram [...]». O modo como os portugueses se relacionaram com os outros povos pode ser facilmente constatado e aferido nas actuais missões de paz e humanitárias que desenvolvemos um pouco por todo o mundo. Ninguém consegue o que nós conseguimos, ninguém se relaciona como nós nos relacionámos. Por isso, Portugal e os portugueses sempre se defenderam de todos os ataques e extorsões de que foram alvo: a reacção ao ultimatum inglês, a queda de Goa, entre outros, são provas disso.










É verdade que nem tudo foi um mar de rosas e que se cometeram excessos, depredações, latrocínios. Mas tudo na vida é relativo e, neste âmbito, a acção dos portugueses em nada os pode envergonhar. A escravatura, hoje em dia tão execrada (e bem), foi durante milénios uma actividade lícita e moralmente aceitável. E lembre-se, em abono da verdade, que os principais negreiros eram os próprios régulos das zonas onde mais se exerceu o negócio de escravos. Os factos, em história, devem ser analisados à luz das referências da época em que se produziram e não com base nos conceitos éticos e morais de hoje (9). Como é óbvio, todo o lastro histórico de Portugal acabou por se reflectir nestas últimas campanhas montadas à escala mundial - note-se - contra a nação portuguesa, até à altura em que o nosso país ficou reduzido ao triângulo formado pelo «continente e ilhas».

Na altura dos massacres em angola, a população portuguesa, nomeadamente a de origem caucasiana, aguentou e castigou os insurrectos. O governo de então, patriota até à medula, agiu em conformidade. Ultrapassada a crise «Botelho Moniz», a acção política concentrou-se na resposta a dar e pode dizer-se que, salvo os comunistas, que constituíam uma franca minoria da população, toda a nação terçou armas pela defesa de Angola. Os batalhões desfilavam à partida e à chegada e eram aclamados. Quando Goa caiu, a comoção e a indignação apoderaram-se das pessoas de um modo que apenas tem paralelo no ultimatum de 1890. Declamavam-se Os Lusíadas nas ruas e as igrejas enchiam-se de fiéis rezando pelos portugueses cativos na Índia.

Com o passar dos anos, as operações de soberania e contra-guerrilha (vulgo guerra, depois apelidada de «colonial») entraram no dia-a-dia nacional sem que isso provocasse anormalias de vulto (10). A população aceitou o fardo das operações militares com estoicismo e até ao fim (1974) os batalhões foram seguindo para África - e eram constituídos lá, também - «estranhamente» completos e em boa ordem de marcha. Nunca houve problemas disciplinares graves, insubordinações ou atentados contra graduados. A percentagem de desertores era a mais baixa que se conhecia em qualquer exército contemporâneo, um fenómeno que se estendia às tropas de recrutamento local. O número de refractários era também muito reduzido e a maioria tinha que ver com problemas ligados à emigração. E não são dispiciendos os casos de emigrantes que vieram a Portugal cumprir o serviço militar e depois seguiram a sua vida.

A coesão nacional começou a abrir brechas nos meios mais privilegiados - uma constante nacional - nos que tinham acesso à universidade, sobretudo a partir da crise académica de 1969, nos chamados «filhos maus das boas famílias» e ainda em grande parte dos intelectuais, sempre deslumbrados com o que lhes chega de fora e pelo que está na moda em Paris, Londres ou Nova Iorque, já para não falar daqueles que se deixaram seduzir pelas teses marxistas. Desligaram-se da nação, julgando que apenas se estavam a desligar do Estado. E, como já vimos, até a igreja foi permeável.

No Ultramar, a maior parte da população não foi tocada pela subversão. A de origem branca ou asiática continuou a levar a cabo as suas actividades e entendia-se com a de origem indígena. Com o tempo, a interacção social melhorou muito não só devido ao aumento exponencial da educação e ao desenvolvimento económico e social, como à acção dos contingentes de militares provenientes da metrópole. Apenas em franjas pequenas da população branca, influenciadas pelos exemplos rodesianos e sul-africanos, onde imperava um apartheid entre raças, é que se verificavam algumas atitudes eticamente reprováveis. Entre alguns dos elementos mais influentes da comunidade branca começaram a despontar ideias de progressiva autonomia e de independência, que sem serem ainda preocupantes, tinham de ser corrigidas a tempo. Entre os portugueses negros, que se dividiam em numerosos grupos étnicos e linguísticos, a maioria mantinha-se fiel à bandeira das quinas. Para provar tal afirmação, basta pensar na paz absoluta que se vivia na maioria dos teatros de operações - com excepção da Guiné, dada a exiguidade do território e a extensão de fronteiras hostis - na ausência de atentados e raptos selectivos aos militares e suas famílias, na inexistência de guerrilha urbana, na confiança depositada nas tropas de origem negra, perfeitamente integradas, leais e a quem se dava acesso a todas as especialidades e missões e que em 1974 já eram mais numerosas que as de origem branca (11). E se esses exemplos não forem suficientes, acrescente-se o facto das messes militares nas cidades não terem sequer sentinela (12); das autoridades portuguesas se deslocarem a todo o lado; de nunca ter havido nenhuma área controlada exclusivamente pela subversão; e de se ter verificado um contínuo regresso das populações expatriadas, fosse voluntariamente, fosse por coacção.

Ora, nada disto poderia ter acontecido se a maioria da população indígena ou uma parte considerável dela quisesse optar pela independência e odiasse assim tanto a nacionalidade portuguesa. Há inúmeras provas de que a subversão era inspirada e sustentada a partir de fora, apoiada por potências estrangeiras. Depois, não nos esqueçamos que nos territórios portugueses que eram ilhas nunca houve subversão, até no arquipélago dos Bijagós, na Guiné, não se registou qualquer perturbação. Dito de outro modo, a guerrilha não seria capaz de sobreviver sem santuários protegidos do outro lado da fronteira. Por tudo isto se pode considerar, inclusivamente, que Portugal não enfrentou uma guerra subversiva «clássica», pois não surgiu de revoltas iniciadas no interior dos territórios. E nada do que se passou visava a autodeterminação dos povos, mas sim a substituição de soberanias e a garantia de interesses, esses sim, neocoloniais.





Fuzileiros na Guiné Portuguesa



A BA 12 (Guiné, 1966).


O facto da maioria da população indígena gostar de ser portuguesa e de que os laços mantidos eram fraternos e estavam longe de ser motivados pelo ódio, ainda hoje pode ser facilmente comprovado.

Prestei serviço durante 27 anos na Força Aérea Portuguesa, tendo entrado para a Academia Militar em 1971. Quando «fiquei pronto» em Junho de 1976, já tinham terminado as operações militares no Ultramar. Não «estive lá», portanto. Mas antes de passar à reserva estive na Guiné-Bissau, como adido de Defesa. Nunca tive problemas com qualquer cidadão guineense, fizesse ele parte das autoridades ou pertencesse simplesmente ao povo. Percorri quase toda a Guiné, muitas vezes sozinho ou acompanhado pela minha família, e nunca senti qualquer manifestação de desafecto nem tive qualquer sensação de insegurança. Andávamos à vontade no meio do mercado do Bandim...

Quase todos os dias encontrava ex-militares ou milícias que me vinham reivindicar direitos de cidadania ou de assistência social. Os pedidos de cooperação e ajuda eram (e são) constantes. Aos fins-de-semana, numerosos guineenses sentavam-se com os transístores no ouvido escutando os relatos de futebol dos grandes clubes portugueses. E quando nos sentamos com eles à mesa, passamos a estar todos em casa.

Nas outras ex-províncias, as informações que me chegam apontam no mesmo sentido. Se existem problemas é com parte da «cleptocracia» arrogante instalada em Luanda e um ou outro «ista» mais empedernido. Até os numerosos turistas portugueses que têm visitado Goa podem testemunhar o carinho com que são recebidos e tratados pelos naturais do «tempo dos portugueses» e como tudo é diferente do resto do subcontinente industânico. Será que as coisas se passariam tal qual se a acção dos portugueses por esse mundo fora tivesse sido como a propaganda inimiga pintava e como uns ignorantes deslumbrados têm feito crer desde o golpe de Estado florido a cravos? Se a nacionalidade portuguesa era assim tão execrada, como é que se explica que após 20 anos de ocupação indonésia os timorenses saíssem dos seus buracos ostentando a bandeira das quinas, religiosamente guardada?

Comparados com os povos colonizados por outros, os «nossos» negros, amarelos e mestiços são «doces». Já é tempo de acordarmos e de exorcizarmos o pessimismo que se entranhou em nós com as desgraças ocorridas no século XX e das quais ainda não recuperámos.


A guerra era injusta e actuávamos à revelia do Direito Internacional


«O Senhor comandante dirigiu-se à Câmara e fardou-se de branco, dizendo que assim morreria com mais honra. Rapazes, sei que vocês vão cumprir assim como eu e que mais vós quereis! Acabarmos numa batalha aero-naval. Fazemos parte da defesa de Diu e da Pátria e vamos cumprir até ao último homem e última bala se possível. Algumas despedidas se fizeram e até as fotografias dos entes queridos foram beijadas e guardadas nos bolsos dos calções».

Do relatório da guarnição da Lancha Vega, sobre a actuação do respectivo comandante, segundo-tenente Oliveira e Carmo, morto heroicamente nas águas de Diu, a 18 de Dezembro de 1961.


É preciso dizer, de uma vez por todas, que aqueles territórios ultramarinos, onde há séculos nos tínhamos fixado e onde tanto trabalhámos, construindo e desenvolvendo, pertenciam legitimamente a Portugal. Eram nossos!

Tal estava firmado em tratados antigos e era reconhecido por todos os países com os quais mantínhamos relações diplomáticas. A excepção fora a União Indiana, mas esse caso já foi suficientemente analisado.

Além disso, era tradição secular que o rei de Portugal considerasse todos os povos que habitavam os territórios em que nos estabelecíamos como seus vassalos e todas as Constituições portuguesas, a começar pela primeira, de 1822, definiam o território pátrio como englobando todas as parcelas espalhadas pelo mundo. Em mais nenhum outro país tido por colonizador se verificava algo parecido.

Aliás, o único problema por questões territoriais que ainda hoje prevalece é o de Portugal com a Espanha, que se arrasta desde 1801: Olivença. E quando Portugal entrou para a ONU, em 1955, entrou como Estado uno, pluricontinental e plurirracial. Ninguém colocou qualquer entrave, ou fez o mais pequeno reparo.

Já verificámos também que, na evolução da história, os «ventos» foram sempre soprando em nosso desfavor e muitas vezes parecia inclusivamente que o direito internacional ia sendo elaborado e tecido com o objectivo de despojar Portugal do seu património, ou de nos colocarem perante obrigações e dificuldades impossíveis de cumprir, para que assim desistíssemos dos nossos interesses.

Foi isso que começou a acontecer, por exemplo, a partir do momento em que nos inquiriram na ONU, ao abrigo do artigo 73.º da Carta, relativamente à existência de territórios não autónomos sobre administração portuguesa. Como a resposta foi negativa, assistimos ao facto inaudito de todas as resoluções adoptadas terem evoluído no sentido de contrariarem sucessivamente os argumentos portugueses. Daí para a frente, presencíamos ao espectáculo lamentável que foi a urdidura de uma teia de conluios políticos e diplomáticos contra um Estado-Nação dos mais antigos (senão o mais antigo) do mundo, que vivia em paz com todos e não representava qualquer ameaça para ninguém. E que praticava (com experiência de séculos) uma convivência de credos, raças, religiões, culturas, etc., a anos-luz de distância do tão apregoado «multiculturalismo» com que se pretende estabelecer um modus vivendi nos países da União Europeia, com as comunidades de imigrantes!



Ver aqui, aqui e aqui


O comportamento de parte da comunidade internacional contra Portugal, nesses tempos, devia ser considerado como uma das páginas mais negras e vergonhosas das relações internacionais. Dito de outra maneira, a experiência ensinou a Portugal que não podia confiar na comunidade e no direito internacionais para defender os seus interesses ou direitos. Na altura, o Tribunal Internacional da Haia deu razão ao nosso país no caso de Dadrá e Nagar-Aveli, e o governo indiano recusou-se a acatar a sentença. No entanto, quando a mesma União Indiana invadiu Goa em 17 de Dezembro de 1961, e essa invasão foi condenada pelo Conselho de Segurança da ONU, ficou tudo na mesma, por via do veto da URSS. Como também já vimos, melhor ou pior, Portugal sempre foi conseguindo ultrapassar os escolhos que nos eram criados, as refundações do direito internacional e os grandes «princípios» evocados.

A partir de 1945, a questão magna passou a ser a da «autodeterminação dos povos» e o direito a disporem do seu destino. À partida, nenhum país, Portugal incluído, poderia ser contra esse princípio. Por isso, a tese nunca foi refutada, em abstracto, no nosso país. Nós próprios nos tínhamos autodeterminado do reino de Leão, em 1128, e da Espanha, em 1640. E fomos capazes até de resolver, pacificamente, a questão da independência do Brasil, a qual tinha resultado de uma crise política mal resolvida e da defecção de um príncipe. Depois, a acção da Inglaterra - desejosa de ocupar o lugar que nos pertencia no comércio com aquele portentoso território - e da maçonaria internacionalista deram o empurrão decisivo.

O princípio até poderia ser válido. No entanto, interessa-nos saber se era ou não aplicável ao caso português. A resposta, quanto a nós, é negativa. Em primeiro lugar, porque as populações dos diferentes territórios estavam autodeterminadas, com a própria independência nacional portuguesa. Ao fim de um longo caminho, não isento de problemas, injustiças e atrasos, os direitos e deveres de cidadania foram convergindo para a igualdade e a equitatividade. É verdade que o desenvolvimento económico não era igual em todos os territórios, mas apenas porque ao governo central nem sempre foi possível acudir a todos eles de igual modo. Além disso, em muitos locais só foi possível civilizar depois da farmacologia ter permitido aos caucasianos estabelecerem-se nessas zonas com um mínimo de segurança relativamente à sua saúde. Na maioria dos casos a noção de individualidade encontrada não ultrapassava a da tribo. Os povos a quem submetemos ou oferecemos a nacionalidade portuguesa em nenhum caso constituíam uma nação independente. De resto, muitas destas tribos tinham migrado de outras terras e fixaram-se ou por via da submissão ou do extermínio de outras que lá estavam antes delas (algumas até tinham chegado depois do homem branco). E que se poderá dizer dos territórios que encontrámos desertos?

Não houve ainda nada parecido a uma ocupação militar, ou estado policial, como nunca houve (nem nunca passou pela cabeça de ninguém que houvesse) qualquer tipo de «reservas» destinadas aos indígenas, como há hoje no Brasil, nos EUA e no Canadá, e como já houve na Austrália e noutros países. Mais a mais, os portugueses nunca se dedicaram a exterminar raças, credos ou culturas, como aconteceu com outros povos tidos por mais avançados do que nós.

Como é que se pode chegar à conclusão que um povo se quer autodeterminar? Quando três jovens disparam contra alguém pode chamar-se a isso revolta? Ou é preciso que se juntem 10 jovens? Ou 100 jovens e outros tantos velhos? Será que é só quando se cria um partido político que visa a independência de uma parte do território? Ou é apenas quando se verifica uma separação geográfica relativamente a várias parcelas? Ou quando há substrato individualizado, cultural, étnico, religioso? E verificando-se essa condição, não será lícito aos governos e à restante população que discorda oporem-se? Todos os meios são legítimos, ou só alguns? Em que circunstâncias, por exemplo, é que o «Movimento para a Independência do Algarve» (MIA), em tempos existente, poderia pugnar pela independência daquele antigo reino? Segundo os ditames da Constituição Portuguesa? Pelo direito comunitário da União Europeia? Através do consignado na Carta da ONU? E se de repente aparecerem uns iluminados a propor um referendo para perguntar se os portugueses se querem integrar em Espanha? A soberania plebiscita-se? E se a maioria votar que quer pertencer a Espanha, a minoria restante deve acatar tal desiderato ou, pelo contrário, revoltar-se? Vamos supor ainda que os remanescentes de uma tribo de índios que habitam uma reserva do Estado de Montana, na fronteira norte dos EUA, começavam a levar a cabo acções de guerrilha, exigindo a independência do território ocupado pela reserva. Como reagiria o governo dos EUA? E se os antigos peles-vermelhas - aos quais alguns governos federais chegaram à vilania de enviar, em tempos idos, cobertores infectados com tifo - se acolhessem do outro lado da fronteira canadiana? E se o Canadá resolvesse apoiá-los? E se o governo português resolvesse apoiar um movimento de guerrilha numa das repúblicas do Cáucaso, como reagiria a Rússia? O Kosovo pode ser independente, mas o País Basco ou a Córsega não? Se Portugal tivesse comprado territórios como os EUA o fizeram (Alasca, Florida, Louisiana, parte do Texas), poderia ter ficado com eles?

O caso mais estranho, e que nos diz respeito, foi Timor-leste, que a Indonésia, durante 20 anos, pôde placidamente invadir, ocupar e fazer o que muito bem entendeu sem grande incómodo da comunidade e do direito internacionais. Certo dia, deu-se o caso de terem filmado aquele vídeo em Santa Cruz, só aí é que o governo português acordou da sua letargia e, vítima da má consciência em que vivia, resolveu fazer alguma coisa. Fez-se barulho na cena internacional e os indonésios foram obrigados a partir, do mesmo modo que foram deixados estar. Afinal, para que serve o direito internacional? Na nossa opinião, serve fundamentalmente para dar uma aura de legalidade aos interesses dos mais fortes, em cada época.













Tudo é complexo, mas uma coisa, pelo menos, se pode facilmente entender: o que importa primordialmente nas relações internacionais é o poder. Portugal, como é óbvio e não poderia ser de outra maneira, usou de tudo o que tinha para se defender das agressões e da tentativa de esbulho de que foi vítima. Parte do poder estava nas razões em que escorava a licitude dessa defesa. E não parece aceitável que vários países da comunidade internacional e os media que os serviam se arrogassem possuir a verdade absoluta e a nós nos destinasse o monopólio do erro, considerando inadmissível qualquer crítica nossa.

Como dizia Santo Agostinho «a paz é a tranquilidade na ordem». Todavia, não se deve comprar a paz à custa de injustiças, nem de mentiras. A justiça vem antes da paz. Paz sem justiça é opressão. Ninguém moralmente sadio gosta de participar numa guerra injusta, embora a justiça se reparta, por vezes, por ambos os lados da contenda. De tal modo que todos os governos procuram sempre demonstrar a licitude das guerras em que se envolvem, algo que é essencial por três motivos principais: reforça a coesão nacional e a capacidade de fazer sacrifícios por parte da população, é um lenitivo importante para assegurar o moral das tropas e ajuda a concitar apoios internacionais, além de que é um argumento passível de ser utilizado nas negociações e nas discussões do direito internacional. Daí que, por exemplo, D. João I só tenha decidido avançar para a conquista de Ceuta depois do conselho dos teólogos lhe ter assegurado que tal acto era «Serviço de Deus».

Neste sentido, o problema da justiça da guerra deve ser colocado a montante. Quando a decisão de lutar é tomada, os militares têm de actuar. Não se pode estar sempre a discutir a questão da justiça. Ora, a justiça da decisão governamental que em 1961 levou ao desencadeamento de acções militares em larga escala, acções que tinham na base a afirmação da nossa soberania, a defesa das populações e o castigo dos invasores e insurrectos, que vindos de fora das fronteiras em conivência com esses países vizinhos chacinaram milhares de nacionais em Angola, essa decisão, repito, foi absolutamente justa e correcta. O mesmo se pode dizer relativamente à decisão de defender militarmente o Estado Português da Índia da invasão da União Indiana, que sendo um país independente nem sequer teve a coragem nem a decência de nos declarar guerra. Tal como foi lícita e correcta a opção de defender a Guiné e Moçambique quando esses territórios começaram a ser vítimas de ataques pelo tempo que fosse necessário.

A justiça do procedimento é de uma clareza cristalina: tratava-se de um acto de legítima defesa. Além do mais, tinha sido declarado por uma autoridade legítima, com justa causa e recta intenção (S. Tomás de Aquino); como último recurso e com meios apropriados (Victória e Suarez). Por isso, os portugueses tinham o direito de fazer a guerra e no fazer a guerra (jus bello e jus in bello). Mais, a nossa defesa foi motivada por agressões (ofensas), ao mesmo tempo que era um acto natural, pois destinava-se a salvaguardar a vida de todos e de cada um. As tropas portuguesas nunca violaram o Direito da Guerra e raramente quebraram preceitos humanitários.

Além de se tratar de um direito de legítima defesa era, outrossim, um dever, já que ninguém no seu juízo perfeito poderia querer deixar à sua sorte territórios que nos pertenciam por direitos históricos inalienáveis e uma longa lista de sacrifícios, para não referir todas as vidas que se perderam por amor e dedicação àquelas terras; nem tão-pouco abandonar populações que veneravam a bandeira das quinas ou fazer letra morta de um extenso património cultural e moral da nação. Por isso, os portugueses ficaram e lutaram. Como sempre haviam feito.

E afinal de contas, para quem é que a guerra era injusta?

Já vimos que não era injusta para nenhum país estrangeiro, pois não estivemos em guerra com nenhum e nenhum foi agredido por Portugal. Seria injusta para algum povo que pretendíamos submeter dentro das nossas fronteiras? Mas quais, se todos éramos portugueses? Se todos usufruíamos das mesmas leis? Acaso havia alguma população escravizada? Acaso alguém era mantido debaixo de terror policial ou militar?

Será que Portugal importunou algum povo ou autoridade que estivesse fora das fronteiras de Portugal? A resposta é não, como todos sabem. Teria sido intenção dos portugueses expandir-se para outro território e ficar com algo que não lhes pertencesse já? Não, três vezes não. Então, porque é que a nossa paz incomodava tanta gente?







Visto isto, parece-nos que se houve alguém que tinha todo o direito para se sentir injustiçado, esse alguém éramos nós, os portugueses, que vivíamos de bem com os nossos vizinhos, não tínhamos querelas com ninguém, oferecíamos o nosso sangue, a nossa civilização e a nossa nacionalidade aos povos dos territórios que, ao longo dos séculos, foram sendo integrados no todo nacional. Povos cujas idiossincracias foram respeitadas, que beneficiaram dos progressos da nossa civilização, que viram o seu nível de vida melhorar consideravelmente, que conheceram a promoção gradual da igualdade de direitos e deveres, enfim, que foram lentamente integrados e assimilados sem terem sofrido qualquer tipo de segregação ou quaisquer imposições intoleráveis ou descabidas. Em suma, toda essa sorte de «muitas e desvairadas» gentes fazia parte de uma mesma sociedade, a portuguesa. Sendo certo que nem sempre tudo correu da melhor maneira, a verdade é que ninguém no mundo, até hoje, conseguiu fazer melhor que nós.

Essa era a nossa forma de vida e a única coisa que pedíamos era que nos respeitassem. Ora não só não nos respeitaram e não nos compreenderam, como ainda por cima nos agrediram. E, então, a velha raça portuguesa que nos corre nas veias desde S. Mamede, tocada nos seus brios e dignidade, levantou-se altaneira, conduzida por um homem de excepção e resolveu defender-se. Clamou, como se fazia desde o senhor rei D. Afonso II, «Mouros em terra, moradores às armas!», e foi à luta.

É de lamentar, por isso, que tal gesta, que mostrou o povo português no seu melhor, como já se não via desde os tempos em que os revolucionários imperialistas napoleónicos nos invadiram a metrópole, e cujos grão-capitães não conduziam uma campanha tão bem desde Afonso de Albuquerque, tenha tido o fim negro e achincalhante de uma «debandada de pé descalço» como alguém insuspeito já lhe chamou (13). Foi assim que se consusbtanciou uma grande traição. E os seus autores, à falta de um tribunal internacional de justiça de Haia que os condene, devem, no mínimo, ser devidamente aferidos pelo tribunal da História.


A solução para a guerra era política e não militar


«Se não ganhássemos o de além, poderíamos perder o de aquém».

Gomes Eanes de Zurara


À semelhança de muitas outras atitudes, discussões e comportamentos, também passou a ser commumente aceite, ou, se quiserem, politicamente correcto e tranquilizador do espírito, afirmar que a solução da guerra em África era «política» e não «militar» e que as Forças Armadas, pela sua acção, garantiram o tempo suficiente para que essa solução fosse encontrada. A frase foi primeiramente proferida em Lisboa, durante a leitura do primeiro comunicado ao país da Junta de Salvação Nacional, em 26 de Abril de 1974. A partir daqui, a confusão de conceitos e de ideias instalou-se, porém, nada de substantivo veio a público. A questão já tinha sido abordada no livro Portugal e o Futuro, escrito por Spínola (ou por quem o ajudou nesse intento), mas sem especificar o que queria dizer exactamente com isso. Todavia, não deixa de ser curioso (apesar de se ter revelado dramático), que o então famoso general se tenha esquecido do antigo princípio clausewistiano de que a «guerra é a continuação da política por outros meios», querendo passar a fazer da política a continuação da guerra. Ignoramos se alguém que o rodeava lhe terá chamado alguma vez a atenção para isto.

Além de mito, a frase é uma falácia. Vejamos porquê. A decisão para acabar com uma guerra - mesmo em caso de desaire militar - é política, assim como também a decisão de a travar é, acima de tudo, política. Se dúvidas houver, lembre-se que as decisões políticas devem reflectir os interesses nacionais, neste caso dos portugueses, e não dos seus inimigos. Ora, tendo o governo português e os portugueses reagido em legítima defesa contra agressões violentas, vindas do exterior e apoiadas por potências estrangeiras, a territórios e populações que eram legitimamente nossas, por direito e por devoção, e como essa defesa obrigava a desencadear e manter operações militares, caberia naturalmente às Forças Armadas ocuparem-se dessa missão. É essa a razão da sua existência. Iniciadas as hostilidades, estudado o inimigo e apreciadas as ameaças, ficou estabelecido como objectivo político a defesa intransigente da soberania portuguesa em todos os seus territórios, a defesa do território e a protecção das suas populações, bem como a salvaguarda do património cultural e espiritual da nação. Além disso, instituiu-se um conceito estratégico que nas palavras do ministro da Marinha, o almirante Pereira Crespo, se pode enunciar da seguinte maneira (14):

a. Mostrar uma vontade firme de resistir e de vencer (o inimigo teria de acreditar que a luta em que estávamos empenhados era para nós vital e de que nunca desistiríamos, fosse por fadiga, fosse por traição);

b. Acelerar o desenvolvimento económico e social dos territórios ultramarinos, aumentando a participação dos portugueses de raça negra na administração dos negócios públicos. (O inimigo teria de optar entre os sacrifícios de uma luta de guerrilha e a sua integração numa sociedade em pleno desenvolvimento, na qual poderia participar);

c. Receber, como irmãos e sem qualquer preconceito, aqueles que, tendo lutado contra nós, desistissem de tal luta.

Esta estratégia obrigava a uma guerra de desgaste, cuja duração dependia, essencialmente, da resistência do inimigo. Parece-nos evidente que a estratégia dos inimigos, neste ponto, era idêntica à nossa, embora de sinal contrário, isto é, pretendia impor-nos uma guerra de longa duração, que se arrastaria o tempo que fosse necessário, até nos levar ao cansaço e ao desgaste, o que por sua vez criaria tensões internas que enfraqueceriam a nossa vontade de lutar e obrigariam eventualmente o governo português a mudar de política.

Todavia, ao contrário de Portugal (que ainda assim tentou substituir a liderança política na Guiné-Conacri por uma que lhe fosse favorável, através da operação «Mar Verde»), os movimentos subversivos dispunham do apoio de vários países e de «quintas colunas» portuguesas, para, por meio de um golpe de Estado, substituir o governo de Lisboa por outro ideologicamente mais próximo das teses independentistas (ou por compromissos assumidos) e negociar assim a capitulação.

Os defensores da «solução política» versus «solução militar» costumavam cair ainda noutro paradoxo: esqueciam-se que uma solução política, num contexto complexo de relações internacionais e de guerra total, apoia-se não só na força militar, mas também no âmbito estratégico, económico, financeiro, social, diplomático e psicológico. Em todos eles estavam a ser desenvolvidos vários esforços e era necessário, para tal, de mais tempo. E assim sendo, as Forças Armadas não seriam as únicas a determinar as condições que deveriam estar na base das decisões políticas, nem o timing em que estas deveriam acontecer. Quando se diz que a guerra durava há demasiado tempo, o que é que isso quer dizer concretamente? Alguém se pode atrever a definir um prazo para o tempo que uma guerra deve durar?






No plano das contendas internacionais, é possível isolar quatro grandes formas de coacção: políticas, económicas, diplomáticas e militares. Ora, o conflito que estamos a analisar não fugiu à regra. Em termos militares, costuma-se ouvir dizer que uma guerra de guerrilha é impossível de vencer militarmente. Não é verdade, como o provam as vitórias inglesas na guerra da Malásia (1946-57) e no Quénia (1952-1960), bem como as várias tentativas de subversão falhadas que os cubanos, após a vitória de Fidel Castro, tentaram fazer em vários países da América do Sul (por exemplo, na Venezuela, na Guatemala, no Peru, na Colômbia e na Bolívia). No entanto, uma vitória militar como essas, aparentemente, não era aplicável ao nosso caso, mesmo quando se sabia que em 1973, o inimigo tinha praticamente desistido de lutar em Angola. As tácticas utilizadas pela guerrilha permitiam atacar em pequenos grupos e escolher a altura e o local para o fazer, já que podiam atravessar as fronteiras quando lhes aprouvesse (relembre-se que nas ilhas africanas que pertenciam ao território português nunca se verificou qualquer tipo de subversão). Podiam, portanto, prolongar a luta indefinidamente. Ora, para os aniquilarmos teríamos de os perseguir sistematicamente nos territórios onde se refugiavam, porém, uma decisão dessas conduziria, quase de certeza, a uma guerra clássica ou, então, criaria problemas militares e diplomáticos de muito difícil previsão.

Por outro lado, a guerrilha - como também já vimos - não tinha qualquer hipótese de bater as Forças Armadas portuguesas, que estavam muito bem estruturadas, eram numerosas (em termos relativos) e actuavam no seu próprio território. O inimigo teria de subir a parada e constituir forças de exército regular que conseguissem suplantar o nosso potencial, como aconteceu, por exemplo, na Indochina contra os franceses e americanos. Ora, na altura não se conseguia vislumbrar qualquer hipótese do inimigo, mesmo contando com o apoio dos exércitos regulares de alguns países limítrofes, de conseguir atingir esse objectivo. Além disso, tanto a Rússia como a China mostravam muita relutância em fornecer tanto meios militares mais sofisticados como pessoal para realizar operações desse género. Assim, tudo indicava que a solução para a guerra não passava pelo campo militar.

No âmbito diplomático, o impasse era idêntico, não havendo perspectivas de que fosse possível encontrar uma solução para qualquer dos lados. Os sucessivos ataques desferidos pelos inimigos de Portugal na ONU, OUA, etc., nunca tiveram quaisquer resultados práticos e a sua repetição e ineficácia acabou por cair numa indiferença generalizada. Por outras palavras, tornaram-se irrelevantes.

Do nosso lado, era inviável «obrigar» a URSS e seus satélites ou aliados a mudar a sua política de apoio à guerrilha, afinal, estava a defender os seus interesses. De igual modo, estava fora de questão conseguir convencer os dirigentes dos países que tinham fronteiras com as nossas províncias ultramarinas a desistir de conceder apoio ao inimigo. Mesmo que o quisessem (e alguns, como o Senegal e o Malawi, até queriam), não o poderiam dizer publicamente, tendo em conta a política seguida por praticamente todos os países de maioria negra e árabe do continente africano.

No âmbito económico, era igualmente impossível obter uma solução para o conflito. Uma acção da nossa parte teria de ser feita não contra o PAIGC, a Frelimo, a FNLA ou o MPLA, mas sim contra as potências que os apoiavam, pois eram estas que forneciam toda a logística que permitia à guerrilha sobreviver. Ora, tal estava completamente fora das nossas possibilidades. A pressão que eventualmente poderíamos exercer sobre o Zaire e a Zâmbia, no que tocava à importação e exportação de mercadorias através dos nossos portos e caminhos-de-ferro, estava reservada para situações críticas, sendo preferível, por enquanto, mostrar boa vontade e garantir uma boa vizinhança.

O inimigo também não tinha força para prejudicar a economia de Angola e Moçambique e só muito dificilmente o fazia na Guiné, o que no contexto geral era irrelevante. E se no campo internacional era possível que nos conseguisse causar sérios problemas económicos ou até impedir de realizar trocas comerciais no nosso espaço ultramarino, através da interdição das linhas de comunicação marítima, por exemplo, isso iria levantar problemas geopolíticos delicados no equilíbrio mundial, pelo que nunca foram tentados.

A única solução para ambos os lados da contenda era pois obter a vitória pela via política. Ora, o objectivo do inimigo passava por fazer com que Portugal entregasse os territórios ultramarinos. De que forma? Esse «pormenor» parecia irrelevante. Para as potências comunistas, nomeadamente a URSS, o mais importante era conseguir que o poder fosse entregue a movimentos marxistas e não a outros, que teriam de ser excluídos ou eliminados. O resultado final da estratégia era a substituição de soberanias, não a autodeterminação dos povos. Após a independência, os movimentos, reféns da ajuda recebida, teriam o apoio dos países que a forneceram e poderiam quebrar quaisquer compromissos que tivessem feito. A potência «colonizadora», neste caso Portugal, ficaria de pés e mãos atados e a mais pequena objecção seria imediatamente qualificada de «tentativa de ingerência» ou tique neocolonialista.




Já vimos que a estratégia para se alcançar esse objectivo político implicava o desgaste do nosso exército através de operações de guerrilha ou então precipitar a substituição do governo de Lisboa por outro favorável à retirada portuguesa dos territórios africanos. Note-se que a primeira via ajudava e conduzia à segunda. E se as actividades de guerrilha podiam ser deixadas aos movimentos que lutavam contra nós, já para subverter a metrópole era preciso contar com o apoio tanto de algumas grandes potências, como de alguns portugueses pouco dignos desse nome e que se prestassem à infâmia. E foi isso precisamente que aconteceu. A subversão foi dirigida preferencialmente aos meios estudantis, donde sairiam os oficiais e os sargentos milicianos que iriam dirigir as tropas portuguesas, ao mesmo tempo que procurava explorar todos os sinais de descontentamento que pudessem existir entre os militares do quadro permanente.

A primeira movimentação deu-se logo em princípios de 1969, quando os sargentos fizeram saber do seu descontentamento (e com razão) relativamente a uma actualização geral de vencimentos, que vinha piorar a sua já difícil situação económica. O problema foi corrigido, não se tendo verificado uma politização desse movimento, como chegou a ser tentado (15). Em simultâneo, algumas organizações clandestinas levaram a cabo actos de sabotagem na metrópole.

No entanto, o inimigo insistiu principalmente na solução política, não descurando, porém, a acção militar e diplomática. Foi para fazer face a esta estratégia do inimigo que também o governo português se viu obrigado a definir uma solução política, nomeadamente através de acções de contra-guerrilha, durante o tempo que fosse necessário de modo a causar desgaste no inimigo, que inevitavelmente dariam origem a divisões internas e criariam um ambiente de desmoralização generalizada, ao ponto de fazer com que deixassem de acreditar na vitória e perdessem assim a vontade de lutar. No fundo, pretendia-se que os guerrilheiros chegassem à conclusão que era mais vantajoso permanecerem portugueses, ou seja, plenamente integrados no todo nacional. Para tal, era importante não descurar nenhum âmbito de actuação.

Por isso é que não cabia aos militares dar tempo aos políticos para eles encontrarem uma solução política; cabia sim aos políticos dar aos militares (e aos diplomatas, empresários, investidores, etc.) as condições necessárias para que eles pudessem cumprir a sua parte no esforço comum, a fim de que fossem atingidos os objectivos políticos definidos! O que, à excepção do caso da Índia, não se pode dizer que não tivesse sido feito (16).

Resta agora especular sobre outras possíveis soluções políticas que Portugal poderia ter aplicado. A primeira, defendida por alguns, mesmo dentro do regime, era mudar a estrutura política nacional, quer através de outras alternativas de autonomia ultramarina, confederação ou federação (tese defendida pelo general Spínola no livro Portugal e o Futuro), quer transformando o regime numa democracia do tipo ocidental, como pretendia a oposição «democrática» e «liberal». Do nosso ponto de vista, esta discussão não fazia qualquer sentido tendo em conta o problema que se tinha entre mãos, já que as forças inimigas não iriam mudar a sua política ou as suas exigências, qualquer que fosse o tipo de regime ou de organização político-administrativa que os portugueses decidissem adoptar. Por outro lado, a forma como nós estávamos a conduzir a guerra não tinha de ser alterada, fosse qual fosse a natureza das instituições a estabelecer. Além disso, a organização política do Estado português era um assunto interno nacional e o que se viesse a decidir em Lisboa não poderia ir à revelia do sentimento dominante em cada um dos territórios, sobretudo em Angola e Moçambique, pois eram aqueles que maior peso relativo viriam a deter.

Outra hipótese que chegou a ser equacionada passava por fazer um referendo ou um plebiscito, perguntando às populações ultramarinas qual o destino que pretendiam para as suas terras. A vivência, os testemunhos e a informação existentes na altura não admitem qualquer dúvida: os resultados seriam esmagadoramente favoráveis à manutenção de uma pátria portuguesa pluricontinental e multirracial. Dito de outro modo, se tivesse sido essa a solução escolhida, os interesses portugueses não seriam afectados.

Ainda assim, e deixando de parte a discussão sobre a legitimidade de se referendar a soberania, seria uma ingenuidade acreditar que o inimigo aceitaria um resultado que lhe fosse desfavorável; ou que quisesse até sujeitar-se a esta prova, dadas as suas conhecidas debilidades e faltas de apoio interno. Além disso, e na hipótese de concordar com essa solução, faltava saber se ele estaria disposto a colaborar honestamente na sua realização e a acatar as decisões maioritárias. De outro modo, os resultados jamais seriam aceites pela comunidade internacional.





Mesmo que um ou outro grupo de guerrilha aceitasse participar, provavelmente com o objectivo de colher alguns dividendos, era pouco provável que desmantelassem as suas organizações clandestinas ou que depusessem incondicionalmente as armas, para assim poderem reiniciar a luta quando lhes aprouvesse. Acreditar que os países comunistas, que apoiavam a subversão à distância e ansiavam por se instalar nos nossos territórios, iriam desistir dos seus intentos por causa de um referendo, usando métodos tidos como democráticos, seria uma ingenuidade ainda maior.

Políticos e simples cidadãos, nacionais e estrangeiros, e até diferentes comentadores e «adivinhos» tanto na década de 60 do século XX como, já no período pós-revolucionário, as desgraças ocorridas na fase das independências (a que, por decoro, não chamamos pelo nome de descolonização), defenderam que se deveria já ter concedido a independência aos territórios de além-mar, nomeadamente a Angola e Moçambique (17), de modo a que se pudessem criar «novos Brasis» e constituir, dessa forma, uma comunidade de países de expressão lusíada, ou seja, com uma matriz portuguesa a uni-los. Todavia, esta solução seria outra ingenuidade, impossível de realizar, que além disso traria graves consequências. Com efeito, dificilmente essa solução seria realizável enquanto esses movimentos inimigos não fossem vencidos. Mas se isso acontecesse, os grupos armados da guerrilha não teriam qualquer hipótese de vir a participar no poder, já que não possuíam apoio nem estrutura para tal. Depois, uma comunidade de países de inspiração portuguesa iria impossibilitar que esses países caíssem na órbita comunista. Além disso, a permanência de uma larga comunidade branca seria igualmente um entrave a esses desígnios e, por isso, seria duramente combatida.

Ficar ligado a Portugal significava continuar na área de influência ocidental, exactamente o contrário daquilo que o bloco marxista pretendia. É importante não esquecer que estávamos no «último pico» da Guerra Fria. Ou seja, caso Angola e Moçambique se tornassem independentes em circunstâncias que fossem favoráveis tanto para os portugueses como para esses novos países, o mais certo era que a guerra de guerrilha continuasse, apoiada em organizações já existentes, que não seriam desmanteladas. Ora, sem a presença dos meios metropolitanos, Angola e Moçambique não teriam qualquer capacidade para se defender, além de que a vulnerabilidade das suas fronteiras (incluindo a aérea e marítima) aumentaria desmesuradamente. E, nessa altura, Portugal não poderia ajudar militarmente os novos Estados. Infelizmente, muitos dos pseudo-eruditos que viviam naqueles territórios não foram capazes de perceber estas evidências.

Finalmente - a não ser que alguém consiga apontar mais alguma - restava como solução política a tão apregoada via das negociações com o inimigo. Deve começar por dizer-se que as negociações em tempo de guerra não são um fim, mas um meio. Um meio para um dos contendores alcançar a vitória (ou com outro objectivo específico) ou então tentar evitar a derrota. Ora, como Portugal não estava a perder a guerra, não fazia qualquer sentido entabular negociações com o objectivo de evitar uma catástrofe maior. E, no primeiro caso, só fazia sentido negociar partindo de uma posição de força e com objectivos claros que pudessem fazer balancear decisivamente a contenda em favor dos nossos interesses. Em casos mais raros, um dos contendores, pelas posições que conseguiu conquistar, pode julgar-se vencedor à partida e, como tal, tentar impor uma solução ao inimigo, fazendo com este capitule sem mais luta - caso, por exemplo, de Hitler em relação à Inglaterra, após ter conquistado a França. De qualquer forma, uma negociação faz-se sempre Estado a Estado, o que não era, manifestamente, o caso.

No contexto do conflito que travávamos, seria muito difícil, diríamos mesmo impossível, negociar qualquer solução de compromisso, pois tal implicava que não houvesse um vencedor declarado; além disso, era preciso ter em conta que não estaríamos a negociar apenas com os grupos guerrilheiros, mas também com as potências, sobretudo as comunistas, que os apoiavam (a UNITA ilustra bem o que acabámos de afirmar, já que foi possível chegar a um entendimento com esse movimento - não marxista - que não só o neutralizou face aos nossos interesses como ainda por cima começou a combater os movimentos rivais). De facto, tanto o MPLA em Angola, como a Frelimo em Moçambique, nunca aceitaram negociar coisa alguma a não ser a independência, quaisquer que fossem as circunstâncias em que esta viesse a ser obtida. Perante isso, o governo português ia negociar o quê?




António de Spínola


A excepção a estes casos foi a Guiné e teve como intermediário o presidente Senghor, do Senegal, a quem repugnava a influência que a Guiné-Conacri poderia vir a ter sobre a Guiné portuguesa. Os contactos começaram em 1971, através dos bons ofícios de um terceiro governo. Senghor defendia que a Guiné deveria ser independente no âmbito de uma comunidade luso-afro-brasileira, extensiva, naturalmente, às restantes províncias e estava disposto a discutir essa questão com o governo português (18). Lisboa reagiu bem a esta iniciativa e enviou um alto representante a Dacar propor diligências preparatórias (19). Por razões que só o então presidente senegalês saberia explicar, esta démarche não teve continuação. Em meados de 1972, Senghor fez saber ao governador da Guiné que gostaria de falar com ele. Autorizado pelo governo, Spínola encontrou-se com Senghor em Cap Skiring, na fronteira norte da Guiné, mas em território senegalês. Dessa conversa resultou uma proposta de encontro entre Spínola e Amílcar Cabral, onde seria negociado um cessar-fogo, após o que se acordaria que o PAIGC seria integrado nas estruturas portuguesas e passaria a colaborar no governo do território. Daí se evoluiria para uma consulta às populações sobre o seu destino futuro.

As propostas foram analisadas em Lisboa com profundidade, tanto a nível do governo, como a nível do Conselho Superior de Defesa Nacional, e ainda por diversas personalidades. Ficou decidido - e bem - não prosseguir as negociações. Em primeiro lugar, porque ao sentar Spínola e Amílcar Cabral à mesma mesa, o governo de Lisboa estava a reconhecer, implicitamente, que o PAIGC era uma força beligerante respeitável, algo que seria aproveitado, como é lógico, pelos outros movimentos. Tal facto teria amplas repercussões (como tudo o resto) na imprensa internacional. O PAIGC não se limitaria, naturalmente, a fazer reivindicações apenas sobre a Guiné, procuraria englobar Cabo Verde, onde nunca se tinha disparado um tiro; a partir do momento em que aceitássemos um cessar-fogo, ficaríamos com as mãos amarradas para fazer fosse o que fosse, ao passo que o PAIGC conservaria toda a liberdade para fazer o que bem entendesse. E havia a hipótese de nos serem preparadas várias armadilhas. De resto, não se percebia ainda muito bem como seriam as relações entre a tropa portuguesa e os guerrilheiros. Independentemente do que acontecesse, o início das negociações seria sempre visto como uma vitória para o inimigo e teria uma acção moralizadora nas suas hostes.

Mesmo na suposição de que tudo corresse bem, seria impensável que Sekou Touré e a URSS aceitassem tal acordo. Amílcar Cabral seria facilmente denunciado como revisionista ou como traidor e a luta prosseguiria apoiada em grupos mais pequenos. Ora, o efeito de tudo isto sobre o moral das tropas portuguesas poderia ser catastrófico, a confusão ficaria rapidamente instalada e sobreviria depois uma desmobilização psicológica, pois a mensagem que se estaria a transmitir era que a guerra tinha chegado ao fim e que, portanto, o regresso a casa estava próximo. Para além de tudo isso, nenhuma decisão deveria ser tomada em relação à Guiné que não tivesse em conta o seu impacto nas restantes parcelas de Portugal, nomeadamente Angola e Moçambique. Spínola foi informado de que as soluções tinham de ser pensadas tendo em conta o contexto global do conflito, ou seja, não podiam ser vistas apenas pela fresta de Bissau. Nesse sentido, o general foi convidado a ir conhecer a realidade dos outros teatros de operações o que aceitou. Foi nesta entrevista com o chefe do governo que este último proferiu a célebre frase que apontava para a possibilidade de uma derrota militar na Guiné, o que muito escandalizou o general, que pelos vistos nunca aceitou nem digeriu a argumentação apresentada, tendo regressado a Bissau visivelmente transtornado. A partir de então, espalhou-se a ideia de que a solução era «política» e não militar; que os militares deram tempo e até encontraram soluções para a guerra, que os políticos em Lisboa é que não queriam, ainda por cima não se importando com uma derrota militar (o que trouxe ao de cima o espectro da Índia). Daí para a frente, as coisas só pioraram. O «acto» seguinte foi a elaboração do livro Portugal e o Futuro.

Eis pois os «mitos» e as falácias que corroeram a sociedade portuguesa. O chefe do Governo, Marcello Caetano, apesar das suas grandes qualidades intelectuais, do seu patriotismo, da experiência política e de ser uma pessoa de bem, não teve a fortaleza nem contou com os apoios necessários para lutar e contrariar esses mitos. Além disso, era contrário à política integracionista desenvolvida até à sua tomada de posse. A sua matriz cultural em termos de «colonização» era racista e próxima da anglo-saxónica, como evidenciado por variadíssimas tomadas de posição ao longo da sua vida.

Mais a mais, esqueceu-se que a autoridade, por vezes, também se tem de fazer respeitar pela força. Os restantes membros do governo, nomeadamente os que ocupavam as pastas relacionadas com a segurança e a defesa, afirmaram-se surpreendidos com o golpe do 25 de Abril. O almirante «pai» Tomás era um bom homem. Santos Costa estava reformado e o general Kaúlza de Arriaga neutralizado. É caso para dizer, saudoso padre Américo, que não estiveste só neste mundo!

Os novos poderes apressaram-se a fazer de Spínola e de Costa Gomes (a sua antítese) marechais. Em boa verdade, não o mereciam. E isto apesar de durante anos ambos terem tido uma acção de comando militar muito relevante na contra-subversão. O primeiro, porque a sua vaidade lhe embotou o senso e por se ter revelado uma nulidade política; o segundo, por graves falhas de carácter. Tanto um como outro por terem contribuído decisivamente, por acção, omissão ou incapacidade, para a derrota mais catastrófica e desonrosa de toda a História de Portugal. Que ficou consubstanciada na ignomínia a que ainda hoje se chama «descolonização».







Quanto aos «rapazes», vieram a revelar-se apenas isso: rapazes. Com a excepção de indivíduos como Melo Antunes, que tinha mais maturidade ou estudos, ou de Vasco Gonçalves (entre outros), que se comportaram como verdadeiros agentes do Kremlin. Felizmente, os «rapazes», quando se aperceberam do rumo trágico que as coisas levavam, conseguiram (a custo) parar o descalabro (na metrópole) a 25 de Novembro de 1975. Sobrevivemos. Mas é apenas isso que até hoje temos feito. Quanto aos mitos e às falácias, viraram verdade oficial (in Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa, Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 458-504).



Notas:

(1) Recentemente, no dia 25 de Setembro de 2008, num colóquio realizado no Centro Nacional de Cultura, onde se discutiu a situação económica, as finanças e as obras públicas nos últimos anos do marcelismo, a uma pergunta da assistência sobre se a economia e as finanças nacionais de então teriam permitido a continuação das operações militares, o Eng.º Xavier Pintado respondeu claramente, afirmando que além de tudo ser sustentável, a guerra não constituía entrave ao desenvolvimento, e deu vários exemplos de obras grandiosas que se encontravam em execução ou previstas no âmbito do Plano de Fomento em vigor.

(2) Com o tratado de paz assinado com o reino de Marrocos em 1774, por exemplo, garantiu-se a paz, que ainda subsiste nos dias de hoje, num processo que tem decorrido exemplarmente.

(3) Acordo Geral de Comércio e Tarifas.

(4) Embaixador Franco Nogueira.

(5) Bula Manifestus Probatum, de 23 de Maio de 1179, do Papa Alexandre III.

(6) Como aliás se verificou, com as dificuldades que a Frelimo sentiu para tomar conta da situação, antes e depois da independência.

(7) Dados obtidos em entrevista com o major-general Martins Rodrigues, em Abril de 2008. Este oficial falou com o jornalista Nuno Victor, testemunha dos eventos, na ilha do Sal, em Maio de 1974.

(8) Nos ataques a Guidage e Guilege foram interceptadas muitas comunicações rádio em espanhol, pelo que se pode concluir que os ataques estavam a ser dirigidos por instrutores cubanos. No ataque a Cumumbori, (apesar da operação ser do conhecimento e aparente anuência das autoridades senegalesas), o batalhão de Comandos africano ainda teve que emboscar uma coluna mecanizada do Exército daquele país, que se aproximou demasiado do local onde o ataque estava a ser efectuado, causando-lhe baixas e destruindo algumas viaturas (dados obtidos  em entrevista, em 19/09/08, ao director-adjunto Fragoso Allas, director da DGS na Guiné, na altura dos acontecimentos).

(9) A escravatura ainda continua a ser prática corrente em alguns países africanos, nomeadamente de matriz cultural muçulmana. Por exemplo, na Mauritânia, só em 2007 é que foi publicada legislação que proibia, de jure, a prática da escravatura.

(10) Compare-se, por exemplo, com o que se passou durante a Primeira Guerra Mundial: houve distúrbios, agitação política, greves, racionamento, etc., tendo-se chegado ao assassinato do Presidente Sidónio Pais...

(11) Na Guiné havia, em 1974, um batalhão de comandos, 14 companhias e 53 pelotões na tropa regular e 45 companhias e 23 grupos especiais de milícias; em Angola havia 115 grupos especiais de tropas, num total de 3560 efectivos para além do recrutamento da província para as unidades regulares, que ascendia a 42,4 por cento do total. Em Moçambique existiam 83 grupos especiais (GETE, GEP, etc.) e desde 1971 que o recrutamento local era superior ao quantitativo metropolitano. Sérgio Lima Bacelar, Portugal e as Campanhas de África 1961-1974, Estratégia Operacional, Estrutural e Genética, IAEM, CSCD, 1997/98, op. cit., p. 33.

(12) Além de não terem sentinelas, a maioria dos cozinheiros e empregados de mesa eram negros. Ora, se os autóctones odiassem tantos os «colonizadores» e os movimentos subversivos tivessem um mínimo de implantação, certamente não seria difícil infiltrar um elemento que pudesse envenenar a comida.

(13) António José Saraiva, entrevista ao semanário Expresso 22/4/1989, p. 15-R.

(14) Manuel Pereira Crespo, Porque perdemos a Guerra, Lisboa, ed. Abril, Centro do Livro Brasileiro, 1977, p. 53.

(15) Manuel Pereira Crespo, op. cit., p. 51.

(16) É evidente, também, que cabia ao poder político envidar todos os esforços para acabar com o conflito no mais curto espaço de tempo, procurando todas as soluções possíveis consentâneas com o interesse nacional. E ter o cuidado de envolver, na justa medida, todos os sectores da população e sem deixar transparecer a ideia de que se estava a lutar para «empatar» e não para ganhar.

(17) Embora sem nunca terem definido uma data.

(18) A páginas 189 do seu livro Depoimento, o então chefe do Governo português faz esta afirmação: «Ao governo português nunca repugnou esta ideia». O que se estranha face à política prosseguida e às afirmações propaladas. Mas revela, mais uma vez, a ambiguidade em que navegava a determinação de Marcello Caetano.

(19) O dr. Alexandre Ribeiro da Cunha, director do Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar.




Ver aqui















Ver aqui