sábado, 4 de novembro de 2017

A obra de arte é filha de pai...

Escrito por Fernando Pessoa







Meu querido Teixeira de Pascoaes:

Muito lhe agradeço o exemplar do seu Livro de Memórias, que ontem recebi mas só hoje pude ler. Dizer-lhe que o li com inteiro agrado seria mentira.

Aprecio, como ninguém, as suas altíssimas qualidades de intuição e de sentimento intelectualizado. Mostrei sempre, por palavras ditas e escritas, que as aprecio. Reconheço - mais - que dificilmente haverá hoje no mundo - dentro dos limites das literaturas que conheço, e dos autores que, a dentro delas, não ignoro - quem, como o Pascoaes, tenha tão interpenetradas as qualidades intelectuais e as emotivas, e pois tão espontaneamente sinta com o pensamento e pense com a emoção. Mas também não ignoro que essa faculdade andrógina da alma, sendo grande quando se possui ao nível em que a possui o Pascoaes, não é mais que a base, a mãe, ou, se preferir, a matéria, para sobre ela se fundar, nela fazer ou com ela se fabricar a obra de arte definitiva. E a obra de arte é filha de pai, ou de um pensamento formativo, que esculpe a matéria bruta da emoção (impensada ou pensada), ou de uma emoção intensa, que orquestra em unidade a dualidade essencial do pensamento.

São admiráveis as frases nascidas espontaneamente da sua admirável intuição; porém o Pascoaes di-las duas, três, quatro, cinco e mais vezes; repete-se e sobrerepete-se, e, sendo a essência da impressão estética produzida pela intuição e pasmo, não repara que, repetindo-se, o pasmo cessa, porque cessa a novidade.

Por isso os poetas passam e os artistas ficam. Ouso quase dizer que os artífices talvez fiquem mais que os poetas. Falo deste mundo, da glória que há nele, e da acção que nele se emprega. Não duvido de que a emoção do poeta possa viver mais do que a arte do artista em outras esferas, noutros mundos, em outros planos, como dizem os ocultistas menores (in Correspondência, 1923-1935, Assírio & Alvim, 1999, pp. 144-145).











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