Entrevista a Orlando Vitorino
«(...) Nalguns (...) lugares tenho coincidido com o Agostinho da Silva, com o desgosto de verificar que está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás não tem importância, porque o que importa é a Sabedoria (e isso o povo português tem-na com seus mitos e crenças) e a matemática ou pragmática!
Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a graça do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do momento, com o socialismo, com o terceiromundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc. É muito esquisito mas não me arrependo de lhe ter dedicado o livro [Portugal, Razão e Mistério, II], pois tenho que ser justo: foi ele que me inspirou o seu tema central, além de que há nele um fogo na oratória, que leva muita gente nova para fora dos enquadramentos positivistas ou comunistas, abrindo-lhes portas.
No entanto, não o sigo, longe disso, pois sou acima de tudo discípulo de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, estando pois do lado das suas teses e procurando defendê-las e expandi-las...».
António Quadros para António Telmo (Carta XXI, de 8/7/1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos Complementares).
«(...) Quanto ao Agostinho da Silva, não constitui surpresa para mim o que me diz sobre ele. Desempenha perfeitamente o papel de décimo terceiro discípulo de Leonardo Coimbra. No Brasil privei com ele diariamente durante três anos. O Álvaro Ribeiro andava a dizer nos últimos meses da sua vida que Agostinho da Silva era o maior da sua geração. E acrescentava: "Que pena ter desperdiçado esse valor e não ter realizado a obra de que era capaz". Ele sim, Álvaro Ribeiro merece o secreto nome de terceiro discípulo. Os Dispersos, reunidos por Pinharanda, como a si pressinto, tocam-me divinamente. Ao lê-los antevejo, vejo, sinto o que é a presença de Shekina ou Espírito Santo. Se o Espírito sopra onde quer, não é, no entanto, legítimo justificar tudo, como o Soares e o Saramago e o terceiro mundismo e o mais que houver com a ideia da Nova Idade; se o mesmo sopro impele todas as velas que vogam no oceano é porque, hoje, todas elas levam a Cruz da Ordem de Cristo, mas há as correntes de sentido contrário que revolvem águas turvas e retardam o movimento para a Índia.
No Jornal de Letras, se não estou em erro, Agostinho da Silva deu uma entrevista em que considera os jornalistas superiores de longe (sic) aos filósofos. Ou ele nunca leu Leonardo, Bruno, Marinho, Álvaro ou, se os leu, o seu maçonismo de contágio veda-lhe saber o que é uma verdadeira manifestação do Espírito. "A pedra que se põe de lado" não é a pior pedra mas a melhor. Quem tem sido posto de parte pelos constructores do socialismo é Álvaro Ribeiro. A interpretação que Agostinho faz do Quarto Evangelho, análoga à alemã do Fausto, pondo no princípio, não o verbo ou o pensamento, mas a acção, (...) pertence já ao passado».
António Telmo para António Quadros (Carta XXII, de 28 de Julho de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos Complementares).
«Reivindicando, acusando, responsabilizando outros, os países do terceiro mundo atribuem-se a si próprios um estatuto de nações privilegiadas no âmbito internacional. No quadro desse estatuto, elaboram um conjunto de noções ideológicas novas, ou apresentadas como tais, de que ficam isentos mas a que os demais deverão subordinar-se; e aproveitam-se dos princípios ocidentais contra o Ocidente, ao mesmo tempo que se consideram dispensados de os respeitar. Mais do que quaisquer outros, os países do terceiro mundo invocam a cada instante a democracia, a liberdade individual, a paz, a não interferência nos negócios internos de outros países; mas nenhuns praticam uma mais sistemática e completa denegação daqueles conceitos. Agem e pronunciam-se e exigem em nome dos "direitos justos" dos governos e das "aspirações legítimas" dos seus povos; mas apenas o seu critério exclusivo constitui a fonte dessa justiça e a bitola dessa legitimidade; e em qualquer caso é vedado ao Ocidente participar na definição de uma e de outra. Mais: a legitimidade passou a ser uma noção inerente ao terceiro mundo e sobrepõe-se e anula uma qualquer legitimidade que, com fundamentos idênticos, acaso seja invocada pelos ocidentais. O terceiro mundo pode basear uma reivindicação nos desejos de uma maioria, e neste ponto está utilizando contra o Ocidente um princípio deste; mas se o Ocidente se opuser àquela reivindicação com fundamento nos desejos de uma maioria mais ampla, a posição ocidental passa a ser ilegítima, e isto porque a legitimidade definida pelo terceiro mundo é privilegiada e ocupa um lugar hierarquicamente superior. De resto, o terceiro mundo arroga-se a mesma posição privilegiada perante e contra o mundo socialista, e o fenómeno só não é tão evidente porque, por demagogia e por oportunismo político, os países socialistas raramente se opõem às reivindicações do terceiro mundo, aliás quase sempre todas dirigidas contra o Ocidente e a ser satisfeitas por este.
Mas tudo isto leva-nos a uma outra conclusão, e que é a seguinte: os países do terceiro mundo propõem-se redefinir as bases da comunidade internacional. Já foi sustentado que as ordens jurídicas internas e toda a ordem jurídica internacional são nulas, e tem de ser havidas por caducas, porque na sua formulação participaram países que são acusados de haver praticado colonialismo. Estamos portanto em face de um ânimo revolucionário com propósitos revisionistas. Revolução e revisionismo que, no plano mundial, abrangem todos os domínios: a economia, a distribuição das matérias-primas, os sistemas legais e de educação, o comércio entre nações, as instituições políticas, e até as fronteiras nacionais. Todavia, neste ponto interpõe-se uma verificação de importância decisiva: o terceiro mundo, por si, não tem meios de realizar aquela revolução e aquele revisionismo. Quer isto dizer que o terceiro mundo não possui os meios da sua política. Esta, na sua execução, depende da vontade e dos recursos de outros países. Em face do problema do desarmamento, ou do da energia nuclear, ou do das experiências atómicas, ou do comércio mundial, o terceiro mundo assume sempre uma posição reclamativa ou condenatória muito nítida: mas essa posição é perfeitamente irrelevante e em nada influenciará o curso dos acontecimentos: estes serão o que as grandes potências militares e económicas quiserem que sejam: e sem apoio destas não é viável a revolução nem o revisionismo de proporções mundiais ou mesmo de âmbito regional.
Enquadrado pelos grandes pólos de força, o terceiro mundo tenta, sem embargo, conduzir entre aqueles um jogo que lhe permita não se enfeudar a qualquer e auferir de ambos todas as possíveis vantagens. Dá o facto origem a uma das características que o terceiro mundo mais preza: o seu neutralismo ou não-alinhamento. Este neutralismo nada tem que ver com a neutralidade clássica à maneira suíça: esta consiste fundamentalmente numa recusa em favorecer ou apoiar qualquer política nacional de outros estados procurando obter em troca o respeito de todos. Mas o neutralismo do terceiro mundo consiste na faculdade, que se arroga, de apoiar sucessiva e alternadamente um ou outro dos grandes blocos de força mundiais consoante o que, em cada momento, for julgado mais favorável aos interesses do terceiro mundo. Se a neutralidade suíça acaso favorecer um partido contra o outro, o partido desfavorecido sentir-se-ia autorizado a protestar e, eventualmente, a desrespeitar o estatuto do neutro; mas o neutralismo do terceiro mundo permite a este agir com inteira liberdade, e perante o favor que concede a um bloco não se julga o bloco contrário autorizado a protestar e sente-se politicamente compelido a dar mais, a oferecer mais ao terceiro mundo a fim de, por seu turno, também obter deste um outro qualquer favor. Deverá notar-se, por outro lado, que no plano prático o neutralismo tende a apoiar o bloco socialista, e que no plano ideológico o terceiro mundo, que surgiu em nome da democracia e é produto dos ideais e valores ocidentais, alinha na realidade com o bloco socialista».
Franco Nogueira («Terceiro Mundo»).
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Os países "não-alinhados" na Conferência de Bandung (Indonésia, 1947).
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Jawaharlal Nehru na Praça Vermelha em Moscovo (Junho de 1955).
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«Os portugueses já têm todos os elementos para não se deixarem iludir. O nó do problema é a propriedade. O nó do problema, o gatilho da pistola, o que une e o que divide as forças que neste momento e nestes últimos decénios, em Portugal e no mundo, disputam o poder político. Do que se trata, tudo de que se trata, é de decidir entre o reconhecimento da propriedade e a abolição da propriedade.
Socialismo e capitalismo, colectivização, estatização, nacionalização, socialização, autogestão, cooperativismo, iniciativa privada, empresa privada, etc., tudo isso são palavras que, em si mesmas, pouco ou nenhum sentido têm e que, verdadeiramente, só designam uma de duas coisas: ou se quer continuar a reconhecer a propriedade ou se quer a abolição da propriedade.
De um lado e do outro há, todavia, má consciência. Má consciência que se revela no receio de empregar a palavra propriedade. Os que, de um lado, querem que se reconheça a propriedade, receando-se esmagados pelo socialismo triunfalista que não sabem refutar, substituem a palavra certa por eufemismos como "iniciativa privada". Os que, do outro lado, querem abolir a propriedade, vendo-se incapazes de pensar essa abolição em todas as suas consequências, substituem a palavra certa por outros eufemismos: colectivização, estatização, etc. No meio ficam os ainda mais hesitantes e impotentes, misturando, em suas estreitas cabeças, todo o género de combinações inviáveis na esperança de conciliarem a existência "reaccionária" da propriedade com a abolição "progressista" da propriedade: são os que, sempre sem dizerem a palavra própria, falam de socialismo que ainda não é comunismo e se entontecem a fazer Institutos António Sérgio para explicarem a si mesmos o que sejam coisas como colectivização, cooperativismo, autogestão, etc.
Com tantos e tais receios, com tantas e tais combinações vazias, com tantas e tais palavras sem sentido, nunca mais nos entendemos. Deixem-se, pois, de recorrer a palavras que pouco ou nada significam, deixem-se de utilizar eufemismos enganadores e hipócritas, deixem-se de ser gente que não sabe o que diz e quer dizer o que não sabe. Encarem a realidade de frente, encarem-se a vós mesmos de frente e empreguem as palavras próprias. Não tenham medo de dizer que tudo consiste em ser a favor ou contra a propriedade.
(...) A abolição da propriedade é o que sempre definiu o antiquíssimo comunismo. Poderão os comunistas falar de meios de produção, de lutas de classes, de proletariado escravizado, de burgueses e de mais-valia. Poderão até recorrer a metáforas de origem homossexual como a da "exploração do homem pelo homem". Do que exclusivamente se trata é de abolir a propriedade. Abolida a propriedade, o comunismo atinge a única finalidade que lhe é própria, e que é também, simultaneamente, o seu ponto de partida. Ponto de partida para quê, para onde, ninguém sabe. O seu patrono moderno, Karl Marx, encolerizava-se quando lhe perguntavam o que se iria fazer depois de abolida a propriedade. Não sabia. Encolerizava-se e respondia: "Eu não faço receitas de cozinha".
É fácil organizar o combate pela abolição da propriedade. Ao longo da história, muitas vezes o combate se travou e muitas vezes, até, saiu vitorioso: na Esparta de Licurgo, na Morávia dos anabaptistas, no Paraguai dos Jesuítas, na Rússia dos bolchevistas... Mas, abolida a propriedade, os homens continuam a estar no mundo; continua a haver, de um lado, os homens e, de outro lado, as coisas de que é feito o mundo. Os homens não podem viver sem o mundo e a existência no mundo é uma existência de relação com as coisas. A propriedade é, precisamente, esta relação. Abolida a propriedade, que acontece? Deixa de haver mundo e as coisas que compõem o mundo? Impossível. Deixa de haver homens? Impossível. Passam os homens a viver separados do mundo? Não podem. Qual a receita que Marx se recusava a fazer? A única que os diversos cozinheiros conseguiram fazer - e a única que os comunistas, antes e depois de Marx conseguiram fazer - foi a de passarem para o Estado a posse (com a qual confundem a propriedade) das coisas. Ora o próprio Marx já havia prevenido que essa não era solução, e claramente afirmou que transferir a propriedade para o Estado seria um mal pior do que manter a propriedade nos indivíduos. Com efeito, os resultados de estatização sempre estiveram longe de ser risonhos: massacre de milhões de homens, escravidão generalizada e até instituída, etc. E se não se pode dizer que, em rigor, tenham sido uma "estatização da propriedade" todos os diversos regimes comunistas que houve ao longo da história - alguns deles bem mais duradouros do que os marxistas actuais - também de nenhum deles se pode dizer que foi risonho: o dos espartanos foi a vergonha do "milagre grego"; o dos anabaptistas evanesceu-se no caos; o de Munster evanesceu-se na sangueira; o do Paraguai, levou, em duzentos anos, um povo à idiotia...
Ainda temos, todavia, de admitir que o comunismo não seja necessariamente um absurdo? Mas como, então, resolver? Como "receitar"? Como "cozinhar" as relações entre os homens e o mundo, uma vez abolida a propriedade?».
Orlando Vitorino («Manual de Teoria Política Aplicada»).
Quem corre a Belém
«O patriotismo está hoje reduzido aos jogos de futebol que são jogados por onze mercenários», observação amarga de Orlando Vitorino, candidato às próximas
eleições presidenciais, que acredita que
«a Pátria é uma entidade espiritual» e orienta a sua campanha em obediência ao preceito do grande republicano Sampaio Bruno:
«Guerra às ideias, paz aos homens».
Nascido em 1922, casado, pai de dois filhos, funcionário superior da Fundação Gulbenkian,
Orlando Vitorino é licenciado em Filosofia, «mas discípulo de José Marinho e Álvaro Ribeiro»; autor de livros como «Exaltação da Filosofia Derrotada», «Refutação da Filosofia Triunfante», «A Fenomenologia do Mal», «A Idade do Corpo», «Introdução à Filosofia do Direito de Hegel», «Filosofia, Religião e Ciência» e «Tongatabu» (teatro) entre outros; realizador de cinema, autor do filme «Nem Amantes nem Amigos» (Prémio Nacional de Cinema e medalha do Festival de Berlim); participante em diversos congressos internacionais de Economia, de Filosofia e de Teatro; fundador e director de revistas como «Acto», «57», «Teoremas do Teatro» e «Escola Formal», primeiro teorizador português do neoliberalismo.
Perante a
«baixa política» que é a única que existe hoje entre nós, e que tem
«como modelo a linguagem e a terminologia do comunismo», Orlando Vitorino afirma-se como não político, com outra terminologia e outra linguagem:
«Falo da Pátria, falo do espírito, falo mais do direito de ensinar do que do direito de aprender».
Orlando Vitorino apresenta outra linguagem
Um dos pontos fortes da candidatura de Orlando Vitorino reside, sem dúvida, nas suas propostas para a economia. No livro que está na origem da candidatura, a parte dedicada à economia é a mais desenvolvida e parece ter surpreendido críticos como António Quadros e Pinharanda Gomes que não esperavam, de um escritor tão mergulhado como ele nos domínios da filosofia e da estética, uma sistematização tão completa e original do neoliberalismo. Parece também, o que é mais singular, ter impressionado fortemente «um homem que é um triunfador da economia prática», António Champalimaud, o qual, numa entrevista onde considerou que «todos os actuais candidatos presidenciais são um zero», salvaguardou Orlando Vitorino, «a quem dou vinte valores em economia» e, numa sessão no Clube dos Empresários, declarou que a condição que põe para intervir na administração da economia nacional «é a de para isso ser convidado por um Presidente da República que seja Orlando Vitorino».
«Observem –
diz-nos Orlando Vitorino – que os nossos economistas, professores e políticos como o Sr.
Cavaco Silva, o Sr. Jacinto Nunes e outros, são apenas contabilistas, não teorizadores da economia. Não possuem um sistema nem uma teoria, e todos eles recorrem, muitas vezes sem consciência disso, ao sistema keynesiano, que é um sistema socialista. Todos os contabilistas de serviço à política foram “formados” nas escolas universitárias que, entre nós, há muito adoptaram o keynesianismo. Eu descrevo e demonstro tudo isso no livro
“Exaltação da Filosofia Derrotada”. A primeira vez que, em Portugal, o neoliberalismo se contrapôs ao keynesianismo foi no movimento que me coube a mim iniciar, ainda com apoio de Álvaro Ribeiro, o qual, prolongando na política a «filosofia portuguesa», se centralizou na
revista “Escola Formal”, publicada em 1977 e 1978. Hoje, sete ou oito anos passados, pululam neoliberais por todas as áreas da “classe política”, desde os partidos e semanários lisboetas até à Universidade Católica e à
CIP. Mas Trata-se, manifestamente, de um neoliberalismo superficial, aprendido à pressa em livros de divulgação, ditado pelo mais vulgar oportunismo e concebido dentro de quadros mentais socialistas».
Aludiu Orlando Vitorino a vários casos de neoliberais oportunistas. Os da CIP, por exemplo, «onde se reúnem industriais que procuram contabilizar entre os seus lucros os subsídios do Estado socialista». «Mas o caso mais patente – acrescenta – é o da recente campanha eleitoral do CDS. O seu oportunismo rebentava por todas as costuras e não convencia ninguém. Os quadros mentais socialistas que lhe eram subjacentes revelavam-se em expressões como o elogio do regime marxista moçambicano».
Direito de propriedade
Mais adiante, O. Vitorino esclarece:
«O princípio de todo o liberalismo é o direito de propriedade, tal como o princípio de todo o socialismo é a abolição da propriedade. Ora, ninguém vê esses liberais por oportunismo definir e defender o direito de propriedade. Sabem porquê? Porque os teorizadores estrangeiros do neoliberalismo ainda não foram além da categoria do mercado, estabelecida por Adam Smith, e da categoria do dinheiro, estabelecida por Von Mises. Só a Filosofia Portuguesa teorizou a categoria da propriedade. Desculpem-me repetir que tudo isso está exposto no meu livro a que já me referi».
E acrescenta:
«O liberalismo não é apenas uma teoria da economia. É o sistema da liberdade. É um sistema integral que abrange a ordenação política, a ética, a cultura e o ensino. Se se estabelecesse um regime económico liberal e se se conservasse a marxização do ensino, bastariam quatro ou cinco anos para que aquele regime desaparecesse e se restabelecesse a economia socialista».
Por um momento, julgámos que os assuntos a tratar seriam o ensino, a cultura, a ética, domínios nos quais a candidatura de Orlando Vitorino apresenta propostas revolucionárias ou radicais, como a
extinção da Universidade (proposta que se acompanha de um projecto de
organização geral do ensino) ou o repúdio de todo o proteccionismo estatal à cultura. Cita a observação decepcionada de um chefe socialista francês:
«O artista que nos vem pedir um subsídio, traz nas mãos um requerimento e nos bolsos uma granada». Cita a subtil recomendação de Degas:
«É preciso desencorajar as artes». Mas já, de novo, parece aborrecer-se em falar da extinção da Universidade. Justifica-se:
Extinção da Universidade
«Temos apresentado e repetido – em folhetos, em artigos, em conferências e em livros – todos os argumentos que concluem pela necessidade de extinguir a Universidade. No entanto, desde o magnífico reitor da Universidade de Coimbra até ao caloiro da Faculdade de Direito, ou os seus aflitos pais, todos nos pedem a explicação dessa proposta. Estou cansado de a repetir, em todos os casos, acabar por obter a concordância de quem a pede. A explicação é simples: a
Universidade, estatizada há dois séculos e marxizada há uns quarenta anos, condiciona e determina toda a organização do ensino (que, como se sabe, é caótica) e é insusceptível de reforma. É preciso extingui-la para criarmos, em vez dela, escolas privadas de ensino superior».
Como lhe observássemos que já existem entre nós escolas privadas de ensino superior – a Universidade Livre e a Universidade Católica –, Orlando Vitorino esclarece:
«Essas universidades só administrativamente são privadas. O seu ensino, a sua didáctica, os seus métodos, os seus cursos, até os seus professores, são os mesmos da Universidade do estado que lhes serve de modelo, modelo imposto como condição para que os respectivos cursos sejam reconhecidos pelo Ministério da Educação, todo ele infiltrado de comunistas nos lugares-chave».
«Legislativas acentuam estagnação»
Para voltarmos à política, à simples política, ao que a política é para toda a gente, falamos das últimas eleições legislativas. Que pensa Orlando Vitorino dos seus resultados, que surpreenderam tanta gente?
«A situação, melhor, a estagnação, mantém-se inalterável. A estagnação é o socialismo».
Então nenhum sentido terão as propostas liberalizantes do partido mais votado? Nenhum sentido terá o aparecimento triunfal de um novo partido? Orlando Vitorino desenvolve a sua afirmação:
«As liberalizações anunciadas são apenas um recurso débil para remediar a falência do socialismo. Limitam-se a um ou outro sector da economia. Trata-se de um fenómeno que se dá em todos os países que o domínio do socialismo levou à ruína ou, segundo o eufemismo corrente, à crise. Mas o sistema mantém-se inalterável. Até, em certo sentido, mais asfixiante, pois concentra a socialização na cultura, no controlo da informação, na marxização do ensino e, sobretudo, no repúdio da transcendência ou, se quiser, do pensamento. O novo partido de que falam só veio dar mais força a este sistema. Porque os outros partidos ainda se submetem a um mínimo de pensamento doutrinário, apresentado embora na forma de ideologia. O novo partido nem isso apresenta já. Basta-lhe afirmar-se «competente e honesto» sem dar desses atributos quaisquer provas. Tudo se passa como se o sistema – que é socialista – estivesse definitivamente instalado e fosse indiscutível. No tempo de Salazar dizia-se: «Não discutimos Deus, a Pátria e a Família”. Hoje, diz-se: “Não discutimos o socialismo”. Ora, só se não discute o que é morto».
Agora sim. Agora, o nosso entrevistado fala do que lhe é mais próprio, do que se não cansa de repetir. O seu saber é um saber que exige a todo o momento a «originalidade» do pensamento. Muito do que nos diz é intraduzível em linguagem jornalística (como conseguirá ele fazer-se entender pela maioria dos eleitores?). Mas registamos trechos como este:
«Toda a existência do homem, seja a individual, seja a familiar, seja a social, está penetrada de pensamento. É esta a primeira tese da filosofia portuguesa, demonstrada por Leonardo Coimbra: “Toda a realidade está penetrada de pensamento”. O que significa a presença da transcendência. Numa polémica que, há uns anos, os católicos progressistas tiveram com o marxista Althusser, deu-lhes este uma lição ao afirmar-lhes, depois de eles terem concordado com a generalidade das suas teses sociológicas, que toda essa concordância seria vã se eles continuassem a admitir, mínima embora, alguma presença da transcendência, isto é, se continuassem a acreditar em Deus.
A grandeza do homem não está em negar aquilo de que, a todo o momento, depende. Não está em afirmar-se orgulhosamente só. Está em participar nisso de que assim depende. Dêem-lhe o nome de Divindade. Foi ela que criou o ser de tudo o que é, e ao homem cumpre criar a existência de todo o ser que é».
«Patriotismo reduzido ao futebol»
E deste trecho que registámos, transita para outro. Começa por uma observação de amarga ironia: «O patriotismo está hoje reduzido aos jogos de futebol que são jogados por onze mercenários». E acrescenta:
«A Pátria é uma entidade espiritual. O salazarismo, durante 50 anos, confundiu a Pátria com a Nação que é uma realidade de natureza, o conjunto dos que nascem portugueses. O actual socialismo não fala já da Pátria (a palavra Pátria aparece uma única vez na
Constituição política para designar o território) e supõe-a reduzida à República, que é o conjunto dos bens públicos acrescidos dos bens privados. O nome de Portugal – que Agostinho da Silva disse ser “um dos nomes de Deus” – foi substituído pela designação de este País.
Há a alta e a baixa política. Entre nós, hoje, só há a baixa política. É uma baixa política que tem por modelo a linguagem e a terminologia do comunismo (classes sociais, luta de classes, classes trabalhadoras, mistificação e desmistificação, etc.) e o comunismo é, como todos sabem, a única doutrina acessível a todos os estúpidos. Claro que, nesse sentido, não sou um político e a minha linguagem, como a minha terminologia, é outra. Falo da Pátria, falo do espírito, falo mais do direito de ensinar do que do direito de aprender, falo da liberdade sem a qual não há liberdades, etc. Claro que o eleitorado ou o leitorado dos semanários, da RTP, dos discursos políticos, começa por estranhar esta outra linguagem. Não sou, pois, naquele sentido, um político. Como Leonardo Coimbra o não era quando foi Ministro da Instrução e deu início à primeira tentativa de extinguir a Universidade, quando afirmou que “se para ser republicano será preciso não acreditar em Deus, eu não sou republicano”. Nem político era Álvaro Ribeiro quando doutrinou o movimento da Renovação Democrática e escreveu a sua teoria do ensino».
«Socialismo é um matriarcado»
A certo momento, ele próprio se deixa levar para um assunto mais próximo. Quando diz:
«O espírito não é acessível a todos. E aos que é acessível, é-o de modos diferentes. É aí que radica a distinção genérica entre o homem e a mulher. Álvaro Ribeiro tinha todas as razões para, na sua teoria do ensino, defender a separação dos sexos. Não se trata de razões morais ou semelhantes, como acontecia na escola salazarista. Trata-se do seguinte: a inteligência é diferente no homem e na mulher. Não é superior nem inferior. É diferente. A mulher entende de certa maneira, o homem de outra. Entende e aprende. O ensino tem, pois, de ser diferente. A dificuldade reside em…».
Suspensão longa, como se Orlando Vitorino receasse o que ia dizer. E ou não o disse ou venceu o receio e afirmou:
«Muitas vezes me tenho interrogado: porque é que a Igreja Católica veda à mulher o sacerdócio? E porque veda, ao sacerdote, o casamento? E porque é que os movimentos progressistas (ou ateístas) querem a mulher sacerdotisa e o sacerdote casado? Tudo isto são interrogações que nos levam muito longe. E o que eu ia dizer é que a dificuldade, o obstáculo reside, também, aqui, no socialismo. O socialismo é um matriarcado. Envolve, absorve e destrói as singularidades pessoais na uniformidade colectiva, como um grande seio maternal, e rodeia essa absorção de cuidados em que o Estado se imagina como uma grande mãe, providencialista, bonificadora, a todos obrigando, como as mães aos filhos, a viver em segurança: segurança contra os riscos, e proíbe toda a iniciativa individual; segurança contra a velhice, e substitui a família natural pelos lares de terceira idade; segurança contra a falta de habitação, e encerra toda a gente em bairros sociais a tantos metros por cabeça; segurança contra a invalidez e a doença, e cria as instituições da chamada “segurança social”. Mas as coisas são o que são, e toda essa segurança maternalista redunda em pobreza e servidão para todos. Sobre isso, redunda na mais desesperante banalidade. Banalidade, servidão e pobreza são imagens dos países socializados. Mas o socialismo tem, também como as mulheres, a crueldade que foi simbolizada nas amazonas, nas Euménides, nas Medeias, nas fúrias infernais, e assiste indiferente ao cruel espectáculo da banalidade, da pobreza e da servidão a que sujeitou a sociedade dos homens».
Não vamos ainda entrar, mais terra a terra, nas propostas presidenciais da candidatura de Orlando Vitorino, uma das quais é, precisamente, a abolição da segurança social obrigatória e a sua substituição por um sistema privado de segurança facultativa. A conversa vai para além disso, quando o nosso entrevistado associa o matriarcado socialista ao pecado original.
«Não só o pecado original, mas todo o pecado. O socialismo – que é ateu ou, como prefere dizer Mário Soares, agnóstico – forma do homem o conceito de um ser em que não há pecado. O que há é o mal, esse mesmo reduzido à malevolência e a malevolência explicada pelo conflito entre os ricos e pobres ou pela existência da propriedade. O mais grave, porém, é que uma grande corrente de católicos também perfilhou essa concepção do homem e, desde o “catolicismo progressista” à “teologia da libertação”, o pecado deu-se por abolido. Este erro tem consequências imediatas: a imagem do homem torna-se a imagem da inocência infantil, o que coincide com o carácter maternal do socialismo, e o infantilismo torna-se preponderante na existência social, nas culturas oficiais, na escolaridade e nas mentalidades. Para mais fortalecer o erro, a Igreja Católica recusou a entificação do mal, ou seja, negou a existência do Inferno e do Diabo. Neste círculo se formou o referido “catolicismo progressista” que constitui uma tentativa de apologética para o nosso tempo. Como se sabe, a apologética é a defesa da teologia, ou das verdades cristãs, contra os ataques que por crítica, heresia ou infidelidade, em cada época lhes são movidos. Na nossa época, o grande inimigo da teologia é o comunismo, que tem por substância a sociologia, falsa ciência que, como mostrava já em 1934
Leonardo Coimbra, conduz ao ateísmo.
A cultura portuguesa tem alguns dos seus princípios na apologética. Um dos seus primeiros livros de pensamento é o
"Colírio”, de Álvaro Pais, famosa apologética contras as heresias medievais. E o livro
«A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre», de
Leonardo Coimbra, é a mais importante apologética contra o comunismo. Infelizmente, o magistério da Igreja Católica ainda não atendeu, como e quanto devia, a este livro admirável e único. É precisamente aí que Leonardo demonstra como a sociologia conduz ao ateísmo. Isso explica que grande parte dos “católicos progressistas” tenham acabado no comunismo ateísta. Há, entre nós, casos conhecidos e divulgados, até de padres: o do padre Alberto, da Capela do Rato, por exemplo.
Compreendem, de certo, que eu os traga por estes caminhos tão inabituais no jornalismo de hoje e na baixa política de hoje. Mas é por eles que se compreendem muitos fenómenos, até esses das candidaturas presidenciais e dos partidos políticos, que são emergências, de que quase sempre não têm consciência os protagonistas, de outras forças entre as quais se travam conflitos de pensamento. Admito, por exemplo, que a maior parte dos filiados nos partidos socialistas não têm a consciência de que o socialismo é um ateísmo».
Principal característica do nosso tempo
Há uma peça de teatro de Orlando Vitorino cuja edição traz, na contracapa, excertos de crítica à sua representação. Uma dessas críticas observa que «as imagens e as ideias, as verdades e os sofismas se debatem em luxuriante caudal» sem darem, «em cena, um minuto para pensar». Parece-nos encontrarmo-nos, nesta entrevista, em situação semelhante à do crítico-espectador daquela peça de teatro. Orlando Vitorino faz suceder assunto a assunto, ideia a ideia, reunindo conceitos que não são apenas inabituais mas que são o oposto de todas as «ideias feitas» e «conceitos preconceituosos» que alimentam a opinião corrente e a opinião pública.
«Uma das principais, se não a principal característica do nosso tempo, é a abolição da culpa pessoal. Os actos dos indivíduos são atribuídos a razões e motivos não pessoais: as condições da sociedade, o conflito entre ricos e pobres, a educação, a família, o ensino, traumatismos, recalques e complexos psíquicos. Esta abolição da culpa pessoal projecta-se no Direito e na política. O socialismo é uma das consequências: abolida a culpa pessoal, os indivíduos deixam de ser responsáveis pelos seus actos e acabam por ser absorvidos no grande corpo social de que o Estado é a representação. É o Estado que se torna, então, o responsável, o único responsável, e, nessa qualidade, torna-se seu dever intervir em todas as formas de existência, públicas e privadas.
Esta situação tem a origem mais profunda na abolição do pecado. Onde não há culpa, não há pecado. O diabo e o inferno não são reais. O pecado deixa de ser inerente à natureza do homem e do mundo. Ou seja: a humanidade e o mundo, não começam no pecado original. Como o pecado original teve por castigo e consequência o trabalho – “ganharás o pão com o suor do teu rosto” –, desaparecido o pecado original, o trabalho deixa de ser uma maldição bíblica e é, antes, exaltado, até divinizado.
Dentro de si, cada homem continua, decerto, a sentir que o trabalho é o que há de negativo na existência, o que lhe rouba o tempo que gostaria de dedicar aos seus interesses mais próprios, à nobre, produtiva e feliz ociosidade. Cada homem continua a ter por finalidade permanente libertar-se do trabalho, da obrigação do trabalho, e para isso recorre a todos os meios ao seu alcance, desde os mais vulgares e baixos, os que podem trazer a riqueza argentária: atraiçoar parentes, atropelar amigos, comprar lotaria, jogar no totobola e, frustradas todas as tentativas, invejar e odiar o rico. Mas na sua existência exterior, social, política, todos aplaudem a divinização do trabalho, que passou a constituir a substância e a finalidade da política, antiga arte de governar os povos. Os cidadãos deixam de ser cidadãos para serem trabalhadores. Todas as revoluções se fazem com esse fim. Com esse fim, todos os governos governam e todas as sociedades se organizam. E se admitirmos – como cada um de nós na nossa tácita intimidade reconhece – que o trabalho não deixou de ser o que há de negativo na existência e constitui realmente, ou nela é simbolizado, a condenação bíblica de um pecado do género humano, então a política está tendo por conteúdo e finalidade a exaltação do que há de maldito no mundo e na condição do homem, contradição trágica. E se assim é, então a humanidade jamais se poderá libertar do trabalho. A civilização interrompe a sua marcha, pois ela resulta da ciência e da técnica que são a substituição do trabalho pela máquina, da arte e do pensamento que resultam da ociosidade criadora, “único fragmento da nossa semelhança com Deus que nos resta do paraíso.
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Orlando Vitorino
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Claro que nada disto significa que não se atenda ao mundo do trabalho, aos dramas, sofrimentos e direitos dos trabalhadores. Pelo contrário. O que seguramente afirmo é que não se satisfazem esses direitos nem se resolvem esses dramas nem se põe termo a esses sofrimentos, exaltando, divinizando, sobrepondo a todos os valores a causa que lhes dá origem, o trabalho, enquanto se qualificarem todos os homens só como trabalhadores e só para eles se organizar a sociedade e a política. A finalidade da política é criar as condições para que os homens possam ser o que de melhor se destinam a ser. E os homens nasceram para ser felizes, ociosos e vários. O socialismo não permite que os homens sejam vários, porque os massifica na uniformidade colectiva: não permite que sejam ociosos, porque só os reconhece como trabalhadores. Não permite que sejam felizes, porque não pode haver felicidade na condição permanente de trabalhador e na banalidade vazia da uniformidade colectiva».
Que pensa então, dos outros candidatos? Fazemos a pergunta, ele olha-nos como se lhe falássemos de um mundo estranho e irreal. E diz-nos:
«Os outros candidatos… uns senhores que dão pelo nome de Soares, Pintasilgo, Freitas e outros, não é isso? Ora deixe ver…».
Retrato de Freitas do Amaral
«As minhas propostas de candidato foram muito claramente enunciadas. Precedi-as de um livro, publicado há um ano, “Exaltação da Filosofia Derrotada”, que lhes serve de fundamento, justificação e conceptualização. Ninguém pode, portanto, acusar-me de não haver reflectido, demorada e honestamente, o acto da minha candidatura.
Por isso fiquei naturalmente surpreendido, e até indignado, que o sr. Freitas do Amaral, ao publicar, só agora, o livro que pretende expor e justificar, por sua vez, as propostas que apresenta como candidato, tenha desafiado os outros candidatos a escreverem também um livro, como se só ele o tivesse feito e o pudesse fazer, fingindo ignorar o meu livro numa manifestação de soberba em que me dizem ser useiro e vezeiro. Fingindo ignorar, digo eu, porque o meu livro foi objecto na Imprensa – não de anúncios pagos como o dele –, mas de artigos assinados pelas mais responsáveis personalidades e, até, já tratado numa cadeira da Faculdade de Direito em que o sr. Freitas do Amaral foi feito professor por Marcello Caetano.
Ora, como o desafio que lançou, implica para ter um mínimo de seriedade, o convite a uma discussão pública, fiz publicar em vários jornais e na rádio, a minha disposição para aceitar o desafio. Observo, porém, que o sr. Freitas do Amaral só fez aquele desafio para propaganda de si próprio e da importância que a si mesmo se atribui, pois, ao ler o livro de que tanto se orgulha, tive de concluir que o respectivo autor não possui nem conhecimento suficiente da cultura portuguesa nem grandes capacidades de reflexão intelectual.
Pergunta-me, pois, o que penso de semelhante candidato. A melhor resposta é mostrar-lhes o que ele escreve no seu livro “Uma Solução para Portugal”. Vejamos pois.
A “Solução” é composta de quatro propostas. A primeira, a do sistema político, é a de se adoptar a organização que De Gaulle deu ao processo eleitoral francês e às competências do presidente da República Francesa: o primeiro, destinado a distribuir os diversos partidos por dois grupos (aquilo a que os que não sabem português chamam, como o sr. Freitas, “bipolarização”); as segundas, constituindo o que é costume chamar semi-presidencialismo. Não se trata, pois, da reforma do sistema político, mas do modo de expressão da origem da soberania e do exercício de um dos órgãos de soberania. E não é uma “solução” original, mas apenas a adopção de mais um modelo estrangeiro. É certo que o sr. Freitas do Amaral esforça-se por justificar essa adopção, esse estrangeirismo, com os resultados da mais recente experiência portuguesa de outros modelos estrangeiros, afirmando que essa experiência demonstra a falência do processo eleitoral existente e a do semi-presidencialismo também existente. Torna-se, então, impossível compreender como é que o sr. Freitas do Amaral, em nome da mesma experiência, condena o processo eleitoral e defende o semi-presidencialismo. Assim se conclui que o meu privilegiado concorrente à P.R. não tem grandes capacidades de reflexão intelectual.
Na segunda reforma proposta, a do sistema administrativo, o sr. Freitas do Amaral limita-se, por um lado, a fazer o rol das desgraças que todos os dias vêm nos jornais – corrupção, incompetências, etc. – e, por outro lado, a elaborar o rol dos “grandes objectivos” que propõe, os quais não define, não determina, não concretiza e apenas enuncia nos termos gerais e vagos de qualquer orador de comício que fala do que não sabe. Fala de “um conjunto coerente de medidas” sem dizer quais sejam; fala de “reforçar a autoridade do Estado” e de “combater energicamente a corrupção”, sem dizer como e por que meios. O sr. Mário Soares há anos que fala de tudo isto nos mesmos termos, e também a eng.ª Pintasilgo e até o sr. Fernando Neves, a quem a classe política do sr. Freitas chama o “queijo da serra”, e o resultado foi coisa nenhuma como ele próprio, no livro, observa em relação só ao sr. Mário e à tal “Alta Autoridade para a Corrupção”, seus rivais.
A terceira reforma proposta é a do sistema económico. O sistema económico actual, o que trouxe o País à beira da ruína, é o sistema socialista, cujas estruturas foram estabelecidas pelo comunista Vasco Gonçalves, o mesmo que, aplicando as tácticas recomendadas por Lenine, escolheu o sr. Freitas do Amaral para organizador do partido da direita. O sistema contrário ao da economia socialista é o da economia liberal. O sr. Freitas do Amaral propõe a substituição do sistema socialista pelo liberal? Não propõe. Limita-se a dizer que “mudar o sistema económico é pôr a economia a funcionar simples e racionalmente” (sic). Alguém percebe? Ninguém pode perceber. É a pura vacuidade académica ou dantesca. Mais adiante, substitui esse “funcionamento simples e racional” pela expressão “estabelecimento de uma autêntica economia social de mercado”. Alguém percebe? Alguém sabe o que é isso de “uma economia social de mercado”? Ninguém sabe. Nem o sr. Freitas do Amaral.
E segue-se, outra vez, o rol dos “grandes objectivos”. Fala de “liberalizar a economia”, como o sr. Cavaco Silva, mas sempre sem dizer o que isso seja: fala “em modernizar a economia”, como a eng.ª Pintasilgo, mas não diz o que isso seja. Fala na “redução de alguns impostos” mas não diz quais nem que redução. Fala na “reprivatização de algumas e (sempre algumas, alguns), em “reduzir o peso da dívida externa”, em “fortalecer as empresas em geral” e outro palavreado demagógico no qual o sr. Mário Soares é muito mais sincero e a eng.ª Pintasilgo muito mais “convencida”, empregando expressões como: “Gerir com verdade” (que é isso?), “assegurar emprego e habitação aos portugueses” (como?), “melhorar o poder de compra” (a quem?), “promover a justiça social” (que é isso de justiça social, sr. professor de direito?). Por fim, diz que todo este indefinido e indefinível “é uma síntese necessariamente breve do que me parece essencial”.
À quarta reforma, a do sistema da educação, dedica um capítulo que é uma inflação do que já expusera, “em síntese mais breve”, no primeiro discurso que fez depois de anunciar a sua candidatura. Aí afirmou: o ensino encontra-se num caos, por culpa de 30% dos professores secundários; a solução será aumentar os vencimentos dos professores universitários. É um espanto, sr. Freitas do Amaral.
Poupem-me a que lhes fale mais deste candidato. Tirem-no da minha frente. Passem-me outro, depressa!».
«Mário Soares é outra loiça»
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Fundação do Partido Socialista na cidade alemã de Bad Münstereifel (19 de Abril de 1973).
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Soares regressa a São Tomé em Dezembro de 1986 onde, durante oito meses, esteve exilado em 1968.
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«O que impressiona, em todos estes políticos no poder, é apresentarem uma imagem que nada tem a ver connosco, portugueses. Todos eles nos são – nos rostos, na linguagem, até no modo de falar, de vestir, de estar – todos eles nos são… como dizer?... completamente alheios, pouco portugueses. Há uma excepção. É Mário Soares. Com todas as suas limitações, com o pouco saber de que dá provas sucessivas, com as suspeitas que possam levantar-lhe (caso do empresário alemão Flick ao declarar “ter preferido resistir ao socialismo comprando homens como Soares e Gonzalez, o que dera resultado”), com os queixumes dos socialistas que o viram “meter o socialismo na gaveta” (o que não é verdade) e afirmar-se “um tanto liberal” para “governar à Tatcher”, com os seus onze anos de filiação no
PC, com o estado a que reduziu “este País”, com as suas velhas ligações a assaltantes de bancos, com a sua confissão de agnosticismo (que suspeitamos ele não saber bem o que seja), com os seus amuos de menino gordo quando o tirassem do poleiro, com tudo isso, apesar de tudo isso, todos reconhecemos nele um homem que pode ser do nosso convívio, que cabe bem nos ambientes que frequentamos. Não nos surpreenderá encontrá-lo no “café”, sentado à nossa mesa, bebendo e cavaqueando connosco. Não nos passa pela cabeça que não tenha o nome na lista telefónica e que não atenda se lhe telefonarmos. Temos a sensação de acabarmos de nos cruzar com ele na rua, de ficarmos lado a lado na plateia de um teatro, de trocarmos uma piada, de nos rirmos juntos. E de haver em nós lembranças comuns dos velhos tempos da pacatez salazarista, noites gloriosas de fado com a Amália, espera no corredor dos camarins das actrizes (ele até casou com uma), as revoltas contra a Censura que acabavam por se desfazer em risotas (como há tempos lembrou em público o insuspeito Ernesto de Sousa), um certo golão de Eusébio… E as prisões na PIDE que dizem ele ter suportado sem falsos gestos heróicos, sem ranger de dentes, estendendo-se no catre e dormindo a sono solto… E os seus exílios em São Tomé e Paris, exílios dourados e passados em lugares paradisíacos, todos nós invejávamos até… Ora, a nenhuma destas sensações, a nenhuma destas lembranças, é possível associar figuras como a do sr. Freitas do Amaral, pomposo a fingir de modesto, circunspecto para fingir de sábio, distante para fingir de bem comportado, sempre vestido para ir fazer exame com o fato da primeira comunhão. Nem a do sr. Cavaco Silva, tecnocrata seco, aplicado e trabalhador, provinciano e fechado na sua vida na esperança de se assemelhar a Salazar. Nem a da eng.ª Pintasilgo, com a sua beatice de freira laica, o seu compungimento com o sofrimento dos pobrezinhos, o seu gozo de se rebolar num Rolls-Royce e frequentar palácios de Belém, o seu blá-blá marxista, o seu “petit-sourire” de holandesa rósea e gorda, as suas boquinhas beijoqueiras e contentes de que julga ser julgada mais inteligente do que as outras. Não, Mário Soares é outra loiça. Será possível que a política o tenha dessorado, mas a imagem é a de um dos nossos, gordalhudo, malandrete, bonacheirão, simpático, porreiro. Como se ainda ontem andasse connosco em farras pelintras. Agora, é ministro e deixou de aparecer. Achamos piada. Governou-se. Ainda bem. Nós continuamos sem cheta, ele governou-se. Ainda bem. Há-de haver sempre quem se governe. Antes ele do que outros. E suspeitamos que ele, lá no fundo, tem saudades de nós, prefere esta nossa vida pacata, morna, saborosa, sobressaltada pelo pequename, e acabará por voltar».
(in
A Capital, ano XVIII (2.ª série), n.º 5662, Lisboa, 4 Nov. 1985, pp. 1 e 10-11. Texto de António Carlos Carvalho).