«O Movimento de Cultura Portuguesa, que começara a delinear-se no primeiro número da revista Litoral, firmou-se na declaração de que "sem autonomia cultural não há independência política", e adoptou como recurso demonstrativo das suas teses a conhecida distinção entre as condições necessárias e as condições suficientes. Para desenvolvimento da mesma ideologia em várias respostas sequentes, foi considerada a tríade pensamento, palavra, acção para sobre ela ser enunciada como que uma nova lei dos três estados, segundo a qual a doutrinação filosófica precede a pedagógica e esta a política, na fluência das gerações, o que permite escrever a história de modo a relacionar as causas com os efeitos. Esta tese iria contrariar quantos julgam que a política pode ditar a pedagogia e escolher a filosofia, e iria combater o nacionalismo absoluto, aquele que parece julgar-se tão isento de preocupações pedagógicas como independente de leis filosóficas, mas transige na teoria e na prática com as modas existentes em outras nações ou com o internacionalismo predominante.
Nos termos propostos pela doutrinação deste Movimento, cessando a actividade filosófica cessa a actividade pedagógica, e cessando a actividade pedagógica cessa a actividade política, embora a rotina, que é a substituição da actividade pela passividade, mantenha aparências que permitam o contradizer a afirmação e favorecer a indolência dos que para seu conforto evitam o encontro com a verdade. A importação da cultura, ou tradução dos meios de cultura, obrigando a tomar por paradigma tudo quanto se faz lá fora, tem por consequência obrigar o povo a ser movido por outrem, em heteromoção ou heteronomia, em vez de se mover por si, em vez da automação ou autonomia. Conviria, pois, determinar o momento histórico em que o povo português, dotado daquelas qualidades superiores que raros publicistas designam de lusitanas, começou a sentir a sua alma reprimida, recalcada, inibida por um erróneo sistema de docência e de didáctica que lhe inspirou um espírito adverso.
(...) Seguindo o método preconizado pelo Movimento de Cultura Portuguesa, na ordenação da sua tríade heurística, verificaremos que os homens de acção, desconhecedores da etimologia e da semântica, como das figuras de retórica e das categorias da lógica, erram também na propositura de um pensamento nacional. Ignorando a finalidade superior da educação humana, porque lhes falta o entendimento filosófico da transcendência ou o significado religioso da transcensão, esses homens tomam por indiscutível o ideal moderno do ensino prático ou do ensino técnico, e consideram a habilitação profissional como predominante preparação para a vida. Fixando como ponto de mira o trabalho de produção económica, deixando à margem os cálculos referentes ao comércio e ao consumo, e eliminando a possibilidade de alterações súbitas na técnica industrial, nas fontes de energia, nos territórios de matérias-primas e nas migrações dos povos, atrevem-se a prever o número de técnicos indispensáveis para assegurar o funcionamento do mecanismo económico em determinado ano, e estabelecem um programa ideal de escolaridade conveniente para abastecer a agricultura, a indústria e os serviços.
Considera-se ucrónico um plano de fomento educativo que haja por bem a formação de um escol de pensadores, escritores e artistas, os quais teriam por missão a defesa da cultura nacional e a elevação dela acima das culturas estrangeiras. Tudo quanto é invocado em nome da finalidade superior da Pátria é colocado fora do campo de visão dos homens práticos. Não se considera utopia a previsão da economia nacional para sobre ela estabelecer um plano de fomento escolar».
Álvaro Ribeiro («Espelho do Pensamento»).
"O espírito da palavra universidade está ultrapassado´"
No núcleo do 57 - orgão do movimento de cultura portuguesa que alenta de patriotismo a nossa mocidade universitária -, distingue-se o nome de Azinhal Abelho. Tem, este escritor nacionalista, consagrado a sua actividade literária ao tema do seu dialecto Alentejo, cantando-o em prosa, em verso e até em imagens cinematográficas.
O autor dos livros de poesia Cantochão, Guiana Abaixo e Confidências de um Provinciano - este último obteve o prémio Antero de Quental -, costuma passear pelas ruas da cidade. Encontrámo-lo uma destas tardes, quando saía de sua casa. E falámos de literatura.
- Então, quando temos novo livro?
- Depois dos Arraianos virá o Elogio da Província. Mas por agora preocupo-me com a capital. Venha comigo ver Lisboa.
- Ver Lisboa?
O poeta convidava-nos para um passeio até ao miradouro da Senhora do Monte.
- É verdade. Propus à Câmara uma serenata nas noites do mês de Junho, por ocasião das "Festas da Cidade".
- E a Câmara aceitou?
- Em princípio, achou boa a ideia. Mas a equipa das "Festas" está sempre entregue a colaboradores tradicionais, e não é fácil qualquer inovação fora das reconstituições históricas.
- De que constava a vossa iniciativa?
- A "Noite da Quadra Popular". Uma festa dedicada às trovas dos cravos de papel. Um concurso e um concerto ao ar livre, por um orfeão de 140 vozes, no alto da Senhora do Monte. Era o Coral do Sport Lisboa e Benfica - por exemplo, numa serenata a Lisboa.
- Mas é imaginação ou realidade?
- Por enquanto é estudo, disse-nos rindo.
Chegámos ao miradouro que domina a cidade. O casario de mil cores, depara-se-nos ante os olhos e bem merece o entusiasmo do poeta.
- Bonita, a nossa cidade!
- Bonita e crescida - adiantámos.
- Crescida, não tanto como desejaríamos. É uma cidade larga. Gostávamos que fosse mais monumental. Olhe os prédios! Comezinhos, não passam timidamente dos 15 andares. Tudo, entre nós, é limitado.
Ao longe, aparecia o edifício do Hospital Escolar, fazendo adivinhar as outras construções, lembrando-nos das novas edificações da cidade universitária, citamo-las como exemplo.
Justamente - retorquiu o poeta. A Cidade Universitária é a expressão exacta dessa largura. As edificações parecem-nos longas em superfície e banais na concepção. À parte as da Biblioteca Nacional, aquele agrupamento dá-nos a sensação de feira industrial, com pavilhões de estuque e gesso. O nosso tempo é da verticalidade. Os horizontes estão desvendados. Subir, subir às nuvens. Eu vejo os edifícios das escolas como padrões de arquitectura duma era. Depois das igrejas é o que deve sobressair na vista geral de uma urbe.
- Em todos os países a Cidade Universitária...
- É verdade. A do México, por exemplo, é uma obra prima do seu país. A Biblioteca de S. Paulo avista-se de todos os sentidos. E a nossa? Eu digo o meu parecer ingénuo: não encontro diferença entre os edifícios dos novos hotéis e os das Faculdades erguidas no Campo Grande.
- Então, pensa que a Cidade Universitária não corresponde ao fim para que foi construída?
- Acho que a Universidade (chamemos-lhe assim) deve ser múltipla.
- Múltipla?
- O espírito da palavra universidade está ultrapassado. Não há homens universitários - que abranjam um Universo Cultural. Há especialistas. Iremos para o campo das Faculdades, mas das Faculdades Técnicas e Clássicas. Faculdades Livres. Institutos superiores com campos experimentais. Não limitemos a iniciativa escolar à única competência ou valorização estadual.
- Quer dizer...
- Institutos - o termo pouco importa -, Faculdades, Escolas Superiores ou Especiais. Portugal é um país metropolitano e ultramarino. Porque não Escolas Superiores em Angola, Moçambique, em Goa, em Évora ou em Braga? Os nossos padres para se diplomarem com um curso superior têm de ir a Lovaina ou a Roma. Os nossos especialistas...
Claustro da Universidade de Évora |
- Verdade simples. Não têm absolutamente nada. Têm de ser autodidactas. No nosso Conservatório Nacional ensina-se música, dança, teatro... Cinema é um campo proibido.
- Mas estamos a afastar-nos do assunto da entrevista. Voltando à Cidade Universitária...
- Como edificação sou pró. A concepção, porém, achou-a medievalesca.
- Concorda que nela deve haver um bairro residencial para professores?
- Não, não concordo. Acho que os professores têm a sua vida profissional e a sua vida familiar. Um bairro residencial dá-me ideia duma concepção monástica. E bem vê, se voltamos à vida universitária monástica, como se fez em Coimbra - desde as praxes, canelões, discursos à porta férrea - penso num retrocesso. Inclino-me para o estudo universitário remunerado como utilidade pública, mas não em regime de convento ou quartel.
- A minha opinião é diferente. Se o professor tiver a sua residência num bairro da cidade universitária poderá, com certeza, prestar muito mais assistência aos seus alunos, tanto antes como depois das funções docentes. O que nos custa hoje é observar o exemplo do professor que se desloca até à faculdade de táxi ou de carro particular, dá apressadamente a sua aula ou as suas aulas, para logo a seguir, sem perda de tempo, se meter no automóvel em direcção ao lugar onde exerce outras actividades.
- Mas o perigo não é do bairro residencial. O perigo é justamente de outras actividades. Quem poderá proibir a um professor universitário que desempenhe actividades extras?
- Quem? A vocação, a profissão. Eu tenho a mais elevada noção do que seja o ensino universitário.
- O exemplo teria de vir de cima. Eu não gosto de limitações. Os homens só atingem as alturas com asas. Deixemos, repito, as limitações. É o que mata o espírito de iniciativa e de vocação. Não há coisas definitivas. Temos de as adaptar ao nosso tempo. O estudante de capa e batina é uma ficção pitoresca, para o turismo. Não há que ficar a olhar para o Quinhentismo...
- Mas, voltando à Universidade de que nos estávamos a afastar. Suponho que o assunto lhe interessa?
- Certamente. Mas antes deixe-me contar-lhe o seguinte. Em 1937 assisti a um curso em Paris, onde Paul Valéry dava lições de Cátedra. Os que eram poetas ficavam-no sendo. Os que não eram, não adquiriam senão conhecimentos. A verve da poesia é o sonho. Tanto pode ser necrológio como profecia. Não são só os poetas os saudosistas que cantam a vida que se perdeu.
Paris (Cidade-Luz). |
- O problema da Universidade é de uma actualidade flagrante. Tudo o que contribui para o alevantamento do nível português é vantajoso. Ainda estamos no ensino primário obrigatório. Temos de ir aos cursos secundários também obrigatórios e depois às especializações. Uma Universidade em Lisboa? Outra no Porto, outra em Coimbra? Mais do que isso. Variadíssimas Faculdades em Lisboa, no Porto, em Coimbra, Évora, Braga, Luanda, Beira, Lourenço Marques. No Brasil as capitais de Estado, geralmente, têm a sua Universidade, a sua Faculdade. E há as Faculdades Católicas.
A nossa entrevista terminara. E descemos do alto da Senhora do Monte até à Baixa. O poeta confundiu-se com a multidão.
(in Flama, ano XIV, n.º 524, Lisboa, 21 de Março, 1958, pp. 17 e 24. O original título da entrevista era: "O Problema das Faculdades avalizado pelo poeta Azinhal Abelho").
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