terça-feira, 16 de abril de 2013

Perda da Índia Portuguesa (ii)

Escrito por Franco Nogueira 




Claustro Real do Mosteiro da Batalha


«O valor parece mais que uma virtude militar: é o próprio atributo da força.

Por definição, a força é valente, destemida, arrojada, dominadora, senhora de si, cônscia das suas possibilidades e da sua acção: não é desordenada, não é exaltada, não é violenta. Tem tempo para se impor - é paciente; não duvida de si - é calma; tem a segurança do triunfo - é generosa.

A força marcha em forma e em cadência - é a sua necessidade estrutural de ordem no espaço e no tempo; a força marcha erecta - é a revelação externa da confiança; a força tem o passo rígido e firme - domina, é a senhora da terra em que avança. A força não se nega a si própria - "morre mas não se rende"; a força não descansa nem mesmo para morrer - "morre mas devagar".

A força que é força e não violência é de si mesma leal, quer dizer, verdadeira, clara e sincera. Notai que a força marcha ao som dos clarins - anuncia a sua presença; a força faz rebrilhar ao sol as suas armas - expõe à vista os seus meios de ataque; a força comanda em voz alta - sabem-se em volta as suas intenções.

Na sua estrutura íntima a força não é simples aglomerado de homens, é um organismo em que é indispensável união, colaboração, solidariedade; a lealdade, na força, é necessária para a certeza de que cada orgão cumprirá em cada momento o seu dever. Por isso não pode haver nela intriga, desunião, desconfiança mútua; ciosa como é, a força tem de expulsar de si, como corpos mortos, os elementos que lhe não pertencem de alma, e cujo coração não pulsa ao ritmo do seu.

A lealdade é a verdade do sentimento: é impossível ser desleal sem mentir à consciência, sem ludibriar a confiança alheia. Por essa razão a força não comporta conciliábulos nem combinações secretas: ela bate-se de frente, é desleal atacá-la pelas costas.

Todos somos obrigados a ser verdadeiros e justos, e patriotas; e, no entanto, a preocupação da verdade é traço característico do sábio; a preocupação da justiça domina o juiz, como o patriotismo deve absorver e dominar a alma do soldado.



Oliveira Salazar




Para cada um de nós o patriotismo não pode desprender-se da família, do torrão natal, dos interesses e dos haveres, das recordações de infância, das saudades dos lugares ou das pessoas, dos vivos e dos mortos, das alegrias e tristezas - as pequenas ou grandes coisas que são nossas e constituem para cada qual, dentro da Pátria, o seu pequeno mundo. E tudo isto que nos prende diminui um pouco, na vida cotidiana, essa unidade augusta, esse todo indivisível que é a Pátria.

Para o soldado, porém, não há a aldeia, a região, a província, a colónia - há o território nacional; não há a família, os parentes, os amigos, os vizinhos - há a população que vive e trabalha nesse território: só há, numa palavra, a Pátria, em toda a sua extensão material, no conjunto dos seus sentimentos e tradições, em toda a beleza da sua formação histórica e do seu ideal futuro. Ele deve-lhe tudo - a saúde, a comodidade, o descanso, o dia e a noite, a paz, a família, mesmo a vida. E parece que é por esse consumo de vidas que a Pátria se mantém, e aumenta a sua beleza e engrandece o seu poder. Diante do inimigo externo, que representa ameaça para a existência ou para a integridade da Pátria, esta é, para o soldado, material e tangível como um relicário de ouro em que se confiassem à sua guarda a independência, a liberdade, os bens e a vida dos cidadãos.

Fora do são nacionalismo, fora da noção e amor da Pátria não há, pois, vida nem força militar; há exércitos de parada ou hordas organizadas para a pilhagem».

Oliveira Salazar («Elogio das Virtudes Militares», no Quartel General do Governo Militar de Lisboa, em 30 de Dezembro de 1930, por ocasião da imposição das insígnias da grã-cruz de Cristo ao então governador militar, Brigadeiro Daniel de Sousa).


«Lisboa, 9 de Dezembro de 1961 - O Conselheiro americano, Xanthaky, pediu para ser recebido com urgência, e veio pelas 16 horas de hoje. Em nome e por instruções do seu Governo, fez-me a seguinte comunicação:

1. Os Estados Unidos reiteram a sua afirmação de que têm procedido a diligências em Nova Delhi no sentido de dissuadir o Governo indiano do emprego da força, mas não sabem se este terá em conta os avisos americanos.

2. Todavia, mesmo que os indianos não usem a força, o problema de Goa permanece, e a sua solução apenas terá sido adiada.

3. Este problema de Goa põe-se também em relação aos demais territórios ultramarinos portugueses. Torna-se por isso necessário que Portugal, urgentemente, e dramaticamente (promptly and dramaticaly) anuncie os objectivos da sua política ultramarina; e estes devem ser, segundo o Governo dos Estados Unidos, a livre expressão dos desejos das populações, a construção de uma sociedade multirracial baseada na escolha livre e pública das populações.


O Portão de entrada para a cidadela da fortaleza, de autoria portuguesa (Baçaim, Vasai).


4. Se for visto a esta luz, o problema de Goa é mais fácil do que o dos territórios de África, dada a maior preparação de Goa para Governo próprio (self-government).

5. Quando os Estados Unidos garantiram a Portugal que se oporiam ao uso da força para anexação de territórios portugueses por Estados vizinhos (declaração de 7 de Agosto de 61), não tinham intenção de significar que tais seguranças poderiam ser separadas da questão de princípio, e devem ser entendidas na base da proclamação, por Portugal, do objectivo de "self-determination" para as suas províncias ultramarinas.

6. Estas duas posições americanas mantêm-se ou caem juntas: os Estados Unidos não podem aparecer como simplesmente protegendo o "status quo".

Disse a Xanthaky que me reservava de comentar posteriormente o que acabava de me transmitir. Mas queria desde já formular duas observações, e que eram estas: eu via que se tornava cada vez mais difícil manter o diálogo com o Governo americano, cuja incompreensão, ingenuidade ou má-fé atingiam o absurdo, e isto porque os Estados Unidos sabiam ou deviam saber perfeitamente que a nossa anuência ao que agora de novo nos aconselhavam constituía a maneira mais eficaz de fazer ruir o nosso ultramar (e talvez na verdade fossem estes os objectivos americanos); e também me pareceria que, ao cabo de oito meses de diálogo*, havia um novo recuo na posição americana, e isto num momento dramático para nós, com os indianos às portas de Goa, o que se me afigurava, até do aspecto moral, pouco elegante da parte de um amigo e aliado. Xanthaky não fez comentários.

* Para melhor esclarecimento, convém indicar que, desde o início da Administração Kennedy, eram quase constantes as conversas com o Governo de Washington.

Para este, o dilema era então o seguinte: desejavam que Portugal fosse um aliado seguro; mas desejavam também agradar aos afro-asiáticos, o que lhes parecia incompatível com o apoio ou simples anuência à política de Portugal em África. Era, naquele momento histórico, a conciliação do inconciliável, e daí as contradições permanentes, os recuos e os avanços da política americana da época».

Franco Nogueira («Diálogos Interditos»).








«Numa iniciativa inesperada para um regime tão liminarmente anticomunista, e aproveitando os laços criados através de Macau, Salazar lançou uma aproximação à República Popular da China. Adriano Moreira revela que, por sugestão sua, Salazar ofereceu ao governo de Pequim apoio logístico e colaboração militar no conflito com a Índia, sugerindo nomeadamente que Goa funcionasse como uma "plataforma militar do Exército chinês". Nesse sentido foi enviado um telegrama ao Primeiro-Ministro chinês, Chu En-Lai, por intermédio do governador de Macau. E a reacção chinesa? "Chu En-Lai ficou de considerar a proposta", recorda Adriano Moreira, "mas não acreditava que Nehru quisesse perder a sua imagem de pacifista e invadisse Goa". Jorge Jardim, sempre em missões complexas, foi um dos artífices dessa via diplomática Lisboa-Pequim, que teria outros desenvolvimentos ao longo de 1962-1963».

José Freire Antunes («Kennedy e Salazar: o leão e a raposa»).



Oliveira Salazar tem ainda dúvidas de que a decisão final de Nehru seja a de atacar. Admite que o primeiro-ministro indiano deseje intimidar o governo de Lisboa; e Salazar não quer, tomando resoluções extremas, mostrar que se deixou possuir de pânico, ou medo. Mas salvar Goa é o seu objectivo, e para o conseguir está pronto a usar todas as cartas, por mais fracas ou duvidosas que sejam. Na noite do dia 10 de Dezembro, em reunião com os ministros responsáveis, debate-se um problema: invocar, ou não invocar, a aliança inglesa. Por parte dos ministros, é unânime o parecer: não há dúvidas quanto às intenções indianas, os tratados com a Inglaterra estão em vigor, e obrigam-na; Londres tem larga influência em Deli; e a História não compreenderia que, no seu jogo, Portugal houvesse desprezado qualquer pedra. Salazar hesita, mostra relutância: «repugna-me pedir serviços a terceiros, ainda que devidos por tratado». Mas a necessidade do momento é imperiosa, o processo histórico de defesa de Goa tem de ficar completo, e Salazar concorda num apelo à Inglaterra em nome e nos termos da aliança; e o ministro dos Estrangeiros é encarregado de executar a decisão (1). Nas primeiras horas da madrugada do dia 11, Manuel Rocheta recebe em Londres uma instrução: porque está ausente o secretário de Estado, deve o embaixador procurar o primeiro-ministro MacMillan com a maior urgência, e entregar-lhe uma nota: se não for possível obter uma entrevista com o primeiro-ministro, deverá confiar a nota ao mais alto funcionário responsável que puder receber o representante português na manhã desse dia 11 de Dezembro, que é uma segunda-feira: não fará comentários, nem responderá a perguntas ou observações, declarando somente que as transmite a Lisboa: e dirá que fica à disposição de MacMillan ou do seu representante qualificado para receber a resposta. E a Rocheta é fornecido o texto do documento a apresentar ao gabinete inglês. Diz: «Tendo em conta as obrigações decorrentes e os compromissos assumidos na declaração luso-britânica de 14 de Outubro de 1899, que se encontra em vigor e tem sido reafirmada pela parte britânica em numerosas ocasiões subsequentes, e vista a ameaça de agressão militar iminente sobre o território de Goa, como é do conhecimento do governo britânico, o governo português dirige-se ao governo de Sua Majestade e exprime o desejo de saber que meios pode o Reino Unido, nos termos do §  2.º da referida declaração, pôr à disposição do governo português para, em conjunto com os meios portugueses, fazer frustrar a agressão acima aludida». Por outro lado, o embaixador do Rio de Janeiro, João de Deus Ramos, avista-se na mesma ocasião com o presidente do Brasil, João Goulart, e pede-lhe que o governo brasileiro condene a ameaça de agressão; e Vasco Garin, representante permanente da ONU, convoca uma conferência de imprensa com os jornalistas acreditados junto da organização. Pelas oito da manhã da mesma segunda-feira, Manuel Rocheta está no Foreign Office para cumprir as suas instruções. Duas horas mais tarde, MacMillan manda informar que, por estar a presidir a um Conselho de Ministros, não pode receber o embaixador; e é a Lord Landsdowne que fica entregue a nota portuguesa. Landsdowne diz que vai procurar submeter o assunto a MacMillan com a urgência possível, e apenas depois poderá ser dada uma resposta; mas desde já pede a compreensão do governo português para o melindre de um conflito que envolve um outro membro da Comunidade Britânica, e este facto limita seriamente as possibilidades de actuação do gabinete de Londres.




Em Lisboa, não há ilusões sobre a atitude final do governo britânico: aceita-se que não é de esperar da Inglaterra uma declaração de guerra à Índia: mas não será de todo impossível que, justamente para escapar ao embaraço, e também ao inconveniente, de faltar a um tratado em vigor e útil ao Reino Unido, Londres se empenhe junto de Washington para que ambos os governos, por meios exclusivamente políticos, travem o primeiro-ministro Nehru. Deveria ser suficiente um anúncio solene: se a União Indiana usasse a força contra Goa, prejudicaria seriamente as suas relações com o Reino Unido e os Estados Unidos: e os dois vultos empréstimos que Deli está negociando com a City e com Wall Street já não se realizariam. Mas neste ponto intervém a política global americana: o anticolonialismo, a conquista do terceiro mundo como factor na estratégia anticomunista. Intervêm igualmente, mas em sentido oposto, duas outras considerações: a conveniência para Londres e Washington, de que Nehru mantenha a sua imagem de pacifista, pois também seria constrangedor para os dois governos democráticos apoiar um agressor; e a vantagem de não conduzir Portugal a um desespero que poderia levar longe, num caminho não desejado pelos dois países. Para Londres e Washington, seria ideal poder continuar a dizer na ONU que consideravam Goa uma colónia e que os portugueses deveriam abandoná-la; e seria ideal que Nehru continuasse a atacar Portugal e a reivindicar Goa, mas não a invadisse. Daqui a complexidade de um problema que, embora menor em si, suscita questões de repercussão global, e de princípio. E também não se acalentam em Lisboa ilusões sobre a atitude geral do Ocidente: esta será posta à prova, aliás, na reunião do Conselho Ministerial da NATO, convocada para dentro de quarenta e oito horas. Das Nações Unidas nada há a esperar: ainda que reprovem em teoria o uso da força militar como meio de resolver conflitos, não ousarão converter esse sentimento numa resolução: e em qualquer caso o Conselho de Segurança, que é o foro competente, poderá sempre ser paralisado pelo veto da Rússia. Apenas uma última réstia de lucidez, conjuntamente com atitudes políticas de governos que peses, poderá deter Nehru. Mas o primeiro-ministro indiano, sempre impelido por Menon, foi longe de mais no plano político e no plano militar: e o recuo implica uma perda de face que, no âmbito interno, pode ter consequências nefastas para o seu governo e o seu partido. Por isso, na tarde do dia em que é feito um apelo à aliança luso-britânica, e com espírito de realismo sereno, o ministério dos Estrangeiros telegrafa ao embaixador de Portugal junto da ONU: «Consideramos o ataque indiano iminente, não parecendo legítimas quaisquer dúvidas de que se iniciará durante a semana que hoje principia». Neste ponto, contudo, um outro problema capital é ponderado: convocar ou não uma reunião do Conselho de Segurança? Poderá o governo português solicitar em todo o momento uma reunião do Conselho, que todavia não parará a Índia se esta houver resolvido tomar Goa pela força; e, se além de um resultado negativo, dessa reunião ainda sobrevier mais uma condenação de Portugal por colonialismo, será preferível nesse caso não submeter o problema àquele orgão da ONU. Perante o dilema, o governo de Lisboa decide não pedir uma reunião do Conselho antes da agressão; pedi-la-á imediatamente após o seu começo. Garin é instruído para preparar nesse sentido o terreno em Nova Iorque. Entretanto, multiplicam-se e agravam-se as provocações indianas: aparelhos militares violam o espaço aéreo de Goa, postos fronteiriços são atacados, rajadas de metralhadoras são dirigidas a território português. Garin envia ao presidente do Conselho de Segurança mais uma comunicação e uma queixa: invocando a Carta da ONU, informa aquele orgão de que o governo português considera iminente uma agressão militar da Índia contra Goa: e solicita que o facto seja comunicado a todos os membros do Conselho.

Naquele dia 11 de Dezembro de 1961, ao cair da tarde e conforme um anterior pedido de audiência, Salazar vai receber o ministro da Educação Nacional. Afaga a testa, aperta a cabeça nas mãos, e diz para os ministros que saem: «A Educação Nacional! Que será? Bem, vamos tratar do analfabetismo em Santa Comba! A Educação Nacional! Que interesse posso eu neste momento sentir pela Educação Nacional?».


Com empenhados esforços e finalmente arrancada ao governo brasileiro uma declaração pública: o Brasil tomou conhecimento de notícias sobre a possibilidade de «uma acção militar contra os territórios portugueses de Goa, Damão e Diu, e reafirma a sua formal rejeição do emprego da força armada e manifesta a confiança de que a União Indiana se absterá de quaisquer medidas contrárias às disposições da Carta das Nações Unidas». Acrescenta o governo brasileiro que acompanha os acontecimentos com a maior atenção, dentro dos princípios que fundamentam o Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e o Brasil, e está pronto a prestar a sua colaboração «para que os processos pacíficos de solução de controvérsias tradicionalmente defendidos pelos mais ilustres leaders da União Indiana se apliquem às actuais diligências com Portugal». Contém esta declaração os elementos fundamentais: condena a violência; considera «portugueses» os territórios, e não sob administração portuguesa; invoca o Tratado entre Portugal e o Brasil, dando assim ao documento vigência e actualidade; põe as Nações Unidas perante as suas responsabilidades; e encosta Nehru ao dilema de obedecer aos seus próprios princípios, e respeitar Goa, ou de a invadir, e negá-los. Em Nova Deli causa irritação a atitude brasileira, e temor, dada a importância do Brasil na América do Sul, e para além dela. Com destaque, a declaração do Itamaraty é publicada na grande imprensa brasileira, e alguns dos seus orgãos, como o Globo ou o Jornal do Brasil, exprimem a sua franca solidariedade. Junto dos demais governos sul-americanos pratica o gabinete de Lisboa novas diligências, no sentido de obter também uma definição de atitude, e na generalidade aqueles fazem, com modificações de ênfase e acaso em tom menos nítido, declarações que no entanto têm de ser havidas como contrárias à União Indiana. Lisboa, no caminho desbravado pelo Brasil, consegue mobilizar em seu apoio a opinião latino-americana: e obtém declarações favoráveis desde a Argentina ao Equador, desde o Chile ao Peru.

Pouco mais de vinte e quatro horas após o apelo feito por Portugal, responde o gabinete de Londres. Manuel Rocheta é convocado por Edward Heath, Lord do Selo Privado (2). Que diz Heath? Toda a atenção havia sido dada ao apelo português. Londres deploraria profundamente qualquer recurso à força contra território português. Fará quanto estiver ao seu alcance para arredar tal perigo. Mas há limitações inevitáveis: sendo parte na disputa um membro da Comunidade, quaisquer operações militares, conforme já indicado anteriormente, em 1954, estão fora de questão. Para prevenir um ataque armado, o governo português pode desejar submeter o assunto ao Conselho de Segurança da ONU, ainda que o governo britânico entenda a relutância de o fazer, dada a pouca compreensão recebida daquele organismo. Sem embargo, o problema é claramente da competência das Nações Unidas, e Londres considera que apresentá-lo em Nova Iorque teria uma influência moderadora no governo indiano; e em qualquer caso, se isso for feito, Portugal pode contar com o apoio da delegação britânica. Entretanto, um novo apelo urgente está sendo feito pelo governo inglês ao governo indiano. E esta declaração não causa surpresa em Lisboa: não são negados por Londres os compromissos: mas é confessada a sua impotência militar. Tem o governo português notícia, todavia, de que no plano político e com exaspero de Nehru, o gabinete inglês se empenha a fundo em Nova Deli, para dissuadir o primeiro-ministro de uma agressão.






Pelo mundo além, nos meados desta segunda semana de Dezembro, é larga a campanha da imprensa contra a União Indiana, quer atacando directamente o governo de Nova Deli, quer publicando com relevo os textos e notas portuguesas, e as notícias sobre a tranquilidade de Goa e os seus sentimentos portugueses. São o New York Times e o Washington Post, entre outros norte-americanos; os grandes jornais ingleses, espanhóis, franceses, italianos; a maioria da imprensa da América Latina; grande parte da imprensa japonesa; e jornais das comunidades goesas de África e do Médio Oriente. Neste meio tempo, na reunião de Paris, o ministro português dos Estrangeiros não deixa dúvidas no Conselho da NATO de que o início do ataque militar deve estar iminente. Há emoção entre os ministros presentes, e o secretário-geral, Stikker, exprime o parecer de todos condenando a Índia em termos vigorosos; mas não se forma qualquer maioria que permita fazer figurar aquela condenação no comunicado final. No plano bilateral, o ministro português tem demorada conversa com Dean Rusk; solicita o empenho do secretário de Estado junto do secretário geral da ONU, U Thant, para que este intervenha no conflito; Rusk anui prontamente; e de Paris telegrafa a Adlai Stevenson, em Nova Iorque, instruções urgentes no sentido desejado. Análoga indicação é telefonada a Vasco Garin. Stevenson e Garin, a que se agrega o embaixador brasileiro na ONU, Afonso Arinos (3), avistam-se com U Thant. Este suscita problemas delicados: afirma que, a intervir, tê-lo-á de fazer junto das duas partes, e não de uma apenas; tem de referir-se a «negociações»; e tem de invocar a Carta e os princípios formulados pelas Nações Unidas. Garin objecta aos dois últimos pontos. U Thant reserva-se para considerar o assunto. De Goa, em aviões portugueses, é continuado o êxodo de mulheres e crianças; e depois é a bordo do Índia que se processa a sua retirada do território. Neste tempo, é recebida em Lisboa uma notícia surpreendente; os preparativos indianos para o ataque parecem suspensos. Sob pressão da opinião pública mundial, teria Nehru desistido do ataque? Seria apenas um adiamento? Porquê? Logo após, surge a explicação: o governo paquistanês acabava de mobilizar duas divisões para a fronteira do Caxemira (4). Nehru hesita, até averiguar as verdadeiras intenções de Karachi. Mas quarenta e oito horas depois são retomados os preparativos. Nehru convencera-se de que o gabinete de Karachi fizera somente uma manobra de intimidação: por detrás, não havia intenção de guerra. Em Goa, declara o governador Vassalo e Silva: «lutaremos com todas as forças de que dispomos. Tudo poderemos perder, menos a honra». Em Lisboa, junto às ruínas de S. Domingos e a outros templos, praticam-se veladas de armas e de preces por Goa portuguesa.

Então, em 14 de Dezembro de 1961, Oliveira Salazar redige por seu punho e envia uma longa mensagem a Vassalo e Silva. Começa: «V. Ex.ª compreenderá a amargura com que redijo esta mensagem. É-nos impossível prever se a União Indiana atacará ou não dentro de pouco territórios desse Estado». E continua: muitas têm sido no passado as ameaças não cumpridas; mas desta vez foi tão longe o governo indiano que se não vê como possa desviar os preparativos sem ataque. Poderá tentar acções subversivas e de provocação; convém que as forças portuguesas se não dispersem, e que tenham a máxima paciência. Tudo tem sido tentado no plano diplomático: grandes potências como Inglaterra e Estados Unidos, e países amigos, como Brasil e outros latino-americanos, e a Espanha, têm expresso a sua reprovação a um acto que repugna à consciência das Nações e desmente a política pacifista do primeiro-ministro Nehru. Mas há que esperar o pior. São modestos os recursos portugueses, e do facto há plena consciência: «mas podendo o Estado vizinho multiplicar por factor arbitrário as forças de ataque, revelar-se-ia sempre no final grande desproporção». Foi sempre política do governo, uma vez que era impossível assegurar uma completa defesa de Goa, manter forças que obrigassem a União a montar uma operação de guerra com escândalo mundial: a primeira missão das forças portuguesas está assim cumprida. E Oliveira Salazar conclui: «A segunda (missão) consiste em não se dispersar contra agentes terroristas supostos libertadores, mas organizar a defesa pela forma que melhor possa fazer realçar o valor dos portugueses, segundo velha tradição da Índia. É horrível pensar que isso pode significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação. Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos. Ataque que venha a ser desferido contra Goa deve pretender, pela sua extrema violência, reduzir ao mínimo a duração da luta. Convém, politicamente, que esta se mantenha ao menos oito dias, período necessário para o governo mobilizar, em último recurso, instâncias internacionais. Estas palavras não podiam, pela sua gravidade, ser dirigidas senão ao militar cônscio dos mais altos deveres e inteiramente disposto a cumpri-los. Deus não há-de permitir que este militar seja o último Governador do Estado da Índia» (5).

(in ob. cit., pp. 357-367).




Oliveira Salazar




Notas:

(1) Não me ocorre qualquer circunstância em que Portugal, nos tempos contemporâneos, haja invocado a aliança luso-britânica. Na primeira grande guerra, pretendemos forçar a Grã-Bretanha a ser ela a invocar os tratados. (...) Na segunda guerra mundial, o gabinete de Londres invoca por duas vezes a aliança: para obter facilidades nos Açores e para sustar a exportação de volfrâmio português para a Alemanha. (...)

(2) Figura de relevo no governo britânico e no Partido Conservador, de que viria a ser chefe, tendo sido ulteriormente primeiro-ministro (1970-1974).

(3) A mesma individualidade que, como chanceler, viera a Lisboa em Abril de 1961 e que entretanto fora substituído por Santiago Dantas à frente do Itamaraty.

(4) Como se sabe, Caxemira, na fronteira norte confinando com a China, era território em disputa entre a Índia e o Paquistão. A sugestão fora feita pelo governo de Lisboa, que se dispusera mesmo a pagar as despesas que resultassem daquela mobilização.

(5) Esta mensagem de Salazar, quando ulteriormente conhecida do público, suscitou em alguns círculos as mais violentas críticas; o chefe do governo mandava morrer milhares de homens, por capricho, por egoísmo, por inconsciência, e para nada. O texto, e a atitude que está por detrás, foram encarados num plano puramente sentimental e emotivo. Nesse terreno, é evidente que qualquer debate sobre a mensagem se torna desde logo inútil, e impossível: deste ângulo, mandar que quaisquer forças se batam até ao último homem é tão chocante emocionalmente como fazer avançar uma força contra outra que se sabe superior, ou como ordenar um navio de menor poder ataque outro de mais poder, etc.  Vistas as coisas assim, o que está em causa é o fenómeno da guerra, com a sua tragédia e o seu horror no plano humano e sentimental. Mas Salazar estava perante uma guerra feita por outrem; e tinha de a encarar no plano do governante, do homem de Estado responsável perante a Nação e perante a História. Que outra mensagem deveria ter Salazar enviado? Que o governador-geral, quando atacado, se rendesse, ou oferecesse apenas uma resistência simbólica, disparando a sua pistola para o ar, e rendendo-se depois? Ou não deveria ter enviado qualquer mensagem especial, como se se tratasse de um caso menor, abaixo da sua consideração? Para compreender a mensagem de Oliveira Salazar é preciso, além de sentir o peso e a dimensão histórica de Portugal, ter em conta o contexto do momento: a) lavra a guerra em Angola há quase um ano, e aí Portugal tem meios de uma defesa real e sem limite no tempo; b) mas para a eficácia dessa defesa muito contribuia a imagem e o prestígio das armas portuguesas; c) se estas se deslustrassem na Índia, como seriam respeitadas e prestigiadas em Angola e em toda a África; d) se Goa fosse entregue sem luta, que razão se poderia invocar para continuar a lutar em Angola? e) se as forças em Goa fossem instruídas ou autorizadas a render-se, com que moral ficariam as forças a baterem-se em África e por que motivo não haveriam de render-se também? f) finalmente, muito dependeria em África da opinião que o mundo e os países africanos tivessem sobre a capacidade militar e a vontade de luta de Portugal. Fraqueza moral e ausência de espírito militar em Goa teriam reflexos nos demais territórios e no estrangeiro. Salazar, com uma profunda noção da história, exprimiu-se com o mesmo sentido heróico dos grandes da crónica portuguesa no Oriente. É evidente que apenas povos e homens de fibra dura e altiva podem compreender tais atitudes, e aprová-las; quando os povos entram em decadência e entendem por boa política a política fácil, tudo o que impuser sacrifícios é objecto de crítica; e então há uma completa inversão de valores, e o dever, o brio, o heroísmo, a defesa da nação, de virtudes transformam-se em defeitos, e cedem o passo ao conforto pessoal, e a paz a todo o preço sobrepõe-se ao direito, à justiça e à verdade, que são tidos por secundários, quando não por ridículos. Quando a elite portuguesa decide, nos princípios do século XV, que o Infante Santo, em defesa dos supremos interesses nacionais, tem de ser sacrificado e morre numa prisão marroquina, está a tomar uma atitude dura em nome de uma nação que se dispunha - nada menos, nada mais - à grande aventura das descobertas. A muitos anos de distância, a mensagem de Salazar ao governador de Goa lembra a mensagem de Churchill para o comando militar de Hong-Kong na II Guerra Mundial: «Não pode haver qualquer ideia ou pensamento de rendição. Há que travar luta por todos os recantos da ilha. Há que opor ao inimigo a maior tenacidade na resistência. O inimigo tem de ser forçado a despender um máximo de vidas e de material. Há que combater vigorosamente nas defesas interiores e, se necessário, de casa em casa». Mais expressiva ainda é a mensagem que Churchill enviou ao comandante militar de Singapura: «Não pode haver qualquer pensamento de salvar tropas ou poupar a população. A batalha tem de ser travada a todo o custo até ao fim amargo». «Os comandantes e os oficiais superiores devem morrer com as suas tropas. Está em causa a honra do Império Britânico e do Exército Britânico». A Inglaterra achou bem as mensagens de Churchill.


Winston Churchill


Continua


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