«O protagonista (discursando para curiosos) - O único problema deste mundo é o caso pessoal de cada um de nós. Neste mundo tudo é meio, tudo, e único fim o homem. Todavia, o único ser deste mundo que erra o seu fim, é o homem.
1.º Curioso - O que é que ele vende?
2.º Curioso - Não vês que não há aqui nada para vender?
1.º Curioso - Então para que é?
2.º Curioso - É para dizer as verdades».
Almada Negreiros («Deseja-se Mulher»).
1. O espectáculo fica do outro lado, do lado onde não há o império dos preconceitos, das ideias feitas, da propaganda e das multidões. Onde se não distinguem temas de hoje e temas de ontem, obras sociais e políticas, literárias e poetiformes. O espectador não pode lá ir distinguindo figurinos e actores, cenários e personagens, encenação e texto. Ao datar a peça, Almada não ajudou. Tudo isso é roupa que, como dizia um poeta nosso, é preciso despir para atravessar o rio. Tão alheio é este espectáculo aos motivos e fins de que são feitos os êxitos, tão inconfundível a arte com a glória fácil da propaganda efémera, tão cheio está o nosso impúdico ambiente de coisas, obras e nomes, de livros onde os autores enchem as badanas de opiniões sobre si próprios, de prémios argentários, de mecenatos institucionais, de condenações e silêncios, de retóricas universitárias e de mutualismos literários – que hesitamos, primeiro em escrever, depois em publicar estas notas sobre uma peça de Almada Negreiros.
2. O assunto da peça – dizemos assunto porque é essa a palavra que não perde, no uso corrente, a significativa e implícita assunção – é apenas este: que procura o homem na mulher e que vem ele a encontrar. Não se trata, pois, de um assunto que tenha hoje uma actualidade que ontem não teve nem terá amanhã, de um assunto que, por insólito e estranho, se agarra à curiosidade do espectador ou que, pelo carácter socializante, desperte os interesses do maior número. É antes um assunto de que está cheia a literatura teatral de sempre e de toda a parte, mas que, referindo-se a toda a gente, só directamente fala a cada um, na singularidade do seu espírito, da sua alma e do seu corpo. Aí se há-de revelar o poder do artista, o de fazer que o que é de todos seja por cada um tomado só para si mesmo, sem o apoio no grupo nem o refúgio na comunidade que, no mesmo passo em que dissolvem a singularidade, degradam o que no homem há de livre.
3. Será isso a perfeição? Isso de em cada obra de Almada sentirmos o fazer-se acabado, definitivo, perfeito? Agora, numa pequena sala de algumas dezenas de lugares, num palco de cinco metros, com actores escolhidos entre rapazes e raparigas de juvenil entusiasmo, Almada mostra-nos, enfim, uma peça de que há 35 anos nos fala, que até publicou em livro: «Deseja-se Mulher». E não sabemos de acontecimento teatral, entre nós, que tenha sido mais importante.
«Começar» (Fundação Calouste Gulbenkian). |
4. Almada Negreiros é, por excelência, o artista. Em tudo quanto toca, a arte, mais do que a beleza, ali fica. Mais do que a beleza porque, para Almada, a arte contém o princípio e o fim de tudo. Isto faz entender, ou faz «ver», o que na obra de Almada nunca pode ser considerado atitude circunstancial, tentativa sem efectividade. Que é o número de ouro, por exemplo? Nem atitude, nem tentativa, nem gratuita busca, mas a próxima, última, principal representação, ou indizível sinal que se comunica sem se dizer, daquilo sem o qual nada é arte e com o qual toda a arte é. Toda a virtualidade se limita, reduz e diminui ao manifestar-se, coisa que se entende tão bem que faz parte da vital experiência de cada homem. Em suas obras, a arte manifesta a virtualidade que a promove, diminuindo-a na medida em que lhe faz perder a infinitude. Como, no entanto, ver que tal virtualidade, com sua infinitude, está contida na limitação que toda a obra de arte é? Como sabermos o número de ouro?
Pode o místico, também mergulhado numa original visão, oferecer-nos uma analogia. Mas o místico cala o que vê, fecha-se na taciturnidade do que nele há de mais íntimo e profundo. Almada, pelo contrário, procura fazer-nos ver o que não só ele viu mas nos diz que todos os artistas viram e nos mostraram. Como havemos de entender?
5. Foi Fernando Amado quem nos deu este espectáculo. Fernando Amado e um grupo de rapazes e raparigas com todas as qualidades e todas as deficiências de um grupo onde se juntam simples amadores e promissores principiantes. Era um principiante o actor que, no século XVI, primeiro fez teatro em Portugal; eram amadores os que representaram, pela primeira vez, o «Frei Luís de Sousa»; são amadores e principiantes os que representaram, agora, esta peça de Almada Negreiros e só o não farão, perfeitamente, para os espectadores que não saibam ser espectadores. Bem se diz na peça que uma coisa é vocação e outra profissão (in Diário de Notícias, Lisboa, 16 Jan. 1964. p. 13).
Nenhum comentário:
Postar um comentário