quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Já antes da fundação da Universidade se ensinava Filosofia entre nós

Escrito por Lopes Praça




«O carácter englobante atribuído ao substantivo augustinismo (ou agostinismo) importa à distinção do que nele se considera: primeiro, o augustinismo propriamente dito, derivado do substantivo, que é o sistema de filosofia e de teologia de Santo Agostinho; segundo, o augustinianismo, derivado do adjectivo, que é o património espiritual formulado, já pelo augustinismo, já pelas correntes que nele se inspiram. A distinção nem sempre se efectua, pelo que, de um modo geral, o termo se utiliza para englobar o augustinianismo, o que é augustiniano, sem ser necessariamente de Agostinho. O ideário e a doutrina do bispo de Hipona constituem, durante séculos, e, pelo menos, até ao achamento dos livros aristotélicos – que provocou a reforma dos estudos filosóficos no Ocidente – a raiz e o alicerce de todo o magistério escolástico, na síntese de várias filosofias “sob a armadura externa do platonismo e o impulso interior do cristianismo” (A. A. de Pina, Pressupostos do Pensamento de Santo Agostinho, 1958, pág. 9) que constroem uma doutrina humanista, teocêntrica e interiorista. A referência a esta doutrina atinge as raias do exclusivismo, a pontos de Pedro Lombardo, no Livro das Sentenças, apoiar as suas deduções mais de mil vezes no magistério de Santo Agostinho, que modelou o cristianismo ocidental na lealdade à revelação, e definiu um modelo de vida para as comunidades de fé, como se acha atestado na adesão que múltiplas comunidades (incluindo os cabidos catedralíceos) dera à Regra de Santo Agostinho que, por isso, padronizou os modos de vivência ética, moral e ascética de todos quantos, alguma vez, se propuseram ser fermento segundo o entendimento agostinho da prática da vida cristã.

A filosofia surge, no augustinismo, como um prolegómeno da teologia e da virtude religiosa. O conhecimento é possível – há mesmo uma íntima aliança da fé e da razão – entender para crer, crer para entender (Serm. 43, 79) e só o sábio é feliz. Contudo, o sábio é o que alcança ver a verdade, não com os olhos do corpo, mas com “a mente purificada e toda a alma aderindo a ela” (De Civitate Dei, VIII, 6). A sabedoria é a vivência prática das virtudes cardeais e teologais. O valor da percepção imediata – crer somente pela certeza do que aparece – não se exaure aí; pelo contrário, ela institui-se como degrau para o entendimento mediato, sob pena, ou de um pietismo, ou de um racionalismo extremes, que não conduzem ao conhecimento da experiência interna, onde a plena metafísica da luz ilumina a alma em sua derradeira adesão ao espírito da sabedoria. A metafísica da luz, ou da iluminação, torna Santo Agostinho simpático aos olhos dos místicos judeus e muçulmanos, pois também estes, orientados pela intelecção platónica, tendem a essa metafísica, como ocorre em Avicena e em Gabirol. O combate ao maniqueísmo permite uma revisão e um esclarecimento das aporias ontológicas e cosmológicas suscitadas pelo helenismo, e conclui por uma ideia de mundo como criatura divina, se bem que decaída por humana fragilidade, mas destinado a suportar a promessa da cidade celeste.

O magistério agostinista ecoou cedo na Lusitânia. No século IV, o magistério do Hiponense já era entendido, nem de outro modo se explica que, jovem ainda, o bracarense Paulo Orósio se decidisse a sair do eido natal para efectuar consultas junto do santo, em Hipona, do qual obteve uma epístola contra as doutrinas priscilianistas e origenistas (P. L., 42, págs. 669-684). Foi na abordagem à problemática da redenção e às dificuldades históricas da libertação, que Santo Agostinho tocou a espiritualidade lusitana. Não importa muito saber se o providencialismo de Agostinho depende de Orósio, ou se Orósio se limitou a aduzir um suplemento de prova ao providencialismo; certo é que a teoria providencialista, destinada a grande radicação no saber da humanidade, se formulou neste encontro entre o bispo africano e o presbítero lusitano. Depois disso, o pensamento de Agostinho é tido como referencial, como o prisma por onde a patrística e a escolástica portuguesas, já antes, já depois da instauração da nacionalidade, inteligem a revelação. O hiato das invasões muçulmanas, ao perder alguma memória das obras de Agostinho, abre as portas a uma literatura espiritual augustiniana – os apócrifos – que, ao atingir elevado clímax, passa muito bem como se do santo fosse. A profusão de escritos augustinistas e augustinianos nas livrarias medievais portuguesas é sensível, orientando os escolares das principais casas de estudos: Alcobaça, Santa Cruz de Coimbra, Braga, Évora, São Vicente de Fora. A frequente citação de trechos augustinistas e augustinianos nos escritos dos nossos mais considerados escritores medievais, nem sempre supõe a distinção da clara autoria de uns e de outros, como se prova pelo muito citado Livro do Solilóquio (B. N. Lx.ª, cód. Alc. CCLXXIII/198), obra apócrifa (tradução de um escrito intitulado Soliloquia animae ad Deum, datado do século XIII, mas onde o espírito do augustinismo prevalece através das incidências do augustinianismo de Hugo de S. Victor), que o padre Sena Freitas ainda atribuía ao bispo de Hipona quando (1897), traduziu de novo aquela obra para a língua portuguesa.

O influxo do augustinismo, a princípio tão presente em filosofia como em teologia, tendeu a dispor de maior presença na teologia, depois que, no século XIII, Aristóteles obteve o primado na escolástica ocidental.»

Pinharanda Gomes («Augustinismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).


 


«Sim, [Alberto, Tomás, Boaventura e Duns Scot] eram monges, intrusos na comunidade universitária! Como poderiam ser típicos da corporação que rejeitava sua presença? Longe de ser produtos característicos da universidade da época, como o acredita o sr. Pinheiro, esses monges severos e devotos, provindo de um meio social diferente, com hábitos e valores contrastantes, se sobrepunham de tal modo àquele ambiente que só a duras penas puderam ali sobreviver e, às vezes postumamente, triunfar. A magnitude de suas realizações intelectuais deve-se menos à atmosfera universitária do que à força de suas personalidades majestosamente centradas, firmadas na fé e na integridade de propósitos, em contraste com a sofisticada tagarelice de seus colegas, muitas vezes tecnicamente admirável, mas com tanta freqüência inspirada em motivos fúteis e na sedução das novidades heréticas. Quando hoje enxergamos a universidade medieval como um momento luminoso na história da educação, é em grande parte porque os melhores homens que ela rejeitou projetam retroativamente sobre ela o brilho da sua glória, e não ao inverso. E essa glória, sem dúvida, vem mais das ordens monásticas que os formaram, que do meio social onde ingressaram já adultos, fortes o bastante para desafiá-lo e, a longo prazo, vencê-lo.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).

 


«A UNIVERSIDADE é a instituição de cultura que pretende dar ao homem mais elevado grau de consciência. Inclui, portanto, as escolas de alto estilo onde se ministra o ensino da arte, da filosofia e da religião. Esquecê-las ou excluí-las, pelo facto de ultrapassarem o nível politécnico da economia nacional, corresponderia a sancionar uma total subversão de valores.

A unidade teorética do sistema de cultura só pode ser encontrada na relação do pensamento humano com a realidade absoluta; problemático é apenas o fundamento da opção por um determinado modo de vida espiritual.

Quem tiver do Universo uma visão teocêntrica e considerar a religião como a mais alta actividade espiritual, dará justamente a preferência à Faculdade de Teologia. No nosso país, à Faculdade de Teologia Católica.

Mas se é certo que a teologia católica é incompatível com algumas doutrinas filosóficas, verifica-se também que ela não é obrigada à adopção de um sistema previamente elaborado: respeita a diversidade mental dos homens e dos povos, permite a formação de filosofias nacionais. De tal ponto de vista não parece diminuído o campo de acção da Faculdade de Filosofia.

A Faculdade de Teologia tem os seus privativos estudos filosóficos, entre os quais avulta o aprofundamento do tomismo, de harmonia com o que aconselha a autoridade eclesiástica; pode realizar trabalho idêntico ao de muitas escolas superiores que na Europa deram ao pensamento católico um brilho talvez desconhecido entre nós; tem a missão especial de prestar ao alto clero uma cultura superior, indispensável ao prestígio da religião junto das actividades laicas; e do ponto de vista pedagógico como do ponto de vista político, pode manter com a Faculdade de Filosofia uma relação concordante.

A Faculdade de Teologia depende, porém, total ou parcialmente, da jurisdição eclesiástica; encontra-se, de certa maneira, afastada do Estado; não lhe compete exercer uma função central no sistema do ensino público. A honra do clero depende da isenção perante as actividades profanas incompatíveis com a hierática função sacerdotal; não deve o clero intervir no ensino prático, que relaciona a economia com a cultura, o trabalho profissional com a vida espiritual, os meios com os fins.

À Faculdade de Filosofia melhor compete a centralização das experiências pedagógicas e das investigações filosóficas que, pelas suas características perturbadoras, afectam a normalidade das outras escolas; nela se refletirá, dinâmica e vivente, a unidade da cultura nacional. Assim se determina o lugar desta escola no plano da Universidade

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»).

 




«Nem a Filosofia Portuguesa se defende como uma coisa, embora seja atacada quase sempre como tal. Defender a existência e originalidade da Filosofia Portuguesa é defender, para portugueses, a autonomia do pensar e do falar. É essa autonomia que a Universidade dos Professores não pode ou não quer defender.

(...) Da relação mestre-discípulo conheço, apenas um caso, de resto tão significativo que chegou a dar forma nova à própria instituição e seu regime, ao mesmo tempo que individualizou um grupo de pensadores, continuadores das constantes dum pensamento comum, embora muito diferenciado nas suas posições doutrinárias. Refiro-me a Leonardo Coimbra.

(...) Um dos seus discípulos mais próximos, José Marinho, escreve no livro de "testemunhos dos seus contemporâneos": "Leonardo Coimbra surge, pois, como um Mestre no mais nobre sentido da palavra. Isto quer dizer que jamais transmitiu saber feito, nem método para o alcançar". Esta afirmação só se entende, fundamentadamente, em paralelo com a realidade patente no nosso actual ensino universitário – em que o saber transmitido aos alunos não possui qualquer relação de existência, nem no espírito do que o transmite, nem na alma daquele a quem se destina, é um saber feito, isto é, acabado, morto. Daí, o facto evidente de se preferir, nas nossas “Faculdades de Filosofia”, sobretudo as disciplinas da história do pensamento e se ensinarem os métodos científicos do conhecimento como fundamentos do próprio saber.

(...) Assim como a via da relação mestre-discípulo excede os limites normais da Universidade a ponto de, quando se verifica, chegar a romper as normas estatutárias, a via da cultura fica aquém da natureza e missão próprias da instituição medieva. A via da cultura é (…) a que está mais próxima do conhecimento e mais afastada do saber. A cultura é, sob certo aspecto, saber objectivado e permite, portanto, que as relações concretas da elaboração de pensamento derivem e se integrem no esquema exterior e abstracto do acto geral do conhecimento, nas relações menores de sujeito-objecto.

(…) o estudante que não encontre durante o curso um mestre, vivo em si próprio, ou nas suas obras, não completou a sua formação embora leve consigo a garantia da sua formatura.»

Afonso Botelho («O Drama do Universitário»).

 


«Não vamos historiar a evolução da universidade portuguesa desde [os] tempos [medievais] em que era formada, institucionalmente pela corporação dos estudantes, e culturalmente pela tradição aristotélica. O seu processo de transformação terá principiado com a fundação do Colégio das Artes, e com a difusão entre nós do espírito humanista que impregnava a Renascença italiana. Mas foi sem dúvida a entrada em Portugal, em períodos de menor consciência dos valores nacionais, de duas correntes filosóficas francesas, que lhe deu um rumo diferente da sua primitiva e tradicional substância. Rumo na verdade tão diferente, que dir-se-ia outra instituição, com certeza divergente e até antagónica desse rótulo amplo, ousado e de longo alcance que é a designação de universidade.

Na verdade, foram as reformas do Marquês de Pombal, convertendo a universidade portuguesa às novas ideias do iluminismo e do enciclopedismo, e a do Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1870, amoldado por influência de Teófilo Braga ao positivismo de Augusto Comte, que conduziram a instituição universitária ao seu condicionalismo actual.

Proclamada a República em 1910, constituíram-se as Universidades de Lisboa e do Porto, que, sob o influxo da mesma orientação positivista, foram factores de muita importância nesta degenerescência do espírito universitário.»

António Quadros («A Angústia do nosso Tempo e a Crise da Universidade»).

 

«Tanto no que respeita à personalidade, como no que respeita à Sociedade, a instituição universitária, pelo menos a partir da reforma do Marquês de Pombal, opõe-se ao livre desenvolvimento do princípio de individuação, que na comunidade política, se designa por nobilitação.

(...) Com a perda da tradição aristotélica na Filosofia, perdeu-se também o princípio fundamental da educação da nobreza, daquela nova nobreza que justificou a maior evolução e dilatação da Pátria.»

Afonso Botelho («O Drama do Universitário»).

 

«Sob a influência, por um lado, da crescente complexidade da vida contemporânea, exigindo uma cada vez mais intensa especialização profissional, e por outro lado, das ideias positivistas, proclamando a redução da filosofia ao saber fragmentado e desunido das ciências particulares, isto é, do saber espiritual ao saber material, a universidade tornou-se, pura e simplesmente, num aglomerado de escolas técnicas.

Estas escolas técnicas, visando quase exclusivamente a preparar o aluno para a profissão, realizam assim apenas uma das instâncias da educação do homem, a que nos referimos há pouco: a instância do interesse individual, independente de qualquer outra finalidade, princípio ou ideia. Quanto à segunda instância, a do interesse universal, em vão a podemos procurar na universidade profissionalista de hoje. Ela está ausente – e esta ausência dir-se-ia não ser reconhecida pela maioria dos professores que, emparedados no seu especialismo, não sentem a inquietação espiritual das gerações de estudantes que lhes passam sob a cátedra. Inquietação espiritual que o liceu, com o seu enciclopedismo dispersivo, e que a idade liceal, menos dada à reflexão do que aos jogos e aos anseios da adolescência, não souberam ou não puderam resolver ou encaminhar. A chamada crise da universidade corresponde acima de tudo, quanto a mim, ao vazio deixado pelo desaparecimento das antigas funções culturais que lhe competiam. A Universidade abandonou a Verdade para servir a Utilidade.»

António Quadros («A Angústia do nosso Tempo e a Crise da Universidade»).



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«(…) todo o português é, hoje, por estado normal, um examinando. O exame estendeu as suas raízes muito para além dos limites da escola e (…) se seguíssemos a sua sombra, caminharíamos por regiões insuspeitas e insuspeitáveis. Talvez chegássemos à mais alta hierarquia temporal e até religiosa. Quero com isto dizer que o ambiente de prova de exame, acalenta o estado anímico do português, em todas as suas manifestações, quer profissionais, quer políticas, quer religiosas. Talvez não seja difícil sustentar a tese de que o próprio Deus é hoje mais usualmente crido e sentido como Supremo Examinador do que como Deus de Amor

Afonso Botelho («O Drama do Universitário»).

 

«O fundador da lógica, Aristóteles estruturou o Organon como uma analítica, uma gramática analítica, pela qual se aprende a operar com o pensamento, para se atingir o conhecimento e descobrir a verdade. A lógica formal estrutura-se no conhecimento das palavras, das locuções, dos juízos e das proposições, da mecânica relacional dos tópicos e analíticos. A disciplina não é toda a ciência; como Aristóteles supõe, a analítica (lógica) é o orgão ou instrumento epistemológico, a arte de pensar. O propósito consiste em saber inteligir por demonstração, e a demonstração é função do silogismo (P. da Fonseca, Commentariorum Metaphysicorum, III, 17). É da lógica formal – sistema de regras a que o pensamento deve obedecer para não errar e atingir a verdade – que descolam as lógicas simbólica e material, ainda que o conceito de lógica simbólica (logística) se ache de algum modo anunciado na aritmética de Platão (Cármides, 165 e). Orgão da filosofia, a lógica não entrou na escolástica de uma única vez. A herança do Liceu aristotélico só parcialmente foi compendiada por Porfírio e Boécio, que retiveram os prolegómenos do Organon (Categorias e Periermeneias) os quais, sob a genérica designação de logica vetus, ou de logica antiqua, foram a lógica dialéctica conhecida pela escolástica até ao século XIII. A logica nova, abrangendo os demais livros orgânicos (Analíticos, Tópicos e Elencos) foi um achado da filosofia árabe, cujo aristotelismo transitou para o ocidente cristão através das traduções toledanas e se reformulou no aristotelismo parisiense do século XIII. O acesso à lógica orgânica não significa que em todas as escolas o texto aristotélico fosse estudado directamente. Pelo contrário, inaugura-se uma época apelidável de “lógica compendiária”. Os mestres e os escolastas elaboram compêndios que, fundados nas regras de Aristóteles, demandam outros exemplos, outros suplementos de prova, e modos cristalinos de transmitir a docência da fonte, pois se considerava que a redacção do texto aristotélico não é de fácil inteligência, dado o esquematismo das lições. A lógica compendiária continua o processo isagógico de Porfírio, ampliado aos outros livros orgânicos. Serve para iniciação na dialéctica, coroa do trívio, e há comunidade de opinião de que a tradição compendiarística foi iniciada por Pedro Hispano, com as Summulae Logicales, em doze livros, objecto de inúmeras edições e cópias, e de interpretações, como se de texto principal se tratasse. As Súmulas Logicais circularam nas escolas europeias, foram vertidas para grego e para hebraico e só foram suplantadas, já o século XVI ia alto, pela nova lógica compendiarística de Pedro da Fonseca. A escolástica renascentista tende a controverter o lugar da lógica aristotélico-peripatética no curso filosófico, de tal forma que, num centro humanístico como Paris, Pedro Ramo declara forte oposição crítica ao método analítico tradicional. A defesa de Aristóteles foi tomada por António de Gouveia, que, no Pro Aristotelis (1543), contra Pedro Ramo, se orienta para um aristotelismo genuíno, capacitado do conhecimento directo do texto original. O aristotelismo renascentista não perde o carácter isagógico, e são isagoges os tratados de Belchior Beleago (Logica Aristotelis, 1548) muito dependente de Porfírio, de Nicolau Grouchio (Aristotelis de Demonstratione, 1549) e de Jorge Trapezuntio (Dialectica, 1551) que preparam a lógica conimbricense, da qual se constituiria matriz o Colégio das Artes, através do Curso Conimbricense. Dentro do Curso, a lógica em compêndio sofreu vária demora, de tal forma que a isagoge respectiva, In Universam Dialecticam, de Sebastião do Couto, só foi impressa em 1604, sem prejuízo de, nos cursos, a lógica ocupar os três primeiros anos, em que o primeiro discorria em torno de Porfírio; a lógica nova estudava-se nos anos seguintes, e decerto que, na escola, havia, pelo menos, um texto de referência. A lógica conimbricense, e sem prejuízo do valor didáctico do tratado de Sebastião do Couto, acha os frutos de rigor na obra lógica de Pedro da Fonseca, que a elaborou à luz dos pressupostos do método conimbricense. Fonseca é um lógico; e, quando se considera que a metafísica é uma metalógica, somos compelidos a sugerir que Fonseca é o lógico, e que esse carácter se continua nos Comentários à Metafísica. Não obstante, a identificação de Fonseca como lógico faz-se pela Isagoge Philosophica (1591, trad. port. de J. Ferreira Gomes, 1965) que visa substituir Porfírio na iniciação à lógica, e pelos oito livros das Institutionum Dialecticarum (1564, trad. port. de J. Ferreira Gomes, 1964). Ambas as obras correram mundo, servindo nas escolas europeias quase até aos fins do século XVII, contando-se 53 edições da Dialéctica até 1625, além de muitas outras da Isagoge. Ambos os livros serviram de compêndios a sucessivas gerações de estudantes portugueses, europeus e ultramarinos, estando a sua magistralidade professada em livros de alguns dos principais filósofos do século XVII europeu. O método disputativo conimbricense, atento à demonstração lógica, mas considerante dos factos experimentais, tornou-se método intelectual, se bem que, em tempo, solicitasse uma revisão. A lógica antiaristotélica (ela já se enunciara na disputa longínqua dos Universais) persistiu ao ponto de, no século XVIII, se considerar vencedora da lógica aristotélica. A vitória é tema que suscita distinguo, porquanto, mesmo quando se minorou a lógica formal, a metodologia básica transitou para as novas lógicas. As figuras silogísticas da lógica aristotélica permanecem matematicamente válidas. Um dos defeitos do septívio foi o de não se efectuar uma iniciação simultânea em gramática e em matemática, por forma a que o aprendiz de filosofia obtivesse uma simultânea iniciação em lógica formal e em lógica matemática. Em Portugal, e no resto da Europa, o enterramento da lógica formal não foi fácil, nem resultou, ainda quando o juízo tivesse sido afectado por efeito da paranóia alógica. A lógica é o remédio do perfeito juízo.»

Pinharanda Gomes («Lógica», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).

 



Já antes da fundação da Universidade se ensinava Filosofia entre nós

Como nas outras nações da Europa, a Universidade Portuguesa tem a sua origem nas escolas das catedrais e dos mosteiros, no entusiasmo pelas letras, que os sábios, vindos de Constantinopla, aumentaram no continente europeu, e nas indefectíveis aspirações da inteligência humana.

Logo depois da expulsão dos Mouros, segundo refere o nosso cronista Fr. António Brandão, o Bispo D. Paterno «com recado del-Rei[1] e do cônsul[2] se veio a Coimbra e tomou posse de todo o Bispado e Diocese, e juntamente com o conde deu ordem a um seminário de moços, na própria Sé Episcopal e Igreja de Santa Maria da mesma cidade, a estes doutrinou e foi dispondo para receberem o grau de Presbítero».

Um outro documento, igualmente pouco preciso, mas de não somenos valia é o testemunho de Resende na vida de S. Fr. Gil, cujo nascimento, ou fosse em 1155 como agrada a uns, ou em 1190 como seguem outros, foi em todo o caso anterior ao estabelecimento da nossa Universidade. O lugar a que aludimos diz assim: «Beatus Aegidius magistros coepit frequentare à prima statim pueritia Conimbrigae, in qua urbe, utpote ea tempestate Lusitanorum Regum sedes, litterarum studia tunc vigebant». É de crer que na expressão litterarum studia se compreendesse o estudo da Lógica.

Mais preciso que o de Resende é já o testemunho de Fr. Luís de Sousa.[3] «Era de Coimbra, diz o eminente Escritor, assento da Corte, e juntamente havia nela mestres de boas artes e ciências, porque El-Rei D. Sancho (o primeiro), como recebeu de seu pai o Reino pacífico e rico, procurou ilustrá-lo e acrescentá-lo por muitas vias, e não lhe esquecendo a das letras, que é a que mais lustre dá aos homens e às províncias». Desta citação podemos já concluir para a época em que, talvez primeiro, se estabeleceram entre nós escolas públicas de boas artes e ciências; e tudo nos induz a crer que nestas expressões se inclui o estudo e ensino público da Lógica. Mas continuemos.

Antigamente o nome de Gramático não se dava tão somente aos homens versados na inteligência das línguas, mas aplicava-se também aos que se entregavam a outros ramos do conhecimento humano. Bluteau, falando com respeito à palavra Gramático, diz no seu Vocabulário, entre outras coisas, a seguinte: «João Filipono, famoso Filósofo, que floresceu no tempo de Justiniano, ainda que cientíssimo em outras matérias (como consta da Biblioteca de Fócio) foi chamado Gramático».

Se quiséssemos dar semelhante noção à palavra Gramático, teríamos de concordar em que já antes da fundação da Universidade se ensinava Filosofia entre nós; porque Fr. Francisco Brandão afirma[4] que já: «no tempo antecedente à fundação da Universidade se ensinava nas Catedrais do Reino Gramática: na Sé de Lisboa a estudou Santo António, como escreve S. Bernardino em sua vida; e ainda em toda a Espanha, antes que houvesse Universidade nela, se faziam livrarias nas Sés Catedrais e Igrejas Paroquiais, para estudarem os que se ocupavam nas letras, de que há muitos exemplos na História deste Reino». Este testemunho pode ser reforçado com outro, de Nicolau de Santa Maria na Crónica dos Cónegos Regrantes[5].

Mais precioso do que os anteriores é o testemunho de Fr. Manuel dos Santos[6] que, falando de Fr. Estêvão Martins, Abade de Alcobaça até 1276, diz assim: «ordenou que se lesse para sempre na casa, Gramática, Lógica e Teologia». A primeira lição pública leu-se em 11 de Janeiro de 1269, sendo rei D. Afonso III. A frequência, porém, e o ardor destes estudos diminuiu com a fundação da Universidade.


D. Afonso, o Bolonhês, pai de D. Dinis, trouxera de França grande gosto pelas letras e pelo argumento de nossos estudos. Escolheu para mestre de seu filho a D. Américo, varão de boas partes e de muitas letras, o qual foi gratificado com a nomeação para Bispo de Coimbra.

A vigilância e cuidados, de que cercaram a infância do Rei Lavrador, não caíram em terreno sáfaro e estéril. Dentro em pouco nasceram muitos frutos, que chegaram ao seu perfeito estado de madurez. No reinado de D. Dinis fundou-se em Lisboa a nossa Universidade. Sobre a data da sua fundação oiçamos as Memórias Ms. de Figueiroa: «Não consta do tempo certo, em que el-Rei D. Dinis fundou a Universidade, porém, sem dúvida que ao menos alguns meses antes, do em que se passou a Bula de Nicolau IV, estava já fundada não tanto no material como no formal; por quanto na dita Bula se declara que el-Rei D. Dinis já a tinha plantado em Lisboa, e a mesma Bula se dirige à Universidade, o que é argumento de que já a havia ainda também de que a mesma lhe suplicou as graças e os privilégios que o Papa lhe concede». Apesar disto, ninguém duvida de que já pelos fins do século XIII, existisse a Universidade. E também devemos observar que não foi a Universidade Portuguesa das últimas, que se estabeleceram nas Nações cristãs da Europa; pois que, segundo o padre Francisco de Santa Maria, foi a Universidade Portuguesa a mais antiga, confirmado por Breves Apostólicos, exceptuando a de Paris, Oxónio e Bolonha.

Ainda mesmo que prescindamos dos Estatutos[7] dados por D. Dinis à Universidade, poderemos facilmente elevar-nos ao conhecimento da sua organização científica; não só porque, Francisco Brandão, mencionando dos lentes para cujo honorário contribuíam os comendadores de Soure e Pombal, nos dá elementos para isso; mas também porque é explícita a este respeito a Provisão de D. Dinis de 1309.

Por esta Provisão era a Universidade mudada de Lisboa para Coimbra e dela nos consta ter-se estabelecido desde o princípio o estudo da Dialéctica. A provisão é expressa: «Item in Facultatibus Dialectica et Gramaticae doctores esse volumus...». Este ponto está portanto superior a toda a hesitação.

Que Dialéctica fosse ali ensinada não achámos outro meio de o especificar, a não ser o processo indirecto, de que, quase sempre, teremos de lançar mão em todas as investigações posteriores, pertencentes a este primeiro período da nossa História Filosófica.

E na verdade, sendo comum aos principais estabelecimentos científicos da Europa a mesma tendência e o mesmo movimento, e como todos eles se desenvolviam debaixo do impulso romano, estudada a questão com relação ao centro literário mais notável, não será difícil acomodar em seguida as ideias apresentadas ao ponto de que aqui se trata.

Antes, porém, de encetarmos o processo indirecto de que prometemos lançar mão, havemos de expor sempre todos os documentos ou indícios directos, que estiverem ao nosso alcance. Neste ponto ditaremos, unicamente, um testemunho de Francisco Brandão, que vem no tomo V da Monarquia Lusitana. Falando dos homens notáveis que concorreram no reinado de D. Dinis acrescenta ele: «Estes e outros semelhantes sujeitos ensinaram a Medicina; e o mesmo fazia o Papa João vigésimo primeiro no tempo que assistiu no Reino, por nos constar que foi ele o que primeiro compôs Lógica, que se lia em Hespanha em todas as Escolas, sobre ser Médico eminentíssimo...». É certo, como já observámos na primeira secção, que as Súmulas de Lógica de João XXI foram adoptadas em muitas escolas, que assim o atestam muitos dos historiadores de Filosofia. Qual porém fosse a professada por Pedro Julião naquele livro, lá o dissemos também.






Posto isto vejamos o que sucedia em Paris.

(...) Antes de dominar em Paris a Dialéctica de Aristóteles, era ensinada uma outra, muito acreditada na meia idade, e atribuída a S. Agostinho. O próprio Santo, no livro primeiro, capítulo sexto das suas Retractações, nos adverte de que escrevera uma Gramática e uma Dialéctica. Suspeita-se, porém, que o lugar citado fora ali interpolado por mão estranha; porque a Dialéctica que lhe era atribuída se ressente das doutrinas dos Estóicos, a que o Santo Padre não era muito afeiçoado[8].

Para curar esta suspeita disseram outros que a Dialéctica em questão fora feita por um escritor do tempo de Santo Agostinho e que, para dar crédito ao livro, se valera daquele alónimo. O que é certo, porém, é que no tempo da fundação da nossa Universidade se lia já em Paris a Dialéctica de Aristóteles[9].

É verdade que Launnoy reuniu os testemunhos de trinta e sete Padres contrários às doutrinas de Aristóteles, sem ainda contar as opiniões autorizadas de S. Bernardo, de Victorino, de Roberto Corceão, e de João Tritémio[10]; ainda mais: é verdade que em 1209 o concílio de Paris tinha proibido as obras do fundador do Liceu; no entretanto, nessas mesmas condenações se tinham asserenado as iras e disposto os ânimos para o triunfo do Estagirita. Para confirmação do que deixámos dito, sobejam-nos os documentos; e se não, leiam-se algumas cláusulas do que em 1215 estatuía Roberto, Legado da Sé Apostólica e encarregado da reforma da Academia Parisiense: «Leiam, diz o Legado, os livros de Aristóteles da Dialéctica, tanto da antiga como da nova – ad usum scholae». Um pouco depois acrescenta: «Não leiam os livros de Aristóteles da Metafísica e da Filosofia Natural, nem sumas dos mesmos, nem os livros do mestre David Dinant, ou do herege Almarico, ou de Maurício Hispano». É, pois, claro que em 1215 já se recomendava, ou melhor, já se estatuía em Paris a leitura da Dialéctica de Aristóteles.

Posteriormente Gregório IX, em 1231, mandou que os Livros Naturais, condenados no sínodo provincial de Paris, não fossem lidos: – quosque  examinati fuerint et ab omni errorum suspicione purgati. Em sendo, portanto, expurgados de erros os livros de Aristóteles, ainda os de Física e Metafísica podiam ser ensinados publicamente nas escolas. Daqui à aprovação completa das obras de Aristóteles não vai muito.

Não obstante estas disposições de Gregório IX, tão favoráveis ao Filósofo Grego, a reforma operada em 1255 por Simão, Legado da Sé Apostólica, no tempo de Clemente IV, torna a pôr em vigor as disposições feitas, pelo citado Roberto, em 1215, isto é, proibiram-se os livros de Física e Metafísica de Aristóteles, e recomendou-se a sua Dialéctica.

Esta é a última reforma, que pudemos alegar até 1325, ano em que morreu D. Dinis (...). Agora, confrontando as disposições do concílio provincial de Paris com a reforma ultimamente apontada, fácil nos será avaliar o favor que as obras de Aristóteles iam recebendo das escolas de Paris. É certo que em 1255 só a dialéctica do Fundador do Liceu era admitida e recomendada; mas não nos devemos esquecer do que Rigordo deixou escrito, referindo-se aos princípios do século décimo terceiro: «Naqueles tempos», diz ele, «liam-se em Paris alguns livros, que se diziam compostos por Aristóteles, os quais tratavam da Metafísica, e, transportados de Constantinopla, tinham sido vertidos para latim. Estes livros foram queimados a título de darem ocasião de heresias» – et, continua, o mesmo autor, sub poena excommunicationis cautum est in eodem concilio (1209), nequis eos de cetero scribere et legere praesumeret, vel quocumque modo habere».




O facto de Alberto o Grande, e S. Tomás de Aquino, terem comentado Aristóteles deu muito que fazer aos eruditos, que se empenhavam em conciliar o procedimento de tão ilustres escritores com o respeito devido à Santa Sé. Com efeito, Alberto o Grande, nascido em 1193, traduziu, completou e comentou Aristóteles pelo meado do século treze, quando era ainda proibida a leitura da Metafísica e dos livros da Filosofia Natural do Estagirita; e S. Tomás de Aquino, nascido em 1255, seguiu a mesma direcção, e empregou todos os esforços do seu admirável talento para conciliar Aristóteles com o Evangelho.

Esta antinomia entre as ordens mais terminantes da Igreja e os actos dos seus filhos mais predilectos tem dado, como dissemos, muito que pensar aos eruditos. Muitas das explicações dadas são inadmissíveis. Não é provável que os dois ilustres escritores desconhecessem as disposições do concílio, nem as determinações do Papa. Também não é crível que eles vissem naquelas proibições, um preceito local, meramente aplicável às escolas de Paris. Menos inaceitável é a concessão de uma licença especial, com quanto não tenhamos notícia da petição de semelhante licença, nem da sua concessão. Escritores há que explicaram a contradição aparente de um modo, se não verdadeiro, ao menos mui atendível. Segundo estes, os Dominicanos e Franciscanos tinham dado à Igreja provas veementes da sua dedicação. A maior liberdade do ensino naquelas ordens, devia, por isso, parecer menos perigosa à Mestra do Cristianismo. Sucedendo assim, os dois Dominicanos quiseram mostrar que as heresias espalhadas em Paris não provinham das doutrinas de Aristóteles; mas sim dos comentadores árabes. Por esta forma os seus esforços, longe de serem condenáveis, miravam ao fim das disposições da Igreja, com as quais, só aparentemente, pareciam estar em contradição.

Isto posto, apressemo-nos a tirar as consequências.

Admitindo que o ano de 1290 fosse o primeiro da nossa Universidade, é de crer que a doutrina adoptada na escola de Dialéctica, ali, como vimos, estabelecida desde o princípio, fosse a Aristotélica.

Levam-nos a isto, não só as relações existentes entre o nosso País e a França[11], mas também a preponderância das escolas de Paris sobre as dos outros países. Acresce a estas razões a suma influência que a Sé de Roma exercia naquele tempo sobre as Universidades Cristãs. Ora sendo isto assim, e sabendo nós que desde 1215 foi a Dialéctica de Aristóteles mandada estudar em Paris, nenhuma dúvida podemos ter em admitir como sumamente provável a efectiva adopção da Dialéctica Aristotélica ou de Sumas das mesma Dialéctica, nas escolas da nossa Universidade.

Muito nossa vizinha está a Espanha. Mas a Espanha foi um dos canais por onde as obras de Aristóteles penetraram no Ocidente, e o nome de Aristóteles foi mais devidamente aclamado nas escolas de Sevilha e Córdova, do que nas restantes do ocidente da Europa; porque, ainda apenas era conhecido o Organon na Universidade de Paris e já as versões das outras obras de Aristóteles eram examinadas, estudadas e comentadas nas escolas de Espanha. De modo que, ainda por este lado, somos obrigados a aceitar a mesma consequência.

Mesquita de Córdova

Enfim é um axioma a seguinte proposição – nihil operatur per saltum. Ora aplicando este princípio ao primeiro período, compreendido nestes estudos, com a observação constante do que for aparecendo, poderemos, com a devida discrição ir avaliando as conjecturas aplicáveis aos anos anteriores.

(In Lopes Praça, História da Filosofia em Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 3.ª Edição revista, 1988, pp. 99-106).


[1] De Afonso VI de Leão.

[2] D. Sisnando.

[3] Hist. de S. Dom., Parte 1.ª, L.1-2, cap. 13.

[4] Monarq. Lusit, Part. V, L.16, cap. 72.

[5] Part. II, L.7, cap. 72.

[6] Alcobaça Ilustrada, pág. 100, 101 e 102.

[7] Os primeiros Estatutos da Universidade encontram-se na Monarquia Lusitana, tom. 5.º, p. 531. Dizem estes Estatutos: Ítem in facultatibus Dialecticae et Grammticae ibidem Doctores esse volumus, et Magistros, ut per alterum debitum fundamentum, et per....... acutiorem recipiant intellectum, quid ad majores scientias desideraverit». Sobre a data destes Estatutos leiam-se as páginas 378 a 380 das Memórias Cronológicas da Universidade, por Francisco Leitão Ferreira.

[8] Vossio, De nat. et const. Log., c.8, § 24, p. 38.

[9] Tratando do século XII, no tomo II da História crítica de Filosofia, escreve Brucker, a página 678, o seguinte: «Porém assim como no século antecedente (XI) só se liam a dialéctica de Santo Agostinho e os escritos de Aristóteles, vertidos para latim por Boécio e Victorino; assim também neste século não se conheciam outras fontes de erudição dialéctica».

[10] Launnoy, De arria Arist. in Acad. Paris, fortuna, cap. III.

[11] Na Crónica, de D. Nicolau de S. Maria, na segunda parte, a página 58, vem o texto de uma doação que tem aqui lugar. Diz assim: «Em nome de Cristo saibam todos os que esta carta de doação ouvirem ler; que eu D. Sancho, Rei de Portugal e do Algarve, de minha própria vontade dou e concedo ao mosteiro de Santa Cruz quatrocentos morabitinos da minha fazenda, para sustentação dos Cónegos do dito Mosteiro, que estudam em partes de França. Foi feita esta carta a 14 de Setembro de 1199». No lugar citado lê-se também a mesma doação em latim.

Bastaria, além disso, a certeza que temos de que muitos dos nossos lá iam estudar.


Mosteiro de Santa Cruz (Coimbra).

sábado, 6 de setembro de 2025

“Nós éramos ainda escolásticos nos séculos XVI e XVII!”

Escrito por Sampaio Bruno






«Passámos em frente da Igreja de S. Domingos com a sua cruz mais alta do que os prédios pombalinos do Rossio. Que mundo de recordações!... Uma multidão agitada e apressada comprime-se no largo passeio, entregue a preocupações urgentes e imediatas. A entrevista está longe de findar, pois quero debater ainda com Álvaro Ribeiro alguns pontos importantes. Chegámos e eu pergunto: 

- Entramos?

Vamos instalar-nos numa mesa do fundo, por sinal a mesma onde Fernando Pessoa teve uma das suas tertúlias e onde Pascoais e Leonardo Coimbra o iam procurar, quando vinham a Lisboa. Sentamo-nos. E eu desfecho, logo a seguir:

- E a renovação do tomismo?

- Do tomismo, ou da Escolástica?

- Do tomismo, repito.

- É um engano. Efectivamente, o magistério eclesiástico impõe aos professores dos seminários a obrigação de ensinar o tomismo e a obra de S. Tomás, que os clérigos se esforçarão por transmitir aos leigos. Mas o tomismo é uma filosofia do século XIII e da Europa Central muito diferente do nosso aristotelismo arábico e judeu -, que por isso mesmo, não pode ser assimilado pelos pensadores do nosso tempo e do nosso país.

Mando vir dois cafés, enquanto ao nosso lado continua a zumbir o eterno tema, o futebol. E Álvaro Ribeiro prossegue:

- Que acontece, então? Há uns intérpretes que se dedicam a mostrar a concordância de S. Tomás com uma filosofia perene, que vai de Aristóteles a Heidegger. Em vez de citar os filósofos que produziram as doutrinas, cita-se a sua tradução tomista, se possível em latim. É uma questão de fontes ou de citações. Tomista é, em suma, aquele que cita S. Tomás de Aquino.

- Em Portugal...

- Em Portugal nem sequer há tábuas de concordância. O nosso tomismo é franco-belga, um tomismo vergado ao preconceito da razão pura, mais próprio para cartesianos do que para aristotélicos, enfim, um tomismo sem filiação em Santo Alberto Magno. Não houve até agora um sacerdote ilustre que se desse ao trabalho de criticar, interpretar e traduzir, do ponto de vista tomista, a filosofia portuguesa, de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Tal acontecerá, porém, dentro de alguns anos, a julgar por certos sintomas de interesse que não enganam.

- Sim, tenho lido alguns - bem raros, já sei - artigos de pensadores católicos em que começa a notar-se a referência à filosofia portuguesa, embora sobretudo com carácter histórico...

- Não há dúvida. Mas teria interesse e seria oportuna a publicação de um livro que fosse para hoje o que foi para 1924 a tão discutida obra de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, "A Igreja e o Pensamento Contemporâneo". A apologética católica tem hoje aspectos muito diferentes em todos os países do mundo, mas em Portugal deram-se acontecimentos culturais que obrigam a uma revisão da doutrina. Depois do positivismo de Augusto Comte e dos seus sequazes franceses, divulgou-se entre nós o positivismo de Kant, Feuerbach e Marx, que alguns estudantes julgam ser materialismo dialéctico, e divulgou-se também o positivismo alemão de Husserl, mera teoria da descrição dos efeitos, com as suas consequências existencialistas. Três formas de positivismo em referência às quais teve de reagir a filosofia portuguesa. Haverá um sacerdote português, suficientemente culto, que possa escrever o livro da resposta à inquietação das novas gerações? Um livro que resolva enfim os problemas da nossa apologética? Um livro intitulado "À Igreja Católica pela Filosofia Portuguesa"?...».

Entrevista de António Quadros a Álvaro Ribeiro («O Testemunho de Álvaro Ribeiro»).



 


«Realmente os trabalhos de Averróis mal poderiam servir para guiar os Escolásticos na compreensão da Filosofia Aristotélica, visto que ele não sabia o grego e se servira de versões latinas, ou mais verosimilmente, siríacas. A sua opinião acerca da unidade do entendimento foi condenada por Leão X.

(...) A respeito dos trabalhos importantes de Alberto o Grande, sobre Aristóteles, há uma consideração, que, per si, bastaria a mostrar a insuficiência dos seus trabalhos. Duvida-se se conhecia o grego. Além disso não se libertou das subtilezas e questiúnculas inumeráveis dos comentadores árabes.

S. Tomás não conhecia a língua grega. Conseguiu, porém, que um homem douto fizesse uma tradução; mas nem se sabe, ao certo, o nome do tradutor, nem o tempo em que a tradução foi feita. Portanto, estes comentários de Aristóteles não se podem dizer feitos sobre o original grego. A própria versão, feita por autor incerto, embora douto, não merece também plena e inteira confiança.»

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).

 

«Destituídos de legitimação filosófica, o liberalismo e o romantismo não poderiam sobreviver. Em 1870, pela propagação do positivismo em filosofia, do naturalismo em arte e do socialismo em política, é dado incremento ao maior factor de desnacionalização cultural, usando dos processos literários e dos métodos jornalísticos mais pertinentes para lançar a injúria sobre a Monarquia, o ridículo sobre a Tradição e o descrédito sobre a Pátria. Tais processos e tais métodos continuam ainda a ser enaltecidos por quantos elogiam nos Conferencistas do Casino, nos professores do Curso Superior de Letras ou nos Vencidos da Vida os nossos melhores agentes de europeização ou internacionalização.

Em plena vigência de confusão doutrinal, distingue-se a atitude singular de Sampaio Bruno que estabelece a luta em duas frentes. Combate a esquerda hegelina (Strauss, Feuerbach, Bruno Bach, Stirner, Proudhon, Marx) representada entre nós pelos escritores que realizaram as conferências do Casino, como também combate a direita positivista (Augusto Comte, Pierre Laffitte, Émile Littré) representada pelos escritores brasileiros e seus leitores portugueses. A obra de Sampaio Bruno, onde pela primeira vez se pensa "a filosofia da história portuguesa", vale contudo pela interpretação messiânica de "A Ideia de Deus".

Excluindo a "Renascença Portuguesa", que em filosofia, em literatura e até em política se propôs invocar o pensamento nacional, até atingir o máximo expoente no livro A Arte de Ser Português, escrito em momento de exaltação patriótica por Teixeira de Pascoes, todos os outros movimentos pedagógicos, assentando na história e procedendo à revisão do passado, preconizaram a importação, assimilação e divulgação de doutrinas estrangeiras, com seus nomes prestigiosos e prestigiados. Lançando globalmente o ridículo sobre aqueles que resistiam pela crítica de linhas clássicas e considerando-os ignorantes, atrasados ou estúpidos, os ensaístas obtiveram fácil aceitação entre estudiosos sem nitidez de convicções porque educados sem suficiente disciplina trivial e sem firmeza da doutrina de Aristóteles.

(...) O problema da cultura portuguesa encontrará solução no regresso à disciplina de Aristóteles. Fácil é ensinar a história da filosofia em termos de contínua refutação de Aristóteles ao longo das idades antiga, média e contemporânea, e concluir pela afirmação de que o sistema aristotélico, de vigência precária, não é digno da atenção que lhe preste quem deseje aproveitar, para estudos mais úteis, o seu limitado tempo. Muito tem sido dito, efectivamente, para conseguir que os estudantes desprezem quanto possível os escritos aristotélicos. Quem se aproximar, porém, de tais livros quase proibidos e os ler cuidadosamente ficará surpreendido com a descoberta do núcleo perene do pensamento vivo da nossa civilização.»

Álvaro Ribeiro («Liceu Aristotélico»).

«A Escola Aristotélica e as que lhe sucederam até ao renascimento das letras passam hoje entregues ao esquecimento como inúteis, absurdas e estéreis. Sobretudo em ciências naturais o esquecimento é quase completo. Não pensamos do mesmo modo.

É certo que os meios de observação de que Aristóteles dispunha eram poucos, e os instrumentos de análise, que existiam, desajudados da arte; no entretanto não se pode dizer que ele descurava a observação. As suas próprias palavras protestam contra tal asserção. As escolas que lhe sucederam foram mais descuidadas. Mil circunstâncias concorreram para isso. Quando melhores dias raiaram para a ciência olvidou-se o passado. Ingratidão injusta e nociva. Como diz Frederico Morin: “A teoria esboçada por Aristóteles parte de dados mal analisados, é completamente inexacta, e até deve à priori parecer absurda; mas liga-se ao que há de mais íntimo e mais constitutivo na razão; mas é na essência idêntica à grande teoria da matéria e da forma, na qual o pensamento humano viveu durante toda a antiguidade e durante toda a meia idade. Quem não compreende a teoria peripatética do movimento nada pode compreender do processo especial segundo o qual a humanidade concebeu, durante 20 séculos os seres finitos e o ser absoluto. Por conseguinte, as leis do desenvolvimento da razão humana ficarão para ele um mistério impenetrável”.»

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).

 

«Ante o problema de assimilar o método, a doutrina e os princípios de S. Tomás de Aquino, nacionalizando a expressão e o pensamento do Doutor Angélico, logo surgiram os elementos historicistas, ou historiográficos, para sobre eles incidir a primeira reflexão. Se considerarmos a obra de S. Tomás de Aquino, escrita e ensinada em pleno século XIII, como o ponto mais alto da Escolástica, teremos de observar nos séculos seguintes uma vertente ao longo da qual se descreve uma desactualização. Variam os historiadores quanto ao critério de determinar esse período de decadência da Escolástica. Alguns protelam o planalto de referência até à data de 1635; mas, concedida tão benigna moratória, teremos de admitir que entre a publicação do Discurso do Método e a da encíclica Aeterni Patris (1879) não foi entre nós brilhante, nem fecundo, o trabalho sério de comentar a Suma Teológica.

Tema controvertido, sobre o qual não incidiu a última e luminosa palavra, é o do tomismo explícito e implícito nas obras dos escolásticos portugueses. Deve-se ao Padre João Ferreira, O. F. M., o haver, por amor à verdade, demonstrado que Pedro Hispano não foi nem poderia ter sido tomista, e ainda mostrado que nos primeiros séculos da nacionalidade não foi preponderante nem predominante a lição de S. Tomás de Aquino. Neotomistas e paleotomistas não descuram, porém, de acumular argumentos bibliográficos e paleográficos da tese mais favorável à escola que pretendem exaltar, ainda que esqueçam, muitas vezes, a simples verdade de que "história da filosofia ainda não é filosofia". Aliás, nenhuma acta disciplinar prescreve a equação entre escolástica e tomismo, equação que nem histórica nem doutrinalmente pode ser admitida pelos pensadores católicos. Escolástica tanto é a obra de Santo Agostinho, como a de Santo Anselmo, como a de Escoto ou de Suárez, entre as quais o crente pode ainda hoje escolher para sua direcção a que mais lhe agradar.

Tema igualmente controvertido é o da posição da filosofia de Aristóteles na escolástica medieval e moderna. Este ponto admite, porém, uma indagação subtil, difícil e complexa, visto que o aristotelismo dos primeiros séculos medievais está longe de atingir o brilho, a força e a extensão que verificamos na obra de Santo Alberto Magno, na de Pedro da Fonseca e na de Francisco Suárez.

A cultura portuguesa, ou, se quisermos, a cultura do pensamento português, foi constantemente estruturada e dominada pelo aristotelismo. Ninguém porá em dúvida que tal aconteceu desde a fundação do Colégio das Artes até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. A defesa de Aristóteles, efectuada pelos professores portugueses nos séculos XVI, XVII e XVIII, assume na nossa argumentação o valor mais importante. É longa a lista dos nossos aristotélicos. Assim anotou Fidelino de Figueiredo no seu estudo Para a História da Philosophia em Portugal:

"Se deixarmos de lado os sermões de Santo António de Lisboa (1195-1231), que são mais do domínio da apologética do que do da filosofia, tomaremos o Papa João XXI, o famoso médico bracarense, Pedro Hispano ou Pedro Julião (?-1277) como o nosso primeiro pensador, sob a forma de vulgarizador do Organon de Aristóteles, com a suas Summulae Logicales, que largamente circularam e que Dante lembrou no seu conhecido terceto do Canto XII do seu Paraíso:


Ugo de San Vittore, é qui com elli

E Pietro Mangiator, e Pietro Hispano

Le quel giá luce in dodeci libelli.

 

Dante e Beatriz perante S. Tomás de Aquino, Alberto Magno, Pedro Lombardo e Siger de Brabante na esfera solar (fresco de Philipp Veit).

E dele partiu a corrente fiel e ortodoxa do estagirismo, com representantes de valor como António de Gouvêa, campeão de Aristóteles em Paris, Diogo de Contreiras, Luiz de Lemos, Albuquerque, Belliago, Margalho, Fr. Gaspar do Casal, Padre Baltazar Álvares, Egídio Romano, Fr. Vicente da Ponte, Soares Vilhegas, Fr. João de Santo Thomaz, Fr. Jerónimo de Paiva e outros que constituem um denodado exército de comentadores, exegetas e compendiadores, que no fim do século XVI cobra alentos novos com a plêiade brilhante de dissertadores de certa originalidade e serôdios defensores da escolástica, como D. Jerónimo Osório, Pedro da Fonseca, talvez o mais poderoso dos nossos pensadores, Manuel de Góis, Sebastião do Couto e Silvestre Aranha, e com a influência escolar e pessoal do insigne Padre Francisco Suárez (1548-1617), que em Coimbra regeu de 1597 a 1616".

A persistência do aristotelismo na cultura portuguesa foi alvo de reparos irónicos de Sampaio Bruno que, em A Ideia de Deus, anota igualmente a tardia entrada do pensamento de Descartes em Portugal, sem, contudo, descrever comparativamente as vicissitudes do cartesianismo nos outros países e, nomeadamente, em França. O aristotelismo perdurou no nosso ensino público até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Proscritos pelo Marquês de Pombal, alguns dos nossos melhores jesuítas portugueses foram ensinar nos institutos filosóficos da Itália, fortalecendo pela tradição aristotélica o movimento que, no século XIX, haveria de culminar na palavra de ordem de Leão XIII, no regresso à Escolástica.

Convém, todavia, respeitar a verdade averiguada em estudos históricos, e confessar que na Europa Central o pensamento de Aristóteles perdera vigência doutrinal e didáctica, suplantado pelo que foi convencionado chamar filosofia moderna. Não podia o regresso à Escolástica, preconizado por Leão XIII, ser um regresso à filosofia de Aristóteles. Outro sistema científico adquirira prestígio, ou fascínio, perante os pensadores desejosos de ordem mas também de progresso: o sistema de Augusto Comte. Conciliar o velho tomismo com o novo positivismo seria a tarefa didáctica mais urgente, e mais oportuna, depois de proclamada a encíclica Aeterni Patris. Cumpriu conscienciosamente a missão de que foi incumbido o cardeal Mercier, cujos livros, escritos não em latim mas em francês, serviram durante muitos anos no Instituto Filosófico de Lovaina e no Instituto Católico de Paris.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«A metafísica é a ciência do absoluto. Como tal, consoante a teologia, ela não tem variabilidade. É ou não é. Ou é verdade ou é erro. Se é verdade, não progride, porque é. Se é erro, não progride, porque não é.»

Sampaio Bruno («A Ideia de Deus»).

 

«Anotou Sampaio Bruno que uma das características da cultura portuguesa é ser aristotélica, mas o aristotelismo não contém uma teodiceia, nem resolve satisfatoriamente o problema do mal. Será, portanto, lícito admitir que no povo português demorou sempre a esperança pelo advento do Messias e a confiança nos respectivos profetas. Durante longa meditação sobre documentos selados e cifrados, desde os cancioneiros medievais até aos contemporâneos folhetos de cordel, o historiador português foi perseguindo os vestígios de uma doutrina religiosa que, por demasiado transcendente, seria contrária à cristologia ortodoxa da Igreja Católica. A vinda de "um novo Cristo", do Paracleto anunciado no Evangelho de S. João, é para o autor de A Ideia de Deus, artigo de fé a interpretar à luz da ciência contemporânea. Na intenção de abonar a tese acreditada, socorre-se Sampaio Bruno de imensa documentação histórica, desde o Evangelho Eterno, pregado pelo franciscano Joaquim de Floris, até ao messianismo de Wronski, Ballanche e Joséphin Péladan. Entende-se, portanto, a solidariedade do messianismo com a teoria da existência de Deus. Se a existência é o ser no tempo e no espaço, pelo que se distingue da essência metafísica, o problema de Deus apela pelo problema de Cristo, ou seja, pelo problema da filosofia cristã. É de notar que, em livro que teve o seu período de celebridade, o Padre Del Prado, tomista convicto, afirmou que a distinção real entre a essência e a existência é a verdade fundamental da filosofia cristã. A filosofia portuguesa, de estrutura aristotélica, admite a transcensão, pelo que se opõe tanto ao existencialismo condenado pela encíclica Humani Generis, como a qualquer sistema de dedução cronológica, francês, inglês ou alemão.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).




«O pensamento de Bruno não é uma teologia, nem uma teodiceia, dissemos, mas em todo o rigor do termo, uma teurgia.

É possível uma teologia ali e onde um conhecimento de Deus se estrutura luminosamente com toda a clara demonstração da sua existência e das relações entre Deus, o Universo e o homem. É possível uma teodiceia ali e onde a contemplação ou a compreensão da perfeição total divina, permite ao filósofo uma explicação do mal do mundo como resultado da visão parcial da existência. Em Bruno não temos uma coisa nem outra.

Não temos um Deus perfeito, como verdade, e não podemos consequentemente ter dele e dos seus atributos qualquer visão estável. Não temos um Deus perfeito, como amor e bondade plenos, eficazes, e não podemos encontrar então justificação alguma para o mal do homem a partir do divino modelo de eficaz amor e compreensão. E eis como não podemos ter uma teologia em Bruno, enquanto concepção definida e acabada, eis como, também, não podemos ter nem uma explicação ético-metafísica do mal do mundo, nem a serena e activa contemplação de suas dolorosas aparências.

A queda não é estado aleatório de uma parte da criação divina, é substancial ao universo. E, portanto, a redenção requerida é total e dele carece mesmo Deus “para cujo resgate – como interpreta Leonardo Coimbra – em todo o Universo trabalham as consciências, em amorosa e sábia cooperação”.»

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).

 

«Ao ponto de vista do ensino francês se deve aquela opinião corrente, que se apoia na oposição polémica de Descartes a Aristóteles. É uma tradição escolar que substitui a tradição escolástica. A lógica e metafísica de Aristóteles, princípio e fim de um sistema filosófico, são fundamentalmente criticadas por incompatíveis com o sistema da física moderna; de aí a inverter a posição do problema filosófico, a pedir à física moderna uma lógica e uma metafísica, a fundamentar na epistemologia o novo intelectualismo, vai o passo rápido e fácil do ensino francês.

Os escritores de formação universitária que ultimamente têm abordado, entre nós, assuntos de carácter filosófico, seguem o ensino estrangeiro: manifestam geral concordância em atribuir à matemática e à física um predomínio intelectual que leva à adulteração da lógica e à repulsão da metafísica; mas, assim, acompanham tardiamente um movimento caduco.

E por daquele ponto de vista terem sido julgadas as vicissitudes da filosofia em Portugal, admite-se inadvertidamente que a persistência na silogística escolástica e a resistência passiva ao cartesianismo, longe de parecerem um enigma cuja decifração seria de proveito, dêem pretexto a juízos pessimistas, e até injuriosos, acerca da capacidade especulativa dos portugueses.

Afastados da Europa Central, por situação geográfica e por missão histórica, desatentos à aurora e ao crepúsculo da filosofia “moderna”, (da Renascença ao Iluminismo), talvez os portugueses preservassem dessa maneira uma qualidade oculta mas original; assim, o que na linha internacional parece marcha retardatária, talvez possa ser interpretado como fidelidade nobilíssima, se não como astúcia antevisora.

(...) Agora, a problemática filosófica, resultada da crítica aos erros dominantes nos três séculos passados, oferece ao espírito português a possibilidade de verificar a compatibilidade do aristotelismo dos coimbrões com o mais elevado e o mais recente voo do pensamento especulativo.»

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»). Ver aqui




 

“Nós éramos ainda escolásticos nos séculos XVI e XVII!”


Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas; e a metafísica à nossa gente pareceu sempre ludíbrio fátuo de cerebrações senão já de raiz mórbidas, perturbadas, contudo, na normalidade clara duma pachorrenta irrigação sadia. Não impediu esta originária indisposição, estrutural, de natureza e essência, que, à laia do demais, como dever de ofício e encargo de profissão, nas aulas públicas, de todo o tempo, se lesse, entre nós, de filosofia e que até pretendesse o engenho pátrio, de onde a onde, aqui ou ali, alçapremar-se à região vaga das cogitações metafísicas, que, em regra, uma invencível, preguiçosa antipatia formalmente sentenciara e categoricamente condenara. Os mestres e pedagogos, desvairados do engano subjectivo da semi-reflexão, que empresta confiança à sua vítima e lhe dá uma característica suficiência, pavonearam-se de seus supostos méritos e foi-lhes, nas crises da irrespeitosa dúvida das intermitentes dissidências, motivo de inexplicável assombro e de tão sincera quão cândida indignação o facto inverosímil de que surgissem autónomos reparos contra a decadência da mente culta lusitana, a qual em filosofia, então, se asseverava convicta de rastejar prostrada.

(...) No domínio da positividade ignorar Galileu e Newton; na zona da racionalidade desconhecer Descartes e Bacon: isto equivale, para um público letrado, manter-se na penumbra mediévica, a não provar do pão espiritual do método novo, a iluminar-se dos sobressaltos dos clarões bruxuleantes, a não se banhar na luz tranquila mas crescente do espírito moderno. Por Verney apuramos de como Descartes era, em 1746 (em 1746!) nome morto para portugueses; e os adversários de Verney, com superior desdém é que se dignam memorar Descartes, que, à data, consideram já como findo e extinto, mentalmente morto e enterrado, no justo e liquidador indiferentismo por seu quimérico desvario.

Nas Reflexões Apologéticas, contra o Verdadeiro Método de Estudar declaradas expendidas para desagravo dos portugueses pelo P. Frei Arsénio da Piedade, religioso da província dos capuchos, Verney recebe esta reprimenda com respeito ao seu prezado Descartes: «Por não tornar mais a falar em Cartésio, nem em filósofos que tenham parentesco com ele, digo que o seu sistema há muitos séculos que morreu; e os espanhóis, que têm o juízo em seu lugar, proibiram os livros dele e os mandaram sepultar na cova do desprezo, por dizer coisas boas para encaixar na cabeça de rapazes; quem agora lhe quer desenterrar os ossos, que os venere. Melhor que Cartésio foi Platão, a quem muito se encostou Santo Agostinho, e bem celebrado foi Epicuro, Anaxágoras, Empédocles e outros, juntos com os químicos; e, contudo, veio-se a alcançar que o sistema de Aristóteles concordava mais com os dogmas da religião.»

(...) em 1735 (em 1735!) em Portugal o nome de Bacon merecia tanto ou tão pouco conceito que totalmente se fez esquecer a versão e impressão de suas obras. De tal sorte que Jacob de Castro Sarmento não teve mais resposta sobre este particular e ficou não só perdendo todo o seu trabalho mas até lhes restou por embolsar a despesa que havia feito já com ele. Sarmento o confessa em outra carta, do ano de 1749 essa, endereçada ao mesmo Dr. João Mendes Sacheti e de que o citado Compêndio Histórico transcreve este trecho: «No que respeita à impressão de Bacon, estou sumamente queixoso das ordens que o conde da Ericeira me deu da parte de Sua Majestade, metendo-me em trabalho tão grande e pondo-me na despesa e desembolso que fiquei perdendo.»

Não lograra Jacob de Castro Sarmento seu propósito; e baldas foram suas admoestações a seus surdos e obcecados conterrâneos. Infrutuosamente, aos portugueses, Jacob de Castro Sarmento bradara: «No sistema Aristotélico (fundado na imaginação, em lugar da Natureza) se não acha outra coisa que palavras vãs e vazias; e depois das suas doutrinas, todas, muito bem estudadas, e de examinadas tão renhidas e perpétuas disputas, se pode dizer com certeza delas:


Dico ego, tu dicis, sed denique dixit et ille;

Dictaque post toties, nil nisi dicta vides.» 


Infrutuosamente. Os portugueses não se resignavam a abandonar o seu aristotelismo arábico; e do grande observador e experimentalista grego, por uma das mais incongruentas aberrações do espírito humano, obstinavam-se em cata do patrocínio para os delírios verbais da sua mania raciocinante. A Escolástica era, nesta terra sáfara, a irmã bem-amada do jesuitismo e da inquisição. Coimbra perpetuava o comentário aristotélico com ufano louvor e o jesuíta Pedro da Fonseca, da Cortiçada, resultava cognominado o «Aristóteles conimbricense».

Apesar das mitigações que, a todo o instante do comento dos estrangeiros juízos acerca dos nossos nacionais, um zeloso amor-pátrio insinua ao Sr. Lopes Praça, este distinto escritor não pode menos de convir em que nos fastos da filosofia racional o nosso país ocupa um lugar muito secundário.

A primeira grande e séria história da filosofia de que uma erudição moderna haja de fazer menção é a de Brucker, escrita em latim, a Historia critica philosophiae a mundi incunabulis, etc. Sua segunda edição, aumentada, apareceu em Leipsig (Heredes Weidemanni et Reichii) em 1767. Este livro não se sai com menos de seis enormes volumes em quarto, e contém uma erudição, em regra geral, seguríssima, principalmente pelo que concerne à bibliografia. É visível que a Brucker o obsidia o ardor de não omitir coisa alguma e por isso Jules Simon o acusa de confundir as doutrinas religiosas com as doutrinas filosóficas, perdendo-se em questões que lhe não cabem na alçada. De facto, é típico que Brucker chegue a consagrar um capítulo à filosofia antediluviana!

Pois este mão-largas, para a filosofia portuguesa volve-se em unhas-de-fome. Dos Comentários do Colégio Conimbricense se ocupa ele considerando-os como um apêndice dos filósofos espanhóis. «A estes filósofos, diz, devemos acrescentar o Colégio de Coimbra, nascido dos jesuítas portugueses. Usando do nome destes, publicou Manuel de Góis, da Companhia de Jesus, os seus comentários à Física de Aristóteles, aos livros do Céu, dos Meteoros, da Ética, aos livros chamados Parva Naturalia, aos da Geração e Corrupção e aos da Alma. A estes acresceram os comentários à Lógica de Aristóteles por Sebastião do Couto e os Problemas que se resolvem nos comentários do Colégio Conimbricense à Física de Aristóteles. Nestes comentários Conimbricenses louvarás com razão a erudição peripatética e sentirás pesar por a veres desfigurada com a penetração e subtilezas escolásticas








A este juízo, que parece sóbrio sim mas acomodado e exacto, desabridamente o qualifica o Sr. Lopes Praça de elaborado em «termos acanhados e insulsos». De Brucker recorre para Barthélemy-Saint-Hilaire, a quem com melhor acerto, proclama como o escritor mais autorizado para julgar quaisquer trabalhos sobre filosofia aristotélica. Por essa razão, resolve-se a traduzir alguns períodos de um magnífico artigo do tradutor contemporâneo de Aristóteles e assevera, com equitativo espírito, ser esse artigo recomendável pela exactidão, profundeza e imparcialidade.

Assim é, com efeito, mas as palavras justiceiras e corteses de Barthélemy-Saint-Hilaire são a corroboração de tudo quanto de genérico e essencial ficou exarado nas linhas que precedem.

Barthélemy-Saint-Hilaire, na transcrição e versão do Sr. Lopes Praça, começa por dizer: «As obras dos coimbrões não têm nada de profundamente original para o pensamento filosófico; mas é essa mesma ausência de originalidade que lhes dá o carácter que lhes é próprio. São unicamente fiéis à tradição peripatética. A necessidade de inovar, que, no fim do século XV, agita os espíritos, é-lhes completamente antipática. Defendem Aristóteles e a Igreja com igual ardor; e o peripatetismo não lhes é menos caro que a doutrina católica. Limitam-se, portanto, em geral, a simples comentários; e, ainda quando não adoptam esta forma, é sempre o pensamento do mestre que reproduzem. Mas reproduzem-no com os desenvolvimentos que a Escolástica lhe tinha dado. São ainda nisto os representantes fidelíssimos da tradição, de que eles não ousam desviar-se por forma nenhuma e que os liga, sobretudo, a S. Tomás.»

Condensa o seu parecer Barthélemy-Saint-Hilaire assertando, dos coimbrões, que eles «não acrescentam muito, se quiserem, aos trabalhos anteriores; mas completam-os, aproximando-os uns dos outros e deixando-nos ver o seu último resultado.»

Pela erudição, pelo sincretismo esmiuçador, confere aos coimbrões, em filosofia, Barthélemy-Saint-Hilaire um lugar assaz considerável. Deles escreve ainda: «Sustentam a autoridade de Aristóteles com trabalhos muito estimáveis, se não devo dizer muito novos, numa época em que esta autoridade é ameaçada de todas as partes. Instituem os mais laboriosos estudos sobre esta grande doutrina numa época em que ela está desacreditada, e procuram conservar em todo o seu vigor hábitos que não estão no espírito daquele tempo. São escolásticos nos séculos XVI e XVII.» Eis aí a grande calamidade. Nós éramos ainda escolásticos nos séculos XVI e XVII!

Barthélemy-Saint-Hilaire busca, benevolamente, atenuar a responsabilidade da teimosa rotina dos nossos mestres, ponderando que o papel de inovadores pertencia, tão-só, aos espíritos livres que, como Ramus, Bacon e Descartes, procuraram caminhos novos em ciência e em filosofia. Mas o facto é que, entre nós, não surgiu sombra de inovador; e, pelo contrário, contra o serôdio transporte para aqui da estrangeira inovação o enquistado nacionalismo, em desagravo dos portugueses, reagia quanto pôde e recalcitrou com unhas e dentes.


Porém, Barthélemy-Saint-Hilaire, impelido da freima da verdade, acaba por frisar nitidamente o desserviço dos coimbrões. «Os Coimbrões, diz ele, fizeram rejuvenescer quanto puderam a Escolástica, fundamentada sobre Aristóteles; não podiam ir além. Esta reserva teve, certamente, o seu lado censurável; e, prolongada demasiadamente, pôde ter no século XVIII o seu lado algum tanto ridículo.»

In cauda venenum. Após as amabilidades polidas, a fulminante marretada. Regista Barthélemy-Saint-Hilaire que Brucker lhe parece justo quando pensa que a história completa da Escolástica deveria compreender os Coimbrões. Eles nada inventaram; e o juízo de Brucker é um juízo exacto. Assim, aos olhos de Barthélemy-Saint-Hilaire, ela «deve demonstrar e circunscrever, a um tempo, a importância dos seus trabalhos».

Esta penúria lusitana em matéria filosófica foi (é ainda) atribuída ao efeito deprimente duma educação perversamente adequada a embrutecer as gerações. Deste pavoroso crime ter-se-iam tornado réus os jesuítas; e é esse tema tenebroso o que constitui a matéria da célebre Dedução Cronológica e do não menos célebre Compêndio Histórico.

Sem embargo, os jesuítas foram expulsos do alto ensino por Pombal, e a sua sociedade acabou por ser dissolvida e exterminada pelo papa Ganganelli. E, contudo, a esterilidade filosófica portuguesa continuou como até ali.

Mesmo, os espíritos mais vivazes, desprendidos, liberais, de personalidade crítica e iniciativa mental, obscurecem e esmorecem desde que sentem que sobre eles se projecta a vasta e solene sombra da metafísica. Com o novo regímen político e social não coincide um novo regímen filosófico. Os ânimos afrouxam e as inteligências inquietam-se.

(In Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, Lello & Irmãos Editores, Porto, 1987, pp. 1, 11, 15-20).