quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Moçambique Terra Queimada (xi)

Escrito por Jorge Jardim



Câmara Municipal de Lourenço Marques (1960).


"AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE"


Com o título "Aqui Moçambique Livre" publicou Ricardo Saavedra um livro que merece a pena ser conhecido e meditado, pela imagem viva que oferece da generosa revolta de Moçambique, em Setembro de 1974. Foi editado em Johannesburg e bem merecia, se possível, aparecer nos livreiros portugueses.

Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.


Quando rebenta uma revolta


Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.

No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.

De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.

Foi esse o rastilho da explosão.

O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.

Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.

Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.

Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.

A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".

O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.

Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.

Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".

Nada fora planeado e nada estava organizado.

Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago para se obter a reacção que convinha desencadear.

Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!

Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.

Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.

Mas desta vez ia ser mais sério.

Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)


Porque não entrei em Moçambique


De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.


Joanesburgo

A permanência em Johannesburg poderia fazer crer que eu estava ligado à rebelião.

Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.

Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difíceis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.

Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.

O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos paraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.

Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.

Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagens ao inimigo. Por isso o haviam provocado.

Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.

Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.

Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.

Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.

Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.

O Palácio da Rádio, sede do Rádio Clube de Moçambique, pouco depois da sua inauguração.


Escutando o RCM, soube da compreensível mentira de anunciarem ter sido cancelado o meu mandato de captura. Pensavam no meu regresso como última esperança. Ouvi os aplausos da multidão quando isso foi divulgado. O Gonçalo Mesquitela haveria de vir a dizer-me que tal ovação tinha levado todas as recordações semelhantes que conservara.

A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.

Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.


Derradeiras mensagens


Quando me chegaram as derradeiras mensagens de Gonçalo Mesquitela dizendo-me ser-lhes impossível continuarem a resistir e dando-me conta das selvajarias ateadas pelos "democratas" nos subúrbios de LM, recebia também informação da Beira anunciando que o movimento capitulara.

As minhas filhas, que na Beira continuavam, tinham sido conduzidas por militares para ponto seguro onde sempre permaneceram. Não esqueço essa atenção amiga, embora outros telefonemas me indicassem que as retinham como reféns. Não creio que assim tenha sido, até porque isso nada alteraria as minhas disposições se elas fossem diferentes do que foram.

Através do receptor (e sempre gravando) acompanhámos os últimos momentos daquele "Movimento" generoso, improvisado e antecipadamente vencido.

Depois foi o silvar das ambulâncias, os crimes friamente cometidos, os excessos dos populares embriagados e drogados, os incêndios e saques, as centenas de mortos e os apelos das autoridades impotentes.

Moçambique tinha tido a sua "primavera de Praga".

Não se podem condenar os homens do "Movimento de Moçambique Livre" mesmo quando se sabe que a sua actuação impulsiva serviu os desígnios do inimigo e comprometeu, por muito tempo, todas as demais hipóteses que poderiam existir.

Faltou-lhes a serena decisão de o terem podido transformar em simbólico gesto de protesto (utilizando os emissores que ocuparam) sem forçarem mais longe a confrontação. Mas não pode esquecer-se que a população tinha sido provocada com acinte, quando já suportara meses de insultos e atingira o limite da tensão nervosa.

Isso evidencia e agrava o crime dos que tudo encaminharam para que tal tivesse de acontecer.

Provei, nas páginas deste livro, que tentei impedir que assim fosse.

Houve outros que me impediram de o conseguir.

Costa Gomes e Melo Antunes ficam, por isso, na bancada dos réus que a história julgará.

Espero que também os julguem os homens que viveram estes tempos de tragédia. (...)


Entre baixios e baixezas


Mário Soares


O texto do acordo entre o Estado Português e a "Frelimo", assinado em Lusaka em 7 de Setembro de 1974, chegou-nos a Blantyre (enviado ainda por Mark Chona) antes de ser publicamente divulgado. Foi a última deferência que teve para connosco, cumprindo aquilo que havia prometido.

Lendo-o, com a atenção merecida, podem nele encontrar-se expressões e intenções coincidentes com o nosso "Programa de Lusaka", de 1973. Por mais voltas que os negociadores tenham dado, não conseguiram libertar-se de tal influência. Não me considero honrado por isso e acentuo que nenhum vínculo existe entre os dois documentos, excepto o local onde foram produzidos.

(...) Vale a pena fazer alguns curtos comentários.


O Acordo Samora Machel-Melo Antunes


Do lado português, o papel foi assinado por oito plenipotenciários, entre os quais três ministros do governo e um conselheiro de Estado. Pelo lado da "Frelimo", entendeu-se ser bastante a assinatura de Samora Machel.

A delegação portuguesa foi encabeçada pelo ministro Ernesto Augusto Melo Antunes.

Segundo os hábitos correntes, o documento deve ser denominado como o "acordo Samora Machel-Melo Antunes", sendo a ordem dos nomes resultantes de Samora Moisés Machel haver assinado no lado esquerdo, por deferência que lhe foi atribuída.

À assinatura do Maj. Melo Antunes seguem-se logo as assinaturas de dois outros ministros (Dr. Mário Soares e Dr. António de Almeida Santos) e, depois, a de um conselheiro de Estado (Victor M. Trigueiro Crespo).

A cuidadosa vacuidade dos compromissos não obrigava a "Frelimo" a coisa alguma e, de resto, no tempo de transição que se seguiu, parece que ninguém teve preocupações a tal respeito. O Estado Português é que ficava amarrado a obrigações claramente definidas.

Houve um curioso artigo do acordo (a cláusula 18) que, desde logo, me prendeu a atenção.

Nesse preceito dispunha-se que "O Estado Moçambicano independente exercerá, integralmente, a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do Povo".

Como é normal que os estados independentes disponham de tais prerrogativas, poderia parecer redundância de advogado afirmá-las. Mas as coisas não se passavam por forma tão ingénua. Os factos vieram a comprová-lo.

Uma vez que o governo de Portugal tratava com a "Frelimo" a transferência "progressiva dos poderes que detém sobre o território", era óbvio que seria a "Frelimo" a personalizar o "Estado Moçambicano independente" e, portanto, a decidir (nos termos do citado artigo 18, do acordo Machel-Antunes) do estabelecimento das "instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu Povo".

Com isto, a potência soberana (Portugal) lavava as mãos de qualquer intervenção no acautelamento dos interesses das gentes e da sua autodeterminação. Era exclusivamente a "Frelimo" a decidir (como veio a acontecer, provando o acerto da minha preocupada interpretação) sobre o regime que entendesse mais adequado.

Compulsando os anais da descolonização em toda a África, não encontrei caso semelhante de abandono.

Passavam-se os umbrais da "descolonização original" conduzida por declarados democratas, e logo dois deles juristas, que ficavam indiferentes ao sacrifício da expressão da vontade popular.

Como deixei anteriormente descrito, todo o encaminhamento descolonizador que diligenciámos definir, em mais de um ano de intensa actividade, apoiava-se na consulta popular sobre a definição das estruturas políticas.

Quando me lembro das horas que passei, com Kaunda e Mark Chona, a deitar contas ao tempo necessário para o recenseamento e a discutir a forma de o tornar representativo, acabo por me convencer que a minha formação democrática se situava, afinal, muito por diante do que no acordo Machel-Antunes se definia.

Nítido se apresentava que ambos se inclinavam para outras fórmulas democráticas pelas quais viriam a revelar predilecção. Samora Machel veio a fazê-lo abertamente. Melo Antunes foi oscilando, conforme as conveniências, mas sem nunca o poder disfarçar inteiramente.

Avenida Pinheiro Chagas em Lourenço Marques, na direcção do Alto-Maé (meados de 1960). Hoje, Avenida Eduardo Mondlane.


Assim nascem as cortinas que separam dois mundos. Quer sejam cortinas de ferro, cortinas de bambu ou cortinas de capim.

A autodeterminação dos povos ultramarinos tão explicitamente fixada no "Programa do MFA", cujos dizeres tive ensejo para recordar, desaparecia com uma penada de Samora Machel-Melo Antunes.

Verdade seja que Samora Machel não interviera na redacção do "Programa do MFA" e por isso não estava a ele obrigado. Mas Melo Antunes havia sido o principal elaborador desse documento.

Ou tinha o premeditado propósito de enganar ou faltou à palavra dada.


O naufrágio do Alto Comissário


O elenco do governo transitório, na parte que a Lisboa pertencia designar, não tranquilizou ninguém. Tratava-se de tecnocratas sem qualquer representatividade local e, por isso, desconhecidos por toda a gente. Não davam garantia de poderem estabelecer a "ponte" de colaboração desejável.

Desempenhavam mais uma comissão de serviço colonial, com a agravante de ser declaradamente transitória, para daí a uns meses voltarem a Portugal com emprego assegurado e qualquer que fosse a sorte dos moçambicanos.

Este começo desalentador agravou-se com a escolha do Alto Comissário: o comandante Vítor Crespo, para o efeito graduado em almirante.

Era geralmente desconhecido em Moçambique. Pelos jornais ficou a saber-se que ali tinha cumprido o seu normal tempo de serviço, a bordo de uma fragata que patrulhava o litoral. Ficara com a ideia da linha da costa e dos portos em que entrara. Nestes, era exacto que tinha obtido notória popularidade.

Sem conhecimento apropriado das terras e das gentes que lhe competia descolonizar, dificilmente poderia ser o árbitro supremo que as circunstâncias, já de si complexas, exigiam. Veio isso a agravar-se com o facto de, durante o mandato que lhe foi entregue, não ter disposto de tempo para o contacto com os povos desse imenso território. Houve de compreender-se quando se soube quanto era retido em Lourenço Marques por tarefas absorventes.

No acto de posse, o Presidente da República conferiu-lhe a missão de "conduzir o processo de descolonização, com patriotismo, no respeito pelo nosso passado, pelos nossos maiores em África, e, acima de tudo, pela bandeira verde-rubra da Pátria, para que o novo Estado de Moçambique venha a ser efectivamente uma nação de expressão lusa e indestrutivelmente ligada à Mãe-Pátria" (cito de um semanário lisboeta, de 14 de Setembro de 1974).

Foi isto que o Alm. Vítor Crespo jurou solenemente, por sua honra, fazer.

E foi isto o que não fez.


Lourenço Marques

Logo em 21 de Outubro seguinte, aconteceu que uma unidade de "comandos" (farta de insultos incompatíveis com a sua dignidade) tomou desforço, quando foi provocada nas ruas de Lourenço Marques. Daqui nasceu a retaliação horrorosa que causou centenas de mortos entre a população indefesa, conforme os insuspeitos relatos da imprensa internacional. Houve carros incendiados, com os seus ocupantes dentro. Houve violações e violências em que todos os excessos se cometeram. Houve corpos trucidados em condições horripilantes.

O primeiro-ministro Joaquim Chissano chorou convulsivamente, no Hospital Miguel Bombarda, ao deparar com o macabro espectáculo que os médicos lhe mostraram.

O Alto Comissário, a quem pertencia a responsabilidade de defender a ordem pública (nos termos do acordo Machel-Antunes), não fez um movimento para proteger essa pobre gente que foi chacinada. Consentiu que os "comandos" fossem indignamente acusados de "irresponsáveis drogados" e não teve uma palavra de conforto para as vítimas imoladas. Nem um só dos responsáveis pelos morticínios foi detido, inculpado e presente a tribunal.

Assim mantinha a ordem e a paz que jurara preservar!

Sucederam-se as prisões arbitrárias, por simples suspeita ou denúncia anónima, feitas por milicianos armados, perante a passividade das autoridades. Os presos eram descalços, despojados do que possuíam e enviados para onde os algozes entendiam. Trata-se de casos testemunhados. Uma dessas vítimas (que foi deixada na cadeia quando da independência e ainda lá continua) foi acusada do crime de ter facilitado a passagem da fronteira a mulheres e crianças que fugiam daquele inferno. Tem sofrido tais suplícios que tentou o suicídio.

Na Beira, as prisões, nomeadamente as de carácter político, foram confiadas à polícia judiciária, dependente do Alto Comissário. Nessa polícia foi integrado, como qualificado agente, um criminoso de delito comum (o famigerado Zeca Ruço). Havia sido condenado, pelos tribunais regulares, a pesadas penas que foram esquecidas. No seu passivo figuravam roubos, assaltos à mão armada e fuga da cadeia. Era tido como um dos mais perigosos meliantes.

Assim entendia o Alto Comissário a dignidade!

Os monumentos portugueses, que eram património luso em Moçambique, foram apeados antes da independência. Alguns foram mutilados ou tratados sem qualquer respeito pelo que representavam. Existem fotografias documentadoras em que se alinham Mouzinho de Albuquerque, Vasco da Gama, Cardeal Gouveia, Azevedo Coutinho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho.

Tudo isto se passou sob o governo do Alto Comissário.

Assim entendia a defesa do respeito pelo nosso passado e pelos nossos maiores em África que lhe tinha sido cometida!

Numa entrevista que veio a dar, (...) sobre a descolonização, referiu que, os que tiveram de deixar Moçambique, não passavam de "racistas", "exploradores e reaccionários".



Cartaz turístico de Lourenço Marques, provavelmente dos anos 50. Desde que abrira a linha-de-ferro para a África do Sul, Lourenço Marques tornara-se num destino turístico para o mercado sul-africano.

As dezenas de milhares de moçambicanos (de todas as cores e credos) que foram forçados a abandonar a sua terra, sob o mandato do Alto Comissário, e que tentam sobreviver pelo mundo, são a demonstração mais inequívoca de que isso não foi assim.

O Alto Comissário mentiu!

Sob a sua jurisdição foi conduzido à morte o Dr. Willem Pot, meu adversário de sempre e democrata convicto. Homem de cor, havia sido secretário de estado da comunicação social, no governo provisório de Moçambique. Por denunciar os campos de internamento, a falta de assistência jurídica aos presos e os abusos neles cometidos (no tempo do Alto Comissário), foi preso em Quelimane, torturado e inibido de receber qualquer socorro médico para a doença que o afligia. Libertaram-no para que não morresse na cadeia. Faleceu dias depois. Mas teve tempo de falar e possuo o testemunho do que disse.

Assim desempenhava o Alto Comissário as funções que lhe estavam entregues!

Para não alongar a lista das baixezas (que poderá ser completamente fornecida ao tribunal, quando chegar o momento) apenas mencionarei os presos abandonados em Moçambique, na altura da independência.

Somaram centenas, segundo provas indesmentíveis, quando o Alto Comissário deixou aquelas terras para retomar em Lisboa uma vida desafogada, sendo depois promovido a ministro, gastando o tempo por locais dispendiosos.

Se mais não foram os abandonados, deve-se isso à intervenção corajosa de três homens (Maj. Rebelo Gonçalves, Cap. Silva Marques e chefe de escala da TAP, Paiva Cardoso) que conseguiram fazer sair para Salisbury algumas dezenas dessas vítimas de cuja sorte o Alto Comissário se desinteressava. Descolaram da Beira às 10 horas do dia 25 de Junho de 1975, graças à abnegação dos tripulantes da TAP (chefiados pelo comandante Conceição) que dormiram no "Boeing" à espera de poderem realizar essa operação humanitária.

Nem sequer o consulado de Portugal, na Beira, dispunha de pessoal para assistir os portugueses. O Cônsul chegou, de Johannesburg, na véspera da independência e não dispunha de instalações e meios para atender os que o procuravam, aflitos. Com as instruções confusas de que dispunha, foram recusados passaportes a gente de cor que queria usar o seu direito de optar pela nacionalidade portuguesa. Eram abandonados à sua sorte.

Assim cuidava o Alto Comissário de preservar a expressão lusa do novo país.

Com tal procedimento entende-se tudo o que veio a acontecer depois.

Nada sucedeu por acaso. Tudo foi premeditado. (...)


Demolição de Moçambique





Quando regressei da Europa, encontrei uma situação confrangedora.

Na medida em que a evolução política portuguesa girava rapidamente para o extremismo comunista, sentiam-se reflexos em Moçambique que mais deterioravam o ambiente. Os postos chave ainda detidos por portugueses eram progressivamente ocupados por militantes marxistas. O figurino soviético surgia como padrão ostensivo da ideologia revolucionária e as existentes simpatias pela China popular eram metodicamente abafadas.

Fiz retirar os meus filhos que permaneciam na Beira e alguns pertences em que a família tinha maior estima. O resto ficou ali para ser tragado pela voragem.

Creio que levei longe demais o risco a que sujeitei a minha gente. Saíram quase no último minuto possível.

O pânico crescia, compreensivelmente, entre a população. Queria-se precipitar a fuga, manipulando os justificados receios de tantas pessoas. Não interessava aos activistas que ficasse alguém, de qualquer raça, que pudesse oferecer-lhes o risco de esclarecer as massas que começavam a agitar-se.

Joaquim Chissano e alguns outros dirigentes diligenciavam, todavia, travar esse êxodo. Sabiam como se reflectiria na produtividade do país, no crescimento do desemprego e no consequente descontentamento. Não ignoravam ser-lhes impossível dispor de quadros para substituir os que partiam.

Um qualificado funcionário português escrevia-me, em fins de Novembro:

"Estou profundamente preocupado e mesmo apreensivo com o futuro de Moçambique que não antevejo nem fácil, nem próspero, nem calmo, nem seguro.

A Frelimo surgiu cheia de boas intenções, mas completamente vazia de quadros ou de estruturas e nos meses que passaram não se nota qualquer evolução. Apresentam-se, não só incapazes de resolverem os grandes problemas, como de os equacionarem ou até mesmo de tomarem deles completo conhecimento.

Os chefes responsáveis são sensatos, ponderados, encontram-se animados de boa vontade e possuem normal capacidade intelectual. Acontece, porém, que, entre eles (e são confrangedoramente poucos) e a massa bruta dos "camaradas" nada existe.

Todos estes dirigentes têm plena consciência da incapacidade da Frelimo para assumir realmente todas as funções directivas de um país independente".

Por outros canais fiéis chegavam-me cópias de relatórios oficiais enviados para Lourenço Marques ou para Lisboa alertando sobre a preocupante anarquia que se avizinhava. Concretizar a independência em tais condições, escrevia-se nesses documentos, equivalia a entregar o país a irresponsáveis que um bando de extremistas se preparava para dominar. Os que, honestamente, formulavam estes avisos, foram gradualmente afastados.

Houve dirigentes da "Frelimo" que também escreveram para Dar-es-Saalam expondo a gravidade da situação.

Mas Vítor Crespo, Melo Antunes e Costa Gomes insistiam em que tudo se acelerasse para a transferência crescente de poderes.

Teima-se na "descolonização original", mesmo sabendo as vítimas e os vexames que ela iria causar.

Não podia deixar de haver, por detrás dessa atitude, um propósito deliberado.


República Popular de Moçambique


Os signatários do Acordo de Lusaka


Moçambique ascenderia à independência em 25 de Junho de 1975.

Pouco tempo antes, Samora Machel entrava no país, cruzando no norte a fronteira com a Tanzânia. Vinha acompanhado (ou tutelado) por Marcelino dos Santos.

O grupo que tinha ficado a rodeá-lo, em Dar-es-Saalam, desde o acordo com Melo Antunes reunia os elementos mais extremistas de declarada tendência pró-soviética.

A URSS havia trabalhado com eficiência e sem perda de tempo, desde que, em 1964, Mikhail Domogatskiy me anunciara a preocupação de recuperarem terreno sobre o avanço da influência chinesa.

Na impossibilidade de dominarem as bases da "Frelimo" e de controlarem os militares que combatiam no interior do país, dirigiram a sua atenção para os elementos intelectuais com possibilidades de virem a exercer a decisiva influência. Constituiriam a minoria destinada a controlar as estruturas.

Marcelino foi o homem-chave que utilizaram. Este se encarregou de aliciar e doutrinar os demais.

Os homens mais prestigiosos foram progressivamente eliminados.

Filipe Magaya, chefe militar valoroso, foi abatido, com um tiro nas costas, quando atravessava um rio, no decurso de operações dentro de Moçambique. O assassino foi preso, mas nunca mais se ouviu falar dele. Diz-se que enlouqueceu, em Dar-es-Saalam, na cadeia.

Eduardo Mondlane, respeitado político de cultura e formação ocidentais, foi assassinado em condições que, singularmente, os posteriores dirigentes da "Frelimo" nunca se interessaram em investigar profundamente. O que se sabe é que o livro armadilhado foi entregue em sua casa por alguém que lhe deveria merecer a confiança de não hesitar em abri-lo. O crime não aproveitava aos portugueses.


Eduardo Mondlane com Che Guevara (14 de Fevereiro de 1965).


Uria Simango, Padre Mateus, Lázaro Kavandame e Miguel Murupa tiveram de fugir da Tanzânia para salvarem as vidas. De todos, Só Miguel Murupa está em liberdade, na Europa. Os demais caíram em ciladas e encontraram-se em condições de não poderem, sequer, ser testemunhas perigosas.

Dentro de Moçambique, os comunistas organizaram o agrupamento dos "democratas" para minarem as estruturas e poderem opor-se a qualquer força política que surgisse no país.

Em Portugal, era preciso ocupar o poder governativo durante a fase activa da descolonização. Assim o fizeram.

A coordenação da jogada foi perfeita. Esse mérito tem de se lhes reconhecer.

O grupo marxista-soviético da "Frelimo" manteve-se, porém, em atitude discreta e só interveio para acelerar as negociações quando surgiu Melo Antunes como o enviado qua aguardavam. Até aí tinham apenas que retardar qualquer hipótese de acordo.

Existem elementos para afirmar que o próprio Samora Machel só passou a ser activamente trabalhado, no sentido doutrinário que lhes convinha, depois do acordo de 7 de Setembro de 1974. Até então, parece que não era efectivamente marxista. De outra forma não poderia ter enganado tão teatralmente o Dr. Kaunda que largamente o ultrapassa em cultura e experiência política.

Acontece, porém, que aqueles extremistas da "Frelimo" não contam no seu elenco qualquer negro prestigiado. Tinham que fabricar um. O mais fácil de produzir era Samora Machel e para isso beneficiaram dos meses que o tiveram ao seu exclusivo cuidado, enquanto a corrente nacionalista da "Frelimo" era enviada para dentro do país, onde a tentativa de organizar a independência os absorvia totalmente ante as dificuldades com que iam deparando.

Quando Samora Machel iniciou a série agressiva dos seus discursos e tomou atitudes revolucionárias intransigentes, pode dizer-se que houve surpresa geral. Surgiu a preocupação quando as declarações, os insultos e as ameaças foram crescendo ao longo da viagem. Possuo gravações directas que também me assombraram.

Boeing 707 dos Transportes Aéreos Portugueses a descolar na nova pista do aeroporto em Mavalane (1970).

Com o zeloso ardor dos recém-convertidos, Samora Machel falava como quem aprendeu a lição de cor, mas metendo, por vezes, coisas da sua lavra sem se dar conta das monstruosas contradições doutrinárias evidenciadas.

Nos nacionalistas da "Frelimo" houve um movimento de agitação e nos países africanos que mais tinham apoiado a guerra de libertação esboçou-se quase incredulidade.

Joaquim Chissano voou apressadamente para Quelimane, onde Samora Machel tinha ultrapassado os limites da inconveniência, sabendo estar numa região que lhe era hostil. Chissano tentou explicar ao presidente as consequências da acção que estava a realizar. Segundo testemunho identificado, o choque foi quase duro, mas Chissano não conseguiu mais do que adiar a anunciada alteração do nome de Lourenço Marques. Nada ganhou com isso porque meses depois havia de se fazer essa modificação e para pior. Em vez de Cafumo chamar-se-ia Maputo, sem ao menos se atentar no ridículo a que tal nome se presta.

Ainda houve quem sugerisse que a capital passasse a denominar-se MONDLANE, em homenagem ao sacrificado fundador da "Frelimo". Samora Machel nem quis considerar isso e Marcelino dos Santos opôs-se violentamente, criticando as tendências anti-revolucionárias que se abrigam no culto das personalidades.

O nome de Mondlane não podia, obviamente, ser por eles aceite (ob. cit., pp. 347-349; 351-354; 357-363; 375-376; 381-383).

Continua

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Moçambique Terra Queimada (x)

Escrito por Jorge Jardim



Carmo Jardim: instrutora dos Grupos Especiais Paraquedistas.


Preocupação em Lusaka


(…) apreensões fui encontrar em Lusaka quando ali me desloquei em 10 de Julho, conforme combinara com Mark Chona. Levei comigo minha mulher e a Carmo, enquanto que Pombeiro foi acompanhado pela mulher.

(…) Entretanto, na “State House”, Mark Chona e Peter Kassanda insistiam em assegurar-nos que o nosso “Programa de Lusaka” continuava inteiramente actualizado, como base e norma para as negociações. Recomendavam-nos que diligenciássemos organizar a importante minoria branca moçambicana e os africanos meus amigos, em termos de se dispor de uma força válida para o diálogo com a “Frelimo” que, em caso de necessidade, pudesse vencer o imobilismo de Lisboa. A visita do Dr. Mário Soares tinha-os desiludido e as declarações do Dr. Soares de Melo, em Moçambique, eram tidas como preocupantes.

Como evolução importante sobre os esquemas discutidos no passado, disseram-nos que, depois de tudo o que acontecera, a independência não podia ser discutida e seria inaceitável submetê-la a referendo. Com isso só se perderia tempo e poderia agravar-se o caos, com enfrentamentos tribais que era indispensável evitar.

Foi sublinhado, com ênfase, que a “Frelimo”, desejaria uma evolução que reunisse todos os valores que Moçambique pudesse mobilizar. Com o propósito dominante de tornar viável o governo do país, na fase transitória, e de lançar as bases para uma fecunda colaboração futura, havia que afastar preocupações ideológicas, que esquecer as atitudes assumidas no passado e não olhar a raças dos que estivessem dispostos a esse trabalho comum.

Aceite ou proclamada a independência, estaria a “Frelimo” desde logo disposta a cessar as operações militares e competiria, então, a todos os moçambicanos definirem, pelo voto, as estruturas nacionais que desejassem. Discutimos o tempo que seria indispensável para se atingir essa fase e concluímos que, trabalhando com afinco e não se perdendo mais tempo, poderíamos ter a independência consolidada por alturas de Outubro de 1976. Para isso, era indispensável levar Lisboa a passos imediatos ou fazer-lhe saber que os daríamos, se não tomasse a iniciativa.

Apreciámos a situação confusa que reinava em Portugal com distintos centros de decisão (Junta de Salvação Nacional, Governo MFA) enfrentando-se conflitivamente. Para agravar a situação dava-se, por esses dias, a demissão do governo provisório a que presidia o Prof. Palma Carlos.

Concluímos que o centro de decisão mais válido residia no “MFA” e fiquei de lhes fazer chegar as nossas recomendações.

Pequeno almoço com Kaunda


No dia 13 reunimo-nos com o Dr. Kaunda, em esforço matutino (...).

(...) Resumimos o que tratáramos e deu-nos o melhor encorajamento, confiando em que pudéssemos obter, finalmente, os resultados desejados. (...)

Renovou a oferta para que a minha família se acolhesse à hospitalidade da Zâmbia assegurando que não haveria dificuldade em instalá-la convenientemente apesar da dimensão do agregado familiar que minha mulher lhe recordou. Declinámos o amigo convite dizendo quanto nos sentíamos bem no Malawi que, pela proximidade com a Beira, nos permitia ligações mais rápidas e frequentes com os filhos que ainda permaneciam em Moçambique.



Nessa mesma manhã regressámos a Blantyre e a Carmo, que fizera amizade com as tripulações italianas ao serviço da "Zâmbia Airways", realizou toda a viagem na cabina de pilotagem falando pela rádio com Tete e com a Beira. Os controladores parece que ficaram surpreendidos ao inteirarem-se de que continuava a minha liberdade de movimentos entre os países africanos quando o noticiário, da já orquestrada imprensa, referia coisas bem diversas a meu respeito.

Campanha de agitação e mentiras


Em 15 de Julho, eu havia entregue ao Maj. Varela, em Blantyre, uma declaração assinada, destinada aos jornais moçambicanos e às agências informativas, distribuindo paralelamente uma tradução do texto, em inglês.

Nela desmentia que estivesse ligado à imaginária incursão de mercenários em Vila Pery, que promovesse a agitação registada entre os trabalhadores da Beira ou os actos terroristas assinalados nalgumas regiões. Negava, sobretudo, pretender uma independência unilateral sob o domínio da minoria branca.

A minha declaração não teve, no entanto, a mesma divulgação que haviam tido as calúnias contra mim levantadas. Houve jornais que só a publicaram, com atraso, depois da intervenção energética de oficiais amigos.

Como indício revelador da maquinação urdida, é útil recordar crónica proveniente de Lourenço Marques e que o “Expresso” publicou na edição de 20 de Julho. Essa notável peça deve-se aos correspondentes Areosa Pena e Paulo Chauque, conhecidos pela sua associação íntima com os “democratas de Moçambique”.

Num notável prodígio de imaginação escrevia-se concretamente:

“A acção dos mercenários brancos, enquadrando grupos africanos armados e enviados por Jorge jardim para provocar o terror no distrito de Vila Pery, de acordo com um comunicado do Comando Militar do sector, foi neutralizado, segundo apurámos, devido à pronta acção do Exército Português e dos nacionalistas da Frelimo”.

E acrescentava em pura fantasia:

“De acordo com um contacto telefónico efectuado pelo 'Expresso' com aquela cidade do centro de Moçambique, a partir da comunicação feita às Forças Armadas através de uma autoridade civil do distrito, o Exército Português e os nacionalistas da Frelimo passaram à perseguição dos mercenários, unidos numa aliança táctica contra o inimigo comum, actuando cada uma das forças em áreas separadas”.

A tal coluna de mercenários desapareceu misteriosamente e nunca mais alguém ouviu falar nela. Deve-se isso à simples razão de nunca ter existido.

Manifestamente que estava preparada toda uma farsa mistificadora que visava atingir-me.

O mais notável é que essa campanha viria a ser seguida, poucos dias depois, por actuação oficial determinada em Lisboa. Ficaria demonstrada a ligação entre todos os comparsas que uma vontade superior, há muito, comandava.


Deslocação à Swazilândia


Cumprindo o planeamento combinado desloquei-me à Swazilândia onde tinha encontro aprazado com pessoas de Lourenço Marques e da região sul de Moçambique.

Ali, em Matzapa, recebi (dias a fio) os que vieram procurar-me.



Todas as tendências e todos os interesses estiveram representados. Nem faltaram, sequer, militantes da “Frelimo”, que me conheciam de longa data, buscando uma palavra de orientação.

Informaram-me de que o ambiente se deteriorava em termos ainda mais preocupantes do que eu pudesse conceber. A incapacidade governativa era catastrófica e a propaganda desencadeada pelos “democratas” conduzia a um clima de pânico que fazia as pessoas avizinharem-se do desespero.

Revelei o nosso “Programa de Lusaka”, dei a conhecer as garantias que recebera e anunciei os nossos propósitos. Ao cabo de horas de argumentação, consegui o apoio e a confiança dos meus interlocutores. Aceitavam colaborar no esquema proposto e movimentar forças para uma coligação nacional no governo de Moçambique independente. Mas estavam desorientados e receosos.

A esta perigosa situação se havia chegado ao cabo de três meses de regime descolonizador.

Também ali me foi dado saber que Joana Simeão havia regressado de Portugal para conduzir um agrupamento político (a “Frecomo”) quem, com apoio dominante no tribalismo macúa, pretendia opor-se à influência da "Frelimo". Dispunha de largos meios financeiros que esbanjava em instalação de secretarias e em deslocação dos seus associados. Mantinha largas conversas telefónicas como o Gen. Costa Gomes (como fez de Quelimane e de casa de pessoa identificada) usando linguagem de intimidade que não consentia dúvidas sobre a genuinidade dos contactos.

Comecei a entender o jogo que o enigmático general pretendia levar a cabo.

Pretendia-se o enfrentamento tribal, o desespero dos brancos e a frustração dos militares para se impor uma solução que todos aceitariam como salvadora.

Só ainda não entendia onde se queria chegar. (…)


Rosa Coutinho não pôde encontrar-se comigo


(...) Na manhã imediata, [Álvaro Récio] tomou o pequeno almoço na residência oficial do governador, com o Com. Rosa Coutinho e sua mulher.

Vieram à conversa acusações que já corriam sobre a filiação comunista de Rosa Coutinho que as repudiou com indignação. Afirmou que estaria disposto a pagar bem, só para ver a ficha da "PIDE" em que tal constasse. A senhora quase se emocionou ao gritar: "Oh Récio. Você está a ver-nos comunistas? Até dizem que o meu marido já o era há 14 anos. Veja bem onde pode chegar a calúnia!"

O Álvaro Récio concordou com o casal e eu também haveria concordado, nessa altura, se houvesse estado presente. Nada, no contacto com Rosa Coutinho, poderia levar a admiti-lo. Nem sequer usava o tipo de linguagem ou argumentação que, sem dificuldade, permite caracterizar os comunistas.

Por outro lado, o desejo de recorrer ao Dr. Kaunda para estabelecer contacto com movimentos nacionalistas angolanos, não levava a presumir qualquer predilecção pelo "MPLA".

Quando a senhora se ausentou, Álvaro Récio transmitiu a minha resposta.

Para assombro do bem intencionado emissário, o Com. Rosa Coutinho ficou alterado e quase se descontrolou ao dizer que não queria quaisquer ligações comigo, que já haviam progredido bastante nos contactos desejados e que até dispunham, localmente, de "uma espécie de jardim". Pediu ao Récio que não lhe criasse problemas e mencionou-lhe que, entretanto, havia estado em Lisboa.

O Álvaro Récio, segundo me descreveu no regresso, ficou transtornado com tal reacção. Recordou-lhe que o que fizera fora por expresso pedido dele, que bom trabalho tivera a convencer-me e que não parecia acertado abandonar as diligências efectuadas por iniciativa do próprio Rosa Coutinho.

Este não negou que assim tivesse sido, mas manteve a mesma reacção, com a preocupação repetida de "evitar complicações".

Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e Rosa Coutinho.

Álvaro Récio ficou sem dúvida de que Rosa Coutinho (promovido a almirante logo a seguir ao "25 de Abril") tinha recebido instruções expressas em Lisboa. Só isso o poderia ter feito alterar as suas intenções, reveladas apenas semanas antes.

Certamente que Rosa Coutinho não recebera essas instruções do Gen. Spínola com o qual afirmava não estar nas melhores relações. Sabia-se, porém, da sua estreita ligação com o Gen. Costa Gomes que veio a confirmar-se quando da crise de 28 de Setembro e a revelar-se, abertamente, nos acontecimentos que se lhe seguiram. Por outro lado, o afastamento da Zâmbia do circuito mediador havia sido evidenciado como patente preocupação de Costa Gomes nos "cortes" da minha carta para o Dr. Kaunda, conforme já anteriormente documentei.

A alteração do propósito de Rosa Coutinho de se encontrar comigo, apresentava singular paralelismo com o cancelamento do encontro, em Madrid, desejado por Otelo Saraiva de Carvalho.

O mesmo cérebro, frio e metódico, exercia a sua influência para impedir que a descolonização pudesse ser afastada dos rumos que havia planeado.

Estávamos em Agosto. Nessa altura, Já Melo Antunes aparecia como o negociador qualificado da descolonização. Haveria de vir a ser mais tarde, depois de 11 de Novembro de 1975, o defensor do reconhecimento do governo do "MPLA", antecipando-se, mesmo, à ocupação cubana e soviética.

Por isso não aceitara ser nomeado para Moçambique. Tinha outra missão a cumprir. Levou-a a cabo com êxito, apoiado no Gen. Costa Gomes que viria a tomar a atitude de reconhecer oficialmente esse regime, quando estava ausente de Lisboa o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo e outros membros do governo que a tal decisão igualmente se opunham.

É difícil entender a ingenuidade das declarações do Dr. Almeida Santos, que não considero tolo, exaltando os acordos do Alvor quando, nessa altura, a entrega de Angola estava já decidida. Como tinha sido planeado, impedindo-se para tanto o encontro de Rosa Coutinho com Kaunda.

Sem que se possa atenuar a tremenda responsabilidade do "Almirante Vermelho" na tragédia que Angola veio a sofrer, haverá de reconhecer-se que foi habilmente manipulado desviando-o dos seus propósitos iniciais.

Para isso, devem ter-se reacendido os compreensíveis rancores que conservava em resultado dos abusos, físicos e morais, de que há anos fora vítima em Kinshasa, às mãos da soldadesca.

Não foi capaz de esquecer. Não foi capaz de resistir ao anseio de vingança.

Como homem, compreendo-o. Mas não tinha de ser Angola inteira a pagar pelo que outros lhe haviam feito. (...)


O Kissinger africano


Embrenhámo-nos dois dias em intensas conversas com Mark Chona examinando, como habitualmente, a situação.

Contou-nos que havia acompanhado Joaquim Chissano a New York e que, no regresso, se haviam separado para permitir a Mark Chona passar rapidamente por Lisboa onde estabelecera contactos com os responsáveis. Vinha preocupado com a falta de preparação com que deparara.

Descreveu-me o encontro que tivera com o Dr. Mário Soares e com o Dr. Almeida Santos. Em seu entender eram completamente ignorantes dos problemas de África e não entendia como o Dr. Almeida Santos podia ter estado tanto tempo em Moçambique sem nada ter assimilado das realidades.

Mário Soares havia sido particularmente insistente a meu respeito, mencionando que me consideravam como "homem perigoso e capaz de tudo para realizar os seu propósitos". Verdade seja que Almeida Santos não pronunciara sequer uma palavra de comentário a tais diatribes e nada dissera que me atingisse.

Mário Soares e o General Spínola.

Quase que divertido, Mark Chona relatou-nos que tinha tomado a posição de tudo ouvir sem abrir a boca. Fizera, apenas, o clássico movimento de sobrancelhas, tipicamente africano, que só pode ser interpretado (por quem o saiba) como significando "estou a ouvir". Parecera-lhe que Mário Soares havia tomado isso como atitude de concordância e que se sentira encorajado para insistir nos ataques.

Mark Chona assegurou-nos que a Zâmbia nunca seria sensível a tais pressões, tanto mais que considerava como "infantil" o incidente com o Malawi que se encerrara com nítido desprestígio para os portugueses.

Acrescentou que fizera viagem com Bill Mayer (vice-presidente executivo do "Bank of América" para qualquer zona de África) e que este lhe referira, por me conhecer bem do "Commercial Bank of Malawi", ser-lhe impossível acreditar nas histórias postas a correr a meu respeito. Mark Chona respondera-lhe que o Governo Zambiano também não dava credibilidade a tais acusações e que Bill o poderia repetir a quem quisesse. Disso, na verdade, já me havia chegado eco.

O notável assistente do Presidente Kaunda tinha uma capacidade de apreender os problemas que se apresentava invulgar e uma forma realista de actuar que lhe permitia encontrar soluções mesmo quando parecia perdido.

Daí resultou que o classificasse como "Kissinger africano", até pela rapidez como se movimentava, estando presente em toda a parte nos momentos oportunos.

O nosso "Kissinger" referiu-nos ter entendido que pouco havia a esperar da diplomacia clássica e que, como lhe tínhamos referido, seria ao "MFA" que se encontraria o interlocutor válido. Não citou nomes, mas não era preciso ser muito astuto para compreender que o Maj. Melo Antunes havia tomado a dianteira.

Estava confiado em que por essa via encontrassem as soluções desejadas e esperava que a descolonização de Moçambique pudesse oferecer um exemplo único de multirracialidade e tolerância que influenciaria decisivamente a posição da África do Sul e da Rodésia, demonstrando às minorias brancas mais esclarecidas que nada tinham a temer da aceitação de governos de dominância africana. Parecia-lhe ser esta a melhor forma de combater, sem violência, o racismo daquele país que resultava afinal, do temor quanto ao futuro. O que acontecera em Moçambique seria, portanto, decisivo.

Quando lhe referimos que tínhamos realizado contactos com Pretória, ficou encantado. Era excelente que acompanhassem a nossa evolução pois um dia haveria de chegar em que com eles se estabelecesse o diálogo e o caso de Moçambique representaria o melhor argumento.

Impressiona recordar, hoje, as ilusões de Mark Chona (e as nossas) porque Moçambique acabou por ser o exemplo oposto e por influenciar, compreensivelmente, a intransigência da minoria branca.

O Maj. Melo Antunes com o argumento "terceiro-mundista" e a proposição do socialismo argelino (que consistia em fazer Portugal ainda mais pobre, para se poder sentar no banco dos miseráveis) aparentava uma genuidade a que os africanos eram sensíveis a isso era facilitado pela impreparação de Mário Soares, acompanhada pela silenciosa ignorância de Almeida Santos que Mark Chona nos denunciava.

Junto a Melo Antunes estava o apoio de Costa Gomes, cujos propósitos eram, há muito, claros.

Verdade seja que, depois da "descolonização original" nenhum país africano abriu embaixada em Lisboa a não ser a Zâmbia, que para ali remeteu o nosso amigo Chimpampata. Do "terceiro-mundismo" apregoado por Melo Antunes, que, dele se pretendia arvorar em campeão, só ficou essa presença solitária.

Com alguns argumentos confusos, contra ao que nele era hábito, Mark Chona explicou o atraso da publicação da minha entrevista no "Times of Zâmbia". Também me assegurou que a minha carta para Samora Machel havia sido excelente, mas que teríamos de aguardar momento oportuno para um resposta. Era, para mim, evidente que alguma coisa de anormal acontecia.

Revelou-nos que o Presidente Kaunda se ausentara do país para uma reunião do mais alto nível em que o caso de Moçambique ficaria definitivamente decidido. Esperava que, dentro de muito poucos dias, tivesse lugar um encontro em Lusaka, com representantes portugueses credenciados para uma solução final. Não deixaria de contactar connosco para que fôssemos dos primeiros a conhecer a fórmula estabelecida.

No último encontro que tivemos (em 30 de Agosto) insisti em que a situação em Moçambique poderia avizinhar-se de confrontação dramática, tal era o estado de desespero das pessoas que não podíamos conter por mais tempo. As provocações multiplicavam-se e a minoria branca oscilava entre a fuga e a violência descontrolada. Ninguém os podia acusar por isso, ao cabo de quatro meses de um clima de agitação que minava as vontades mais fortes e melhor intencionadas. (...)


"Há que abater Melo Antunes"


O Gen. Spínola encontrava-se num estado de grande depressão. Chegara ao ponto de chorar abertamente durante uma das audiências. Sentia-se que estava submetido às maiores pressões contra as quais mal podia reagir. Desabafara afirmando que estava "rodeado por covardes e traidores".

Contou toda a história das negociações, afirmando que nunca transigiria com o que lhe queriam impor. Os próprios ministros Mário Soares e Almeida Santos, que os emissários viram sem lhes falar, pareciam acabrunhados.

Quando se mencionou o nome do Maj. Melo Antunes, o Gen. Spínola não se conteve gritando que "esse é um comunista, não tenho já dúvidas a tal respeito".

Referiram a possibilidade de ele ser nomeado para Moçambique (como os jornais haviam largamente noticiado) e o Presidente da República acrescentou: "Se isso acontecer há que abatê-lo. Têm três dias para lhe darem um tiro na cabeça".

Penso que a ninguém ocorreu objectar que seria mais simples não chegar a nomeá-lo, uma vez que essa prerrogativa pertencia ao Chefe de Estado.

Ainda mais simples teria sido prendê-lo em vez de oficiais considerados patriotas (como o Ten. Cor. Alexandre Lousada, o Com. Almeida e Costa e o Maj. Casanova Ferreira) aceitarem fazer parte do séquito de um "comunista" na sua triunfalista deslocação a Lusaka.

Ambiente golpista


Face a esta situação é compreensível que os emissários regressassem de Lisboa em estado de desespero e dispostos a todos os extremos.

A situação agravava-se, como eu previra, confirmando os sucessivos alertas dados em Lusaka e as claras advertências contidas na minha carta, de 31 de Julho, para Samora Machel.

Gomes dos Santos assegurou-me dispor de sólidos apoios financeiros e entendia não poder aguardar mais tempo, continuando a confiar-se nas pessoas com quem eu mantinha ligação. Em seu parecer tinha chegado a altura de recorrer à força para fazer escutar a voz dos moçambicanos que corriam o sério risco de serem abandonados à sua sorte.

Diligenciei serená-lo, fazendo ver que os métodos revolucionários, naquela altura, não conduziriam a nada de positivo e só podiam provocar retaliações sobre a população indefesa, dando aos extremistas o pretexto desejado para arrastarem a "FRELIMO" para uma política de endurecimento e intransigência.


Em meu entender, no campo militar, uma revolta representaria loucura destinada ao insucesso. A retirada portuguesa dos pontos vitais concedia à "Frelimo" uma dominância que se somava ao seu controle, no mato, de amplas zonas do território. Ninguém apoiaria uma rebelião civil-militar (estigmatizada pela aparência de buscar o domínio pela minoria europeia) e estava certo de que nem a República da África do Sul, nem a Rodésia desejariam agravar os seus problemas, prestando qualquer apoio. Tentariam, mesmo para além dos limites previsíveis, entender-se com o novo regime e tardariam muitos meses em reconhecerem o assalto que contra elas se preparava.

Sem apoio externo, sem compreensão portuguesa e sem auxílio de ninguém, era impossível manter uma confrontação com a "Frelimo" mesmo que, na hipótese mais optimista, a rebelião tivesse êxito. Ao mesmo tempo haveria que pensar-se na capacidade de retaliação das massas africanas, excitadas, contra os núcleos urbanos (todos rodeados por cinturas ameaçadoras) e contra os colonos dispersos pelo interior que seria inviável proteger.

As próprias acções terroristas selectivas, preconizadas por alguns, afiguravam-se-me condenáveis. A capacidade de resposta era tremenda e havia que meditar nas vítimas inocentes que o tal provocaria.

Os meus esforços apaziguadores foram, logo de seguida, afectados, quando nos vieram trazer os jornais sul-africanos com as primeiras notícias sobre o próximo encontro, em Lusaka, entre as delegações portuguesa e da "Frelimo".

Em telegrama de Dar-es-Salaam atribuíam-se a Samora Machel declarações segundo as quais essa reunião, a iniciar no dia 5 de Setembro, se limitaria a concretizar a transferência de poderes. Tudo já estaria negociado e acordado.






Efectivamente, já o estava há semanas, em entendimento entre Melo Antunes e o sector extremista da "Frelimo". Manobraram coordenadamente as próprias fórmulas de transigência que Mário Soares e Almeida Santos haviam proposto e foram substituídas por outras mais radicais. Na corrida das concessões haviam sido largamente ultrapassadas por Melo Antunes.

As parangonas com que essa capitulação era anunciada nos jornais, tornavam o ambiente escaldante entre os amigos que entravam pelo quarto, de roldão. Sentiam-se traídos e dispostos a adoptarem, imediatamente, entre o abandono do país ou um acto de desespero.

Pelos ecos que chegavam a Johannesburg, onde meu telefone não parava um momento, avaliei o que se passaria em Moçambique.

Continuei a diligenciar manter a serenidade (apesar da perturbação que também me assaltava) e a recomendar que evitassem qualquer atitude menos ponderada.


O capitalismo em Moçambique


Por autêntica e surpreendente coincidência, o industrial e financeiro António Champalimaud chegava nessa altura a Johannesburg, instalando-se no mesmo hotel em que eu me encontrava.

Vinha da Europa e deslocava-se, com curta demora, a Moçambique, onde se iria ocupar dos vultuosos empreendimentos que ali tinha. Encontrámo-nos, por mero acaso, na sala de jantar.

Havíamos tido estreitas relações de trabalho dado que eu administrara o seu grupo de empresas em Moçambique, vindo a afastar-me voluntariamente por divergência de critérios. Isso, porém, não havia afectado a nossa ligação pessoal que vinha desde os bancos da escola.

Nunca estivemos associados em propósitos políticos e nem nunca vislumbrei essa tendência em António Champalimaud, sempre absorvido por actividades para que o arrastava a sua apaixonada vocação industrial. O que a imprensa, nacional ou estrangeira, publicou sobre os nossos pretensos planos políticos, não passou de especulação urdida pelos que me queriam apresentar como agente do capitalismo e colonialismo.









É certo que trabalhei em importantes grupos capitalistas e creio que o fiz com a eficiência que se impunha. Mas nunca ocultei a minha antipatia pelas estruturas monopolistas a que o capitalismo tantas vezes conduz. Não transigia com os defeitos do sistema, mas não deixava de reconhecer as vantagens que apresentava, sobretudo em países carecidos de capacidade empresarial e de meios financeiros próprios.

A experiência de "participação socializante" que, com tanto êxito foi tentada no Malawi, era a que me parecia mais apropriada para o caso moçambicano. Acompanhei activamente o Dr. Banda na edificação dessa fórmula em que se conservava, ao grande capital, participação, dominante ou significativa, nos empreendimentos considerados essenciais, mas em que as instituições locais se associavam com influência progressivamente crescente na condução das empresas.

Por este caminho evitava-se a possibilidade do capitalismo se impor como força opressora ou, mesmo, de evitar vias de pressão.

Aliás, não creio que seja do interesse das próprias estruturas capitalistas praticarem tais desmandos e confiava em que, seguindo o exemplo do Malawi, pudéssemos contar em Moçambique com colaboração do capitalismo esclarecido para reconstrução e fomento do país.

António Champalimaud (há que reconhecê-lo e afirmá-lo) tinha marcada predilecção por Moçambique que se poderia dizer que "amava à sua maneira", parafraseando palavras do Dr. Almeida Santos. Este, aliás, trabalhara comigo para essas empresas com um zelo profissional em que nunca descortinei indícios de aversão pelo capitalismo ou colonialismo que tão veementemente viria a atacar.

O que estou, é em posição de garantir que os avultados lucros angariados em Moçambique pelo "grupo Champalimaud", foram ali reinvestidos, recorrendo-me mesmo ao reforço da sua vasta capacidade de crédito externo para lançar novos empreendimentos. Era essa a posição do "grupo" quando ocorreu o "25 de Abril".


As Forças Armadas: bode expiatório


Conversámos longamente, essa noite, no seu quarto com a presença de um dos seus colaboradores.

Aquilo que me contou confirmava, inteiramente, as informações que de diversas origens me chegavam. Gomes dos Santos não tinha, em nada, exagerado quando me descrevera a situação em Lisboa.

O Gen. Spínola encontrava-se sob o completo domínio de influências em que se destacava a do Gen. Costa Gomes no qual continuaria a confiar, cegamente, até às vésperas de resignar do seu cargo. Quando era prevenido para, ao menos, se acautelar, dava invariável resposta de que "o Chico não pode ser desleal comigo". Acreditava numa camaradagem de dezenas de anos que o aproveitou até ao fim, como já anteriormente, fizera com Marcello Caetano.

Já no exílio, o Gen. Spínola viria a revelar, em Genève, que apenas poucos dias antes do 28 de Setembro tivera provas da deslealdade de Costa Gomes e, mais ainda, da sua premeditada actuação pró-comunista que, afinal, há muito vinha desenvolvendo.

Quando os projectos de acordo com a "Frelimo", vindos de Dar-es-Salaam lhe foram apresentados, o Gen. Spínola reagira muito vivamente, afirmando que nunca os assinaria. Foi-lhe então apresentado o argumento de que as Forças Armadas, em Moçambique, não estavam sequer dispostas a manterem as posições que ainda conservavam e que havia o risco de se verificar a deserção de unidades para a "Frelimo" (como alguns casos já se se haviam registado) acabando tudo numa vergonhosa capitulação. Fazendo um acordo sempre se salvariam as aparências.

O velho soldado chorou. Nunca esperara enfrentar tal situação no termo de uma carreira militar honrosa. O Gen. Costa Gomes, chefe do Estado Maior General, confirmava-lhe que assim era. Não havia opção entre um acordo e a capitulação.

O Gen. Spínola pedira, então, que ao menos passassem a cláusulas secretas, alguns dos pontos mais humilhantes. Referiam-se, concretamente, ao direito de veto da "Frelimo" sobre os nomes a indicar por Lisboa para o governo de transição e à faculdade de a "Frelimo" se pronunciar sobre a designação do Alto Comissário.




O que não foi dito ao Gen. Spínola, por quem tinha o dever de o informar, é que as tropas moçambicanas (representando a maioria dos efectivos) estavam dispostas a cumprir o seu dever e que nisso eram acompanhadas por muitas outras unidades como os "comandos" de Montepuez, os paraquedistas e a Força Aérea.

Também ninguém lhe referiu que a frustração de certas unidades tinha sido resultado dos meses vividos, depois da revolução, sem descortinarem termo para a anarquia que alastrava e sem serem informadas das possibilidades de uma solução para a guerra que continuavam a enfrentar. Oficiais milicianos, de formação comunista encarregavam-se de explorar essa frustração que havia sido cuidadosamente provocada.

Melo Antunes poderia aparecer, nesse quadro, como o homem que evitava o pior.

As Forças Armadas que, declaradamente, tinham lançado o "Movimento" para não se converterem em "bode expiatório" do colonialismo, acabaram por converter-se no "bode expiatório" da descolonização (ob. cit., pp. 276-278; 280-281; 286-288; 318-320; 334-336; 338-343).

Continua