Manuel Kant |
Avant-propos
Decorridos cerca de 40 anos após a publicação do opúsculo de António Quadros, A angústia do nosso tempo e a crise da universidade (1956), passava o signatário destas linhas pela Faculdade de Letras de Lisboa onde o positivismo, designadamente o alemão – Kant, Husserl, Feuerbach e Marx-, dominava num departamento em que a história da filosofia surgia segmentada em antiga, medieval, moderna e contemporânea. Continuava, pois, a máquina universitária a enfermar dos mesmos males e vícios tão cuidadosamente descritos e apontados por António Quadros, tais como a entropia sociológica e uniformizadora do ser humano, o funcionalismo burocrático, rotineiro e amanuense do corpo docente, o sistema inquisitorial do esbirro judicativo ou do professor examinador inapto para aferir talentos e encaminhar vocações, além do preconceito didáctico secundado em esquemas e modelos estrangeiros inibidores do mais original pensamento português.
De
facto, António Quadros, sendo um literato, um escritor e um intelectual,
propunha uma reforma da mentalidade que passasse por uma
Universidade cujo núcleo dinamizador postulasse um Instituto Central de Cultura
Superior destinado a um saber teorético actual, vivo e original capaz de vencer
forças e tendências fragmentárias em prol da situação concreta da filosofia portuguesa. Enfim, uma ilusão do foro existencial, já que, na linha de pensadores como Unamuno, Ortega, Camus e Karl
Jaspers, não era de todo indiferente a um positivismo do sentimento por contraponto
ao positivismo do pensamento idealmente abstracto, vago e sem radicação
espácio-temporal.
Não obstante, estamos em crer que António Quadros sabia perfeitamente que a especulação filosófica, no que tem de mais verdadeiramente criador, não nasce propriamente em institutos de cultura nem muito menos se rege por um conjunto livresco de revistas eruditas e universitárias, ou até mesmo se limita a
roteiros bibliográficos ou a trabalhos especializados de divulgação, crítica ou
comentário do pensamento alheio. Nessa medida, o mais que se pode realmente esperar da Universidade é o recorrente registo fóssil do pensamento
pensado segundo critérios textuais, metodológicos e pseudo-científicos que aproximam estudantes
e professores no mais lamentável repúdio pelo pensamento em cumulativo e incessante acto.
A chamada "filosofia" nas Faculdades de Letras equivale, pura e simplesmente, à revolta das Letras contra o Espírito. Por outras palavras, a filosofia não é nem nunca foi uma inútil actividade de gabinete onde estudantes ou candidatos a "profissionais da filosofia" se prestam ritualmente a uma panóplia de exames e interrogatórios com a mera finalidade de passar às diferentes cadeiras para assim obter o diploma de fim de curso. De resto, a maioria dos filodoxos em questão tem apenas por destino o engrossar das fileiras de funcionários públicos do chamado ensino secundário, onde limitar-se-ão a inculcar aos adolescentes um programa curricular praticamente ditado pelas directrizes supranacionais da UNESCO enquanto agência especializada das Nações Unidas.
No mais, todo
este processo encontra-se suficientemente explicado no nosso livro intitulado Noemas de Filosofia Portuguesa: um estudo revelador de como a
universidade é o maior inimigo da cultura lusíada. Na verdade, é praticamente o único estudo actualizado que não só desenvolve e aprofunda o que já António Quadros e Afonso Botelho haviam parcialmente dito e
diagnosticado sobre a falência moral e espiritual da Universidade, como ainda
põe a nu a actividade antipatriótica perpetrada por uma cediça instituição que praticamente tem
permanecido incólume nas duas últimas centúrias.
Miguel Bruno Duarte
A crise da universidade
«Para os que gostam das catalogações analógicas, nós diríamos que Álvaro Ribeiro ocupa, em relação à cultura portuguesa, situação semelhante à que Karl Jaspers, o teorizador existencialista do "englobante" e da "fé filosófica" ocupa na actual cultura alemã...».
António Quadros ( «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade»).
«A doutrina positiva é a doutrina do porto seguro, enquanto a doutrina existencial é a doutrina do naufrágio, da navis fracta. Entre esses extremos domina a virtude que corresponde à vocação dos Portugueses, a virtude do Infante de Sagres. A filosofia portuguesa, outrora referida a Aristóteles, ao actualizar-se no período em que está ameaçada pelo existencialismo, não necessita mais do que recorrer a Bergson para deixar de se apavorar perante o ídolo do nada, e de recorrer a Hegel para verificar como se supera a dúvida entre o ser e o não-ser».
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
Ser homem é uma situação que se pode pois desenvolver em duas instâncias: a primeira corresponde ao interesse individual; a segunda, ao interesse universal. Na primeira, o homem fecha os olhos ao universo que o rodeia, vendo nele apenas os obstáculos a transpor para a realização dos ideais egoístas; na segunda, o homem, depois de ter procurado atingir uma concepção do universo, busca fazer de si mesmo um elemento dinamizador desse universo, assumindo a responsabilidade do poder espiritual que lhe foi dado e que, no mundo, ele possui em mais elevado grau do que qualquer outro ser da criação.
Acredito que é na conjugação destas duas razões, a individual e a universal, e não no predomínio de uma sobre a outra, que conduz sempre a um misticismo pessoal, estatal ou religioso, em qualquer dos casos violentando a realidade física ou espiritual da natureza humana, que merece ser respeitada, embora guiada - acredito que é na conjugação destas duas razões, ia a dizer, que o homem pode transcender a crise de angústia, de perplexidade, de contínuo problematismo que vive - nesta idade à beira do extermínio, em consequência do desiquilíbrio entre o progresso dos meios materiais de destruição e o retrocesso dos meios espirituais de elevação.
O mundo medieval, de que não vou fazer a apologia, pois conheço-lhe as imperfeições e as insuficiências, logrou no entanto, nalguns períodos em que o rei, a nobreza, o clero e o povo souberam entender-se, unindo-se numa tarefa comum, conseguir uma atmosfera exemplar, em que cada um, entregando-se sem olhar para os lados, à sua função específica, contribuiu para o bem de todos os outros e para o progresso material e espiritual do homem.
Neste mundo medieval no que ele teve de melhor, a educação do homem realizava-se nas duas instâncias do interesse individual e do interesse universal que há pouco mencionámos: a primeira, correspondente à preparação profissional, tinha como esfera a corporação; a segunda, correspondente ao saber e à missão universal deste saber, tinha como esfera a universidade.
Não vamos historiar a evolução da universidade portuguesa desde esses tempos em que era formada, institucionalmente pela corporação dos estudantes, e culturalmente pela tradição aristotélica. O seu processo de transformação terá principiado com a fundação do Colégio das Artes, e com a difusão entre nós do espírito humanista que impregnava a Renascença italiana. Mas foi sem dúvida a entrada em Portugal, em períodos de menor consciência dos valores nacionais, de duas correntes filosóficas francesas, que lhe deu um rumo diferente da sua primitiva e tradicional substância. Rumo na verdade tão diferente, que dir-se-ia outra instituição, com certeza divergente e até antagónica desse rótulo amplo, ousado e de longo alcance que é a designação de universidade.
Na verdade, foram as reformas do Marquês de Pombal, convertendo a universidade portuguesa às novas ideias do iluminismo e do enciclopedismo, e a do Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1870, amoldado por influência de Teófilo Braga ao positivismo de Augusto Comte, que conduziram a instituição universitária ao seu condicionalismo actual.
Proclamada a República em 1910, constituíram-se as Universidades de Lisboa e do Porto, que, sob o influxo da mesma orientação positivista, foram factores de muita importância nesta degenerescência do espírito universitário.
Afonso Botelho |
Em face desta situação, rigidamente estabelecida, profundamente vinculada aos interesses pessoais de alunos e professores - ambos aprendendo e ensinando para viver, grande número dos que se debruçam sobre o problema, resolvem-no reconhecendo e admitindo a falência da universidade como formadora do saber, como integradora do homem numa existência transcendente à simples luta pelos bens materiais ou mesmo à mera afirmação de personalidade.
Formulando-a deste modo, a crise da universidade portuguesa é apenas um aspecto da crise da universidade europeia, afirmada e reconhecida pelos espíritos mais lúcidos do nosso tempo. Ortega y Gassett, já escrevia, em 1930: «Comparada com a medieval, a Universidade contemporânea complicou imensamente o ensino profissional que aquela proporcionava em gérmen, e acrescentou a investigação, abandonando quase por completo o ensino ou transmissão da cultura.
Benedetto Croce, o conhecido filósofo italiano que, como Ortega y Gassett, a Europa perdeu há pouco tempo, dizia há cinco anos a um escritor brasileiro que o foi entrevistar em Nápoles: «No melhor dos casos, o estudante excepcional sai dos bancos académicos munido apenas de instrumentos de pesquisa; apura o orgão para uma função posterior. E, se esta não tiver oportunidade, acaba por se atrofiar. Além disso, o verdadeiro saber, a Universidade é incapaz de o dar» (3).
Como quiseram resolver Ortega e Croce esta «importância cultural» da universidade moderna? Através de institutos extra-universitários de cultura. Ortega, juntamente com um pequeno núcleo excepcional de pensadores entre os quais é justo destacar Xavier Zubiri e Julian Marias, fundou em Madrid o «Instituto de Humanidades». Croce, que foi um dos criadores, em Itália, de um instituto correspondente, mas de orientação muito diversa, o «Instituto italiano dos estudos históricos», chegou a dizer: «Daí, a imperiosidade dos Institutos, que nestes últimos anos vêm surgindo nos centros mais densamente culturais do mundo. O curioso é que tais institutos como o de Jean Wahl em Paris ou o de Ortega em Madrid - surgiram sem uma prévia consulta: as condições universitárias hodiernas, absolutamente incapazes de atender aos reais anseios das autênticas vocações, acabaram por impor a nova fórmula de estudos, às vezes programaticamente paralela à Universidade, às vezes supletiva e, quase sempre, contraposta ao espírito universitário actual, que hoje naufraga no seu especialismo estéril e meramente propedêutico. Diante disto, não há a menor dúvida de que a crise universitária só será resolvida... fora da Universidade» (4).
Afigura-se-me que esta solução, correspondendo ao pensamento dos que defendem a inutilidade da salvação da universidade como tal, deixando-a confinada à sua tecnicidade, e transferindo os problemas da formação cultural e da universalização do saber para fora das suas portas, ignora ainda o nódulo da questão universitária. Abandonar a segunda instância da educação do homem aos sabores e caprichos comerciais da imprensa, da rádio, do cinema ou da televisão, à multiplicidade dispersa do movimento editorial, à irresponsabilidade filosófica de uma arte que se dirige pelas modas e que perdeu a ciência dos símbolos, ou ao pequeno grupo de mestres de elite que possam reunir-se em volta de um Instituto extra-universitário, que as exigências da vida moderna necessariamente obriga a ser escassamente frequentado - é no final de contas o mesmo. Um Instituto desses pode sem dúvida formar uma elite de altos espíritos, uma dezena de vocações para a cultura superior que de outro modo talvez não tivesse campo para se desenvolver. Vou mais longe: creio na utilidade e até na necessidade desses focos de alta cultura. Mas não lhes podemos pedir que formem gerações inteiras. E, nesta viagem em que todos estamos empenhados, a salvação não pode repousar apenas nos ombros de uma dúzia de intelectuais.
Por outro lado, tanto Croce, profundamente ligado ao idealismo trágico alemão, como Ortega, que promoveu a fusão de certos valores da cultura espanhola com as traves mestras das vias do pensamento germânico, como Jean Wahl, aliás um dos mais inteligentes representantes do existencialismo francês, como tantos outros teorizadores da cultura centro-europeia, acreditam que os mais altos cumes do esforço intelectual são a investigação da matéria e o exercício da razão pura, ou seja, as ciências e a metafísica. Mas as ciências, se podem analisar a composição dos corpos, nada nos dizem sobre as causas e os fins da própria existência do homem e do mundo; e a metafísica, mesmo quando esgotasse toda a capacidade da razão humana, não nos levaria mais longe no plano ético do que aquela situação existencial de angústia, de náusea, de lúcida perplexidade, de lógico desespero, de dialéctica do ser e do nada de que falámos ao princípio destas considerações.
Não é senão natural, por conseguinte, que os mais profundos teorizadores da nossa universidade, pensando-a a partir dos conceitos próprios da filosofia portuguesa, se afastem da metodologia proposta pelos pensadores franceses, alemães, espanhóis ou italianos. Não me é possível aceitar que a educação superior fique sujeita à dispersão, à multiplicidade, ao jogo caótico de jornais de todas as índoles, livros de todos os géneros, expressões publicitárias de todas as intenções, tendo no cume um instituto para uso exclusivo de élites intelectuais - o que teria de equivaler não só a uma aristocratização cultural, como a uma entronização do saber puro.
Porque é finalista, porque crê que o conhecer, o sentir e o agir devem andar sempre indissoluvelmente ligados, para que a nau possa efectivamente navegar, em vez de permanecer parada, afundando-se, enquanto o capitão e os oficiais examinam as estrelas ao telescópio - o pensamento português defende que a educação verdadeira não é apenas transmissão de saber, mesmo superior, como o querem Ortega e Croce, é igualmente formação de sensibilidade, pela arte, e da vontade, pela adequação do acto à ideia. A responsabilidade cultural da Universidade não pode, por conseguinte, ser adiada ou transposta para outros campos. Não é desejável que seja criado um abismo demasiado profundo entre os filósofos e cientistas, de um lado, formando-se fora da Universidade, entregues exclusivamente a problemas racionais e materiais de conhecimento - e os técnicos, do outro lado, cada um dedicado à sua parcela profissional, restrita e desligada do conjunto. Pelo contrário - parece-me que a boa doutrina consistiria em unir, comunicando-lhes por igual uma visão unívoca do universo, que lhes dê consciência da posição relativa e da função superior da respectiva técnica, profissão ou especialização, filósofos e cientistas - engenheiros, arquitectos, advogados, professores, médicos ou economistas.
Leonardo Coimbra |
O ensino da filosofia está hoje, como se sabe, entregue à Faculdade de Letras, instituição que reúne vários Cursos díspares, desde o de Filologia Clássica ao de Ciências Históricas e Filosóficas. Uma Faculdade de Filosofia teria necessariamente que sair de uma reforma da Faculdade de Letras, separando a Filologia da História e esta da Filosofia. Mas semelhante divisão, que não deixaria de ser benéfica, acrescente-se, conservaria possivelmente a estrutura do ensino da filosofia tal como ali é praticado actualmente. Neste aspecto, o núcleo teorético da Faculdade de Letras está longe, muito longe mesmo de poder assumir o papel de promotor e activador da «unidade da cultura nacional».
Um ensino de feição positivista, historicista, indiferente aos valores específicos da cultura portuguesa, limitando-se a transmitir sínteses históricas de correntes estrangeiras, nivela-se ao das escolas de especialização profissional, usando os mesmos processos para o desenvolvimento espiritual do aluno que usam as faculdades de medicina ou engenharia para a aptidão técnica dos seus licenciados. Para obter a licenciatura, o aluno do actual curso de Ciências Históricas e Filosóficas não tem que saber pensar, sentir ou agir - apenas aprender de memória as noções históricas de compêndio, que encerram em meia dúzia de frases, os pensamentos de Descartes, Kant ou Espinosa. Na realidade, este curso pode ser considerado, no condicionalismo já descrito no capítulo anterior, simplesmente como outra escola técnica (in «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade», Cidade Nova, 1956, pp. 121-132).
Notas:
(1) Afonso Botelho, O Drama do Universitário, Lisboa, 1955.
(2) Ortega y Gassett, Mission de la universidad, Madrid.
(3) In Acto, n.º 1, Lisboa, 1951. Entrevista de Luís Washington.
(4) In Acto, n.º 2, Lisboa, 1952. Entrevista de Luís Washington.
(5) Leonardo Coimbra, O Problema da Educação Nacional, Porto, 1926.
(6) Ob. cit.
(7) Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, Lisboa, 1943.