sexta-feira, 19 de abril de 2013

Perda da Índia Portuguesa (iii)

Escrito por Franco Nogueira








«(...) O que de divino os pagãos atribuem às mulheres - a insaciedade nunca satisfeita, a possessão sem limites, a crueldade inesgotável - faz delas, ao exercerem poderes como são os da política, o pior dos flagelos. Exemplo: Indira Gandhi [filha de Pandita Nehru] esterilizando os homens para travar o crescimento demográfico».

Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).


«A mítica União Indiana do não-alinhamento que Kennedy procurou aliar ao seu messianismo global tinha (...) graves problemas conjunturais. Em primeiro lugar, a economia indiana atravessava uma fase crítica, e o governo de Nova Deli recorreu a importantes empréstimos dos Estados Unidos. Em segundo lugar, Nehru envelhecera, perdeu qualidades de liderança e, como notou Schlesinger, "entrara obviamente em declínio". O Primeiro-Ministro indiano encontrava-se sob pressão da ala radical do regime, onde se destacava o Ministro da Defesa, Krishna Menon, um "ardente antiamericano". Krishna Menon era, depois de Adlai Stevenson, a figura mais impressiva das Nações Unidas, famoso pelas suas maratonas verbais de "ramo de oliveira" a favor da paz e pela aparência física incomum: "cãs coroando a face arrogante e bem parecida, mãos atrás das costas segurando uma bengala, a pavonear-se pelos corredores das Nações Unidas". Em terceiro lugar, e de forma mais decisiva, as relações entre a União Indiana e a República Popular da China deterioravam-se gravemente. Mao Tsé-Tung ocupara o Tibete pelas armas, em 1959, reclamando-o como parte da China, e a colisão fronteiriça prolongou-se durante 1961 com incursões militares chinesas na área de Ladakh.

O dissídio indo-chinês atingiu um dramatismo que punha os dois gigantes vizinhos na iminência da guerra. A falta de resposta de Nehru às iniciativas militares da China era, segundo a estação da CIA em Nova Deli, "um grande abalo no orgulho indiano" e estava a afectar "a confiança e a determinação do povo indiano". Em 14 de Agosto, Nehru apoiou no Parlamento legislação destinada a integrar os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli na União Indiana e, referindo-se a Goa, afirmou que "talvez tenha chegado a altura de enviar o nosso Exército para lá". Não querendo um confronto aberto com a China que lhe seria fatal, Nehru preparava instintivamente a invasão de Goa, segundo a CIA, como "o meio mais fácil e mais seguro" para "fortalecer o moral nacional". Portugal levou o assunto às Nações Unidas. Mas a convicção generalizada na comunidade internacional era que Nehru, para manter intocável o seu estatuto de pacifista, não ousaria tomar Goa pelas armas. Ao mesmo tempo, para contrabalançar o factor chinês, Nehru iniciou uma abertura política e militar à União Soviética».

José Freire Antunes («Kennedy e Salazar: o leão e a raposa»).


«Lisboa, 31 de Maio [de 1962] - Demorada conversa com Jorge Jardim, chegado de Goa. Súmula do que me disse: há em Goa um espírito de resistência ao ocupante; entre a oficialidade portuguesa que esteve em Goa, é hostil ao governo o estado de espírito; entre a população goesa está criado um sebastianismo que anseia por um regresso dos portugueses; os oficiais superiores indianos confessaram o seu espanto perante o carácter não-indiano de Goa e o seu elevado grau de autonomia; e o Patriarca José Alvernaz recusou-se a reconhecer a ocupação indiana, mantendo hasteada no seu paço a bandeira portuguesa e negando-se a cumprimentar as autoridades indianas.






(...) Lisboa, 6 de Março [de 1966] - Domingo. Sol grande, reflectindo no rio e na ponte em construção uma luminosidade quente. Percorri um grosso volume: "Survey of International Affairs", referente a 1961. Debrucei-me sobre o capítulo relativo à política externa indiana e à anexação de Goa. Assunto é tratado de forma desenvolvida, e apresentado sem grande simpatia pelo ponto de vista português; há omissões, e importantes; mas não se revela tão-pouco simpatia pelo ponto de vista indiano. Mais uma vez se suscita no meu espírito esta pergunta: qual foi exactamente o papel dos Estados Unidos no caso de Goa? Deram a luz verde a Nehru, sem dúvida alguma, porque podiam ter travado o indiano se o houvessem querido, e isso sem ofensa de interesses americanos de monta. Mas por que procederam assim? O seu anticolonialismo, o seu fascínio pela Índia, o seu desejo de assegurar o mercado indiano - tudo isto conduziu à atitude assumida por Washington. Passados quase cinco anos, porém, penso que se deveria ajuntar uma outra razão: a Kennedy terá ocorrido que, com a perda de Goa, cairia o governo de Salazar em Lisboa: e como Salazar, na questão de África e na base dos Açores, já se mostrara um aliado muito duro, haverá Kennedy também julgado que daquela maneira se desembaraçaria de um sujeito incómodo. Falhara o golpe de Botelho Moniz de Abril de 1961, inteiramente pró-americano, senão inspirado pelos Estados Unidos; e o que não se conseguira com uma revolução interna, que falhara, poderia acaso obter-se com um desastre externo. Goa era ponto ideal para o tentar. Será isto? De momento, nada disto se pode provar (...).

(...) Lisboa, 10 de Abril [de 1966] - (...) Parece que há em Salazar uma tendência inata que o leva a não ver o mal, a não acreditar no pior, e não prever actos imorais ou torpes dos outros. Lembro-me de que, perante os preparativos da agressão contra Goa, Salazar nunca acreditou que Nehru avançasse: só viu essa realidade dois ou três dias antes de o facto se produzir. E em princípio Salazar tinha razão: na lógica pacifista de Nehru, foi um erro a anexação violenta de Goa, como aliás o admitiu depois.

(...) Lisboa, 19 de Janeiro [de 1967] - Fui de manhã à Assembleia Nacional fazer longa exposição aos deputados, com um longo período de respostas. Sensacional: Goa, Damão e Diu rejeitaram, por substancial maioria, a integração na União Indiana. E disse-se, e ainda se diz, que não havia portuguesismo em Goa.

(...) Lisboa, 13 de Abril [de 1968] - Levo ao chefe do governo o II volume do Livro Branco sobre Goa. Ficou satisfeito sem ambages. Goa permanece, de todas as questões que tem tratado, nos seus quarenta anos de governo, a que mais tocou e afectou, e que mais o feriu, e a chaga mantém-se, como mortificação constante. Salazar folheou o volume, com interesse e pormenor, e releu imediatamente muitos documentos de há anos. Incuráveis permanecem o desespero e a angústia que sente por não se haverem batido as nossas tropas. "Quanto à campanha diplomática", e Salazar lançou-se numa evocação que ainda o agita, "fomos brilhantes, fomos primorosos, e não se podia ter trabalhado mais nem trabalhado melhor. Mas o governo aqui tem uma culpa gravíssima, uma responsabilidade histórica: a de não ter substituído a tempo o general Vassalo e Silva, reconhecendo que não estava à altura dos seus antepassados, um Albuquerque, um D. João de Castro". Salazar repassa de mal contida emoção as suas palavras, e revive os momentos dramáticos de há seis e sete anos: está sendo obviamente sincero e leal perante si mesmo. Continua: "O ministério do Ultramar devia ter visto isso, e o ministério do Exército devia ter avisado o Ultramar. Com meses de antecedência soubemos que Goa ia ser invadida. Tivemos imenso tempo para substituir aquele homem, e mandar para Goa alguém que soubesse bater-se e morrer se necessário. Assim foi uma desgraça, e o Vassalo e Silva cometeu um crime histórico. Quando mandei o telegrama impondo o sacrifício supremo, pensei que me dirigia a um homem da estirpe dos antigos. Mas não: era um simples, um tipo que gostava de passar a vida a indicar como se faziam telhados. Não estava à altura do meu telegrama". Depois, Salazar torna-se sardónico: "Mas que quer o senhor? A Defesa escolhe os nossos guerreiros pela escala de antiguidade, como se fazer a guerra fosse uma simples actividade burocrática ou académica! Assim nada feito". E remata com saudade, desespero, amargura: "E eu estou convencido de que se as nossas tropas tivessem resistido oito ou dez dias, ainda hoje tínhamos Goa". Ao dizer tudo isto - e sou rigoroso nos termos - Salazar tinha o rosto transtornado, os olhos embaciados e vidrados, a voz quase roufenha. Será possível que consiga isto por simples acto de vontade, e estivesse a representar? Para quê? Para quem?».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).



D. Francisco de Almeida, D. João de Castro e D. Afonso de Albuquerque.



No dia seguinte, 15 de Dezembro, U Thant resolve agir. Discute com Garin os termos da sua intervenção. Cede em vários pontos: não mencionará as resoluções anticolonialistas, nem as relativas aos territórios não autónomos; mas insiste em aludir aos «princípios formulados pelas Nações Unidas». Não se suscitam mais objecções, mas fica entendido que Portugal não aprova a última parte. E naquele dia U Thant telegrafa a Oliveira Salazar: «Informado da grave situação que surgiu recentemente na fronteira da Índia e de Goa, Damão e Diu, conforme se depreende das cartas dirigidas ao Presidente do Conselho, apelo respeitosa e urgentemente para V. Ex.ª e para o seu governo no sentido de assegurar que aquela situação não se agrave ao ponto de constituir uma ameaça à paz e à segurança. Eu sugeriria imediatas negociações com o objectivo de se conseguir uma rápida solução do problema. Eu esperaria decerto que tais negociações fossem conseguidas de acordo com os princípios consagrados na Carta e formulados pelas Nações Unidas. Eu dirigi um apelo análogo ao primeiro-ministro da Índia. a) U Thant». Ao receber este apelo na tarde de 15 de Dezembro, Oliveira Salazar pondera: atentas as condições em que está redigido, pondo em pé de igualdade Portugal e a Índia, o agredido e o agressor, deverá responder ao apelo do secretário-geral? Mas o chefe do governo não deseja dar a Nehru, e ao mundo, o menor pretexto para crítica à posição portuguesa: e acaso pode Nehru, num lampejo de hora derradeira, aceitar a intervenção do secretário-geral da ONU como saída airosa. E Salazar responde a U Thant. Foi sensível ao apelo o governo português e pode afirmar que, salvo por resistência a agressão, nada fará que constitua ameaça à paz. Instruções rigorosas estão dadas nesse sentido às forças portuguesas, nem sequer autorizadas a responder a actos que sejam simples provocação. Por tudo isto, lamenta o governo português que a União não haja aceite a proposta de postar observadores internacionais nas fronteiras, que poderiam verificar as violações daquelas e quem pratica actos provocadores. Quanto a negociações, o governo português sempre se manifestou disposto a negociar todos os problemas emergentes da vizinhança entre territórios portugueses e indianos, «incluindo a garantia internacional prestada a esta última (a União) de não poder o território português ser utilizado contra a sua segurança. Tais negociações podem efectuar-se onde e como o governo de Nova Deli quiser». E parece que estão jogadas todas as cartas possíveis. Mas não estão.

Efectivamente, em 16 de Dezembro, o governo de Madrid faz uma declaração política. É nítido: repudia, em relação com o problema de Goa, «qualquer processo de agressão e violência», ou que implique um atentado contra a soberania territorial; a Espanha ligada a um país fraterno, não pode ficar silenciosa ante os perigos que afectam os princípios básicos de convivência entre as nações; e espera que a Índia se abstenha de utilizar a ameaça de meios violentos para resolver um diferendo internacional. Embora em termos mais brandos, no mesmo sentido se pronuncia o governo italiano. Por seu lado, Nehru responde ao apelo do secretário-geral para afirmar que apenas está pronto a discutir se Goa for considerada uma colónia, que deve portanto ser entregue à Índia; e segundo indiscrições dos meios do secretariado, o primeiro-ministro indiano teria acrescentado que a «sua paciência estava esgotada».Mas continua a ganhar terreno o ponto de vista português; em países politicamente distantes de Portugal, como a Austrália, as Filipinas ou a Tailândia, prevalece a opinião de que não são justas as pretensões indianas, nem tem fundamento a acusação de actos provocatórios que a União faz a Portugal. E o presidente Kennedy envia uma mensagem pessoal a Nehru: exprime a sua preocupação perante notícias de que o primeiro-ministro indiano se propõe usar a força: não indica, todavia, que reacção seria a dos Estados Unidos se o facto se produzir. Naquele mesmo dia 16 de Dezembro, por instruções de Lisboa, Garin entrega em Nova Iorque, ao Conselho de Segurança, mais uma extensa nota portuguesa. Esta responde às últimas alegações indianas, comenta-as para as destruir, e faz uma síntese de toda a argumentação portuguesa (6). Ao mesmo tempo são também levados ao conhecimento do Conselho os mais recentes actos provocatórios da União: sobrevoos de território português por aviões militares indianos, tiroteio aberto contra postos portugueses. No parlamento britânico é debatido o assunto; e o Foreign Office volta a exprimir a esperança de que não será efectuado um ataque armado contra Goa. Dean Rusk está em Madrid; entre o secretário de Estado e o generalíssimo Franco é abordado o problema; e Rusk parece mais impressionado com as razões portuguesas e a atitude de Lisboa. Mas em Nova Deli, o embaixador americano John Galbraith avista-se com o ministro indiano dos Estrangeiros, e sugere-lhe que a União aceite uma moratória ou considere a possibilidade de negociações com Portugal; e esta diligência, implicando a ideia de que os Estados Unidos têm Goa por um caso de colonialismo, é interpretada por Nehru como significando que o governo de Washington, se reprova o emprego da força, considera justificadas na essência as reivindicações indianas. Deste ponto surge divergência de tomo entre a Inglaterra e os Estados Unidos quanto a Goa: o alto-comissário britânico na União Indiana, Alexander, reitera em Deli a reprovação de Londres pelo uso da violência: Galbraith, se não aconselha Nehru a invadir aquele território português, sugere que a reacção americana será praticamente nula, e não irá além de palavras.






Em Portugal, através do povo, o ambiente permanece de velada de armas. Ocupam-se quase exclusivamente de Goa todos os jornais; e o Diário de Notícias reproduz declarações do governador Vassalo e Silva dizendo que a «Índia Portuguesa poderá ser atacada a qualquer momento». De Nova Deli, as notícias da imprensa e dos círculos oficiosos confirmam-no; e o presidente do Soviete Supremo da Rússia, Leonid Brejnev, que está em visita à União Indiana, conferencia repetidamente com Nehru, e apoia a posição deste. Em Lisboa, um grupo de senhoras portuguesas dirige ao papa um apelo para que salve a «Roma do Oriente»; e idêntico pedido lançam as comunidades goesas espalhadas no mundo. Nos meios do governo português, não subsistem dúvidas sobre a iminência da invasão. Para mais, dados os sentimentos católicos dos Goeses, Nehru deve querer precipitar o ataque para que tudo termine antes das festas de Natal; ou então adiá-lo-á por largo tempo; mas a vastidão dos preparativos não torna verosímil a última hipótese. Por parte dos estudantes goeses, que frequentam em grande número escolas e universidades na metrópole, é feita uma manifestação junto do Ministério do Ultramar. Procuram Adriano Moreira, e afirmam o seu portuguesismo, o seu repúdio da nacionalidade indiana, o seu espírito de unidade nacional. Responde-lhes Moreira. «Vítimas sem causa de ambição injusta de uns tantos, teremos de orientar-nos sempre e exclusivamente pelo interesse nacional. A defesa desse interesse tem exigido grandes sacrifícios e estamos sob ameaça de sofrer sacrifícios maiores. Na província do Estado da Índia, pelas razões que já foram tornadas públicas, considerámos necessário evacuar as mulheres e as crianças para as subtrair às violências que a experiência contemporânea não torna difícil prever». E conclui: «Temos ainda esperança de que não será consumado um atentado que atingirá não apenas a Nação mas também o património da própria humanidade. De qualquer modo, a presença dos estudantes da província do Estado da Índia neste Ministério, e nesta ocasião, significa que os jovens querem que seja defendida a herança que lhes pertence. Os portugueses do Estado da Índia não esquecerão este desejo dos seus filhos». E pelo país, nas cidades e pequenas terras de província, o governo sente apoio generalizado na sua recusa de entregar ou abandonar Goa.

Espera-se um ataque durante o dia 16 de Dezembro (7). Não afrouxa a actividade do governo de Lisboa. Acentua-se pelo mundo um clima de hostilidade à União Indiana. Passam as horas do dia 16, e prosseguem os preparativos militares indianos. Há um começo de execução estratégica da operação: as forças armadas da União vão tomando postos de ataque. Tem Lisboa notícia de que a Inglaterra repete em Nova Deli diligências de última hora, procurando dissuadir Nehru do seu acto de agressão. Nada parece alterar os planos indianos; mas ao começo da noite de 16 para 17 toda a fronteira se mantém calma. Do gabinete de Salazar, na residência oficial da Rua da Imprensa, o ministro do Ultramar telefona ao governador-geral: diz-lhe palavras de apoio moral e de confiança. Responde Vassalo e Silva a Moreira: «Estamos aqui sobre um vulcão, Senhor Ministro. Tenham o governo e V. Ex.ª a certeza, porém, de que tudo se poderá perder menos a honra de Portugal». Publicamente, em Goa, declara também o governador-geral: «somos poucos, mas temos ânimo. Havemos de estar à altura das nossas tradições». Durante a noite, Salazar manteve-se acordado. A breves intervalos, telefona para o Ultramar, a Defesa e os Estrangeiros, a inquirir de notícias. Pela madrugada de 17, suscitam-se em Lisboa algumas esperanças: terá o primeiro-ministro indiano abandonado o seu projecto, ou tê-lo-á pelo menos adiado? Mas as informações recebidas durante o dia 17 não permitem mais dúvidas: o ataque indiano deverá estar por horas, acaso por minutos. Em Lisboa, numa grande manifestação, há um cortejo do silêncio. Diz o Cardeal Cerejeira: «Portugal não morre mas a perda da Índia Portuguesa levar-lhe-ia parte da sua alma». E chegam as notícias das agências mundiais: ao início da noite, cerca das oito horas de Lisboa e zero horas locais, a União Indiana desencadeia a guerra. Moreira entra em comunicação com o governador-geral: este confirma o que já circula pelo mundo: a Índia lançara um poderoso ataque em três frentes: e o governador julga ser real a operação militar que se desenrola na frente sul, devendo ter-se as duas outras por manobras de diversão. Nesse momento, com Salazar, no gabinete da residência oficial, estão os ministros de Estado, do Ultramar, e dos Estrangeiros. Está obviamente sob grande tensão o chefe do governo; mas não perde o domínio dos seus nervos, nem se lhe obscurece a lucidez. «É preciso comunicar o facto à Nação», diz Salazar, «como vamos fazer?». É sugerido pelos ministros um comunicado da Presidência do Conselho. Salazar concorda. E minutos depois é publicada uma nota oficiosa: «Depois de nas últimas semanas ter realizado poderosa concentração de forças, a União Indiana iniciou hoje a agressão contra o Estado Português da Índia, segundo acaba de confirmar o Governador-Geral. Nos termos das instruções que haviam sido dadas, as forças armadas entraram em acção na defesa do território. O Governo confia em que todos saberão cumprir o seu dever».



Vasco Garin



Na reunião no gabinete de Salazar é também decidida a convocação imediata do Conselho de Segurança. Nos termos das instruções que recebe, Garin solicita em Nova Iorque que o Conselho condene a agressão da União Indiana,ordene a esta que cesse fogo, e determine a retirada das forças indianas para além da linha de fronteira. No mesmo tempo, é chamado às Necessidades o embaixador Elbrick. E a este é dito: se à reunião do Conselho de Segurança forem trazidos os problemas genéricos do Ultramar português, como os afro-asiáticos decerto pretenderão, e se os Estados Unidos tomarem de novo quanto a tais problemas uma atitude hostil a Portugal, deve então o governo americano, a partir daquele momento, ficar consciente de que o facto terá «as mais graves repercussões nas relações entre os dois países, que tais relações deixarão de ser, no plano bilateral, o que actualmente são, devendo considerar-se como terminada e finda a posição de que os Estados Unidos têm beneficiado em Portugal, sendo o governo americano oportunamente informado do sentido dessa modificação». Elbrick compreende a «seriedade» da comunicação, lamenta-a, e sai apressadamente. Poucos minutos faltam para a meia-noite de 17. Mas tendo a agressão indiana sido iniciada às zero horas locais do dia dezoito, o ataque militar está em curso há mais de seis horas. Pelo mundo, é funda a emoção, e generalizada. Por sua iniciativa, publicam muitos governos declarações de nítido repúdio da atitude indiana; e Nehru é desde logo pessoalmente atacado, e acusado de hipocrisia, e de súbito está reduzida a pó a sua aura de respeitabilidade, de pacifista, de apóstolo da tolerância universal. Na condenação da Índia, são particularmente veementes o governo brasileiro, que exprime a sua solidariedade a Portugal (8); e o governo australiano, o grego, o argentino, o canadiano, o espanhol, outros ainda. Na imprensa e na rádio internacionais, quase não se ergue uma voz pela Índia. Entretanto, convocada em extrema urgência, decorre em Nova Iorque a sessão do Conselho de Segurança. Pelo representante permanente de Portugal, é denunciada a agressão indiana, e são reiterados os pedidos apresentados na convocação. Abre-se o debate. É expressivo no apoio a Portugal o representante francês: Goa não é ameaça para a Índia; a acção empreendida pela União Indiana causa a maior surpresa e emoção, e é uma verdadeira denegação do direito, tanto mais que não há muito o Tribunal da Haia, reconhecia em sentença o carácter português daqueles territórios; as autoridades indianas acabam de cometer uma «falta grave»; e «não se duvida de que a Índia responda ao nosso apelo». Adlai Stevenson, pelos Estados Unidos, é também vigoroso: são claras as posições dos Estados Unidos em matéria colonial; mesmo quanto a Portugal, têm sido nítidas as atitudes; mas no momento não é esse o problema que está em causa; ainda que se considere Goa uma colónia, no plano dos factos e da lei está sob a autoridade de Portugal; e nada na Carta autoriza o uso da força para pôr termo a tais situações. Deste modo, Stevenson, em nome dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e da Turquia, submete à votação do Conselho um projecto de resolução que, além de condenar a Índia, exige um cessar fogo e a retirada imediata das forças invasoras para lá da fronteira. Mas o delegado soviético logo indica que usará o seu veto: a União Soviética desaprova a guerra em geral, mas considera legítimas as guerras locais, que chama de libertação, ou as revoluções comunistas, que subvertem governos. E o delegado da Índia, nos termos mais arrogantes, afirma que a acção do seu governo tem carácter policial somente, e que prosseguirá, «com o Conselho ou contra o Conselho, com a Carta ou sem a Carta». Passa-se ao voto do projecto apresentado pelos Estados Unidos: é aprovado por maioria; mas o delegado russo usa do seu direito de veto: e o texto é assim havido como rejeitado. É apresentado então um outro projecto, elaborado pela Libéria, Ceilão e Egipto: este considera os territórios portugueses uma ameaça para a paz e à segurança do mundo e insta com Portugal para que cesse as suas hostilidades. Submetido ao voto, não recolhe maioria, e é derrotado (9). E assim o Conselho exibe a sua impotência: não chega a uma decisão. Comenta em desespero o representante americano: «Esta noite assistimos ao primeiro acto de um drama que pode terminar pela morte desta Organização»; a Sociedade das Nações morreu quando os seus membros não se opuseram à agressão; «e é de coração pesado que acrescento uma palavra de epílogo a esta discussão fatídica, a mais importante em quantas eu tenho participado desde que a ONU foi fundada há dezasseis anos». Está-se perante a falência das Nações Unidas, afirma Stevenson; compreende o veto russo, coerente com o papel obstrucionista da União Soviética; mas a atitude de outros países é perturbadora, pois leva a crer que se pretende reescrever a Carta e legitimar o uso da força para objectivos próprios; e isto «apenas pode levar ao caos e à desintegração das Nações Unidas».

Em Goa, o ataque indiano prossegue conduzido por forças do exército, aviação e marinha. Perfazem cerca de cinquenta mil homens os efectivos postos em acção por Nova Deli. Ao largo de Goa apresenta-se uma poderosa esquadra indiana: compõe-na o cruzador Mysore, navio-almirante, o porta-aviões Vikrant, e os cruzadores Rajput, Beas, Rana, ainda outros vasos de guerra. Sem olhar à inferioridade de número e de poder ofensivo, faz-se ao mar o Afonso de Albuquerque, sob o comando de Cunha Aragão, que manda abrir fogo sobre a esquadra indiana. Alguns navios indianos são atingidos pela artilharia portuguesa, mas sem gravidade; Cunha Aragão é seriamente ferido, e tem de ser levado da ponte; mas a guarnição continua o combate, até que a esquadra indiana, concentrando o seu fogo, reduz o Afonso de Albuquerque, depois de quatro horas de luta, a uma ruína que encalha na praia. Ao largo de Damão e Diu, lanchas-patrulhas portuguesas abrem fogo contra aviões indianos que as atacam. Batem-se com bravura o primeiro-tenente Oliveira e Carmo e o Alferes Santiago de Carvalho. Diz Oliveira e Carmo aos seus homens: «Rapazes, vamos cumprir até ao último homem e à última bala se for possível». E Santiago de Carvalho, em Damão, diz: «Por Portugal daremos tudo, a vida, para que ele continue e continue eterno». Morrem ambos. Lutam com valor, como nos tempos antigos, as guarnições de Diu e de Damão: actuam independentemente do comando central. Em Goa, porém, em menos de vinte e quatro horas o comando indiano dá por concluída a operação. E Vassalo e Silva, governador-geral e comandante-chefe, sem embargo das suas intenções heróicas, rende-se sem riscos, sem iniciativas, sem combate, e a opinião pública acha que não teve pundonor militar o seu comportamento. Toda a guarnição portuguesa é feita prisioneira. Tudo é breve, rápido, e o mundo que esperava uma luta áspera, fica desconfortavelmente assombrado.






Durante a noite, em Nova Iorque, os Estados Unidos, o Brasil, alguns países ocidentais e muitos latino-americanos, desenvolvem esforços para organizar uma sessão de emergência da Assembleia Geral. Nesta, não há possibilidade de veto e a União Soviética não conseguirá portanto evitar a condenação do governo de Nova Deli: mas entretanto chega à ONU a notícia da rendição portuguesa, e o debate que se segue perde tom e significado: e não altera a posição da Índia. Vivera a organização uma noite de drama: ficara patente a sua impotência, agravara-se a sua crise: e firma-se a convicção de que os Ocidentais são incapazes de proteger os seus aliados, enquanto a União Soviética apoia com eficácia os seus amigos. Era sincero o embaixador americano no seu vibrante ataque à União Indiana.

É muito fundo o traumatismo causado em Portugal, e por todo o Ultramar. Há uma sensação colectiva de catástrofe, de maldição. Dir-se-ia fúnebre o ambiente. Há uma unanimidade nacional. Em nome dos monárquicos, o Duque de Bragança indigna-se com o ataque indiano: «Na Roma do Oriente, está em causa Portugal». E é unânime a imprensa. Escreve o Diário Popular: «Goa não caiu, está cativa». No mesmo tom vibram O Século, o Diário de Notícias, os jornais da província e do Ultramar. Diz a República: «Não estamos com a actual situação política e todo o país sabe»; «mas esta divergência não afecta em nada o nosso acrisolado amor à Pátria»; «agora é este pedaço da Índia, dessa Índia que é todo o nosso orgulho de portugueses, que sofre da brutalidade, dos desatinos, da cegueira dos homens e dos horrores da guerra», devido a «um inqualificável acto de agressão e de apossamento de um recanto que constitui uma das mais preciosas relíquias do nosso amado Portugal como símbolo da sua acção civilizadora no mundo». E conclui a República: «Chamem-nos românticos. Mas somos e queremos continuar a ser portugueses. Durante dias, por cidades e vilas, circulam as pessoas com gravata preta e de fumo no braço. Há manifestações de protesto, há marchas silenciosas. De repente, nos portugueses mais esclarecidos, torna-se evidente um facto novo: com a perda de Goa, Portugal não era mais o mesmo país de há cinco séculos. E na opinião pública, entre a massa do povo, há uma tomada de consciência, difusa decerto mas profunda; Portugal é um país extremamente vulnerável: e se Goa era uma jóia de família, já os territórios de África são apoios vitais. Por si, Salazar considera o golpe sofrido como dos maiores desastres da Nação; por simples força de vontade não se deixa abater moralmente; mas a emoção e as noites em claro vincam marcas no seu rosto. De portugueses miúdos e anónimos afluem mensagens de apoio, de protesto perante o acto de Nehru; de igual modo se manifestam os núcleos de portugueses no estrangeiro; no Congresso do Brasil erguem-se vozes de indignação; e políticos e homens de Estado do mundo enviam as suas mensagens de solidariedade (10).

Mal absorvido o grande choque, os meios oposicionistas, e em particular a extrema-esquerda, aproveitam o acontecimento para uma ofensiva contra Salazar. Segundo a oposição, tudo se poderia ter evitado: bastaria ter sido flexível, negociar com Nehru, encetar conversas que se arrastariam indefinidamente: e Goa ainda seria portuguesa. Salazar é portanto o culpado exclusivo: por obstinação, por erro, por capricho, por birra. Noutros círculos atribui-se ao chefe do governo um propósito sinistro: ter sacrificado Goa para salvar os territórios de África (11). Salazar comenta: «Já sei, já sei. Querem-me pegar fogo. Está bem. Mas dêem-me mais uns dias, deixem-me explicar ao país como tudo se passou. E depois peguem-me fogo!».

Não se limita a Portugal o rescaldo político da invasão de Goa. Na Câmara dos Lordes, em Londres, trava-se vigoroso debate; Lord Colyton e Lord Salisbury condenam duramente a União Indiana; e o secretário de Estado, Lord Home, embora em termos guardados, volta a reprovar a decisão indiana de recorrer à força. De Bruxelas, o primeiro-ministro belga telegrafa a Nehru, reprovando o ataque. Figuras eminentes do Brasil - Pedro Calmon, Carlos Lacerda, Austragésilo d'Ataíde, Adhemar de Barros, outros ainda - fazem no mesmo sentido declarações públicas. Nada diminui, contudo, a amargura que possui Oliveira Salazar. É particularmente viva a sua revolta contra a atitude dos Estados Unidos, que não é atenuada pela nítida condenação da Índia feita por Stevenson no Conselho de Segurança. «Palavras, sem dúvida palavras apropriadas», diz Salazar, «mas Nehru viu que por detrás de tais palavras não havia nada, nada de positivo e sério que prejudicasse os interesses da Índia». E efectivamente os Estados Unidos tomam nova atitude que empresta fundamento à ideia de Salazar. Como resultado do debate em comissões, iniciado há semanas, sobem ao plenário da Assembleia Geral da ONU dois projectos de resolução antiportugueses: primeiro, quanto aos refugiados angolanos em território congolês; segundo, criando um Comité de Sete, encarregado de ouvir peticionários que se apresentem contra Portugal, e repetindo as habituais condenações pelo facto de o governo de Lisboa não obedecer a injunções da organização. É aprovado o primeiro projecto no dia 18 de Dezembro de 1961; é aprovado o segundo no dia 19; e em ambos o voto dos Estados Unidos é contrário a Portugal. E como golpe mais fundo na sensibilidade portuguesa, é anunciada para breve a ida a Nova Deli da mulher do presidente dos Estados Unidos, Jacqueline Kennedy, que visitará Nehru. Salazar comenta: «Parecem apavorados os Estados Unidos, têm medo de que Nehru esteja zangado, querem apaziguá-lo. É curioso: dir-se-ia que devia ser o contrário; Nehru é que deveria estar inquieto quanto à reacção dos Estados Unidos perante a agressão que cometera». Por outro lado, no mesmo dia em que se consuma a conquista de Goa, Mennen Williams, do Departamento de Estado, envia a Walt Rostow, na Casa Branca, um extenso memorial sobre a África portuguesa. E diz: não há dúvida de que Portugal tem a «intenção de manter a sua presença em Angola e Moçambique permanentemente»: todas as reformas decretadas têm esse objectivo; os Estados Unidos não o podem aceitar, sob pena de perderem a imagem que conquistaram junto dos afro-asiáticos; há decerto a importante questão da Base Aérea dos Açores; o facto poderá moderar um pouco as declarações públicas; mas seria «impensável» qualquer recuo em relação à atitude assumida no início do ano quanto a Angola; os contactos com o chefe dos guerrilheiros, já efectuados com membros da Secção Africana, deveriam ser expandidos e em qualquer caso deve continuar a aplicar-se a Portugal a mesma pressão a que tem sido submetido. Salazar não conhece este documento, mas não tem dúvidas sobre os propósitos últimos que na altura animam o governo do presidente Kennedy. Em Lisboa, a 23 de Dezembro, um Conselho de Ministros sob a presidência de Américo Thomaz lavra formalmente o seu protesto perante a agressão contra Goa.

Uma semana após a invasão a Goa, Oliveira Salazar recebe Serge Groussard, do Le Figaro, e a entrevista reveste-se de um tom de desabafo. Groussard pensa que Salazar está em paz consigo próprio; não notou cólera ou rancor; mas observou mágoa e tristeza. Nehru, um homem sincero? «Vejo que o não conhece», diz o chefe do governo ao jornalista, «pois eu conheço-o bem e desde há muito». Não: Nehru é um hipócrita: e o facto de o direito de Portugal se opor ao seu poder e de Goa prosperar enquanto a Grande Índia empobrece, «enlouquecia-o». As Nações Unidas? O Conselho de Segurança? Útil? «Mas é inútil. Inútil como as Nações Unidas. E quando digo que as Nações Unidas são inúteis, devo acrescentar que, além disso, são também nocivas». E a esta lamentável instituição, quem a paga? «Os Estados Unidos. Mas porquê? Porque estão de acordo? Nem sequer isso. Simplesmente, porque querem por todo o preço o apoio dessa constelação de pequenos países». Volta a Goa: «Nehru conhece a época em que vivemos - em que ele vive. E trata-a como ela merece. O mundo actual perdeu a fidelidade aos princípios essenciais, ganhando em técnica o que perdeu em consciência. Nehru por isso calculou, e com razão, que o esquecimento cairia depressa sobre a agressão a Goa e sobre a quebra da sua palavra, pois ele jurara que jamais se serviria da força das armas para libertar Goa». Não receia que se repita noutros territórios - Timor, Guiné, Moçambique, Angola - o que se passou em Goa? Sim, replica Salazar, «o pior é sempre possível hoje, infelizmente. As nossas províncias portuguesas do Ultramar podem vir a sangrar. Mas o que eu sei é isto: em parte alguma arriaremos a bandeira; bater-nos-emos sempre». Oliveira Salazar ataca Sengor e Sékou Toré, acusando-os de quererem partilhar entre si a Guiné portuguesa; refere-se à aliança na Ásia e mesmo na África. E Salazar repisa: «O que posso dizer é que por toda a parte na África possuímos poderosos meios de luta. Não será uma batalha de antemão perdida». Quanto ao futuro? Em África caminha-se para um racismo tão condenável como o racismo nazi; pretende-se a expulsão das populações brancas; está-se na presença de uma vaga «enorme e rumorosa»; mas passará; e «o que importa é aguentar até esse momento». Groussard comenta que os portugueses parecem ter a alma de cruzados, mas cruzados sem armas. Salazar conclui: «É sempre mais fácil encontrar armas do que cruzados. Por isso não abdico da esperança».



Óscar Carmona e o Cardeal Cerejeira




Aproxima-se o fim de 1961. Salazar trabalha intensamente num largo discurso a dirigir aos portugueses. Surge um problema: Salazar está afónico; como em ocasiões anteriores semelhantes, apenas pode falar pouco e em voz ciciada; e também como em outras vezes, os médicos não assinalam patologia, mas uma simples consequência de emoção e nervos reprimidos. Como pronunciar o discurso, que terá de ser necessariamente longo? Enfim, na altura se decidirá. Na noite de fim do ano, Salazar está solitário, entregue a si próprio. Mas um amigo fiel, de há mais de cinquenta anos, não o esquece: é Gonçalves Cerejeira. Com uma amizade onde há já ternura, com uma solidariedade feita de carinho espiritual, o patriarca de Lisboa escreve a Salazar: «António - Não quero que o ano termine sem uma palavra minha para ti. Hoje tive-te mais especialmente presente na Santa Missa. Deves sofrer no teu coração e na tua alma todas as dores de Portugal. Quero que sintas que estou junto de ti e de Deus, pedindo que Ele te conforte, console, ilumine e guarde. Teu "ex corde", Manuel» (12). Segundo Cerejeira, pela perda de Goa, Salazar tem no coração e na alma todas as dores de Portugal. Mas o chefe do governo vê e sente com clareza, sobretudo, a aridez da sua vida, a desolação de toda uma existência. Sente-o quando uma mulher ignorada lhe oferece, como dádiva moral pela perda de Goa, um pequeno cofre, rico exemplo de arte luso-indiana, com um emblema e uma chave de cristal de oiro. É objecto de preço, segundo Salazar julga, e não pode aceitá-lo. Para quê? Quem o cuidaria? Na carta em que o devolve, Salazar diz: «Eu não tenho ninguém e depois de mim tudo se dispersará e perderá significado e valor». Apenas «gostaria de encontrá-la um dia e agradecer-lhe de viva voz tanta dedicação e tão elevado patriotismo». Do torvelinho de emoções e acontecimentos, numa já longa vida, Salazar retirou para si uma certeza: não tem ninguém e, à sua morte, tudo será disperso, sem significado, sem valor (in ob. cit., pp. 366-381).


Notas:

(6) O leitor curioso poderá ler na íntegra o texto desta nota num outro trabalho do autor: História de Portugal (1933-1974), pp. 279 e seguintes, Livraria Civilização, 1981.

(7) Para o leitor desprevenido, poderá criar confusão, em todo este episódio, a indicação de algumas datas: um mesmo acontecimento pode aparecer assinalado numa data em Nova Deli, em data diversa em Lisboa, ainda noutra data em Nova Iorque. Joga aqui a considerável diferença de horas: de mais de cinco horas entre cada uma daquelas cidades. De modo que um telegrama enviado de Lisboa à 1 da manhã do dia 15 de Dezembro, por hipótese, pode determinar uma diligência praticada em Nova Iorque às 8 h. da noite do dia 14.

(8) O cardeal do Rio de Janeiro, D. Jaime da  Câmara, visita pessoalmente a embaixada de Portugal para exprimir o seu apoio moral.

(9) Ainda que houvesse obtido maioria, também não seria aprovado pois que os Estados Unidos, a França e a Inglaterra, votaram contra. Cada um destes países, como membro permanente, tem direito de veto; e portanto, além de derrotado por maioria, ao projecto foram opostos três vetos.

(10) Destaca-se o chefe do Estado espanhol, Francisco Franco, que escreve a seguinte carta: «Sr. Dr. António de Oliveira Salazar, meu querido amigo - Muito os lembro nestas horas de dor em que a nação portuguesa é vítima da anarquia internacional, que os maus actos de uns e a incapacidade e torpeza de outros tornaram possível. Peço a Deus que dê ao povo português serenidade e força para uma vez mais, como na sua gloriosa história, superar esta prova, e a V. Ex.ª saúde e ânimo para continuar a conduzi-lo com a mesma fé e sabedoria como o vem fazendo nestes anos tão difíceis da história do mundo. Ao exprimir a solidariedade de toda a nação espanhola, junto à minha própria um particular afecto. a) F. Franco, Madrid 19-12-961». Esta carta de Franco tem de ser havida como obra-prima de ambiguidade e de fuga ao problema: não se sabe se a solidariedade é expressa por causa de Goa, ou dos ataques da ONU, ou dos ataques em África, etc. Salazar não lhe deu publicidade. Franco também escreveu a Américo Thomaz. Nessa carta, é mais concreto: refere-se à «agressão iníqua» contra uma das «províncias ultramarinas» da Nação portuguesa.




(11) Não se entende bem esta acusação, nem se vê que lógica possa ter, a não ser esta: ceder em Goa e abandoná-la, inutilizava os princípios em que se baseava a política de resistência em África. Mas pôr o problema assim, era pôr o problema de toda a política ultramarina. E não se vê tão-pouco como é que, não defendendo Goa e entregando-a, deixaria de se sacrificar Goa.

(12) Carta de 31-XII-61.


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