sábado, 31 de dezembro de 2022

Sobre os perigos e a destrutividade das escolas, ou da incrível insuficiência das universidades e dos colégios por muito conhecimento científico, informação tecnológica e capacidades que possam aparentemente dar

Explorações com Jiddu Krishnamurti

 






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«O professor universitário, em geral, não discute nem consente discussão com os alunos; em alguns casos declara permitir a manifestação de opiniões, mas consegue sempre, por qualquer jeito de deslealdade, impor silêncio ao ingénuo que em tal afirmação acreditou; raramente exerce amigável assistência pedagógica junto dos seus alunos. É que entre o lente e o estudante abre-se uma abismal distância que só o urso pode atravessar.»

Álvaro Ribeiro («Inquérito sobre a Universidade», in A Voz da Justiça, ano 31.º, n.º 3118, Figueira da Foz, 25 de Março de 1933, pp. 1-2).


«Alegria da memória, doce alegria crepuscular, que, enternecidamente, apagas os contornos demasiadamente vivos, e vais mergulhando o mundo numa readquirida unidade toda de íntimo e recolhido silêncio!

Misterioso espelho, onde contemplo paisagens desaparecidas; que, diante dum astro morto, levanta o espectáculo da vida e do movimento!

Se abris um escrínio, há muito fechado, é um rumor de perfumes evocando...

E o que não é a memória, se discorrem as lembranças!...

Um bando de pombas abate sobre a minha eira: são as recordações que chegam...

Cada uma vem dum ponto do céu, dos caminhos em flor, das margens dos regatos. E trazem no bico as flores dos caminhos e trazem nas plumas o orvalho dos regatos. Que brando sono, no meu coração, dormiam as crianças, que eu fui!

Que alarido, que aurora, que instantâneo abrir de pétalas no meu oculto jardim!

Brancos babeiros enfunados de brisa, faces rosadas latejantes de sol, olhos profundos deliquescidos de assombros! Primavera íntima abrindo as asas; maré alta trazendo em espuma, na crista da vaga, os sorrisos de todas as nossas alegrias.

Se hoje passo num caminho da minha infância, de todos os lados se erguem vultos amigos. Ao dobrar duma volta tocam-me o rosto as brancas asas dum bando levantado de meus passos, e um rancho de crianças bate palmas e ri...

E colégio?

Um casarão enorme que ainda assim vive na minha imaginação e que, no entanto, verifiquei outro dia ser uma bem pequena casa.

Aí, a incerteza dos nossos sentidos, como tudo é sonho! Era em Penafiel. Que melhor sítio para cadeia? Um alto, em roda verdes planícies, regatos cristalinos, plátanos, freixos, acácias, austrálias e, ao longe, em frente de mim, na sala do estudo, uma linha de horizonte de pinheiros em filas.

Nunca me pude convencer que não ouvisse a voz das camponesas da minha aldeia, que sempre julgava ser ali. E eram cinco léguas de separação!

O meu colégio era dos velhos moldes; a disciplina era brutal e assustadora, muitas palmatoadas reais, muitas em ameaça, e longas horas de silencioso estudo na sala da minha janela.

Oh, secretos mistérios da pedagogia!

Se consultam a minha proficiência pedagógica, dir-lhes-ei que a do meu colégio era péssima; reconheço todavia que ela me fez sonhador.

Sim, foi no colégio que aprendi a cismar.

Horas seguidas na sala de estudo a ouvir a imaginária voz da minha aldeia, subindo do horizonte por entre os pinheiros; a compor um mundo sem colégios, sem estudos, só de brincar, de gozar a alegria dos campos, os dias de Sol, as noites de luar, as romarias e as epopeias da minha força.

Eu era um conquistador. Impetuosa figura de Mouzinho de Albuquerque, foste o despertar do meu quixotismo heróico! E já então, dos nove aos catorze, uma feminina graça me sorria o prémio das imortais façanhas.





Conjunto de espadas e o bastão de guerra de Mouzinho de Albuquerque.




Mas, que frio, se a lembrança da família me povoava as noites, as intermináveis noites da sala de estudo! Como desejava a hora do dormitório para quebrar as cadeias, que me limitavam o sonho, e viver toda a noite em minha casa e com os meus!

Mas que horror o despertar!

Eu pertencia à classe dos pequenos que tinha um rei. Um dia conspirámos e o rei foi destronado.

Ele agora é monárquico, eu sou republicano; aqui o abraço em boa amizade e recordação.

E a vinda das férias?

Ouvi dizer que a Primavera está a chegar. Sim. A Primavera vem por um duplo movimento de aproximação. Ela vem de nós, da profundeza do nosso ser, como em lembrança vegetal, na aceleração, no esto da vida. Ela vem para nós na morna aragem cariciosa, na verde pujança dos troncos, na luz perfumada e tépida.

As férias vinham para nós como uma Aurora da própria Primavera, qualquer coisa como um nascimento de árvores e aves, de flores e luz, de todo o movimento, de toda a agilidade; todas as prisões abertas, todas as vozes soltas, asas batendo: como a aproximação dum louco bondoso que, pelo mundo, andasse a abrir cadeias, a soltar as águas, cascatas de alegria, cantando...

A véspera das férias!

Encontrei, há dias, um meu companheiro de colégio. É um banal capitalista.

Trocámos palavras inúteis, destas palavras sem alma que um pensador e um capitalista podem trocar. Mas, quando falámos no colégio, a alma subiu aos lábios e fomos sinceros e iguais.

Aos trinta anos, com fortuna e encarando a vida sob o aspecto do prazer, ele me disse, contudo, que nunca sentiu nem sentirá uma alegria como a da véspera de férias.

No dia imigrávamos aos grupos, e era tanta a Alegria que resistia ao envenenamento do tabaco.

Ao entrar na Aldeia, que orgulhoso galope, o da parelha que nos trouxera, que animal e humana alegria correndo no mesmo exaltado ritmo!

Ah, mas a volta!

Chegávamos à noite, e, ao atravessar a cidade, uma mesma impressão nos possuía.

Todas as luzes das lojas e das casas brilhavam com uma fria impotência, como que fendia uma treva empedernida, que logo as estrangulava com mãos de regelada sombra.

Se as casas não eram lares!

Meu Pai!

Como sinto viva e presente aquela noite que juntos dormimos num quarto de hotel da pequena cidade provinciana!

Era uma dessas noites de abandono em que me sentia perdido no frio e na escuridão. Meu Pai apareceu inesperadamente e saímos juntos.

Que intimidade, que conforto, que protecção amiga!

Alguém caminha, perdido, horas sem conta, na Noite tempestuosa e negra, sem um astro.

De repente aparece ao longe o foco dum lar hospitaleiro, onde se acolhe. Ao lume generoso vai aquecendo o corpo entorpecido e a sua alma entra a pacificar-se, protegida e grata.

Deitado no braço paterno eu senti a amizade perfeita, a tranquilidade plena, o enternecimento da felicidade.

Como a Solidão Infinita enchendo-se lenta e suavemente do coração de Jesus!...

A memória é a mais alta realidade, que nos é dado atingir.

Bem se diz que Deus sabe tudo.

Se o Universo se não possuísse numa unidade interior, de integral presença, era impossível a harmonia, a ordem e a proporção.»

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»). 


«A falência do ensino liceal, sempre em crise, resulta do excessivo número de disciplinas que o constituem e, consequentemente, do excessivo número de professores que o praticam. A habilitação especializada por professores licenciados por escolas universitárias, e invocada em nome de habilitação profissional, longe de concorrer para o aperfeiçoamento do ensino médio, tem por resultado a divergência de linguagens opostas, contrárias e contraditórias que excitam o espírito de dispersão e divergência, adverso à finalidade de educar adolescentes. Este ensino por não ser formativo, nem formal, não oferece resultados mnemónicos, como se prova pelo esquecimento a que os alunos votam tudo quanto não seja de utilizar na aprendizagem das disciplinas do ano seguinte.

Aos professores do ensino liceal tem faltado o estudo teórico ou racional da psicologia dos adolescentes, a qual só lhes é dada ao fim de muitos anos de experiência docente, quer dizer, de modo empírico. Colocados em frente de uma turma, e só durante uma hora, porque no seguinte tempo lectivo irão presidir a outra, desconhecem a caracterologia, e consequentemente, a ética, de cada um dos seus alunos, pelo que não asseguram a eclosão das virtudes, dos valores e dos sentimentos que constituem a base da educação moral que, depois da puberdade, precede e prevalece sobre a educação intelectual.

É dada temporalmente à adolescência, marcada pelo ritmo evolutivo do coração, do cérebro e do sexo, a experiência social e um modo por vezes doloroso de se desprender da mentalidade infantil. O eu afirma-se, então de preferência pelo instinto agressivo, que convém dominar, pacificar ou sublimar, o que é deveras difícil perante os adultos que falam sempre em termos de conquista, luta, combate, batalha e guerra, em termos desportivos de perder, ganhar e vencer, com imagens terríveis que a análise detecta subjacentes nos verbos e nos adjectivos da linguagem quotidiana. Se ao educador de adolescentes compete propor-lhes imagens de trabalho, construção e edificação, para acordar e despertar a inteligência produtiva e pacífica, dificilmente haverá educação, instrução e ensino perante livros, revistas e jornais onde se lê a exaltação de actividades contrárias ao culto e à civilização.

Os adultos transmitem, aos adolescentes máximas, conselhos e exemplos de argumentação egoísta, tornando consciente e voluntário o que no infante era natural mas inconsciente. Compete ao professor evitar os erros fundamentais do individualismo absoluto, demonstrando a subordinação da personalidade à sociedade, como sinal de aperfeiçoamento da razão humana. O adolescente, consciente da sua inteligência que apura no exercício reflexivo e especulativo da filosofia, tende a individualizar-se, a autonomizar-se, independentizar-se tanto quanto lhe seja possível, para lenta e dolorosamente aprender que a unidade da vida reside em uma entidade transcendente, nominada ou inominada, que lhe cumpre servir por destino religioso.

Compreende-se, assim, que ao adolescente não seja agradável seguir por uma outra carreira de estudos que não interessam para a resolução dos seus problemas individuais, evolutivos no decurso do aperfeiçoamento da inteligência, nem para a satisfação imediata dos seus anseios, dos seus sentimentos e das suas vontades. A escola oferece-lhe a imagem de uma prisão, internato ou externato com trabalhos forçados. A educação é então adulterada por uma espécie de constrangimento, a que o estudante se conforma, com a hipocrisia sórdida de quem colabora em algo que está à margem dos fins superiores da humanidade.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», I).



COMO EDUCO OS MEUS FILHOS

Era outono e o sol entrava pelas janelas. Os ventos ainda não tinham começado e nestes dias agradáveis, quentes e soalheiros, as folhas adquiriam lentamente tons de vermelho, amarelo e, nalgumas delas, púrpura. Os céus encontravam-se extraordinariamente claros, de um azul-suave, e muito próximos da terra. As nuvens pousavam no horizonte e a terra mostrava-se feliz. As sombras eram compridas, pesadas, a erva naquela manhã estava coberta por um pesado orvalho. A beleza da terra e do céu parecia preencher o ar e havia uma sensação agradável advinda do verão que passara e da primavera que viria. E por estes dias ter-se-ia talvez de pagar a conta com um árduo inverno.

Não sei se alguma vez olhas para as árvores. Não com memórias, imaginação e conhecimento, mas apenas olhar de forma pacífica, quieta, sem reacções ou resistência do cérebro; só para observar, em que o observador chegou ao fim; ver a árvore, a verdura do relvado e as vacas no campo; apenas observá-los. Enquanto se observa, o espaço que provoca divisão parece desvanecer-se e há apenas observação e alegria de olhar.

O homem tinha olhos brilhantes e sorriso fácil. E perguntou: «Como devo educar os meus filhos? O que devo fazer com eles? Tenho cinco filhos. Três deles são muito inteligentes, lindos e cheios de sonhos. Os outros dois são muito emocionais, muito carinhosos, muito afectuosos; não parecem lutar, discutir; ainda têm aquela inocência que vem com a meninice, cheios de curiosidade. Os três são muito espertos, sempre a fazer perguntas, a lutar, a discutir entre eles, provocando-se uns aos outros. O que devo fazer com eles? Se enviar os três para uma escola, irão naturalmente aprender muitas coisas, vão passar nos exames, ser moldados por outras crianças, pelo professor, pelo conhecimento, pelo ambiente dessa escola em particular. E irão para a universidade e serão engolidos pela estrutura social. No que respeita aos outros dois, tenho medo de que se magoem, sofram, que se virem mais e mais para dentro, que recuem de vez e sejam tratados como excêntricos. Não sei quão longe irão nos estudos. Como poderei educá-los conhecendo os perigos, a destrutividade das escolas, a incrível insuficiência das universidades e dos colégios, por muito conhecimento científico, informação tecnológica e capacidades que possam dar-lhes? Não quero que sejam destruídos. Amo os meus filhos. Olho para eles todos os dias ao pequeno-almoço e volto para casa especialmente para os poder ver ao almoço e ao jantar. Passo muito tempo com eles, vendo-os, conversando e brincando, sinto-me próximo deles. Eles irão enfrentar este perigo da educação, o competitivo e impiedoso mundo da ambição, o sucesso e a brutalidade que encerram. Como posso ajudá-los a evitar tudo isto?»

Pode na realidade ajudá-los a evitar toda essa violência e insana brutalidade? Ou educá-los para se prepararem inteligentemente para tudo isso?

«Sim, mas como posso dar-lhes essa inteligência, ajudá-los a adquirir essa capacidade, da qual tanto fala, para se observarem a eles próprios e ao mundo; e não eles separados do mundo, sendo antes eles próprios o mundo? Como posso dar-lhes – não, não dar-lhes, ajudá-los – essa capacidade para ver?

Se os enviar para a escola, como inevitavelmente fará, serão influenciados por outras crianças que são condicionadas como as suas crianças o são. Vão influenciá-los deliberada ou inconscientemente. O professor vai influenciá-los e eles irão começar a perder a sensibilidade, a curiosidade, o espírito inquisitivo. Vão torná-los medíocres e o seu modo de vida irá cair no padrão que a sociedade estabeleceu.



«Temo que terei de os mandar para a escola; não posso ser eu a dar-lhe aulas particulares. Seria mau para eles; devem conhecer e brincar com outras crianças; e serão influenciados, moldados, quebrados. Não sei realmente o que fazer. Eu e a minha mulher conversámos bastante sobre isto e não parecemos capazes de encontrar uma solução. Há momentos em que me arrependo de ter tido filhos. Em casa, posso ajudá-los a compreender a influência da escola, das outras crianças, e também a ensiná-los a libertar-se da minha influência e da da minha mulher, para que sejam realmente livres, de forma inteligente? Eles são condicionados; têm as suas qualidades, inclinações, tendências, as suas personalidades e exigências particulares.»

Eles estão condicionados, e esse condicionamento é o resultado de muitos milhares de anos de influências. Quando fala de liberdade, esta só é possível quando há um fim desta influência. Seja consciente e livre deste condicionamento; só então podem a mente e o coração ser livres.

A educação não é apenas fornecer informação. É também, seguramente, para que eles compreendam os próprios preconceitos, inclinações e tendências, os seus condicionamentos: e dar-lhes oportunidades para testarem esses condicionamentos, para que vejam os perigos que encerram e sejam incondicionalmente livres. A total cultivação do homem é também parte da educação.

«Mas não há escolas dessas no mundo. Ninguém está interessado, no verdadeiro sentido, nas crianças; as pessoas não têm tempo, energia, paciência, ou talvez amor. Então, o que posso fazer? Onde fico eu no meio de tudo isto? O que devo fazer com os meus filhos? Em casa, posso ser razoável e discutir com eles, a fim de os ajudar a ver como as outras crianças os influenciam? Parece-me que é tudo o que posso fazer. Ou encontrar uma escola que não condicione completamente as crianças. Haverá escolas assim? É um grande problema, e tenho pensado muito nisso. Não sei para onde me virar.»

«Parece-me», continuou, «que deve haver escolas dessas um pouco por todo o mundo. Mas requerem muito dinheiro, espaço, um edifício, e por aí fora, e não somos pessoas ricas. Nesse sentido, estou de volta ao ponto de partida. Na verdade, não sei o que fazer, como educá-los. Compreendo como é importante alterar toda a estrutura da sociedade em que vivemos, e parece-me que devemos começar pelos mais novos, educá-los de uma forma completamente diferente, ajudá-los a transformar-se e, assim, talvez a sociedade. Tudo isto implica muito trabalho, exige muita energia. Gostava que houvesse escolas destas pelo mundo inteiro e não apenas num ou dois sítios.»

O sol começava a ficar mais brilhante e o céu mais azul. Os pássaros tinham voado para longe; à medida que o inverno se aproximava havia cada vez menos pássaros no relvado. Restavam o pavão, o coelho e os pombos. E, tal como manda o costume, vão ser caçados, mortos.

 A essência da inteligência é a sensibilidade.

(In J. Krishnamurti, Como Pode a Mente Estar Quieta?, Eigal – Indústria Gráfica S.A., 1.ª edição, Junho de 2021, pp. 35-38). Ver aqui e aqui



quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

"É na escola que hoje se formam os socialistas e os anarquistas e nela se preparam para os povos latinos as horas bem próximas de decadência"

Escrito por Gustave Le Bon




 

«A disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada mais nada menos do que uma questão de sobrevivência. Adoptar a moral socialista aniquilaria boa parte da Humanidade e empobreceria grande parte do que restaria dela.

Tudo isto levanta uma questão importante que pretendo explicitar desde já. Ainda que ataque a soberba da razão por parte dos socialistas, o meu argumento não põe em causa a razão quando utilizada devidamente. Por “razão utilizada devidamente” entendo uma razão que admite as suas próprias limitações e que, através dos seus próprios meios, enfrenta as implicações do facto assombroso, descoberto pela economia e a biologia, de que a ordem gerada sem qualquer desígnio ultrapassa largamente os planos que os homens possam conceber conscientemente. Como poderia eu, ao fim e ao cabo, atacar a razão num livro em que argumento que o socialismo é factual e até mesmo logicamente insustentável? Nem sequer contesto que a razão possa, ainda que com prudência e humildade, de modo gradual, examinar, criticar e rejeitar instituições tradicionais e princípios morais. Este livro, como alguns dos meus estudos anteriores, visa contestar as normas tradicionais da razão orientadoras do socialismo que acredito encarnarem uma teoria ingénua e acrítica da racionalidade e uma metodologia obsoleta e não científica que noutro lugar denominei “racionalismo construtivista.”»

Frederico Hayek («Arrogância Fatal: O Erros do Socialismo»).


«(...) CM – Considera o socialismo como uma doutrina ainda com força ou já esvaziada?

O.V. – Trata-se de uma doutrina falida em todo o Mundo. Aliás, existe um pensador liberal [Frederico Hayek] que marcou a data do fim do apogeu do socialismo no ano de 1946.

O socialismo dominou, durante um século, o Governo de grande parte dos povos, mas em 1946 estava completamente falido. Fracassara no desenvolvimento económico e na cultura, mas continuava dominando o Estado. Então, para sobreviver, passou a rodear as suas medidas de governação socialista de processos liberais.

Foi com esta mistura de aparente socialismo mas efectivo liberalismo – mas não de liberalismo total, pois isso iria destruir a aparência socialista – que conseguiu e consegue ainda hoje, perdurar.

CM – De que forma o socialismo tem sido funesto para a cultura portuguesa?

O.V. – Existe uma cultura oficial socialista, composta pelas universidades, onde dominam as ideias socialistas, e pela Comunicação Social, quase toda estatizada ou dominada pelo Estado, segregando uma cultura autenticamente portuguesa.

Poderá dizer-se que os elementos mais conscientes da cultura nacional, que são os filósofos portugueses, vivem como exilados no seu próprio país.

CM – Poderá dar-nos um exemplo dessa forma de procedimento anticultural?

O.V. – Ainda há pouco tempo existiam vinte e seis mil inéditos de Fernando Pessoa “escondidos” numa arca, guardados por “dragões” universitários que só vão publicando, de vez em quando, aquilo que entendem.

Depois fazem-se edições do Fernando Pessoa com textos seleccionados ao sabor de determinada pessoa que transitou de fervoroso salazarista para fervoroso socialista, uma delas com um prefácio no qual se chega ao ridículo de dizer que Fernando Pessoa era um grande conhecedor de literatura, mas seria melhor conhecedor se fosse marxista...».

Entrevista a Orlando Vitorino («O socialismo montou cerco a Portugal»).


«Visto que o essencial do exame é o fim próprio para designar os alunos reprovados, quer dizer, aqueles que devem ser submetidos a outra prova, formou-se a opinião pública de que essa experiência administrativa não é mais do que graduado processo de eliminar os alunos menos aptos para a escolaridade. Cumpre, portanto, verificar se os mais dóceis, aqueles que atingiram o termo do curso, foram efectivamente os mais inteligentes.

Depois os cursos complexos e longos, com maior número de disciplinas e portanto com maior duração, vão dificultando os serviços escolares. A mentalidade dominante na burocracia reflecte-se também na pedagogia. Tal como o burocrata meticuloso, capaz de dividir as fases e as estações de um processo, e de prever o andamento dos papéis, o pedagogo de gabinete vai imaginando o curso escolar nas linhas gerais do papel quadriculado. É o mesmo acto mental de repartir, a mesma mentalidade de repartição, que prepara obstáculos, dificuldades, humilhações. De reforma para reforma aumenta o número de disciplinas indispensáveis para o curso, porque úteis para a profissão, e por consequência aumenta a escolaridade, prolonga a menoridade. Alega-se o progresso do saber humano, que cada vez mais se divide em ramos especiosos, transformando-se em árvore frondosa, quer dizer sombria, e portanto sem luz. Estranho progresso esse que, em vez de simplificar a ciência e facilitar a técnica, aprisiona o homem nas trevas, e despoja-se do seu principal bem que é o tempo. O estudante terá que ser passivo e paciente, atingir a maioridade intelectual muito depois da maioridade civil, envelhecer até ao dia em que lhe for lícito exercer uma profissão, constituir família, servir a Pátria. Aquele progresso contraria e contradiz o ideal do homem livre.

Outrora não eram exigidos tantos trabalhos de escolaridade a quem desejasse exercer as operações mentais que caracterizam o pensamento do médico, do juiz ou do professor. Agora o pensamento humano parece desenvolver-se com maior lentidão, mas as dificuldades são artificiais, resultam de abusiva intercalação de objectos, de excessivo número de ciências auxiliares, enfim, de positivista gnosiologia. A inteligência humana, incapaz de se adaptar rapidamente à profissão, sai humilhada da prova universitária. Aliás, o argumento do estudo comparativo da duração dos cursos em vários países, muito utilizado pelos administradores do ensino, tem o defeito de todos os argumentos estatísticos: – comparar números sem comparar também as outras condições indispensáveis para um juízo capaz de integração num raciocínio completo.

Em vez de satisfazer a aspiração do estudante, que deseja aprender logo no primeiro ano do curso a praticar a profissão escolhida, segundo o método explícito do adágio learning by doing, em vez de limitar a escolaridade obrigatória ao quadrívio fundamental da profissão superior, os administradores ordenam muitos estudos prévios, muitas propedêuticas e ciências auxiliares. A actividade espontânea do estudante, a sua escolha de meios e fins, o seu método de investigação, de especulação e de imaginação parecem reprimidos, contrariados e anulados pela uniformidade dos programas e dos regulamentos. Não se exortando o espírito de iniciativa, de invenção e de descoberta, não se concedendo a liberdade de orientar os estudos por uma vocação prévia ou por um ideal eleito, enfim, não se dando a cada estudante a possibilidade de delinear o seu curso, perde a sociedade que tão mal administra o ensino imensas possibilidades de variações úteis, fecundas e valiosas, tanto na teoria como na prática. Este vício do uniforme, que na escola pesa sobre as diferenças dos corpos e das almas, sem benefício, é com certeza o causador da incessante frustração do ensino público, confessada de reforma para reforma, e declarada pelo apelo aos técnicos especializados no estrangeiro.»

Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).


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«(...) D.M.– O sr. dr. falou, depois, no problema do ensino. A que níveis haverá que fazer mudanças?

O.V. – Toda a organização do ensino depende da organização do Ensino Superior, ou do estado do Ensino Superior.

Toda a organização do ensino é determinada e condicionada pela organização do Ensino Superior. Isto, desde os planos mais gerais do ensino até à sua própria execução.

Na execução isto é imediatamente visível, visto que são os alunos formados pela Universidade de que vão ser professores no Ensino Secundário.

A Universidade, sobretudo a Universidade Pombalina, aquela que é a Universidade estatizada há dois séculos, sempre tem exercido um poder quase absoluto, digamos, sobre sucessivos governos políticos em relação ao ensino. Basta dizer que há muitas dezenas de anos só houve um caso de um ministro da Educação que não era professor universitário.

A primeira alteração a fazer é a alteração de todo o Ensino Superior. Para isso é preciso extinguir, como recomendou Delfim Santos e como começou a pôr em prática Leonardo Coimbra, a actual Universidade.

Delfim Santos dizia mesmo que uma reforma na Universidade é mais do que insuficiente. O que é preciso é extinguir completamente a Universidade actual e sobre essa extinção, criar-se uma universidade nova.

D.M.– Em que linhas assentaria a Universidade nova?

O.V. – No aspecto programático, substancial, da sabedoria que se deve transmitir, as linhas dessa Universidade nova estão todas elaboradas pelos homens que já citei: Leonardo Coimbra e Delfim Santos.

Minuciosamente programadas, estão assentes numa teoria da educação que, a meu ver, é a mais notável teoria da educação que, na modernidade, foi elaborada e escrita: a que está exposta nos livros de Álvaro Ribeiro. Um livro sobre o Ensino Primário, outro sobre o Ensino Secundário e um outro sobre o Ensino Superior.»

Entrevista a Orlando Vitorino («O socialismo não é o único caminho»).


«Escolaridade, repetimos, não é sinónimo de educação. Até à época pombalina, o povo analfabeto conservou e aperfeiçoou a língua portuguesa, cuja corrupção se observou só depois de a imprensa divulgar os erros de quem não sabe escrever. O povo manteve muito lúcidas as qualidades do seu instinto, da sua inteligência e da sua intuição, porque estimuladas por essas fontes de cultura que hoje os paleógrafos estudam no folclore. Afirmou um modo próprio de pensar as doutrinas morais, políticas e religiosas, haurindo a melhor inspiração de um ideal transcendente. Viveu heróico, activo e feliz, nos séculos em que não havia maiores exigências de escolaridade.


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As escolas primárias são contemporâneas da indústria, mas foram instituídas num tempo em que não havia ainda convenções internacionais nem leis nacionais de protecção aos menores. Os rapazes entravam aos dez anos a trabalhar nas lojas de comércio e nas oficinas fabris. Era então indispensável que os futuros operários recebessem uma cultura geral na última, ou na única, escola que poderiam frequentar, e além disso uma instrução de base profissional, o que explica o predomínio da aritmética, da geometria e do desenho nos programas oficiais daquelas escolas públicas. Importa, desde já, notar quanto este ensino se adapta ao temperamento antipático do rapaz e ao carácter do homem voluntarioso. Os artifícios do cálculo aritmético sugerem ao empregado de escritório infinitas facilidades de operação comercial, muitas vezes desmentidas na experiência de contacto com outros factores igualmente importantes na vida económica, como as condições geográficas, etnográficas e políticas dos povos. Se o comerciante contar apenas os números e pensar com entidades abstractas, faltará a um dos seus compromissos que é o de avisar os economistas de que há limites para os mercados, limites para a exportação, limites para a fabricação. A indústria mal avisada pelos comerciantes tende para a laboração contínua, porque lhe é fácil operar com matérias mortas, usar de processos violentos, acelerar a repetição. O industrial considera só o feito, o facto, ou o fáctico, quer dizer, o que existe por acidente e não por lei natural. A natureza produz na variedade das espécies e das formas; mas a indústria, armazenando sem medida e sem fim, é tida pelos positivistas uma fonte de riqueza, a verdadeira “seara nova”.

Em obediência a tal positivismo, a escola primária ensina o sistema métrico decimal para habilitar o operário a trabalhar com a máquina mais simples que é a balança, o balouço ou o pêndulo. Outras escolas hão-de ensinar a prática de máquinas mais complexas, sem exigirem contudo a análise intelectual dos princípios da mecânica. O operário pode ignorar as leis físicas, mas deve agradecer o auxílio da máquina que lhe poupa esforço muscular e atenção mental. A mão deixou de medir; já não afeiçoa nem aperfeiçoa o produto, como na arte e no artesanato; a polegada e o palmo deixaram de ter aplicação. A manufactura existe, todavia, na agricultura. A mão tem de encontrar limites nos ritmos próprios dos seres vivos, nas delicadas metamorfoses das plantas, na instabilidade das condições meteorológicas. O lavrador não pode contar só com o sistema decimal. As plantas não crescem linearmente, desenvolvem-se por figuras admiráveis, florescem e frutificam segundo fases predestinadas de cultura que não consentem permutação. Da sementeira à colheita, cada tarefa tem o seu tempo, e nos intervalos o calendário prescreve os dias de repouso, festança e alegria. Levadas para as aldeias, as escolas primárias de finalidade comercial e industrial alteraram e adulteraram uma mentalidade assente na sabedoria das tradições.

(...) No ensino primário não se passa, porém, da geografia natural para a geografia humana, ou para a etnografia; faltam, assim, as mínimas noções acerca das diferenças existentes entre raças, povos e nações, falta a preparação indispensável ao sério entendimento das primeiras lições de história pátria. Não se encontram os escolares suficientemente dotados de experiência humana que permita entender as motivações psicológicas dos acontecimentos sociais, numa idade em que a imaginação se nutre de contos, lendas e mitos. A história profana tem de ser explicada pela história sagrada. Na ilusória intenção de ministrar cultura geral ao estudante que vai fazer o seu último exame, a escola primária reduz a história à cronologia, a uma lista de datas, de antropónimos e de topónimos, que a criança memoriza como uma lenga-lenga entremeada de apreciações morais, políticas e religiosas. À custa de forçosos processos de repetição de palavras e frases, consegue o rapaz decorar o que ainda não pode imaginar, e sem desenvolvimento da imaginação não há, não pode haver, desenvolvimento da razão.»

Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).



«A surpresa inicial ao descobrir que pessoas inteligentes tendem a ser socialistas diminui quando nos apercebemos de que tais indivíduos são, obviamente, propensos a sobrestimar a inteligência e a supor que devemos todas as vantagens e oportunidades que oferece a nossa civilização a um propósito deliberado em vez do respeito por regras tradicionais. Presumem, igualmente, que conseguiremos, graças ao exercício da nossa razão, eliminar quaisquer aspectos indesejáveis ainda existentes graças a mais reflexões inteligentes, mais projectos apropriados e mais “coordenações racionais” dos nossos esforços. Isso alimenta uma disposição favorável em relação ao planeamento económico central e controlo que são o âmago de socialismo. Intelectuais exigirão, com certeza, explicações sobre tudo o que se espera deles e terão relutância em aceitar costumes pelo mero facto de vigorarem nas suas comunidades de nascimento, o que os levará a entrar em conflito com, ou pelo menos a depreciarem, quem aceita placidamente as normas de conduta prevalecentes. Acresce que esses intelectuais pretenderão, incompreensivelmente, seguir na senda da ciência e da razão e consequentemente – considerando o progresso extraordinário das ciências físicas nos últimos séculos, além de terem sido ensinados de que construtivismo e cientificismo são a razão de ser da ciência e da razão – terão dificuldade em acreditar que possa existir algum conhecimento útil que não derive da experimentação deliberada ou em aceitar a validade de outras tradições diversas da sua própria tradição de razão. Assim, um distinto historiador escreveu nesse sentido: “A tradição é quase por definição repreensível, algo a ridicularizar e lamentar” (Seton-Watson, 1983:1270).

Por definição: Barry (1961, atrás citado) pretendia fazer a moral e a justiça imorais e injustas por ‘definição analítica’; aqui Seton-Watson tenta o mesmo ardil em relação à tradição, tornando-a, por definição, repreensível”...

Todas estas reacções são compreensíveis, mas têm consequências. As consequências são particularmente perigosas – para a razão e também para a moral – quando a opção recai sobre esta tradição convencional da razão, em vez dos resultados reais da razão, levando os intelectuais a ignorarem os limites teóricos da razão, a menosprezarem um mundo de informação histórica e científica, a ignorarem as ciências biológicas e humanas, como a economia, e a distorcerem a origem e funções das nossas normas morais tradicionais.»

Frederico Hayek («Arrogância Fatal: O Erros do Socialismo»). 



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«As multidões apenas conhecem os sentimentos simples e extremos; as opiniões, ideias e crenças que lhes sejam sugeridas são aceites ou rejeitadas em globo e consideradas verdades ou erros absolutos, não admitindo meio-termo. Sucede sempre isto com as crenças determinadas pela sugestão, em vez de provindas do raciocínio. Todos nós sabemos quão intolerantes são as crenças religiosas e o despótico domínio que sobre nossas almas exercem.

A multidão é tão autoritária como intolerante, por isso que nunca estabelece a mais pequena dúvida sobre o que lhe parece verdade ou erro e porque possui também a noção nítida da sua força. O indivíduo admite contradição e discussão, o que a multidão nunca admite. Nas reuniões públicas, a mais ligeira contradição por parte de um orador é imediatamente acolhida com gritos, ou, melhor, uivos de furor e invectivas violentas, bem depressa seguidas de vias de facto e de expulsão, se o orador insistir um pouco. Sem a presença inquietadora dos agentes da autoridade, o contraditor seria mesmo frequentemente chacinado.

O autoritarismo e a intolerância são gerais em todas as categorias de multidões, mas apresentam graus muito diversos, reaparecendo também aqui a noção fundamental da raça, dominadora de todos os sentimentos e de todos os pensamentos dos homens. É, principalmente, nas multidões latinas que o autoritarismo e a intolerância se têm desenvolvido em mais alto grau, chegando ao ponto de haverem destruído completamente o sentimento da independência individual tão poderoso nos anglo-saxões. As multidões latinas só são sensíveis à independência colectiva da seita a que pertencem, e a característica desta independência é a necessidade de subjugarem imediata e violentamente às suas crenças todos os dissidentes. Nos povos latinos, os jacobinos de todos os tempos, desde os da Inquisição, nunca puderam elevar-se a outra concepção de liberdade.

O autoritarismo e a intolerância são para as multidões sentimentos muito nítidos, que facilmente concebem e aceitam, tão facilmente como os praticam, logo que lhos impõem. As multidões respeitam docilmente a força e são mediocremente impressionadas pela bondade, que para elas só representa uma forma de fraqueza. As simpatias das multidões nunca vão para os senhores bonacheirões, mas para os tiranos que vigorosamente as hajam esmagado. A estes é que elas erigem as mais elevadas estátuas. Quando de boamente pisam o déspota derrubado, fazem-no porque, havendo ele perdido a força, reentrou na categoria dos fracos que se desprezam por já se não temerem. O tipo do herói querido para as multidões há-de ter sempre a estrutura de um César que as seduz com o penacho, se impõe pela autoridade e as atemoriza com o sabre.

Sempre pronta a levantar-se contra uma autoridade fraca, a multidão curva-se com servilismo diante de uma forte autoridade. E quando a força da autoridade seja intermitente, a multidão, obedecendo sempre aos seus sentimentos extremos, passa alternadamente da anarquia para a escravidão e da escravidão à anarquia.

(...) são precisamente as palavras mais empregadas pelas multidões aquelas que, de um povo para outro, maior diferença de sentido apresentam. Isto dá-se, por exemplo, com as palavras “democracia” e “socialismo”, hoje tão frequentemente empregadas.

Estas palavras correspondem na realidade a ideias e imagens absolutamente opostas nas almas latinas e anglo-saxónicas. Entre os latinos, a palavra “democracia” significa principalmente apagamento da vontade e iniciativa individuais, em presença da vontade e iniciativas da comunidade representadas pelo Estado. O Estado é quem está encarregado cada vez mais de dirigir tudo, centralizar, monopolizar, fabricar tudo; para ele apelam, sem excepção, todos os partidos, radicais, socialistas e monárquicos. Entre os anglo-saxões, principalmente na América, a mesma palavra “democracia” significa, pelo contrário, desenvolvimento intenso da vontade e do indivíduo, afastamento, tão completo quanto possível, do Estado, ao qual, além da polícia, exército e relações diplomáticas, nada se deixa dirigir, nem sequer a instrução. Logo, a mesma palavra que num povo significa apagamento da vontade e iniciativa individuais e preponderância do Estado, significa num outro povo exactamente o contrário, isto é, um excessivo desenvolvimento da vontade e iniciativa individuais e apagamento completo do Estado e da sua intervenção.»

Gustave Le Bon («A Psicologia das Multidões»).




Instrução e educação

 

Na primeira linha das ideias dominantes de uma época, (...) se bem que elas por vezes sejam ilusões puras, encontra-se hoje a de que a instrução é capaz de mudar consideravelmente os homens, tendo como resultado certo melhorá-los e até fazê-los iguais. Pelo simples facto de serem muito repetidas, estas asserções acabaram por ser um dos mais inabaláveis dogmas da democracia, em que hoje seria tão difícil tocar, como outrora o foi tocar com os da Igreja.

Mas, neste ponto, como em muitos outros, as ideias democráticas estão em profunda discordância com os dados da psicologia e da experiência. Alguns eminentes filósofos, como, entre outros, Herbert Spencer, nenhum trabalho tiveram para demonstrar que a instrução não faz o homem nem mais moral, nem mais feliz, que lhe não muda os instintos nem as paixões hereditárias, que é até, por vezes, logo que seja mal dirigida, muito mais perniciosa do que útil. Os estatísticos vieram confirmar estes modos de ver, assegurando-nos que a criminalidade aumenta com a generalização da instrução ou, pelo menos, de uma certa instrução, que os piores inimigos da sociedade, os anarquistas, se recrutam muitíssimas vezes nos laureados das escolas, e ainda num trabalho recente, um distinto magistrado, Adolphe Guillot, acentuava que se encontram agora 300 criminosos ilustrados para 1000 analfabetos, e que, no período de cinquenta anos, a criminalidade passou de 227 por 100 000 habitantes para 552, o que representa um aumento de 133 por cento. Notou ainda esse magistrado, como também todos os seus colegas, que a criminalidade aumenta principalmente entre os mancebos para os quais o patronato foi, como se sabe, substituído pela escola obrigatória e gratuita.

Não significa isto, nem mesmo sequer ninguém o ousou sustentar, que a instituição bem dirigida não dê resultados práticos utilíssimos, senão para o levantamento moral, pelo menos para o desenvolvimento das capacidades profissionais. Desgraçadamente os povos latinos, principalmente de há trinta e tantos anos para cá, basearam os seus sistemas de instrução em princípios muito erróneos e, não obstante as observações dos mais eminentes espíritos, persistem em seus lamentáveis erros. Numa das minhas obras tive também já ocasião de provar que a nossa educação actual transforma em inimigos da sociedade a maior parte dos que a receberam e recruta numerosos discípulos para as piores fórmulas do socialismo.

O que constitui o primeiro perigo desta educação – muito justamente qualificada de latina – é o basear-se num erro fundamental de psicologia, qual é o de aceitar-se que, aprendendo-se de cor os manuais, se desenvolve a inteligência. Por isso tem-se procurado apenas aprender de cor o mais que se possa; e da escola primária à licenciatura e ao doutoramento, o mancebo nada mais faz do que decorar livros sem que o seu raciocínio e a sua iniciativa tenham tido ocasião de se exercer. A instrução consiste para ele em recitar e obedecer. «Estudar livros, saber de cor uma gramática ou um compêndio, repetir bem, imitar bem, eis», escreveu Jules Simon, antigo ministro de Instrução Pública em França, «uma educação divertida em que todo o esforço é um acto de fé perante a infalibilidade do mestre, educação que termina por nos rebaixar e incapacitar.»

Se esta educação fosse somente inútil, poder-nos-íamos limitar a compadecer-nos das desgraçadas crianças, as quais, em vez de tantas coisas necessárias que deviam aprender nas escolas, se prefere ensinar a genealogia dos filhos de Clotário, as lutas da Neustíria e da Austrásia, ou classificações zoológicas; mas a verdade é que semelhante educação apresenta um perigo muito mais grave e muito mais para ponderar. Proporciona ao indivíduo que a recebeu um desgosto violento pelas condições em que nasceu e desperta-lhe o desejo intenso de se livrar delas. O operário não quer continuar operário, o camponês nem mais uma hora quer ser camponês e o mais modesto burguês só deseja para os filhos um salário pago pelo Estado. Em vez de preparar homens para a vida, a escola apenas os prepara para empregos públicos, nos quais se possam obter bons resultados, sem que a pessoa careça de se dirigir por si ou manifestar qualquer parcela de iniciativa. Na parte inferior da escola, a educação de hoje cria os exércitos de proletários descontentes com a sua sorte e sempre prontos a revoltarem-se; na parte superior, sustenta a nossa frívola burguesia simultaneamente céptica e crédula, tendo supersticiosa confiança no Estado-providência do qual contudo incessantemente diz mal, atribuindo sempre ao governo os seus próprios erros e incapaz de empreender qualquer coisa sem intervenção da autoridade.




O Estado que, à força de manuais, fabrica todos estes diplomados só pode utilizar um pequeno número deles, deixando todos os outros sem empregos. Tem de resignar-se a alimentar os primeiros e ter por inimigos os segundos. Do vértice para a base da pirâmide social, do simples caixeiro ao professor e ao prefeito, a enorme legião dos diplomados assalta hoje todas as carreiras. E ao passo que um negociante só muito dificilmente encontra quem, como agente, queira ir representá-lo nas colónias, são aos milhares os pretendentes aos mais modestos lugares oficiais. Só o departamento do Sena conta vinte mil professores e professoras sem colocação, e todos eles, desprezando o campo e as oficinas, se dirigem ao Estado, solicitando-lhe um emprego de que possam viver. Como o número dos eleitos é restrito, o dos descontentes é forçosamente imenso. Estes estão prontos para todas as revoluções, quaisquer que sejam os chefes e os fins a que se proponham. A aquisição de conhecimentos, para os quais se não encontra aplicação, é o mais seguro meio de fazer do homem um revoltado. [1]

Evidentemente é já muito tarde para levar de vencida semelhante corrente. Só a experiência, última educadora dos povos, se encarregará de nos mostrar os nossos erros. Só ela será bastante poderosa para nos convencer da necessidade de substituirmos os nossos odiosos manuais, os nossos lastimosos concursos, por uma instrução profissional capaz de levar a juventude para os campos, oficinas e empresas coloniais, de que hoje só procura fugir.

Esta instrução profissional, hoje reclamada por todos os espíritos esclarecidos, foi a que outrora receberam os nossos pais e que os povos, que hoje dominam o mundo pela vontade, iniciativa e espírito empreendedor, souberam conservar. Em páginas notáveis, de que terei ocasião de reproduzir as partes essenciais, um grande pensador, Taine, provou claramente que a educação francesa outrora era quase o que é hoje a educação inglesa ou americana, e, num paralelo notável entre o sistema latino e o sistema anglo-saxão, patenteou bem frisantemente as consequências dos dois métodos.

Condescender-se-ia talvez, com extremo rigor, em aceitar todos os inconvenientes da nossa educação clássica, embora só produzisse desocupados e descontentes, se a superficial aquisição de tantos conhecimentos, a perfeita recitação de tantos manuais, elevassem o nível da inteligência. Mas, na realidade, elevam-nos? Infelizmente, não! As condições para a vitória na vida são o raciocínio, a experiência, a iniciativa, o carácter, e nada disto é dado pelos livros. Os livros são dicionários cuja consulta é útil, mas é perfeitamente inútil meter na cabeça os longos trechos que os formam.

Taine, no trecho que vamos transcrever, mostra perfeitamente como é que a instrução profissional pode desenvolver a inteligência a alturas que a instrução clássica de nenhum modo pode atingir.

«As ideias», escreve Taine, «só se formam no seu meio natural e normal; o que lhes faz vegetar os germes são as inumeráveis impressões sensíveis que o mancebo recebe todos os dias na oficina, na mina, no tribunal, no estudo e no arsenal, no hospital, à vista das ferramentas, materiais e operações, em presença dos clientes e operários, do trabalho, da obra bem ou mal paga, lucrativa ou dispendiosa. São estas as pequenas percepções particulares dos olhos, dos ouvidos, das mãos e até do olfacto que, recolhidas involuntariamente e surdamente elaboradas, nele se organizam para lhe sugerirem, cedo ou tarde, uma nova combinação, uma simplificação, economia, aperfeiçoamento ou invenção. De todos estes precisos contactos, de todos estes elementos assimiláveis e indispensáveis, está privado o jovem francês, precisamente na idade fecunda. Durante sete ou oito anos, o jovem é sequestrado numa escola, está longe da experiência directa e pessoal que lhe havia de dar a noção exacta e viva das coisas, dos homens e das diversas maneiras de os manejar.

Nove mancebos em cada dez perderam certamente o tempo de trabalho, alguns anos de vida e anos eficazes importantes e até decisivos. Contai primeiramente metade ou dois terços dos que se apresentam a exame, falo de reprovados; em seguida entre os admitidos, graduados e diplomados também a metade ou dois terços, dos sobrecarregados. Exigiu-se-lhes muito, obrigando-os num dia determinado, numa cadeira ou diante de um quadro, a estarem, durante duas horas, a mostrarem que são num grupo de ciências o repertório vivo de todo o conhecimento humano. E, na verdade, eles foram, ou quase, nesse dia, durante duas horas; mas, um mês mais tarde, deixaram de o ser e com certeza não conseguiriam passar em novo exame; as suas aquisições, muito numerosas e pesadas, deslizam incessantemente para fora dos seus espíritos e não adquirem outros conhecimentos. O vigor mental estiolou-se-lhes, a seiva fecunda esgotou-se, o homem feito aparece e muitas vezes é já um homem liquidado. Este, colocado, casado, resignado a andar indefinidamente, no mesmo círculo, acolhe-se na sua restrita profissão; desempenha-se correctamente, mas não vai além. Tal é o rendimento médio; a receita certamente não equilibra a despesa. Na Inglaterra e na América, como outrora, antes de 1789, em França, emprega-se o processo inverso e o rendimento obtido é igual ou superior.»




O ilustre historiador mostra-nos em seguida a diferença do nosso sistema do dos anglo-saxões. Estes não possuem as nossas inumeráveis escolas especiais; o ensino entre eles não é dado pelo livro, mas pelas coisas. O engenheiro, por exemplo, faz-se na oficina e não numa escola, o que permite que cada um chegue exactamente ao ponto que a sua inteligência lhe proporciona, operário ou contramestre, se mais não puder alcançar; engenheiro, se as aptidões a isso o levarem. Isto é um processo muito mais democrático e muito mais útil para a sociedade do que a dependência de toda a carreira de um indivíduo de um concurso de algumas horas, feito aos dezoito ou vinte anos.

«No hospital, nas minas, na oficina, no arquitecto, no escritório do advogado, faz o aluno, admitido ainda muito novo, a sua aprendizagem e prática, como entre nós um escrevente de notário ou um aprendiz de pintor. Antecipadamente e antes de entrar, pôde seguir algum curso geral e arranjar um quadro em que possa colocar as observações que vai fazendo. E tem ainda ao seu alcance, a maior parte das vezes, alguns cursos técnicos que poderá acompanhar nas horas livres para ir coordenando as experiências que quotidianamente faz. Com este regime, a capacidade prática cresce e desenvolve-se por si, até ao grau a que possam chegar as faculdades do aluno e na orientação de que a sua futura ocupação carece, pelo trabalho especial a que desde então quer adaptar-se. Deste modo, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América do Norte, o mancebo bem depressa consegue tirar de si tudo quanto pode dar. A partir dos vinte e cinco anos, e ainda muito mais cedo, se lhe não faltarem o fundo e a substância, é não só um executante útil, mas ainda um empreendedor espontâneo, não só uma roda, mas, o que é mais, um motor. – Em França, onde prevaleceu o processo inverso e onde cada geração se faz cada vez mais chinesa, é enorme a soma de forças perdidas.»

E o grande filósofo chega à seguinte conclusão sobre a inconveniência sempre crescente da nossa educação latina e da vida.

«Nos três graus de instrução, para a infância, adolescência e juventude, a preparação teórica e escolar nos bancos, por meio de livros, prolongou-se e sobrecarregou-se, em atenção ao exame, ao grau, ao diploma e ao certificado, única e simplesmente, e pelos piores meios, pela aplicação de um regime antinatural e anti-social, pela excessiva demora da aprendizagem prática, pelo internato, pelo artificial enlevo e acessórios mecânicos, pela sobrecarga, sem considerações pelo tempo que se há-de seguir, pela idade adulta e ocupações viris que o homem feito há-de exercer, fazendo abstracção do mundo real onde o mancebo vai entrar imediatamente, da sociedade ambiente a que é necessário adaptá-lo ou resigná-lo antecipadamente com o conflito humano onde, para se defender e conservar o pé, deve aparecer equipado, armado, exercitado e habituado às provações. Este indispensável equipamento, esta aquisição mais importante que todas as outras, esta solidez do bom senso, da vontade e dos nervos, não são proporcionadas pelas nossas escolas, bem pelo contrário; em vez de qualificarem o aluno, as nossas escolas desqualificam-no para as suas condições próximas e definitivas. Eis porque a sua entrada no mundo e os seus primeiros passos no campo da acção prática, na maioria dos casos, não passam de uma série de dolorosas quedas; fica magoado e por muito tempo, às vezes estropiado. É uma prova rude e dolorosa esta; altera-se o equilíbrio moral e mental, e corre-se o risco de não se restabelecer; vem a desilusão brusca e completa; as decepções foram grandes e os dissabores muito fortes. [2]

Por acaso, no que deixamos dito, nos afastámos da psicologia das multidões? Com certeza que não. Se quisermos compreender as ideias e crenças que hoje germinam nas multidões e amanhã hão-de desabrochar, é necessário sabermos como o terreno tem sido amanhado. O ensino dado à juventude de um país permite avaliar o que será amanhã esse país; a educação fornecida à geração actual justifica as mais sombrias previsões. É em parte com a instrução e a educação que melhora e se modifica a alma das multidões. É, pois, necessário mostrar como o actual sistema de instrução a tem trabalhado e como a massa dos indiferentes e dos neutros se foi progressivamente transformando num imenso exército de descontentes, prontos a obedecerem a todas as sugestões dos utopistas e dos retóricos. É na escola que hoje se formam os socialistas e os anarquistas e nela se preparam para os povos latinos as horas bem próximas de decadência.

(In Gustave Le Bon, A Psicologia das Multidões, Bookbuilders, 1.ª edição, Janeiro de 2020).






[1] Este fenómeno não é privativo dos povos latinos; observa-se também na China, país dirigido também por uma sólida hierarquia de mandarins e em que o mandarinato, como entre nós, se alcança por concursos cujas provas consistem apenas na recitação imperturbável de grossos manuais. A lógica dos letrados sem emprego considera-se hoje na China uma verdadeira calamidade nacional. O mesmo sucede na Índia, onde, depois de os ingleses abrirem escolas, não para educar, como se faz em Inglaterra, mas simplesmente para instruir os indígenas, se formou uma classe especial de letrados, os babus, que, desde que não alcançam um emprego público, se fazem inimigos irreconciliáveis do domínio inglês. Em todos os babus, providos ou não em emprego, o primeiro resultado da instrução foi fazer baixar imensamente o nível da sua moralidade. Este facto foi por nós tratado desenvolvidamente nas Civilizations de L’Inde e tem sido verificado e confirmado por todos os autores que têm visitado a grande península.

[2] Taine, o Regime Moderno, t. II, 1894. Estas páginas são quase as últimas escritas por Taine e resumem admiravelmente os resultados da longa experiência do grande filósofo. Infelizmente, julgo-as absolutamente incompreensíveis para os professores da nossa universidade que não hajam estado no estrangeiro. A educação é o único meio que possuímos para actuarmos na alma de um povo e é profundamente triste ter de pensar que não há quase ninguém em França que possa chegar a compreender que o nosso actual ensino é um elemento terrível de rápida decadência e que em vez de elevar a juventude, a rebaixa e perverte.