Escrito por João Ameal
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Bíblia de Gutenberg |
«Quando
exaltamos o valor prático da revolução aristotélica e a originalidade de Tomás de Aquino em chefiá-la, não queremos dizer que os filósofos escolásticos
anteriores a ele não tinham sido filósofos, ou não tinham sido altamente
filosóficos, ou não haviam tido contacto com a filosofia da antiguidade. Se
alguma vez houve grande quebra na história filosófica, não foi antes de S. Tomás, ou no princípio da história medieval, mas sim depois de S. Tomás e nos
princípios da história moderna. A grande tradição intelectual que chegou até
nós, desde Pitágoras e Platão, nunca se interrompeu ou perdeu com bagatelas
como o saque de Roma, o triunfo de Átila ou todas as invasões bárbaras da idade
das trevas. Apenas se perdeu após a introdução da imprensa, o descobrimento da
América, a fundação da Sociedade Real e todo o progresso do Renascimento e do
mundo moderno. Foi aí, se o foi em qualquer parte, que se perdeu ou se quebrou
o longo fio, fino e delicado, que vinha desde a antiguidade remota, o fio
dessa rara mania dos homens – o hábito de pensar.»
G.
K. Chesterton («S. Tomás de Aquino»).
«Articulam-se
com os três primeiros elementos (terra,
água, ar) as disciplinas do trívio, as quais podem sem desvantagem
continuar a ser designadas por gramática,
retórica e dialéctica. O quarto elemento, purificador e transformador, é de
existência supra-terrestre e transcende a condição humana. Explica-se
metodologicamente que as disciplinas do trívio, mais relacionadas com a
antropologia, preparem a inevitável transferência da inquietação filosófica
para os planos da cosmologia e da teologia. O quadrívio medieval, constituído pelas
disciplinas designadas por música, aritmética, geometria e astronomia,
não corresponde já às exigências da ciência moderna, mas nem por isso o
pensador actual se afastará da verdade dominante nos estudos quadriviais. O
movimento ígneo, a princípio mencionado na separação entre as trevas e a luz,
foi mais tarde designado por térmico, magnético e eléctrico, sem que a ciência
lograsse atingir por sucessivas sínteses a ambicionada unidade substancial. O
estudo do quadrívio invade já os domínios da lógica, da gnosiologia e
da epistemologia cujos processos
superam os triviais, embora o movimento primordial seja susceptível de se
configurar nos outros movimentos elementares, para trabalho, arte e jogo dos
homens que vivem mais presos à terra.
A
criança, o ser em crescimento e criação, aprende a andar e a nadar em planos
visíveis no horizonte; dir-se-á também que, mantendo pura a infantil
docilidade, segundo a arte de saber ouvir, aprenderá o homem a deslocar-se no
ar e no fogo, ainda que invisivelmente. Entre as perturbações e as dificuldades
da crise chamada adolescência despontam as primeiras asas pelas quais o homem deixa de ser para sempre um triste bípede
implume. Na idade própria em que o estudante se liberta do argumento de
autoridade, duvidando do que lhe foi doutrinado por parentes, sacerdotes e
professores, para reflectir sobre os ensinamentos previamente adquiridos,
impõe-se que o programa escolar prescreva mais profundos estudos triviais.»
Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).
«A
obra doutrinária de S. Tomás de Aquino é, antes de mais, como um imenso espelho
onde se reflecte a cultura do seu tempo. Raro será o nome ilustre nas lides
intelectuais, quer da antiguidade, quer da própria época do Santo Doutor, que
não tenha algum eco nos seus livros. Manuseia na perfeição as fontes cristãs,
tanto escriturárias como patrísticas, gregas e latinas, e cita amplamente
BOÉCIO e o pseudo-DIONÍSIO AREOPAGITA; SANTO AGOSTINHO, em particular, para ele
não tem segredos. Dos filósofos mais recentes conhece o filão já mencionado dos
judio-arábigos – AVICEBRÃO e MAIMÓNIDES, entre os judeus; AVICENA, AVERRÓIS,
AVEMPACE, ALGAZEL, entre os árabes –, os neoplatónicos BOÉCIO e DIONÍSIO, cristãos,
e os pagãos PORFÍRIO, TEMÍSTIO e SIMPLÍCIO, e imperfeitamente o próprio
PLOTINO. Quanto aos da antiguidade clássica, cita CÍCERO e SÉNECA, ZENÃO e
EPICURO e conhece a fundo ARISTÓTELES, e através dele tem notícia de PLATÃO e
dos PRÉ-SOCRÁTICOS. Fora da filosofia não há campo do saber humano que lhe seja
totalmente alheio. Há nas suas obras referências a polígrafos como SANTO
ISIDORO DE SEVILHA; a cultivadores da ciência jurídica, tais como GRACIANO e os
jurisconsultos imperiais; a homens de ciência como GALENO e HIPÓCRATES; a
geógrafos como ESTRABÃO; a historiadores como TITO LÍVIO e SALÚSTIO; e até a
poetas como OVÍDIO e HORÁCIO. Dos seus imediatos predecessores são-lhe familiares
SANTO ANSELMO e SÃO BERNARDO, e menciona a cada passo GILBERTO PORRETANO,
ABELARDO, os VITORINOS, PEDRO LOMBARDO, DAVIDE DE DINANI, ALMARICO DE BENES,
etc. Quanto aos seus contemporâneos, amigos ou adversários, alude de
preferência a eles sob a anónima designação de “quidam”, própria da época, mas
é fácil descobrir as suas referências. Pode dizer-se que no espírito de S.
Tomás, acolhedor e hospitaleiro, encontra guarida tudo quanto de nome e digno
tinha germinado o pensamento universal e que a sua alma se sentia herdeira do
racionalismo harmónico dos gregos, da ponderação jurídica dos romanos e da profunda
especulação dos árabes, enquanto vibrava com o ardor próprio dos jovens no anseio
religioso e místico da espiritualidade judaico-cristã exaltado na tradição
platónica da própria Grécia.»
João
Zaragüeta («S. Tomás de Aquino no seu tempo e agora»).
«Desde
logo, a imagem que hoje temos do esplendor escolástico é construída com base
nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S.
Boaventura e Duns Scot. Se os apagâssemos dos registros, o escolasticismo não
teria passado de um episódio curioso na história da educação. E esses não são
nomes só de filósofos, mas de Doutores da Igreja: três santos canonizados e um
bem-aventurado. Não existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses
homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do
“modelo pronto” que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo
pela “discussão racional” poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem
para o fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo
filosófica e mística que os caracteriza, o qual não cresce fora e
independentemente da graça santificante, mas decorre dela como um dom especial
do Espírito.
Também
é ingenuidade supor que essas encarnações máximas do gênio escolástico fossem
produtos típicos do novo meio acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se
ajustaram confortavelmente jamais. Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua
compreensão superior dos mistérios da fé e, last
not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos
preferenciais das invejas, mesquinharias e maledicências de seus colegas.»
Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).
Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino
De
facto, após um longo colapso, a cultura científica e filosófica progredia, com
renovado resplendor, em todo o mundo cristão. Dois concílios realizados em
Latrão, e as diligências constantes de três Papas – Inocêncio III, Honório III
e Gregório IX – impulsionavam o clero para os estudos superiores.
Tudo
isto determinou, como era de esperar, o envio do jovem oblato beneditino para a
Universidade de Nápoles.
Segundo
a orientação pedagógica de então, consagrou-se Tomás de Aquino ao estudo das
chamadas artes liberales, divididas
em dois grupos: as artes triviales, sermonicales, rationales, que constituíam o trivium:
gramática, retórica e dialéctica; as artes
quadriviales, reales, physica, mathemática, que constituíam o quadrivium:
aritmética, geometria, astronomia e música.
No
primeiro grupo, foi seu mestre em Nápoles Pedro Martinus, que lhe ministrou uma
ampla cultura humanista e o pôs em contacto com os velhos poetas e oradores
greco-latinos: Virgílio e Horácio, Ovídio e Terêncio, Juvenal e Séneca, César e
Quintiliano, Cícero e Marius Vitorinus, e também com alguns escritores dos
inícios da Idade-Média: Oroso, Boécio, Gregório de Tours. Ao mesmo tempo,
Martinus industriava-o no conhecimento íntimo da dialéctica, logo
admiravelmente apreendida e que mais tarde Tomás utilizaria com mestria
inexcedível.
No
segundo grupo (quadrivium), ensinou-o
Pedro de Irlanda – notablizado pelos seus comentários sobre Porfírio, sobre o Perihermeneias e o De longitudine et brevitate vitae de Aristóteles – que seria
chamado gemma magistrorum et laurea morum.
A influência exercida por este professor no espírito do seu discípulo
adivinha-se profunda – não tanto pelos vagos e incompletos dados enciclopédicos
de autores antigos que lhe forneceu: os tratados de Boécio, o Astrolabio de Gerbert, as teorias
euclidianas – mas porque deve ter chamado pela primeira vez a sua atenção para
o nome e a obra de Aristóteles. Este simples facto marca um lugar a Pedro de
Irlanda na história do pensamento humano: ter sido, porventura, o instrumento
do encontro inicial de Tomás de Aquino e do Estagirita.
(In João Ameal, São Tomás de Aquino, Livraria Tavares
Martins, Porto, 1937, pp. 17-18).
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Scuola di Atene, por Raffaello Sanzio (1483-1520) |