quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino

Escrito por João Ameal


Bíblia de Gutenberg

«Quando exaltamos o valor prático da revolução aristotélica e a originalidade de Tomás de Aquino em chefiá-la, não queremos dizer que os filósofos escolásticos anteriores a ele não tinham sido filósofos, ou não tinham sido altamente filosóficos, ou não haviam tido contacto com a filosofia da antiguidade. Se alguma vez houve grande quebra na história filosófica, não foi antes de S. Tomás, ou no princípio da história medieval, mas sim depois de S. Tomás e nos princípios da história moderna. A grande tradição intelectual que chegou até nós, desde Pitágoras e Platão, nunca se interrompeu ou perdeu com bagatelas como o saque de Roma, o triunfo de Átila ou todas as invasões bárbaras da idade das trevas. Apenas se perdeu após a introdução da imprensa, o descobrimento da América, a fundação da Sociedade Real e todo o progresso do Renascimento e do mundo moderno. Foi aí, se o foi em qualquer parte, que se perdeu ou se quebrou o longo fio, fino e delicado, que vinha desde a antiguidade remota, o fio dessa rara mania dos homens – o hábito de pensar.»

G. K. Chesterton («S. Tomás de Aquino»).

 

«Articulam-se com os três primeiros elementos (terra, água, ar) as disciplinas do trívio, as quais podem sem desvantagem continuar a ser designadas por gramática, retórica e dialéctica. O quarto elemento, purificador e transformador, é de existência supra-terrestre e transcende a condição humana. Explica-se metodologicamente que as disciplinas do trívio, mais relacionadas com a antropologia, preparem a inevitável transferência da inquietação filosófica para os planos da cosmologia e da teologia. O quadrívio medieval, constituído pelas disciplinas designadas por música, aritmética, geometria e astronomia, não corresponde já às exigências da ciência moderna, mas nem por isso o pensador actual se afastará da verdade dominante nos estudos quadriviais. O movimento ígneo, a princípio mencionado na separação entre as trevas e a luz, foi mais tarde designado por térmico, magnético e eléctrico, sem que a ciência lograsse atingir por sucessivas sínteses a ambicionada unidade substancial. O estudo do quadrívio invade já os domínios da lógica, da gnosiologia e da epistemologia cujos processos superam os triviais, embora o movimento primordial seja susceptível de se configurar nos outros movimentos elementares, para trabalho, arte e jogo dos homens que vivem mais presos à terra.

A criança, o ser em crescimento e criação, aprende a andar e a nadar em planos visíveis no horizonte; dir-se-á também que, mantendo pura a infantil docilidade, segundo a arte de saber ouvir, aprenderá o homem a deslocar-se no ar e no fogo, ainda que invisivelmente. Entre as perturbações e as dificuldades da crise chamada adolescência despontam as primeiras asas pelas quais o homem deixa de ser para sempre um triste bípede implume. Na idade própria em que o estudante se liberta do argumento de autoridade, duvidando do que lhe foi doutrinado por parentes, sacerdotes e professores, para reflectir sobre os ensinamentos previamente adquiridos, impõe-se que o programa escolar prescreva mais profundos estudos triviais.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).

 


«A obra doutrinária de S. Tomás de Aquino é, antes de mais, como um imenso espelho onde se reflecte a cultura do seu tempo. Raro será o nome ilustre nas lides intelectuais, quer da antiguidade, quer da própria época do Santo Doutor, que não tenha algum eco nos seus livros. Manuseia na perfeição as fontes cristãs, tanto escriturárias como patrísticas, gregas e latinas, e cita amplamente BOÉCIO e o pseudo-DIONÍSIO AREOPAGITA; SANTO AGOSTINHO, em particular, para ele não tem segredos. Dos filósofos mais recentes conhece o filão já mencionado dos judio-arábigos – AVICEBRÃO e MAIMÓNIDES, entre os judeus; AVICENA, AVERRÓIS, AVEMPACE, ALGAZEL, entre os árabes –, os neoplatónicos BOÉCIO e DIONÍSIO, cristãos, e os pagãos PORFÍRIO, TEMÍSTIO e SIMPLÍCIO, e imperfeitamente o próprio PLOTINO. Quanto aos da antiguidade clássica, cita CÍCERO e SÉNECA, ZENÃO e EPICURO e conhece a fundo ARISTÓTELES, e através dele tem notícia de PLATÃO e dos PRÉ-SOCRÁTICOS. Fora da filosofia não há campo do saber humano que lhe seja totalmente alheio. Há nas suas obras referências a polígrafos como SANTO ISIDORO DE SEVILHA; a cultivadores da ciência jurídica, tais como GRACIANO e os jurisconsultos imperiais; a homens de ciência como GALENO e HIPÓCRATES; a geógrafos como ESTRABÃO; a historiadores como TITO LÍVIO e SALÚSTIO; e até a poetas como OVÍDIO e HORÁCIO. Dos seus imediatos predecessores são-lhe familiares SANTO ANSELMO e SÃO BERNARDO, e menciona a cada passo GILBERTO PORRETANO, ABELARDO, os VITORINOS, PEDRO LOMBARDO, DAVIDE DE DINANI, ALMARICO DE BENES, etc. Quanto aos seus contemporâneos, amigos ou adversários, alude de preferência a eles sob a anónima designação de “quidam”, própria da época, mas é fácil descobrir as suas referências. Pode dizer-se que no espírito de S. Tomás, acolhedor e hospitaleiro, encontra guarida tudo quanto de nome e digno tinha germinado o pensamento universal e que a sua alma se sentia herdeira do racionalismo harmónico dos gregos, da ponderação jurídica dos romanos e da profunda especulação dos árabes, enquanto vibrava com o ardor próprio dos jovens no anseio religioso e místico da espiritualidade judaico-cristã exaltado na tradição platónica da própria Grécia.»

João Zaragüeta («S. Tomás de Aquino no seu tempo e agora»).

 

«Desde logo, a imagem que hoje temos do esplendor escolástico é construída com base nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S. Boaventura e Duns Scot. Se os apagâssemos dos registros, o escolasticismo não teria passado de um episódio curioso na história da educação. E esses não são nomes só de filósofos, mas de Doutores da Igreja: três santos canonizados e um bem-aventurado. Não existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do “modelo pronto” que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo pela “discussão racional” poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem para o fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo filosófica e mística que os caracteriza, o qual não cresce fora e independentemente da graça santificante, mas decorre dela como um dom especial do Espírito.

Também é ingenuidade supor que essas encarnações máximas do gênio escolástico fossem produtos típicos do novo meio acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se ajustaram confortavelmente jamais. Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua compreensão superior dos mistérios da fé e, last not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas, mesquinharias e maledicências de seus colegas.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino

 

De facto, após um longo colapso, a cultura científica e filosófica progredia, com renovado resplendor, em todo o mundo cristão. Dois concílios realizados em Latrão, e as diligências constantes de três Papas – Inocêncio III, Honório III e Gregório IX – impulsionavam o clero para os estudos superiores.

Tudo isto determinou, como era de esperar, o envio do jovem oblato beneditino para a Universidade de Nápoles.

Segundo a orientação pedagógica de então, consagrou-se Tomás de Aquino ao estudo das chamadas artes liberales, divididas em dois grupos: as artes triviales, sermonicales, rationales, que constituíam o trivium: gramática, retórica e dialéctica; as artes quadriviales, reales, physica, mathemática, que constituíam o quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música.

No primeiro grupo, foi seu mestre em Nápoles Pedro Martinus, que lhe ministrou uma ampla cultura humanista e o pôs em contacto com os velhos poetas e oradores greco-latinos: Virgílio e Horácio, Ovídio e Terêncio, Juvenal e Séneca, César e Quintiliano, Cícero e Marius Vitorinus, e também com alguns escritores dos inícios da Idade-Média: Oroso, Boécio, Gregório de Tours. Ao mesmo tempo, Martinus industriava-o no conhecimento íntimo da dialéctica, logo admiravelmente apreendida e que mais tarde Tomás utilizaria com mestria inexcedível.

No segundo grupo (quadrivium), ensinou-o Pedro de Irlanda – notablizado pelos seus comentários sobre Porfírio, sobre o Perihermeneias e o De longitudine et brevitate vitae de Aristóteles – que seria chamado gemma magistrorum et laurea morum. A influência exercida por este professor no espírito do seu discípulo adivinha-se profunda – não tanto pelos vagos e incompletos dados enciclopédicos de autores antigos que lhe forneceu: os tratados de Boécio, o Astrolabio de Gerbert, as teorias euclidianas – mas porque deve ter chamado pela primeira vez a sua atenção para o nome e a obra de Aristóteles. Este simples facto marca um lugar a Pedro de Irlanda na história do pensamento humano: ter sido, porventura, o instrumento do encontro inicial de Tomás de Aquino e do Estagirita.

(In João Ameal, São Tomás de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, 1937, pp. 17-18).



Scuola di Atene, por Raffaello Sanzio (1483-1520)


domingo, 10 de agosto de 2025

Nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu

Escrito por Fernando Pessoa



Promontório de Sagres

«Vem tudo a propósito de chegar a dizer qual é a tragédia de Portugal. É a de que, tendo vários eruditos, e muita gente inteligente, pouquíssima gente temos que seja culta. Vejam quanta criatura, quando lhe apresentam qualquer coisa de novo, procura compreender. Um homem culto procura sentir. Perceber envolve esforço. Sentir envolve uma passividade deliciosa. O feitio enérgico, violento, pouco indolente do português leva-o para a acção precipitadamente. A ciência da inacção, a mais civilizada das ciências, pouco está desenvolvida entre nós. A nossa tendência para agir ficou-nos, como uma maldição, da aventura das descobertas. Expiamos a glória dos nossos maiores na doentia preocupação do útil».

Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).

 

«Depois de longa viagem que é a vida humana, especialmente para o estudioso que a todo o momento se interroga sobre a adequação do pensar ao agir, até o céptico se detém perante o termo da quietação e de segurança que costuma ser universalmente denominado pela palavra Deus. Escritores há que excluem tal palavra, por motivos vários entre os quais avulta o medo de uma ou outra pressão social, e transferem para nova palavra a designação do absoluto, infinito ou eterno, isto é, do envolvente que necessariamente há-de ser solicitado por todo o pensamento relativo, finito ou efémero. A bem dizer não há ateísmo. É concedida aos filósofos livre escolha de vocabulário pela simples razão de ser uma arte a filosofia. O artífice que não souber forjar a ferramenta própria do seu artesanato jamais produzirá uma obra-prima, de assinatura pessoal, porque se resignará a ser um operário anónimo de qualquer fábrica metropolitana ou um mero empregado de qualquer faculdade universitária. Dado, porém, que para José Marinho a filosofia é muito mais um jogo do que uma arte, melhor diríamos que o mesmo pode ser alterado para a magia de efeitos lúdicos. As palavras preferidas e escolhidas vão sendo escritas com inicial maiúscula, vão adquirindo personalidade teatral, para aceitarem as responsabilidades dos muitos e das culpas, para figurarem como agentes do drama filosófico, já que nenhum escritor se liberta totalmente da nostalgia de qualquer fabulação mais ou menos mitológica. Assim as cartas de jogar, que comercialmente transitam de país para país, designam e significam diferentemente a sorte dos vários povos. O que nós, Portugueses, denominamos por copas, espadas, ouros, paus é por outros denominado coeurs, piques, carreaux, trèfles, ou hearts, spades, diamonds, clubs, ensinamento notável para quem souber ver a subtil distinção entre o designar e o significar. Atribuindo palavras portuguesas, plenas de significação étnica, aos mesmos conceitos que atravessam fronteiras, procede-se ao contrário do universalismo das escolas que têm a pretensão estulta de nacionalizar também a ortofonia e a ortografia de vocábulos estrangeiros.»

Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).

 






«De Álvaro Ribeiro dizia José Marinho que “pensava como o coração pulsa: sem cessar”. Almada Negreiros chamou-lhe “santo científico”. Pinharanda Gomes mantém-se firme em dizê-lo “um santo”, com todo o significado e todas as virtudes que a Igreja dá à palavra. Nenhum dos que com ele conviveram ou sabem ler com proveito seus livros, receia reconhecer que de homem algum ou pensador mais do que dele se pode dizer “um sábio”. E seus discípulos, desde António Telmo e António Quadros, desde Afonso Botelho e Braz Teixeira ao autor destas linhas, têm-no como “o mestre por excelência”.

Socialmente, quer dizer, nas consequências sociais da opinião que a ignorância contente de si formou dele, Álvaro Ribeiro foi, ainda é, um homem antipático e um filósofo odiado, daqueles que são para serem assassinados. Quem o quiser comprovar documentalmente, pode ler o que sobre ele infantilmente escreveram e publicaram um crítico versejador como Casais Monteiro e um crítico que não verseja como Eduardo Lourenço.

À medida que o homem vivo vai esquecendo, a antipatia e o ódio vão sendo substituídos por um cerrado silêncio hostil que faz o regozijo da estupidez universitária posta perante os livros admiráveis e únicos que ele nos deixou.

São esses livros escritos com estilo, palavra que, na acepção dada pelo próprio Álvaro Ribeiro, significa a singularidade inimitável do escritor. Seu estilo desenvolve-se numa sucessão de afirmações, isto é, de teses, ideias, conceitos, logismos, rigorosamente firmes, ou firmados, ou com firmamento, palavra que o filósofo contrapunha à de fundamento, corrente na linguagem filosófica germânica, como o céu estrelado e luminoso se contrapõe às funduras tenebrosas. As afirmações sucedem-se, não por extrínsecas justaposições, mas por deduções, silogismos e inferências que o escritor não perde tempo a descrever, antes entregando ao leitor a tarefa de a si mesmo provar capacidade de inteligência e entendimento filosóficos. Assim nos dão os livros de Álvaro Ribeiro o exemplo de como a filosofia se deve defender, nenhuma facilidade concedendo à mediocridade e à incultura. Não há filosofia de leitura fácil porque leitura fácil é a de imediato entendimento e o entendimento filosófico conduz-se por demoradas meditações. Álvaro Ribeiro gostava de lembrar o que Dante disse do filósofo: “mestre dos que sabem”. A sabedoria é mediadora.»

Orlando Vitorino («A Filosofia de Álvaro Ribeiro como Doutrina do Espírito»).





«Um conceito vale mais pela virtualidade animada do nosso conceber do que pelo seu desempenho lógico-formal no domínio explícito do nosso entendimento. O conceito tem pois uma importância fundante quanto ao domínio lógico do conceber, já que é por essa virtualidade que este se transforma e rejuvenesce, possibilitando assim variantes constituintes que progredidamente se alteram, nesse universo concebente. (...) A relação entre o conceber e o conceito não pode nunca ser dissociada, porque representa por si a transferência de compromisso com durações potenciais latentes na nossa consciência».

Luís Furtado («Teoria da Luz e da Palavra»).

 


Nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu


A crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional. Consciente ou inconscientemente, o movimento do espírito é este: (1) Tudo quanto existe é efeito de uma causa. (2) O efeito não pode conter mais que o que está contido na causa, (pois então seria efeito de mais causas que uma); o universo, no mais alto ponto em que nós o conhecemos, que é o homem, contém a consciência; portanto a causa do universo deve conter a consciência, isto é, deve ser uma Causa consciente. (3) O efeito não pode conter tudo quanto se contém na causa, pois então seria idêntico à causa, e não haveria causa nem efeito; o universo é múltiplo, extenso (no tempo e no espaço, ou no espaço-tempo) e diverso (isto é, composto de coisas não só muitas mas diferentes entre si); portanto a causa do universo tem que conter mais que multiplicidade, ou seja totalidade, mais que extensão, ou seja infinidade, mais que diversidade, ou seja plenitude. Cumpre advertir que totalidade se diferencia de plenitude em que o primeiro é um conceito quantitativo, o segundo qualitativo: assim a totalidade do prazer, seria a soma de todos os prazeres possíveis, a plenitude do prazer a concentração em um só prazer do que se acha contido na diversidade de todos.

Por qualquer especulação desta ordem, em geral subconsciente ou instintiva, chega o homem à crença racional na existência de Deus. Que é racional, já o vimos, não esqueçamos porém que é simples crença, pois parte de princípios naturais, instintivos, mas dialecticamente contestáveis.

Organizado, como é, o espírito do homem, não há demonstrações senão a científica, isto é, a que se baseia ou na observação, ou na experimentação, ou no cálculo, ou em qualquer combinação destas três coisas. Ora, ainda admitindo que o conceito de causa e efeito seja induzível da observação (o que é contestável e, de facto, tem sido contestado), o que é certo é que o que chamamos universo em seu «conjunto» não é susceptível de observação, de experimentação ou de cálculo, pois não temos sentido algum com que o abranjamos, nem sabemos, portanto, o que em esse «conjunto» (e já conjunto é hipótese) o universo seja.



A existência de Deus é, pois, indemonstrável, mas é um acto de fé racional, natural portanto – inevitável até – em qualquer homem no uso da sua plena razão.

E tanto assim é que o ateísmo anda sempre ligado a duas qualidades mentais negativas – a incapacidade de pensamento abstracto e a deficiência de imaginação racional. Por isso, nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu.

(In António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume, 1982, pp. 211-212).

terça-feira, 5 de agosto de 2025

A instituição universitária só consegue não ser uma instituição caduca por ser uma instituição vazia

 Escrito por Orlando Vitorino


Navio-Sagres

Gigante Adamastor

«Onde quer que se coloque o início da nossa decadência - da decadência resultante do formidável esforço com que realizámos as descobertas e as conquistas -, aí se deve colocar o início da grande ruptura de equilíbrio que se deu na vida nacional. Com a dispersão por todo o mundo e a morte em tantos combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso povo foi a pouco e pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, numa sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço. É um dos casos mais visíveis da criação de uma predominância das forças conservadoras. Com isto, visto à luz do que se explicou, queda revelado o porquê da nossa decadência.

Todos os fenómenos se seguiram (...) como o seguimento fatal da supertradicionalização. O que restava de progressivo desnacionalizou-se depressa. Cavou-se um abismo entre esses e a maioria do país. Em uns e outros, o nível intelectual, o nível cultural e o nível da vontade prática e útil foi baixando. Um ou outro homem de maior destaque surgia e desaparecia e a sua obra, quando não morria com ele, morria pouco depois, pois não havia coesão social, por onde se propagasse, nem interesse intelectual, por onde, ao menos, se mantivesse. A Restauração, livrando-nos da maior vergonha externa, não nos livrou, nem trouxe quem nos livrasse, da vergonha interna paralela. Ficámos independentes como país e dependentes como indivíduos. Tornámos a ser portugueses de nacionalidade, mas nunca mais tornámos a ser portugueses de mentalidade. Nem portugueses, nem nada.

Só da obra do Marquês de Pombal alguma coisa ficou, e isso não pela energia do homem, nem mesmo pelas suas grandes qualidades de organizador, mas pelo ponto de apoio comercial do país. No fim deste estudo se verá a que vem esta observação. O que Pombal criou, porém, sumiu-se com as invasões francesas. Depois delas a nossa desnacionalização teve o seu período abísmico: só o nome da nossa independência nos ficou.»

Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).

 

«Este Ministro [Sebastião José], apesar de tudo quanto disseram dele os seus panegiristas, não talhou um plano útil que honrasse a sua Nação e o seu século.»

Teófilo Braga (««História da Universidade de Coimbra»).

 

«Não dava tréguas à sua jesuitofobia o Conde de Oeiras. Já não havia um jesuíta em Portugal, exceptuados os que jaziam em vários antros, carregados de ferros (…). Habituara-se a matar. A intensidade do seu gozo era decerto maior que a intensidade da agonia dos seus mortos. Matava sempre. Tinha aquele vício, e diria como o feroz ditador romano: “Quando eu não tiver homens que esmagar está concluída a minha missão”».

Camilo Castelo Branco («Perfil do Marquês de Pombal»).






«O próprio Pombal é o Desejado? Não. Fez-se temer, não se fez amar. Cabeça de Bronze, coração de pedra. Moralmente ignóbil, alheio à graça, indiferente à dor. Inteligência vigorosa, material e mecânica, sem voo, sem asas. Um brutamontes, raciocinando claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heróica, vida profunda – humanidade em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do amor, a génese é divina. Criar é amar. Por isso a obra foi a terra. Pulverizou-se: só dura o que vive. Uma raiz esteia mais que um alicerce. Pombal em três dias, num deserto, quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com mortos e regou-se com sangue. Apodreceram melhor».

Guerra Junqueiro («Pátria»).

 

«O terramoto fez-se pois homem, e encarnou em Pombal, seu filho.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).

 

«O luxo progrediu, e passou por cima das pragmáticas de D. João V e de D. José I, até que o terramoto de 1755 subverteu a maior parte dos grandes patrimónios e reduziu os pequenos à pobreza. Em 1754, apesar das ruas estreitas e declivosas, havia em Lisboa 300 coches, 4 500 seges de particulares, mais de 400 de aluguer, e um grande número de liteiras, paquebotes e cadeiras de mão. O marquês de Pombal escreveu impudentemente que, entrando para o ministério em 1750, achara o Reino pobre e o erário vazio. No ano anterior ao terramoto, D. José I recebeu dos seus direitos quantia superior a 14 milhões de cruzados. Quando Portugal experimentou a suprema e vergonhosa miséria foi no ministério do conde de Oeiras. Em 1759, os soldados que guardavam a porta do conde de Oeiras pediam esmola a quem visitava o ministro; ao embaixador francês, conde de Merle, pediu publicamente esmola um sargento. Em 1762, o embaixador O’Dunne participava ao conde de Choiseul que os sargentos de algumas companhias e um capitão lhe tinham pedido esmola. Em 1759, o Rei, querendo ir para Mafra, e não tendo dinheiro, levantou do depósito público 28 contos de réis; e, no mesmo ano, querendo ir para VilaViçosa, levou o dinheiro apurado na venda dos móveis, pertenças dos jesuítas. (Quadro Elementar, t. VI, p. 144, 153, 171, e, t. VII, p. 150). Também Portugal, em 1756, recebera de Inglaterra uma esmola de 100 000 libras para remediar a catástrofe do terramoto (Quadro Elementar, tom. XVIII, pág. 361). E, quando a tropa portuguesa mendigava aos representantes da França em 1759, pagava o tesouro 36 000 cruzados por dous meses ao cantor Egipcielli, e, pelo mesmo tempo, pregava-se à porta da Alfândega um edital em que D. José I pedia ao País dinheiro emprestado. Que pelintragem! Que rei e que ministro!»

Camilo Castelo Branco («Perfil do Marquês de Pombal»).

 

«No século XVIII entraram em Portugal as doutrinas antiescolásticas que alegavam ser impossível conciliar a experimentação científica e a revelação cristã com o aristotelismo, ou seja, com a filosofia. As traduções e os comentários dos textos de Aristóteles foram expulsos do ensino público em consequência da reforma pombalina da Universidade de Coimbra, efectuada em 1772. O Marquês de Pombal, mais preocupado em definir a nova posição da Universidade perante a Igreja e o Estado, do que em dar nova orientação filosófica aos estudos superiores, não realizou obra que mereça estima dos pedagogistas.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«A 1.ª República foi, toda ela, dominada por dois professores universitários: Teófilo Braga (cuja obra de governante, sempre tão exaltada, consistiu substancialmente em aumentar os privilégios da Universidade) e Afonso Costa. A 2.ª República, a salazarista, foi, como ela própria se chegou a denominar, um "governo de professores". E na actual 3.ª República será deveras instrutivo observar como os professores universitários nela se vão infiltrando.»

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).

 

«A proliferação de estudos sociais e de estudos sociológicos, em todo o hemisfério designado por ocidental, com a multiplicação de gabinetes, centros, institutos, faculdades e outras escolas, acusa uma tendência doutrinária que me parece perigosa na medida em que tende a minimizar, ou a minorar, os estudos de psicologia. A sociologia sem psicologia conduz à inversão, e portanto à falsificação, dos métodos explicativos e racionais. Ora a UNESCO está impregnada deste sociologismo tão internacionalista como abstracto, contra o qual não podem deixar de opor-se todos os intelectuais religiosos e todos os intelectuais espiritualistas que meditem sobre o destino transcendente da Humanidade.»

Álvaro Ribeiro («O ideal civilizador dos Portugueses é imensamente superior (incomparavelmente superior) àquele que tem sido proclamado na ONU»).

 

«Ministro da Educação no tempo de Marcello Caetano, Veiga Simão foi o agente responsável pelo igualitarismo socialista no plano da organização do ensino. A ele, pois, se deve, sob o abstracto lema da “democratização do ensino”, a subordinação do sistema escolar às directrizes programáticas emanadas de organizações internacionais, em especial da UNESCO e da OCDE.»

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa»).








A instituição universitária só consegue não ser uma instituição caduca por ser uma instituição vazia

 

A política socialista, ininterruptamente prosseguida desde o veiga-simonismo, deixou pois ficar incólume o ensino superior, ou a universidade. Mas já ele havia ficado incólume durante todo o salazarismo. E, antes do salazarismo, durante o republicanismo. E, ainda antes, durante todo o liberalismo da monarquia. De modo que o nosso ensino superior é, substancialmente, o que dele fez o Marquês de Pombal, orientado pelo pensamento iluminista da época, cujos principais representantes – Verney, R. Sanches, Castro Sarmento – são ainda hoje enaltecidos, através dos panegíricos de A. Sérgio e semelhantes, por epígonos de menor saber que se denominam de progressistas. Ao mesmo tempo, ignora-se, ou faz-se ignorar, a linha mais sábia e mais original do pensamento pedagógico e didáctico português, aquela que, preconizando que a organização do ensino se deduz da filosofia que Pombal e os pombalinos de ontem e de hoje decretaram ser «abominável», culminou em Leonardo Coimbra e se prolonga até nossos dias nas obras de Delfim Santos, Santana Dionísio, José Marinho, Agostinho da Silva e Álvaro Ribeiro. Com tudo isto, tornou-se tão patente que a universidade actual é a universidade pombalina que se pôde chegar à anedota de nunca ter havido, em Coimbra, um professor universitário que não fosse parente de outro professor. Entretanto, impõe-se reconhecer que só uma vez a universidade foi, entre nós, objecto de uma contestação essencial e nacional com a consequente proposta da sua radical remodelação condicionada pela prévia extinção das Faculdades e Institutos existentes. Referimo-nos à contestação feita, em 1919, por Leonardo Coimbra, na Câmara dos Deputados da 1.ª República, contestação que, sempre com a hostilidade dos poderes políticos de todos os credos, nunca deixou de ser reafirmada e actualizada pelos discípulos e continuadores do grande pensador.

O que entre nós acontece, acontece em geral nos outros países, embora alguns se tenham conseguido defender melhor do que nós das inevitáveis consequências de um «ensino superior» que, nos últimos decénios, só consegue não ser uma instituição caduca por ser uma instituição vazia. Os professores, agarrados aos privilégios tradicionais do ofício, constituem-se cada vez mais num sindicato de classe e fazem dos corpos docentes universitários uma associação de socorros mútuos. Movidos pela má consciência do seu magistério vazio, confiam a perduração do ofício e a segurança do emprego à adopção de doutrinas cada vez mais acessíveis, mais fáceis e mais degradadas, de doutrinas que tudo vão concedendo à dispensa de preparação cultural, de estudo documental e de reflexão intelectual e que lisonjeiam, portanto, o atrevimento raciocinante da juventude mais apressada, mais oca e mais afirmativa, de doutrinas acessíveis às formas mais comuns da ignorância. As universidades acabaram, deste modo, por se fazerem instrumentos para a formação de comunistas ou criptocomunistas, meios para a divulgação do comunismo do qual já se disse, com irrefutáveis razões, que é «a única doutrina acessível a todos os estúpidos». Assim se criou aquilo que, numa expressão já corrente, se designa por «marxismo universitário», mistura manhosa de comunismo e criptocomunismo que facilitará a obtenção de emprego bem remunerado numa sociedade dominada por complexos socialistas, que satisfará para toda a vida as estreitas carências intelectuais dos alunos menos dotados, mas que será, para os outros, os mais dotados, reflexivos e sérios, um obstáculo ou um malefício de formação escolar a cuja remoção vão ter de dedicar depois os melhores anos da sua vida. Neste momento, alguns membros da oligarquia socialista que domina o nosso país, oferecem-nos já o doloroso espectáculo da luta que travam consigo próprios para removerem de si o marxismo que a universidade lhes instilou; um deles é, precisamente, o Ministro da Educação.

(Orlando Vitorino, Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1993, pp. 195-196).





quinta-feira, 31 de julho de 2025

A filosofia na formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português

 Escrito por Álvaro Ribeiro





«A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistinta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nela pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser amigos, dos que falam uma língua diferente, pois com isso mostram que têm uma alma diferente. Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diversas, em que somos iniciados à nascença, e cada um tem, no idioma seu e no que está nele, o seu toque próprio, a sua própria palavra de passe.

(...) A base da sociabilidade, e portanto da relação permanente entre os indivíduos, é a língua, e é a língua com tudo quanto traz em si e consigo que define e forma a Nação

Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).

 

«De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade! - "Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...".




(...) Certo é que alguns dizem que os homens superiores nunca podem falhar; que o que eles realizaram é precisamente o que eles tinham a realizar. Perante a obra de Leonardo Coimbra (como perante a de Antero de Quental) tal teoria afigura-se-nos radicalmente irreflectida. De facto, os homens superiores podem falhar; e falham quase sempre. Em regra, o que eles realizam fica desmedidamente aquém do que lhes era possível. Ora, desde que um desses homens tem a consciência de que as suas melhores virtualidades foram contrariadas e esmagadas pelo que lhes é exterior, natural é que no seu espírito ecluda qualquer forma cancerosa de "desforra": nuns, essa "desforra" é uma simples abominação surda seguida do afastamento; noutros é a reacção colérica conducente à própria perda; noutros é o silêncio seguido de um desaparecimento enigmático, etc. Em Leonardo Coimbra foi a mordacidade implacável. Que é, porém, a mordacidade senão uma reacção ofensiva dos ofendidos? E quem sabe se, sem a intervenção fortuita e trágica do desastre, o seu fim não seria mais nitidamente uma acusação contra o meio?».

Santana Dionísio («Leonardo Coimbra»).

 

«Quem alguma vez ouviu José Marinho interpretar uma frase de Jesus, extraída dos Evangelhos, ou explicar um dos mais belos poemas da língua portuguesa, jamais esqueceu a maravilhosa mestria de quem facilmente abre, desenvolve ou desenrola os textos que foram escritos para transmitir só aos iniciados a verdade das doutrinas sagradas. Transitando do significado exotérico para o sentido esotérico, já não é o professor quem fala, mas talvez o sacerdote inspirado. Desta observação se infere a função que José Marinho pessoalmente atribui à filosofia, deslocando-a para a escolástica, segundo a honrosa tradição medieval.

É, para seus discípulos, evidente que a vocação espiritual de José Marinho se exprime no apelo de transcender a escolástica, a filosofia, o pensamento situado, na inquietação de alcançar a ideia pura. Enquanto outros pensadores, seus contemporâneos, opondo barreiras ou diques ao positivismo invasor – que ameaça anular amanhã as últimas características da cultura portuguesa, e até o idioma nacional, – iam escrevendo ensaios escolásticos sobre as relações da filosofia com a religião, com a pedagogia, com a política, com a literatura, etc., José Marinho, elaborava em segredo a sua obra-prima, que haveria de ser intitulada Teoria do Ser e da Verdade. Publicou-a em 1961, com plena consciência de que praticava uma "intempestiva ousadia" numa sociedade adversa aos livros de pensamento puro.



Traduzida em francês, inglês ou alemão, esta obra seria a demonstração perfeita da superioridade da filosofia portuguesa sobre todas as suas rivais estrangeiras; ela permanece ignorada e esquecida aquém e além fronteiras, por culpa de todos nós, que não sabemos cultivar nem aproveitar as verdadeiras fontes das nossas riquezas espirituais. Síntese poderosa de todas as teses enunciadas na filosofia contemporânea, ela é além disso verificada por uma dinâmica intenção mística. Ela realiza, com a superação da filosofia, a transcensão infinita que ao homem como tal é possível falar, dizer ou escrever».

Álvaro Ribeiro («Homenagem a José Marinho»).



A filosofia na formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português 


De lustro para lustro, ao fim de cinco anos, após a duração de um curso, volta-se a falar em nova reforma, em dar outra forma, ao articulado jurídico de estruturas escolares que parecem já caducas, inoperantes ou improdutivas. Tal resulta de olhar apenas para o que no mundo é efémero, transferível ou relativo, em vez de prestar atenção ao que a experiência tem demonstrado ser constante e improgressivo, tanto no educador como no educando. Quantas vezes se procura imitar o melhor modelo estrangeiro, tantas vezes se esquece o propósito essencial da formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português.

Tal não acontece, porém, em outros povos, e em outros estados, os quais não só cultivam ciosamente as filosofias que criaram ou que importaram, mas também as difundem por livros de apologética adequados à propagação de ideologias propícias ao domínio hegemónico sobre o pensamento estrangeiro. Ocioso será lembrar os exemplos históricos de indução falaciosa na construção de sistemas universais, porque tais factos de intercâmbio cultural demonstraram uma lição que se impõe à memória dos bons entendedores. A subordinação da política à filosofia, implícita ou explícita nos textos jurídicos, vai-se tornando evidente a quem sabe ler com atenção as mais recentes páginas da História, sem confundir as constantes com as variantes de acontecimentos progressivos para um fim remoto ou ignoto.






Durante séculos áureos da Nação Portuguesa, em que se verificou a hegemonia universitária da Escolástica, foi a filosofia predominantemente cultivada em latim e intimamente associada à religião. A disciplina promotora da liberdade de pensamento, enviada em sua forma aristotélico-jesuítica, esteve associada à disciplina seguradora da unidade da fé. Depois de 1772, instaurados o iluminismo liberalista e o sociologismo positivista, haveria o vulgo ignorante, mas bem falante de considerar como anacrónico, retrógrado, ou reaccionário o ensino da filosofia.

Ao longo do século XIX desenvolveu-se contra a Escolástica, não uma crítica minuciosa e certeira, mas uma injusta polémica, tendente a dissolver a relação perene entre a filosofia e a religião. Exaltada foi a liberdade de pensamento, mas tal liberdade deveria ficar subordinada ao determinismo da ciência, formando-se à margem deste círculo vicioso um campo propício às variantes da opinião. Alguns plumitivos chegaram até a doutrinar sobre os conflitos havidos entre a ciência e a religião, encobrindo numa expressão caracterizada pela impropriedade dos termos, intenções precursoras de agitação política e revolução social.

Eliminar a filosofia dos quadros do ensino público foi a aspiração confessada ou inconfessada de muitos reformadores políticos, mas a tal propósito obstavam não só os hábitos didácticos dos professores fiéis à nossa tradição escolástica, mas também o prestígio de que a filosofia gozava nas nações estrangeiras e nos congressos internacionais. Adentro das nossas fronteiras, a filosofia ia sendo também atacada pela licenciosidade dos literatos e parlamentares românticos; mas os escritores realistas, mais prudentes ou mais inteligentes, admitiram uma filosofia esboçada para complemento da enciclopédia científica, imitando o exemplo das celebridades estrangeiras. Ninguém elevou a voz para demonstrar que a exclusão da filosofia escolástica iria dificultar a autêntica e metódica investigação histórica do pensamento artístico, político e religioso do povo português; seria o factor mais profundo da adulteração da fisionomia espiritual da Pátria; aceleraria a dissolução da língua portuguesa no jornalismo escrito e falado para melhor aceitação das expressões de origem internacional.

A palavra «filosofia» permaneceu a designar uma das últimas disciplinas do curso dos liceus, mas tal disciplina, periodicamente reformada nos seus programas ou ministrada por livros estrangeiros, reproduz ainda hoje um método incompatível com uma didáctica vivente, do qual resulta a demissão da inteligência em que se propõe transitar para uma escola universitária. Seria inútil repetir ou resumir as críticas feitas por especialistas autorizados. Nos serviços públicos, desde o Curso Superior de Letras até à última reforma das Faculdades de Letras, nunca houve a intenção de formar filósofos entre os estudantes que para tal demonstrassem vocação ou aptidão, (a exemplo do que se praticou outrora quanto às carreiras eclesiásticas), porque sempre os legisladores atribuíram prioridade às disciplinas de história e à ordenação histórica dos tópicos dos programas, em detrimento das actividades especulativas que se reflectem no julgar, no conceber, no meditar, e que manifestam sua fecundidade pela elaboração de livros originais.




(...) Muitos processos há de excluir a filosofia, ou de fazer passar por filosofia o que é a sua contradição e contrafacção; maior é, porém, o número de artifícios de estilo para significar desdém ou aversão pelos filósofos que não se conformam com o destino injusto do anonimato. Desde o cumprimento insincero, e portanto irónico, mediante palavras lisonjeiras, até às práticas de ofensa, difamação e desonra que os jornais e as revistas acolhem para divertimento dos seus leitores, consolida-se aquela opugnação vulgar ou pública segundo a qual o qualificativo de filósofo é mais ou menos ridículo e, portanto, mais próprio para a comédia do que para a tragédia. Morrem os filósofos nas condições que a História regista para que o castigo social não deixe de recair sobre quantos se dedicam a uma forma de pensamento livre, independente de qualquer ideologia sectária ou partidária, motivados apenas pelo excelso amor da verdade.

(Álvaro Ribeiro, in «Homenagem a José Marinho»).