domingo, 18 de dezembro de 2022

Cinco lições espanholas de filosofia universal

Escrito por Álvaro Ribeiro








«Como a polémica de Bergson, apesar de visar certas teses erróneas, incidia de preferência sobre a linguagem, entenderam alguns intérpretes que a filosofia da intuição deveria ser uma filosofia do inefável. Nada mais erróneo a respeito de um pensador que combateu o agnosticismo germânico figurado na incognoscível coisa-em-si (Ding an sich). Afirmando a possibilidade e a realidade da intuição intelectual, que Kant havia negado na Crítica da Razão Pura, Bergson admite a formação e a comunicação da ciência por intermédio das palavras, as quais traduzem e dizem o que as sensações, as imagens e as ideias parecem recusar ao entendimento humano.

Bergson inclina-se muito mais para o modelo dos filósofos britânicos, cujos ensaios podem ser facilmente entendidos por todas as pessoas medianamente cultas, do que para os filósofos germânicos, os quais preferem redigir os seus trabalhos dentro da nomenclatura universitária, com os termos científicos ou as alusões eruditas, que estreitam o círculo dos raros entendedores, e, ainda mais, com os neologismos formados adrede ou ad hoc, para que a invenção de expressões já de si obscuras dê ao leitor incauto a ilusão da originalidade de resolver um problema que a humanidade sempre considerou também obscuro. Compare-se, por exemplo, no limitado campo da gnosiologia, os luminosos ensaios de Locke, Berkeley e Hume, redigidos como que em estilo coloquial, com a obscura, confusa e prolixa linguagem do livro alemão que os reflecte e compendia, a celebrada Crítica da Razão Pura de Kant. Este processo esotérico, aristocrático e tecnocrático de redigir as obras de filosofia continuou a ser o modo característico dos alemães, de Hegel a Heidegger.»

Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).




«A concepção aristotélica do ser como énergeia é a que domina toda a Idade Média latina que, traduzindo o termo grego por actualitas e atribuindo a actualidade antes de mais nada a Deus, acentua o facto de que o ser é presença efectiva, mas ao mesmo tempo também capacidade de fundação, causalidade. Atribuir a causalidade ao ser significa, porém, colocá-lo entre os entes, pois concebe-se como o que possui, de maneira tão constitutiva, a característica da presença que a pode conferir aos outros seres. Na prova ontológica, Deus é demonstrado mediante o facto de a sua própria essência, enquanto perfeita, implicar a existência; mas a existência é justamente a presença efectiva e esta presença total alude também à ideia de eternidade de Deus.

Um primeiro marco decisivo de todo este processo é Descartes, que extrai as consequências implícitas na concepção grega do ser como Ideia (Platão) e como enérgeia (Aristóteles). Se só aquilo que está estavelmente definido numa forma (ideia, isto é, visibilidade: o termo grego ideia tem a mesma raiz do verbo ver) e que está efectivamente presente (actualidade) é verdadeiro, o ser verdadeiro tem como característica fundamental o facto de dar-se como certo: a característica constitutiva do ser é a certeza, a característica peremptória daquilo que é indubitável. Em Descartes, é real (é ente) o que é certo (aquilo de que temos uma ideia clara e distinta). Mas, desta maneira, o que constitui a realidade da coisa, o seu ser, é precisamente a certeza indubitável que o sujeito dela tem e que pode adquirir com a aplicação rigorosa do método.

(...) A redução cartesiana do ser verdadeiro (e do verdadeiro ser) à certeza do sujeito não é senão por parte do eu, e tem o carácter de uma tomada de posse: a redução do ser à certeza é, por último, a redução do ser à vontade do sujeito. Os grandes sistemas metafísicos do século XIX, os sistemas de Fichte, de Schelling e, sobretudo, de Hegel, não seriam concebíveis sem este sujeito animado pela vontade de reduzir tudo a si mesmo; a própria forma do “sistema” filosófico, como redução do real a um único princípio, só pode surgir nessa época do eu concebido como vontade de redução da totalidade do ente a si mesmo. A Antiguidade e a Idade Média não nos oferecem sistemas nesse sentido: a Idade Média conhece só as summae, que são algo de completamente diferente, já que nelas falta a redução rigorosa do real à unidade, redução que só é possível ao manifestar-se como vontade.

É esta, a largos traços, a história que está na base da concepção nietzscheana do ser como vontade de poder ou vontade de vontade. Esta história, como já dissemos, não é só ou principalmente a história do desenvolvimento de certas opiniões de filósofos ou a história da constituição de certa mentalidade comum; é, em primeiro lugar, a história de certos modos de desenvolvimento e de ocultamento do próprio ser

Gianni Vattimo («Introdução a Heidegger»).

 




«A história é (...) feita de progressões e regressões. Porque raros são os povos que conseguem erguer-se de nações a pátrias, de entidades naturais a entidades espirituais, a maior parte fixando ou cousificando a sua existência nos interesses mais ou menos imediatos que são o conteúdo das repúblicas; porque, noutro sentido, a resistência da natureza passiva e dos interesses instalados acaba por, no decorrer do tempo, enfraquecer os povos e parar o movimento criador das entidades espirituais que origina e sustenta as pátrias, os períodos de regressão são, na história, mais frequentes e duradouros do que os períodos de progressão. Contra o fanatismo do progresso infinito e a generalizada convicção dogmática de que esse progresso é o conteúdo do decorrer infinito do tempo, contra a insustentável mitologia de que a história começou no “homem das cavernas” e acabará por fazer da Terra o paraíso da abundância e da imortalidade, contra o generalizado ensino das escolas e sua mundial divulgação de que o homem de hoje é superior ao de ontem, não são raros os autênticos pensadores que assinalam as provas e os argumentos que invalidam tais ilusórias e fanáticas convicções. Assinalam como o progresso infinito é um absurdo insustentável; como “o homem das cavernas” e as "sociedades primitivas" são imagens forjadas pelos historiadores que não se cansam de desenterrar os seus vestígios, na incapacidade de conhecerem os sinais das desaparecidas civilizações deles contemporâneas e de que eles não são mais do que vestígios de suas degenerescências ou existências marginais; como essa imagem da falacciosa historiografia inspirou e sustentou as recentes doutrinas evolucionistas que vão desde as formas naturais até às sociedades e mentalidades humanas; como a obsessão do progresso infinito acaba na idiotia de que são exemplo afirmações de que “os oceanos virão a ser saborosas limonadas” e “a inteligência média dos homens virá a ser superior às de Aristóteles ou Goethe!”; como é evidenciável que a capacidade intelectual de um grego representativo na grande época criadora dos gregos é superior à de um europeu representativo do nosso tempo.




Compreende-se assim que Leonardo tenha admitido que as ditas “sociedades primitivas” hoje existentes em África não sejam senão os restos de uma longa e irreversível degenerescência. Como se compreende que Hegel tenha excluído da sua Filosofia da História Universal essas sociedades por estarem fora da história.

Na fenomenologia do mal, a degenerescência tem, pois, mais amplitude do que o sofrimento, embora “toda a criatura gema”. Na degenerescência, a consciência diminui-se e esvai-se; no sofrimento, a consciência é a mesma origem dele. Se não se pode moralmente negar a existência do mal, pode metafisicamente negar-se o mal em sua realidade ou essência? E, para esta negação, não temos de nos interrogar se o mal tem realidade essencial, aquela realidade a que Leonardo chamava irredutível porque faz que o que é não possa deixar de ser?»

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).











Cinco lições espanholas de filosofia universal


Os intelectuais portugueses que observaram a evolução da cultura espanhola no tempo em que se publicou a revista Cruz y Raya habituaram-se a ver no nome de Xavier Zubiri a respeitável esperança de uma nova transformação da filosofia contemporânea. Depois de publicado o primeiro livro em 1944, Xavier Zubiri manteve-se em silêncio até que, em 1963, confirmou seriamente os juízos mais favoráveis dos seus discípulos e admiradores. Julián Marías procedeu com gratidão ao dedicar-lhe algumas páginas judicativas e interpretativas num dos seus ensaios mais célebres. 

Causará, talvez, estranheza a muitos leitores o afirmar-se que o maior filósofo espanhol do nosso tempo esteja fora da Universidade a desenvolver o seu magistério superior. Ao historiador de cultura, pelo contrário, o caso de Xavier Zubiri aparece como mais um para registar na lista aberta das injustiças sociais. Não interessa agora proceder a averiguações subtis para destrinçar os porquês de um facto que pertence à biografia romanceada de um homem que atingiu já os 70 anos de idade na plenitude gloriosa de todas as suas faculdades mentais.

O livro de 1944, Naturaleza, Historia, Dios, em sua ordenação sistemática de notas, artigos e ensaios, teve notável influência em muitos leitores moços pela renovação de propositura filosófica e teológica de vários temas discutíveis. O tratado de 1963 Sobre la Esencia é constituído pela discussão austera e erudita da primeira categoria em torno da qual não cessa de voltear o pensamento filosófico, nomeadamente de Aristóteles a Husserl. Quanto às Cinco Lecciones de Filosofia, publicadas ultimamente, poderá dizer-se que elas constituem o modelo nobre da exposição adequada a um auditório selecto que requer um saber desinteressado de intenções utilitárias.




Zubiri vai expondo aos seus ouvintes o ideal ou o conceito de filosofia segundo Aristóteles, Kant, Comte, Bergson, para rematar o curso com uma lição em que abrange Husserl, Dilthey e Heidegger, escritores muito lidos na última época de germanização da cultura em Espanha. Já no livro Naturaleza, Historia, Dios, havia Zubiri incluído um ensaio sobre o ideal da filosofia em Aristóteles. Notaremos ademais que a interpretação zubirina do pensamento de Aristóteles é fiel às linhas gerais da filosofia espanhola, secularmente disciplinada pela escolástica romana.

A autoridade de Aristóteles, como mestre de filosofia perene, é perfeitamente compatível com a mais nova investigação da verdade, como uma vez mais se prova ao obter a obediência de um pensador tão livre e de informação cultural tão actualizada como Xavier Zubiri. Deste ponto de concordância partiremos em direcções divergentes, sem a mínima veleidade crítica de opor quaisquer objecções ao autor de Sobre la Esencia. Sendo a filosofia espanhola e a filosofia portuguesa constituídas por diferentes interpretações do aristotelismo, ao qual referem a necessidade da ciência e a liberdade da arte, o problema dissolve-se por subsunção na ortodoxia religiosa.

Reparamos talvez, sem atinar com a explicação justificativa, na falta de uma lição sobre Descartes em tão breve curso acerca do conceito de filosofia. Na história da cultura ibérica a oposição ao cartesianismo forma um capítulo de alto significado, mas a atitude de outrora não obriga a manter agora a mesma suspeita perante a heresia. Se não for devidamente informado de que a obra de Descartes precede, estimula e prepara o advento de novos conceitos de filosofia como os de Kant, Comte e Bergson, o estudante não poderá entender perfeitamente o modo pelo qual as obras de Husserl, Dilthey e Heidegger só adquirem validade por quanto ao contradizerem o cartesianismo reconduzem o pensamento filosófico à via real de regresso a Aristóteles.

Das cinco lições escritas com diáfano rigor didáctico preferimos aquela que Zubiri dedicou a Augusto Comte, significando especial simpatia pelo positivismo, observável, aliás, em outros movimentos actuais da cultura espanhola que reage contra a intoxicação germanista. Zubiri vê o positivismo como um sistema de opinião pública, e ao dizê-lo caracteriza brevemente a situação espiritual da sociedade contemporânea. A filosofia passou à história. Já não tem existência actual, e a humanidade, mais preocupada em transformar o Mundo do que em interpretá-lo, procede positivamente ao relegar para o grupo das ciências históricas o estudo daquela arcaica actividade mental que, por teológica ou metafísica, só pode merecer o desdém atribuído às ciências proibidas ou ocultas.

(In Diário de Notícias, ano 104, n.º 36 715, Lisboa, 23 de Maio de 1968, p. 17).








Nenhum comentário:

Postar um comentário