Escrito por Álvaro Ribeiro
«Como a polémica de Bergson, apesar de visar
certas teses erróneas, incidia de preferência sobre a linguagem, entenderam alguns
intérpretes que a filosofia da intuição
deveria ser uma filosofia do inefável.
Nada mais erróneo a respeito de um pensador que combateu o agnosticismo
germânico figurado na incognoscível coisa-em-si (Ding an sich). Afirmando a possibilidade e a realidade da intuição intelectual, que Kant havia
negado na Crítica da Razão Pura,
Bergson admite a formação e a comunicação da ciência por intermédio das
palavras, as quais traduzem e dizem o que as sensações, as imagens e as ideias
parecem recusar ao entendimento humano.
Bergson inclina-se muito mais para o modelo dos filósofos britânicos, cujos ensaios podem ser facilmente entendidos por todas as pessoas medianamente cultas, do que para os filósofos germânicos, os quais preferem redigir os seus trabalhos dentro da nomenclatura universitária, com os termos científicos ou as alusões eruditas, que estreitam o círculo dos raros entendedores, e, ainda mais, com os neologismos formados adrede ou ad hoc, para que a invenção de expressões já de si obscuras dê ao leitor incauto a ilusão da originalidade de resolver um problema que a humanidade sempre considerou também obscuro. Compare-se, por exemplo, no limitado campo da gnosiologia, os luminosos ensaios de Locke, Berkeley e Hume, redigidos como que em estilo coloquial, com a obscura, confusa e prolixa linguagem do livro alemão que os reflecte e compendia, a celebrada Crítica da Razão Pura de Kant. Este processo esotérico, aristocrático e tecnocrático de redigir as obras de filosofia continuou a ser o modo característico dos alemães, de Hegel a Heidegger.»
Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).
«A concepção aristotélica do ser como énergeia é a que domina toda a Idade
Média latina que, traduzindo o termo grego por actualitas e atribuindo a actualidade antes de mais nada a Deus,
acentua o facto de que o ser é presença efectiva, mas ao mesmo tempo também
capacidade de fundação, causalidade. Atribuir a causalidade ao ser significa,
porém, colocá-lo entre os entes, pois concebe-se como o que possui, de maneira
tão constitutiva, a característica da presença que a pode conferir aos outros
seres. Na prova ontológica, Deus é demonstrado mediante o facto de a sua própria
essência, enquanto perfeita, implicar a existência; mas a existência é justamente
a presença efectiva e esta presença total alude também à ideia de eternidade de
Deus.
Um primeiro marco decisivo de todo este
processo é Descartes, que extrai as consequências implícitas na concepção grega
do ser como Ideia (Platão) e como enérgeia (Aristóteles). Se só aquilo que
está estavelmente definido numa forma (ideia, isto é, visibilidade: o termo
grego ideia tem a mesma raiz do verbo
ver) e que está efectivamente
presente (actualidade) é verdadeiro, o ser verdadeiro tem como característica
fundamental o facto de dar-se como certo:
a característica constitutiva do ser é a certeza, a característica peremptória
daquilo que é indubitável. Em Descartes, é real (é ente) o que é certo (aquilo
de que temos uma ideia clara e distinta). Mas, desta maneira, o que constitui a
realidade da coisa, o seu ser, é precisamente a certeza indubitável que o sujeito dela tem e que pode adquirir com
a aplicação rigorosa do método.
(...) A redução cartesiana do ser verdadeiro (e do verdadeiro ser) à certeza do sujeito não é senão por parte do eu, e tem o carácter de uma tomada de posse: a redução do ser à certeza é, por último, a redução do ser à vontade do sujeito. Os grandes sistemas
metafísicos do século XIX, os sistemas de Fichte, de Schelling e, sobretudo,
de Hegel, não seriam concebíveis sem este sujeito animado pela vontade de
reduzir tudo a si mesmo; a própria forma do “sistema” filosófico, como redução do
real a um único princípio, só pode surgir nessa época do eu concebido como
vontade de redução da totalidade do ente a si mesmo. A Antiguidade e a Idade
Média não nos oferecem sistemas nesse sentido: a Idade Média conhece só as summae, que são algo de completamente
diferente, já que nelas falta a redução rigorosa do real à unidade, redução que
só é possível ao manifestar-se como vontade.
É esta, a largos traços, a história que está na base da concepção nietzscheana do ser como vontade de poder ou vontade de vontade. Esta história, como já dissemos, não é só ou principalmente a história do desenvolvimento de certas opiniões de filósofos ou a história da constituição de certa mentalidade comum; é, em primeiro lugar, a história de certos modos de desenvolvimento e de ocultamento do próprio ser.»
Gianni Vattimo («Introdução a Heidegger»).
«A
história é (...) feita de progressões e regressões. Porque raros são os povos
que conseguem erguer-se de nações a pátrias, de entidades naturais a entidades
espirituais, a maior parte fixando ou cousificando a sua existência nos
interesses mais ou menos imediatos que são o conteúdo das repúblicas; porque,
noutro sentido, a resistência da natureza passiva e dos interesses instalados
acaba por, no decorrer do tempo, enfraquecer os povos e parar o movimento
criador das entidades espirituais que origina e sustenta as pátrias, os
períodos de regressão são, na história, mais frequentes e duradouros do que os
períodos de progressão. Contra o fanatismo do progresso infinito e a generalizada convicção
dogmática de que esse progresso é o conteúdo do decorrer infinito do tempo,
contra a insustentável mitologia de que a história começou no “homem das
cavernas” e acabará por fazer da Terra o paraíso da abundância e da imortalidade,
contra o generalizado ensino das escolas e sua mundial divulgação de que o
homem de hoje é superior ao de ontem, não são raros os autênticos pensadores
que assinalam as provas e os argumentos que invalidam tais ilusórias e
fanáticas convicções. Assinalam como o progresso infinito é um absurdo
insustentável; como “o homem das cavernas” e as "sociedades primitivas" são imagens forjadas pelos historiadores
que não se cansam de desenterrar os seus vestígios, na incapacidade de
conhecerem os sinais das desaparecidas civilizações deles contemporâneas e de
que eles não são mais do que vestígios de suas degenerescências ou existências
marginais; como essa imagem da falacciosa historiografia inspirou e sustentou
as recentes doutrinas evolucionistas que vão desde as formas naturais até às
sociedades e mentalidades humanas; como a obsessão do progresso infinito acaba
na idiotia de que são exemplo afirmações de que “os oceanos virão a ser
saborosas limonadas” e “a inteligência média dos homens virá a ser superior às
de Aristóteles ou Goethe!”; como é evidenciável que a capacidade intelectual de
um grego representativo na grande época criadora dos gregos é superior à de um
europeu representativo do nosso tempo.
Compreende-se assim que Leonardo tenha
admitido que as ditas “sociedades primitivas” hoje existentes em África não
sejam senão os restos de uma longa e irreversível degenerescência. Como se
compreende que Hegel tenha excluído da sua Filosofia
da História Universal essas sociedades por estarem fora da história.
Na fenomenologia do mal, a degenerescência tem, pois, mais amplitude do que o sofrimento, embora “toda a criatura gema”. Na degenerescência, a consciência diminui-se e esvai-se; no sofrimento, a consciência é a mesma origem dele. Se não se pode moralmente negar a existência do mal, pode metafisicamente negar-se o mal em sua realidade ou essência? E, para esta negação, não temos de nos interrogar se o mal tem realidade essencial, aquela realidade a que Leonardo chamava irredutível porque faz que o que é não possa deixar de ser?»
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
Cinco lições espanholas de filosofia universal
Os
intelectuais portugueses que observaram a evolução da cultura espanhola no
tempo em que se publicou a revista Cruz y Raya habituaram-se a ver no nome de
Xavier Zubiri a respeitável esperança de uma nova transformação da filosofia
contemporânea. Depois de publicado o primeiro livro em 1944, Xavier Zubiri
manteve-se em silêncio até que, em 1963, confirmou seriamente os juízos mais
favoráveis dos seus discípulos e admiradores. Julián Marías procedeu com gratidão
ao dedicar-lhe algumas páginas judicativas e interpretativas num dos seus
ensaios mais célebres.
Causará, talvez, estranheza a muitos leitores
o afirmar-se que o maior filósofo espanhol do nosso tempo esteja fora da
Universidade a desenvolver o seu magistério superior. Ao historiador de
cultura, pelo contrário, o caso de Xavier Zubiri aparece como mais um para
registar na lista aberta das injustiças sociais. Não interessa agora proceder a
averiguações subtis para destrinçar os porquês de um facto que pertence à
biografia romanceada de um homem que atingiu já os 70 anos de idade na
plenitude gloriosa de todas as suas faculdades mentais.
O livro
de 1944, Naturaleza, Historia, Dios,
em sua ordenação sistemática de notas, artigos e ensaios, teve notável
influência em muitos leitores moços pela renovação de propositura filosófica e
teológica de vários temas discutíveis. O tratado de 1963 Sobre la Esencia é constituído pela discussão austera e erudita da
primeira categoria em torno da qual não cessa de voltear o pensamento
filosófico, nomeadamente de Aristóteles a Husserl. Quanto às Cinco Lecciones de Filosofia, publicadas
ultimamente, poderá dizer-se que elas constituem o modelo nobre da exposição
adequada a um auditório selecto que requer um saber desinteressado de
intenções utilitárias.
Zubiri vai expondo aos seus ouvintes o
ideal ou o conceito de filosofia segundo Aristóteles, Kant, Comte, Bergson,
para rematar o curso com uma lição em que abrange Husserl, Dilthey e Heidegger,
escritores muito lidos na última época de germanização da cultura em Espanha. Já
no livro Naturaleza, Historia, Dios,
havia Zubiri incluído um ensaio sobre o ideal da filosofia em Aristóteles.
Notaremos ademais que a interpretação zubirina do pensamento de Aristóteles é
fiel às linhas gerais da filosofia espanhola, secularmente disciplinada pela
escolástica romana.
A
autoridade de Aristóteles, como mestre de filosofia perene, é perfeitamente
compatível com a mais nova investigação da verdade, como uma vez mais se prova
ao obter a obediência de um pensador tão livre e de informação cultural tão
actualizada como Xavier Zubiri. Deste ponto de concordância partiremos em
direcções divergentes, sem a mínima veleidade crítica de opor quaisquer
objecções ao autor de Sobre la Esencia.
Sendo a filosofia espanhola e a filosofia portuguesa constituídas por
diferentes interpretações do aristotelismo, ao qual referem a necessidade da
ciência e a liberdade da arte, o problema dissolve-se por subsunção na ortodoxia
religiosa.
Reparamos talvez, sem atinar com a
explicação justificativa, na falta de uma lição sobre Descartes em tão breve
curso acerca do conceito de filosofia. Na história da cultura ibérica a oposição
ao cartesianismo forma um capítulo de alto significado, mas a atitude de
outrora não obriga a manter agora a mesma suspeita perante a heresia. Se não
for devidamente informado de que a obra de Descartes precede, estimula e
prepara o advento de novos conceitos de filosofia como os de Kant, Comte e
Bergson, o estudante não poderá entender perfeitamente o modo pelo qual as obras
de Husserl, Dilthey e Heidegger só adquirem validade por quanto ao
contradizerem o cartesianismo reconduzem o pensamento filosófico à via real de
regresso a Aristóteles.
Das cinco lições escritas com diáfano rigor didáctico preferimos aquela que Zubiri dedicou a Augusto Comte, significando especial simpatia pelo positivismo, observável, aliás, em outros movimentos actuais da cultura espanhola que reage contra a intoxicação germanista. Zubiri vê o positivismo como um sistema de opinião pública, e ao dizê-lo caracteriza brevemente a situação espiritual da sociedade contemporânea. A filosofia passou à história. Já não tem existência actual, e a humanidade, mais preocupada em transformar o Mundo do que em interpretá-lo, procede positivamente ao relegar para o grupo das ciências históricas o estudo daquela arcaica actividade mental que, por teológica ou metafísica, só pode merecer o desdém atribuído às ciências proibidas ou ocultas.
(In Diário de Notícias, ano 104, n.º 36 715, Lisboa, 23 de Maio de 1968, p. 17).
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