Escrito por Gustave Le Bon
«A
disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada mais nada menos do que
uma questão de sobrevivência. Adoptar a moral socialista aniquilaria boa parte
da Humanidade e empobreceria grande parte do que restaria dela.
Tudo isto levanta uma questão importante que pretendo explicitar desde já. Ainda que ataque a soberba da razão por parte dos socialistas, o meu argumento não põe em causa a razão quando utilizada devidamente. Por “razão utilizada devidamente” entendo uma razão que admite as suas próprias limitações e que, através dos seus próprios meios, enfrenta as implicações do facto assombroso, descoberto pela economia e a biologia, de que a ordem gerada sem qualquer desígnio ultrapassa largamente os planos que os homens possam conceber conscientemente. Como poderia eu, ao fim e ao cabo, atacar a razão num livro em que argumento que o socialismo é factual e até mesmo logicamente insustentável? Nem sequer contesto que a razão possa, ainda que com prudência e humildade, de modo gradual, examinar, criticar e rejeitar instituições tradicionais e princípios morais. Este livro, como alguns dos meus estudos anteriores, visa contestar as normas tradicionais da razão orientadoras do socialismo que acredito encarnarem uma teoria ingénua e acrítica da racionalidade e uma metodologia obsoleta e não científica que noutro lugar denominei “racionalismo construtivista.”»
Frederico Hayek («Arrogância Fatal: O Erros do Socialismo»).
«(...) CM – Considera o socialismo como uma doutrina ainda com força ou já esvaziada?
O.V. – Trata-se de uma doutrina falida em todo o Mundo. Aliás, existe um pensador liberal [Frederico Hayek] que marcou a data do fim do apogeu do socialismo no ano de 1946.
O socialismo dominou, durante um século, o Governo de grande parte dos povos, mas em 1946 estava completamente falido. Fracassara no desenvolvimento económico e na cultura, mas continuava dominando o Estado. Então, para sobreviver, passou a rodear as suas medidas de governação socialista de processos liberais.
Foi com esta mistura de aparente socialismo mas efectivo liberalismo – mas não de liberalismo total, pois isso iria destruir a aparência socialista – que conseguiu e consegue ainda hoje, perdurar.
CM – De que forma o socialismo tem sido funesto para a cultura portuguesa?
O.V. – Existe uma cultura oficial socialista, composta pelas universidades, onde dominam as ideias socialistas, e pela Comunicação Social, quase toda estatizada ou dominada pelo Estado, segregando uma cultura autenticamente portuguesa.
Poderá dizer-se que os elementos mais conscientes da cultura nacional, que são os filósofos portugueses, vivem como exilados no seu próprio país.
CM – Poderá dar-nos um exemplo dessa forma de procedimento anticultural?
O.V. – Ainda há pouco tempo existiam vinte e seis mil inéditos de Fernando Pessoa “escondidos” numa arca, guardados por “dragões” universitários que só vão publicando, de vez em quando, aquilo que entendem.
Depois fazem-se edições do Fernando Pessoa com textos seleccionados ao sabor de determinada pessoa que transitou de fervoroso salazarista para fervoroso socialista, uma delas com um prefácio no qual se chega ao ridículo de dizer que Fernando Pessoa era um grande conhecedor de literatura, mas seria melhor conhecedor se fosse marxista...».
Entrevista
a Orlando Vitorino («O socialismo montou cerco a Portugal»).
«Visto que o essencial do exame é o fim próprio
para designar os alunos reprovados, quer dizer, aqueles que devem ser
submetidos a outra prova, formou-se a opinião pública de que essa experiência
administrativa não é mais do que graduado processo de eliminar os alunos
menos aptos para a escolaridade. Cumpre, portanto, verificar se os mais dóceis,
aqueles que atingiram o termo do curso, foram efectivamente os mais
inteligentes.
Depois os cursos complexos e longos, com maior número de disciplinas e portanto com maior duração, vão dificultando os serviços escolares. A mentalidade dominante na burocracia reflecte-se também na pedagogia. Tal como o burocrata meticuloso, capaz de dividir as fases e as estações de um processo, e de prever o andamento dos papéis, o pedagogo de gabinete vai imaginando o curso escolar nas linhas gerais do papel quadriculado. É o mesmo acto mental de repartir, a mesma mentalidade de repartição, que prepara obstáculos, dificuldades, humilhações. De reforma para reforma aumenta o número de disciplinas indispensáveis para o curso, porque úteis para a profissão, e por consequência aumenta a escolaridade, prolonga a menoridade. Alega-se o progresso do saber humano, que cada vez mais se divide em ramos especiosos, transformando-se em árvore frondosa, quer dizer sombria, e portanto sem luz. Estranho progresso esse que, em vez de simplificar a ciência e facilitar a técnica, aprisiona o homem nas trevas, e despoja-se do seu principal bem que é o tempo. O estudante terá que ser passivo e paciente, atingir a maioridade intelectual muito depois da maioridade civil, envelhecer até ao dia em que lhe for lícito exercer uma profissão, constituir família, servir a Pátria. Aquele progresso contraria e contradiz o ideal do homem livre.
Outrora não eram exigidos tantos
trabalhos de escolaridade a quem desejasse exercer as operações mentais que
caracterizam o pensamento do médico, do juiz ou do professor. Agora o
pensamento humano parece desenvolver-se com maior lentidão, mas as dificuldades
são artificiais, resultam de abusiva intercalação de objectos, de excessivo
número de ciências auxiliares, enfim, de positivista gnosiologia. A inteligência
humana, incapaz de se adaptar rapidamente à profissão, sai humilhada da prova
universitária. Aliás, o argumento do estudo comparativo da duração dos cursos
em vários países, muito utilizado pelos administradores do ensino, tem o
defeito de todos os argumentos estatísticos: – comparar números sem comparar
também as outras condições indispensáveis para um juízo capaz de integração num
raciocínio completo.
Em vez de satisfazer a aspiração do estudante, que deseja aprender logo no primeiro ano do curso a praticar a profissão escolhida, segundo o método explícito do adágio learning by doing, em vez de limitar a escolaridade obrigatória ao quadrívio fundamental da profissão superior, os administradores ordenam muitos estudos prévios, muitas propedêuticas e ciências auxiliares. A actividade espontânea do estudante, a sua escolha de meios e fins, o seu método de investigação, de especulação e de imaginação parecem reprimidos, contrariados e anulados pela uniformidade dos programas e dos regulamentos. Não se exortando o espírito de iniciativa, de invenção e de descoberta, não se concedendo a liberdade de orientar os estudos por uma vocação prévia ou por um ideal eleito, enfim, não se dando a cada estudante a possibilidade de delinear o seu curso, perde a sociedade que tão mal administra o ensino imensas possibilidades de variações úteis, fecundas e valiosas, tanto na teoria como na prática. Este vício do uniforme, que na escola pesa sobre as diferenças dos corpos e das almas, sem benefício, é com certeza o causador da incessante frustração do ensino público, confessada de reforma para reforma, e declarada pelo apelo aos técnicos especializados no estrangeiro.»
Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).
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«(...) D.M.– O sr. dr. falou, depois, no problema do ensino. A que níveis haverá que fazer mudanças?
O.V. – Toda a organização do ensino depende da organização do Ensino Superior, ou do estado do Ensino Superior.
Toda a organização do ensino é determinada e condicionada pela organização do Ensino Superior. Isto, desde os planos mais gerais do ensino até à sua própria execução.
Na execução isto é imediatamente visível, visto que são os alunos formados pela Universidade de que vão ser professores no Ensino Secundário.
A Universidade, sobretudo a Universidade Pombalina, aquela que é a Universidade estatizada há dois séculos, sempre tem exercido um poder quase absoluto, digamos, sobre sucessivos governos políticos em relação ao ensino. Basta dizer que há muitas dezenas de anos só houve um caso de um ministro da Educação que não era professor universitário.
A primeira alteração a fazer é a alteração de todo o Ensino Superior. Para isso é preciso extinguir, como recomendou Delfim Santos e como começou a pôr em prática Leonardo Coimbra, a actual Universidade.
Delfim Santos dizia mesmo que uma reforma na Universidade é mais do que insuficiente. O que é preciso é extinguir completamente a Universidade actual e sobre essa extinção, criar-se uma universidade nova.
D.M.– Em que linhas assentaria a Universidade nova?
O.V. – No aspecto programático, substancial, da sabedoria que se deve transmitir, as linhas dessa Universidade nova estão todas elaboradas pelos homens que já citei: Leonardo Coimbra e Delfim Santos.
Minuciosamente programadas, estão assentes numa teoria da educação que, a meu ver, é a mais notável teoria da educação que, na modernidade, foi elaborada e escrita: a que está exposta nos livros de Álvaro Ribeiro. Um livro sobre o Ensino Primário, outro sobre o Ensino Secundário e um outro sobre o Ensino Superior.»
Entrevista
a Orlando Vitorino («O socialismo não é o único caminho»).
«Escolaridade,
repetimos, não é sinónimo de educação. Até à época pombalina, o povo analfabeto
conservou e aperfeiçoou a língua portuguesa, cuja corrupção se observou só
depois de a imprensa divulgar os erros de quem não sabe escrever. O povo
manteve muito lúcidas as qualidades do seu instinto, da sua inteligência e da
sua intuição, porque estimuladas por essas fontes de cultura que hoje os
paleógrafos estudam no folclore. Afirmou um modo próprio de pensar as doutrinas
morais, políticas e religiosas, haurindo a melhor inspiração de um ideal transcendente.
Viveu heróico, activo e feliz, nos séculos em que não havia maiores exigências
de escolaridade.
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As escolas primárias são contemporâneas
da indústria, mas foram instituídas num tempo em que não havia ainda convenções
internacionais nem leis nacionais de protecção aos menores. Os rapazes entravam
aos dez anos a trabalhar nas lojas de comércio e nas oficinas fabris. Era então
indispensável que os futuros operários recebessem uma cultura geral na última,
ou na única, escola que poderiam frequentar, e além disso uma instrução de base
profissional, o que explica o predomínio da aritmética, da geometria e do desenho
nos programas oficiais daquelas escolas públicas. Importa, desde já, notar
quanto este ensino se adapta ao temperamento antipático do rapaz e ao carácter do
homem voluntarioso. Os artifícios do cálculo aritmético sugerem ao empregado de
escritório infinitas facilidades de operação comercial, muitas vezes
desmentidas na experiência de contacto com outros factores igualmente importantes
na vida económica, como as condições geográficas, etnográficas e políticas dos
povos. Se o comerciante contar apenas os números e pensar com entidades abstractas,
faltará a um dos seus compromissos que é o de avisar os economistas de que há
limites para os mercados, limites para a exportação, limites para a fabricação.
A indústria mal avisada pelos comerciantes tende para a laboração contínua,
porque lhe é fácil operar com matérias mortas, usar de processos violentos, acelerar
a repetição. O industrial considera só o feito, o facto, ou o fáctico, quer
dizer, o que existe por acidente e não por lei natural. A natureza produz na
variedade das espécies e das formas; mas a indústria, armazenando sem medida e
sem fim, é tida pelos positivistas uma fonte de riqueza, a verdadeira “seara
nova”.
Em obediência a tal positivismo, a
escola primária ensina o sistema métrico decimal para habilitar o operário a
trabalhar com a máquina mais simples que é a balança, o balouço ou o pêndulo.
Outras escolas hão-de ensinar a prática de máquinas mais complexas, sem
exigirem contudo a análise intelectual dos princípios da mecânica. O operário
pode ignorar as leis físicas, mas deve agradecer o auxílio da máquina que lhe
poupa esforço muscular e atenção mental. A mão deixou de medir; já não afeiçoa nem
aperfeiçoa o produto, como na arte e no artesanato; a polegada e o palmo
deixaram de ter aplicação. A manufactura existe, todavia, na agricultura. A mão
tem de encontrar limites nos ritmos próprios dos seres vivos, nas delicadas
metamorfoses das plantas, na instabilidade das condições meteorológicas. O
lavrador não pode contar só com o sistema decimal. As plantas não crescem
linearmente, desenvolvem-se por figuras admiráveis, florescem e frutificam
segundo fases predestinadas de cultura que não consentem permutação. Da
sementeira à colheita, cada tarefa tem o seu tempo, e nos intervalos o calendário
prescreve os dias de repouso, festança e alegria. Levadas para as aldeias, as
escolas primárias de finalidade comercial e industrial alteraram e adulteraram
uma mentalidade assente na sabedoria das tradições.
(...) No ensino primário não se passa, porém, da geografia natural para a geografia humana, ou para a etnografia; faltam, assim, as mínimas noções acerca das diferenças existentes entre raças, povos e nações, falta a preparação indispensável ao sério entendimento das primeiras lições de história pátria. Não se encontram os escolares suficientemente dotados de experiência humana que permita entender as motivações psicológicas dos acontecimentos sociais, numa idade em que a imaginação se nutre de contos, lendas e mitos. A história profana tem de ser explicada pela história sagrada. Na ilusória intenção de ministrar cultura geral ao estudante que vai fazer o seu último exame, a escola primária reduz a história à cronologia, a uma lista de datas, de antropónimos e de topónimos, que a criança memoriza como uma lenga-lenga entremeada de apreciações morais, políticas e religiosas. À custa de forçosos processos de repetição de palavras e frases, consegue o rapaz decorar o que ainda não pode imaginar, e sem desenvolvimento da imaginação não há, não pode haver, desenvolvimento da razão.»
Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).
«A surpresa inicial ao descobrir que pessoas inteligentes tendem a ser socialistas diminui quando nos apercebemos de que tais indivíduos são, obviamente, propensos a sobrestimar a inteligência e a supor que devemos todas as vantagens e oportunidades que oferece a nossa civilização a um propósito deliberado em vez do respeito por regras tradicionais. Presumem, igualmente, que conseguiremos, graças ao exercício da nossa razão, eliminar quaisquer aspectos indesejáveis ainda existentes graças a mais reflexões inteligentes, mais projectos apropriados e mais “coordenações racionais” dos nossos esforços. Isso alimenta uma disposição favorável em relação ao planeamento económico central e controlo que são o âmago de socialismo. Intelectuais exigirão, com certeza, explicações sobre tudo o que se espera deles e terão relutância em aceitar costumes pelo mero facto de vigorarem nas suas comunidades de nascimento, o que os levará a entrar em conflito com, ou pelo menos a depreciarem, quem aceita placidamente as normas de conduta prevalecentes. Acresce que esses intelectuais pretenderão, incompreensivelmente, seguir na senda da ciência e da razão e consequentemente – considerando o progresso extraordinário das ciências físicas nos últimos séculos, além de terem sido ensinados de que construtivismo e cientificismo são a razão de ser da ciência e da razão – terão dificuldade em acreditar que possa existir algum conhecimento útil que não derive da experimentação deliberada ou em aceitar a validade de outras tradições diversas da sua própria tradição de razão. Assim, um distinto historiador escreveu nesse sentido: “A tradição é quase por definição repreensível, algo a ridicularizar e lamentar” (Seton-Watson, 1983:1270).
“Por definição: Barry (1961, atrás citado) pretendia fazer a moral e a justiça imorais e injustas por ‘definição analítica’; aqui Seton-Watson tenta o mesmo ardil em relação à tradição, tornando-a, por definição, repreensível”...
Todas estas reacções são compreensíveis, mas
têm consequências. As consequências são particularmente perigosas – para a razão
e também para a moral – quando a opção recai sobre esta tradição convencional
da razão, em vez dos resultados reais da razão, levando os intelectuais a
ignorarem os limites teóricos da razão, a menosprezarem um mundo de informação
histórica e científica, a ignorarem as ciências biológicas e humanas, como a
economia, e a distorcerem a origem e funções das nossas normas morais
tradicionais.»
Frederico
Hayek («Arrogância Fatal: O Erros do Socialismo»).
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«As multidões apenas conhecem os sentimentos simples e extremos; as opiniões, ideias e crenças que lhes sejam sugeridas são aceites ou rejeitadas em globo e consideradas verdades ou erros absolutos, não admitindo meio-termo. Sucede sempre isto com as crenças determinadas pela sugestão, em vez de provindas do raciocínio. Todos nós sabemos quão intolerantes são as crenças religiosas e o despótico domínio que sobre nossas almas exercem.
A multidão é tão autoritária como intolerante, por isso que nunca estabelece a mais pequena dúvida sobre o que lhe parece verdade ou erro e porque possui também a noção nítida da sua força. O indivíduo admite contradição e discussão, o que a multidão nunca admite. Nas reuniões públicas, a mais ligeira contradição por parte de um orador é imediatamente acolhida com gritos, ou, melhor, uivos de furor e invectivas violentas, bem depressa seguidas de vias de facto e de expulsão, se o orador insistir um pouco. Sem a presença inquietadora dos agentes da autoridade, o contraditor seria mesmo frequentemente chacinado.
O
autoritarismo e a intolerância são gerais em todas as categorias de multidões,
mas apresentam graus muito diversos, reaparecendo também aqui a noção
fundamental da raça, dominadora de todos os sentimentos e de todos os
pensamentos dos homens. É, principalmente, nas multidões latinas que o autoritarismo
e a intolerância se têm desenvolvido em mais alto grau, chegando ao ponto de
haverem destruído completamente o sentimento da independência individual tão
poderoso nos anglo-saxões. As multidões latinas só são sensíveis à
independência colectiva da seita a que pertencem, e a característica desta independência é a necessidade de subjugarem imediata e violentamente às suas
crenças todos os dissidentes. Nos povos latinos, os jacobinos de todos os
tempos, desde os da Inquisição, nunca puderam elevar-se a outra concepção de liberdade.
O autoritarismo e a intolerância são
para as multidões sentimentos muito nítidos, que facilmente concebem e aceitam,
tão facilmente como os praticam, logo que lhos impõem. As multidões respeitam
docilmente a força e são mediocremente impressionadas pela bondade, que para
elas só representa uma forma de fraqueza. As simpatias das multidões nunca vão
para os senhores bonacheirões, mas para os tiranos que vigorosamente as hajam
esmagado. A estes é que elas erigem as mais elevadas estátuas. Quando de
boamente pisam o déspota derrubado, fazem-no porque, havendo ele perdido a força,
reentrou na categoria dos fracos que se desprezam por já se não temerem. O tipo
do herói querido para as multidões há-de ter sempre a estrutura de um César que
as seduz com o penacho, se impõe pela autoridade e as atemoriza com o sabre.
Sempre pronta a levantar-se contra uma
autoridade fraca, a multidão curva-se com servilismo diante de uma forte
autoridade. E quando a força da autoridade seja intermitente, a multidão,
obedecendo sempre aos seus sentimentos extremos, passa alternadamente da
anarquia para a escravidão e da escravidão à anarquia.
(...) são precisamente as palavras mais
empregadas pelas multidões aquelas que, de um povo para outro, maior diferença
de sentido apresentam. Isto dá-se, por exemplo, com as palavras “democracia” e “socialismo”,
hoje tão frequentemente empregadas.
Estas palavras correspondem na realidade a ideias e imagens absolutamente opostas nas almas latinas e anglo-saxónicas. Entre os latinos, a palavra “democracia” significa principalmente apagamento da vontade e iniciativa individuais, em presença da vontade e iniciativas da comunidade representadas pelo Estado. O Estado é quem está encarregado cada vez mais de dirigir tudo, centralizar, monopolizar, fabricar tudo; para ele apelam, sem excepção, todos os partidos, radicais, socialistas e monárquicos. Entre os anglo-saxões, principalmente na América, a mesma palavra “democracia” significa, pelo contrário, desenvolvimento intenso da vontade e do indivíduo, afastamento, tão completo quanto possível, do Estado, ao qual, além da polícia, exército e relações diplomáticas, nada se deixa dirigir, nem sequer a instrução. Logo, a mesma palavra que num povo significa apagamento da vontade e iniciativa individuais e preponderância do Estado, significa num outro povo exactamente o contrário, isto é, um excessivo desenvolvimento da vontade e iniciativa individuais e apagamento completo do Estado e da sua intervenção.»
Gustave Le Bon («A Psicologia das Multidões»).
Instrução e educação
Na primeira linha das ideias dominantes
de uma época, (...) se bem que elas por vezes sejam ilusões puras, encontra-se
hoje a de que a instrução é capaz de mudar consideravelmente os homens, tendo
como resultado certo melhorá-los e até fazê-los iguais. Pelo simples facto de
serem muito repetidas, estas asserções acabaram por ser um dos mais inabaláveis
dogmas da democracia, em que hoje seria tão difícil tocar, como outrora o foi
tocar com os da Igreja.
Mas, neste ponto, como em muitos outros,
as ideias democráticas estão em profunda discordância com os dados da
psicologia e da experiência. Alguns eminentes filósofos, como, entre outros,
Herbert Spencer, nenhum trabalho tiveram para demonstrar que a instrução não
faz o homem nem mais moral, nem mais feliz, que lhe não muda os instintos nem
as paixões hereditárias, que é até, por vezes, logo que seja mal dirigida,
muito mais perniciosa do que útil. Os estatísticos vieram confirmar estes modos
de ver, assegurando-nos que a criminalidade aumenta com a generalização da
instrução ou, pelo menos, de uma certa instrução, que os piores inimigos da
sociedade, os anarquistas, se recrutam muitíssimas vezes nos laureados das
escolas, e ainda num trabalho recente, um distinto magistrado, Adolphe Guillot,
acentuava que se encontram agora 300 criminosos ilustrados para 1000
analfabetos, e que, no período de cinquenta anos, a criminalidade passou de 227
por 100 000 habitantes para 552, o que representa um aumento de 133 por
cento. Notou ainda esse magistrado, como também todos os seus colegas, que a
criminalidade aumenta principalmente entre os mancebos para os quais o
patronato foi, como se sabe, substituído pela escola obrigatória e gratuita.
Não significa isto, nem mesmo sequer
ninguém o ousou sustentar, que a instituição bem dirigida não dê resultados
práticos utilíssimos, senão para o levantamento moral, pelo menos para o
desenvolvimento das capacidades profissionais. Desgraçadamente os povos
latinos, principalmente de há trinta e tantos anos para cá, basearam os seus
sistemas de instrução em princípios muito erróneos e, não obstante as
observações dos mais eminentes espíritos, persistem em seus lamentáveis erros.
Numa das minhas obras tive também já ocasião de provar que a nossa educação
actual transforma em inimigos da sociedade a maior parte dos que a receberam e
recruta numerosos discípulos para as piores fórmulas do socialismo.
O que constitui o primeiro perigo desta
educação – muito justamente qualificada de latina – é o basear-se num erro
fundamental de psicologia, qual é o de aceitar-se que, aprendendo-se de cor os
manuais, se desenvolve a inteligência. Por isso tem-se procurado apenas
aprender de cor o mais que se possa; e da escola primária à licenciatura e ao
doutoramento, o mancebo nada mais faz do que decorar livros sem que o seu
raciocínio e a sua iniciativa tenham tido ocasião de se exercer. A instrução
consiste para ele em recitar e obedecer. «Estudar livros, saber de cor uma
gramática ou um compêndio, repetir bem, imitar bem, eis», escreveu Jules Simon,
antigo ministro de Instrução Pública em França, «uma educação divertida em que
todo o esforço é um acto de fé perante a infalibilidade do mestre, educação que
termina por nos rebaixar e incapacitar.»
Se esta educação fosse somente inútil,
poder-nos-íamos limitar a compadecer-nos das desgraçadas crianças, as quais, em
vez de tantas coisas necessárias que deviam aprender nas escolas, se prefere
ensinar a genealogia dos filhos de Clotário, as lutas da Neustíria e da
Austrásia, ou classificações zoológicas; mas a verdade é que semelhante
educação apresenta um perigo muito mais grave e muito mais para ponderar.
Proporciona ao indivíduo que a recebeu um desgosto violento pelas condições em
que nasceu e desperta-lhe o desejo intenso de se livrar delas. O operário não
quer continuar operário, o camponês nem mais uma hora quer ser camponês e o
mais modesto burguês só deseja para os filhos um salário pago pelo Estado. Em
vez de preparar homens para a vida, a escola apenas os prepara para empregos
públicos, nos quais se possam obter bons resultados, sem que a pessoa careça de
se dirigir por si ou manifestar qualquer parcela de iniciativa. Na parte
inferior da escola, a educação de hoje cria os exércitos de proletários
descontentes com a sua sorte e sempre prontos a revoltarem-se; na parte
superior, sustenta a nossa frívola burguesia simultaneamente céptica e crédula,
tendo supersticiosa confiança no Estado-providência do qual contudo
incessantemente diz mal, atribuindo sempre ao governo os seus próprios erros e
incapaz de empreender qualquer coisa sem intervenção da autoridade.
O Estado que, à força de manuais,
fabrica todos estes diplomados só pode utilizar um pequeno número deles,
deixando todos os outros sem empregos. Tem de resignar-se a alimentar os
primeiros e ter por inimigos os segundos. Do vértice para a base da pirâmide
social, do simples caixeiro ao professor e ao prefeito, a enorme legião dos
diplomados assalta hoje todas as carreiras. E ao passo que um negociante só
muito dificilmente encontra quem, como agente, queira ir representá-lo nas
colónias, são aos milhares os pretendentes aos mais modestos lugares oficiais.
Só o departamento do Sena conta vinte mil professores e professoras sem
colocação, e todos eles, desprezando o campo e as oficinas, se dirigem ao
Estado, solicitando-lhe um emprego de que possam viver. Como o número dos eleitos
é restrito, o dos descontentes é forçosamente imenso. Estes estão prontos para
todas as revoluções, quaisquer que sejam os chefes e os fins a que se
proponham. A aquisição de conhecimentos, para os quais se não encontra
aplicação, é o mais seguro meio de fazer do homem um revoltado. [1]
Evidentemente é já muito tarde para levar de vencida semelhante
corrente. Só a experiência, última educadora dos povos, se encarregará de nos
mostrar os nossos erros. Só ela será bastante poderosa para nos convencer da
necessidade de substituirmos os nossos odiosos manuais, os nossos lastimosos
concursos, por uma instrução profissional capaz de levar a juventude para os
campos, oficinas e empresas coloniais, de que hoje só procura fugir.
Esta instrução profissional, hoje
reclamada por todos os espíritos esclarecidos, foi a que outrora receberam os
nossos pais e que os povos, que hoje dominam o mundo pela vontade, iniciativa e
espírito empreendedor, souberam conservar. Em páginas notáveis, de que terei
ocasião de reproduzir as partes essenciais, um grande pensador, Taine, provou
claramente que a educação francesa outrora era quase o que é hoje a educação
inglesa ou americana, e, num paralelo notável entre o sistema latino e o
sistema anglo-saxão, patenteou bem frisantemente as consequências dos dois
métodos.
Condescender-se-ia talvez, com extremo
rigor, em aceitar todos os inconvenientes da nossa educação clássica, embora só
produzisse desocupados e descontentes, se a superficial aquisição de tantos
conhecimentos, a perfeita recitação de tantos manuais, elevassem o nível da
inteligência. Mas, na realidade, elevam-nos? Infelizmente, não! As condições
para a vitória na vida são o raciocínio, a experiência, a iniciativa, o
carácter, e nada disto é dado pelos livros. Os livros são dicionários cuja
consulta é útil, mas é perfeitamente inútil meter na cabeça os longos trechos
que os formam.
Taine, no trecho que vamos transcrever,
mostra perfeitamente como é que a instrução profissional pode desenvolver a
inteligência a alturas que a instrução clássica de nenhum modo pode atingir.
«As ideias», escreve Taine, «só se
formam no seu meio natural e normal; o que lhes faz vegetar os germes são as
inumeráveis impressões sensíveis que o mancebo recebe todos os dias na oficina,
na mina, no tribunal, no estudo e no arsenal, no hospital, à vista das
ferramentas, materiais e operações, em presença dos clientes e operários, do
trabalho, da obra bem ou mal paga, lucrativa ou dispendiosa. São estas as
pequenas percepções particulares dos olhos, dos ouvidos, das mãos e até do
olfacto que, recolhidas involuntariamente e surdamente elaboradas, nele se
organizam para lhe sugerirem, cedo ou tarde, uma nova combinação, uma
simplificação, economia, aperfeiçoamento ou invenção. De todos estes precisos
contactos, de todos estes elementos assimiláveis e indispensáveis, está privado
o jovem francês, precisamente na idade fecunda. Durante sete ou oito anos, o
jovem é sequestrado numa escola, está longe da experiência directa e pessoal
que lhe havia de dar a noção exacta e viva das coisas, dos homens e das
diversas maneiras de os manejar.
Nove mancebos em cada dez perderam
certamente o tempo de trabalho, alguns anos de vida e anos eficazes importantes
e até decisivos. Contai primeiramente metade ou dois terços dos que se
apresentam a exame, falo de reprovados; em seguida entre os admitidos,
graduados e diplomados também a metade ou dois terços, dos sobrecarregados.
Exigiu-se-lhes muito, obrigando-os num dia determinado, numa cadeira ou diante
de um quadro, a estarem, durante duas horas, a mostrarem que são num grupo de
ciências o repertório vivo de todo o conhecimento humano. E, na verdade, eles
foram, ou quase, nesse dia, durante duas horas; mas, um mês mais tarde, deixaram
de o ser e com certeza não conseguiriam passar em novo exame; as suas
aquisições, muito numerosas e pesadas, deslizam incessantemente para fora dos
seus espíritos e não adquirem outros conhecimentos. O vigor mental
estiolou-se-lhes, a seiva fecunda esgotou-se, o homem feito aparece e muitas
vezes é já um homem liquidado. Este, colocado, casado, resignado a andar
indefinidamente, no mesmo círculo, acolhe-se na sua restrita profissão; desempenha-se
correctamente, mas não vai além. Tal é o rendimento médio; a receita certamente
não equilibra a despesa. Na Inglaterra e na América, como outrora, antes de
1789, em França, emprega-se o processo inverso e o rendimento obtido é igual ou
superior.»
O ilustre historiador mostra-nos em
seguida a diferença do nosso sistema do dos anglo-saxões. Estes não possuem as
nossas inumeráveis escolas especiais; o ensino entre eles não é dado pelo livro,
mas pelas coisas. O engenheiro, por exemplo, faz-se na oficina e não numa
escola, o que permite que cada um chegue exactamente ao ponto que a sua
inteligência lhe proporciona, operário ou contramestre, se mais não puder
alcançar; engenheiro, se as aptidões a isso o levarem. Isto é um processo muito
mais democrático e muito mais útil para a sociedade do que a dependência de
toda a carreira de um indivíduo de um concurso de algumas horas, feito aos dezoito
ou vinte anos.
«No hospital, nas minas, na oficina, no
arquitecto, no escritório do advogado, faz o aluno, admitido ainda muito novo,
a sua aprendizagem e prática, como entre nós um escrevente de notário ou um
aprendiz de pintor. Antecipadamente e antes de entrar, pôde seguir algum curso
geral e arranjar um quadro em que possa colocar as observações que vai fazendo.
E tem ainda ao seu alcance, a maior parte das vezes, alguns cursos técnicos que
poderá acompanhar nas horas livres para ir coordenando as experiências que
quotidianamente faz. Com este regime, a capacidade prática cresce e
desenvolve-se por si, até ao grau a que possam chegar as faculdades do aluno e
na orientação de que a sua futura ocupação carece, pelo trabalho especial a que
desde então quer adaptar-se. Deste modo, na Inglaterra e nos Estados Unidos da
América do Norte, o mancebo bem depressa consegue tirar de si tudo quanto pode
dar. A partir dos vinte e cinco anos, e ainda muito mais cedo, se lhe não
faltarem o fundo e a substância, é não só um executante útil, mas ainda um
empreendedor espontâneo, não só uma roda, mas, o que é mais, um motor. – Em França,
onde prevaleceu o processo inverso e onde cada geração se faz cada vez mais
chinesa, é enorme a soma de forças perdidas.»
E o grande filósofo chega à seguinte conclusão
sobre a inconveniência sempre crescente da nossa educação latina e da vida.
«Nos três graus de instrução, para a infância,
adolescência e juventude, a preparação teórica e escolar nos bancos, por meio de
livros, prolongou-se e sobrecarregou-se, em atenção ao exame, ao grau, ao
diploma e ao certificado, única e simplesmente, e pelos piores meios, pela
aplicação de um regime antinatural e anti-social, pela excessiva demora da
aprendizagem prática, pelo internato, pelo artificial enlevo e acessórios
mecânicos, pela sobrecarga, sem considerações pelo tempo que se há-de seguir,
pela idade adulta e ocupações viris que o homem feito há-de exercer, fazendo
abstracção do mundo real onde o mancebo vai entrar imediatamente, da sociedade
ambiente a que é necessário adaptá-lo ou resigná-lo antecipadamente com o
conflito humano onde, para se defender e conservar o pé, deve aparecer equipado,
armado, exercitado e habituado às provações. Este indispensável equipamento,
esta aquisição mais importante que todas as outras, esta solidez do bom senso,
da vontade e dos nervos, não são proporcionadas pelas nossas escolas, bem pelo
contrário; em vez de qualificarem o aluno, as nossas escolas desqualificam-no
para as suas condições próximas e definitivas. Eis porque a sua entrada no mundo
e os seus primeiros passos no campo da acção prática, na maioria dos casos, não
passam de uma série de dolorosas quedas; fica magoado e por muito tempo, às
vezes estropiado. É uma prova rude e dolorosa esta; altera-se o equilíbrio
moral e mental, e corre-se o risco de não se restabelecer; vem a desilusão
brusca e completa; as decepções foram grandes e os dissabores muito fortes. [2]
Por acaso, no que deixamos dito, nos afastámos da psicologia das multidões? Com certeza que não. Se quisermos compreender as ideias e crenças que hoje germinam nas multidões e amanhã hão-de desabrochar, é necessário sabermos como o terreno tem sido amanhado. O ensino dado à juventude de um país permite avaliar o que será amanhã esse país; a educação fornecida à geração actual justifica as mais sombrias previsões. É em parte com a instrução e a educação que melhora e se modifica a alma das multidões. É, pois, necessário mostrar como o actual sistema de instrução a tem trabalhado e como a massa dos indiferentes e dos neutros se foi progressivamente transformando num imenso exército de descontentes, prontos a obedecerem a todas as sugestões dos utopistas e dos retóricos. É na escola que hoje se formam os socialistas e os anarquistas e nela se preparam para os povos latinos as horas bem próximas de decadência.
(In Gustave Le Bon, A
Psicologia das Multidões, Bookbuilders, 1.ª edição, Janeiro de 2020).
[1] Este fenómeno não é privativo
dos povos latinos; observa-se também na China, país dirigido também por uma
sólida hierarquia de mandarins e em que o mandarinato, como entre nós, se
alcança por concursos cujas provas consistem apenas na recitação imperturbável
de grossos manuais. A lógica dos letrados sem emprego considera-se hoje na
China uma verdadeira calamidade nacional. O mesmo sucede na Índia, onde, depois
de os ingleses abrirem escolas, não para educar, como se faz em Inglaterra, mas
simplesmente para instruir os indígenas, se formou uma classe especial de
letrados, os babus, que, desde que não alcançam um emprego público, se fazem
inimigos irreconciliáveis do domínio inglês. Em todos os babus, providos ou não
em emprego, o primeiro resultado da instrução foi fazer baixar imensamente o
nível da sua moralidade. Este facto foi por nós tratado desenvolvidamente nas Civilizations de L’Inde e tem sido
verificado e confirmado por todos os autores que têm visitado a grande
península.
[2] Taine, o Regime Moderno, t. II, 1894. Estas páginas são quase as últimas escritas por Taine e resumem admiravelmente os resultados da longa experiência do grande filósofo. Infelizmente, julgo-as absolutamente incompreensíveis para os professores da nossa universidade que não hajam estado no estrangeiro. A educação é o único meio que possuímos para actuarmos na alma de um povo e é profundamente triste ter de pensar que não há quase ninguém em França que possa chegar a compreender que o nosso actual ensino é um elemento terrível de rápida decadência e que em vez de elevar a juventude, a rebaixa e perverte.
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