domingo, 11 de dezembro de 2022

O Cogito e a recusa cartesiana do empirismo aristotélico

Escrito por Michio Kobayashi


 



«(...) a maior parte daqueles que, durante os últimos séculos, desejaram ser filósofos, seguiram cegamente Aristóteles, de maneira que, frequentemente, corromperam o sentido dos seus escritos, atribuindo-lhe diversas opiniões que ele próprio não reconheceria como suas, se acaso voltasse a este mundo. Quanto aos que o não seguiram (neste número incluem-se alguns dos melhores espíritos) não deixaram, na juventude, de ser influenciados pelas suas opiniões (por serem as únicas que se ensinam nas escolas), o que os obsidiou tanto que não lograram chegar ao conhecimento dos verdadeiros princípios. Embora eu os estime a todos, e não deseje tornar-me odioso retomando velhas disputas, posso dar uma prova daquilo que digo, e não creio que algum a desaprove, que é o terem eles todos suposto como princípio alguma coisa que não conheceram perfeitamente. Por exemplo, não sei de nenhum que não tenha considerado o peso dos corpos terrestres. Ora, muito embora a experiência mostre, claramente, que os corpos, que se dizem pesados, descem para o centro da terra, nem por isso conhecemos a natureza daquilo a que se chama peso, isto é, da causa ou princípio que assim os faz descer, e vemo-nos obrigados a estudá-lo para além das condições terrestres. O mesmo pode dizer-se em relação ao vácuo e aos átomos, ao calor e ao frio, ao seco, ao húmido, ao sal, ao enxofre, ao mercúrio, e a todas as coisas semelhantes que alguns supuseram como princípios. Cabe dizer que as conclusões que se deduzem de um princípio que não é evidente não podem também ser evidentes, embora tenham sido deduzidas evidentemente. Por isso todos os raciocínios que eles apoiaram sobre tais princípios não puderam dar-lhes o conhecimento certo de nenhuma coisa, nem, por consequência, levá-los a avançar um passo na pesquisa da sageza.»

René Descartes («Os Princípios da Filosofia»).

 

«A reacção anti-escolástica dos meados do século XVII ao último quartel do século XVIII raro soube efectuar o distinguio entre Aristóteles e o Aristotelismo, numa outra face do que se chama a ignorância dos sábios, l’ignorance des sçavants. Aristóteles é um autor, enquanto aristotelismo é tudo quanto se abrigou sob o seu nome. Aristotelismos foram, e são, variadíssimos, contendo não apenas o que Aristóteles ensinou, mas também o que, durante séculos, em diversas partes do mundo mediterrâneo, se lhe atribuiu. O Curso Conimbricense, da segunda metade do século XVI, que Descartes estudou em La Flèche com os Jesuítas, é o maior e o mais compósito compêndio dos Aristotelismos, que procurou analisar, sem chegar ao fim, de um ponto de vista crítico. Por outro lado, o descobrimento do corpus aristotelicus, ou seja, das obras do próprio Aristóteles, levou séculos. As escolas ocidentais da Idade Média descobriram os lógicos e só na modernidade descobriram os naturais, antes das grandes teses cosmológicas dos séculos XVI e XVII, pelo que as teses naturais de Aristóteles foram aceites com a mesma amplitude com que se receberam os tratados lógicos. Descartes defende (...) o Aristóteles real do Aristóteles escolar. Diz-se que a gravura onde Descartes aparece escrevendo, o pé direito sobre os livros de Aristóteles, significa Descartes pisando Aristóteles; nada disso. Significa: Descartes descansando sobre Aristóteles.»

Jesué Pinharanda Gomes (5.ª anotação ao prefácio de René Descartes em «Princípios da Filosofia»).


«Descartes, fazendo apelo ao bom-senso, numa expressão de lisonja para o senso-comum, induziu os homens no engano de que a filosofia, embora exija sérios estudos, está ao alcance de todos, como as ciências. Entre o pensador e a verdade intercalou Descartes o método, constituído por aquelas regras simples de boa exposição didáctica, segundo as quais o encanto da clareza estilística pode fazer esquecer as origens obscuras da noção. Mas o que o escritor francês imediatamente conseguiu foi convencer os estudiosos de que lhes será sempre lícito fazer a crítica daquilo com que não concordarem e até daquilo que não entenderem.

(...) Notável foi, inegavelmente, o trabalho de Descartes em gnosiologia, mas se do cartesianismo resultou clareza para o pensamento gnósico, tal benefício foi feito em detrimento do pensamento sófico e do pensamento pístico. Tal é, aliás, o que se comprova pela reacção aristotélica de Leibnitz e de Espinosa ao racionalismo cartesiano. Ascender à compreensão do Mito e à aceitação da Fé tornou-se, na época moderna, quase impossível para o pensamento do homem ocidental que se afastou da doutrina de Aristóteles.


 

A época moderna vai abandonando a noção de transcendência, e até a possibilidade de o homem ser imortal, ou imortalidade, perde a alta significação que lhe era conferida pela poesia de Dante para ser entendida como perduração de fama na imensidade do tempo, por meio de livros, inscrições lapidares e estátuas. Um certo orgulho, que vicia o processo moderno de cogitar, dificulta ainda mais a actividade filosofal, porque raro é o estudioso que perante uma cláusula obscura não sentencie contra o escritor inspirado em vez de meditar demoradamente até ao momento de intelecção ou intuição. Eis o que explica que só raros pensadores cheguem a ser filósofos, sejam capazes de discernir na doutrina exotérica a significação esotérica, consigam ascender a uma imortalidade que não pode ser comparada com privilégios morais de seita, classe ou casta.

Filosofar é só arte para quem tiver longanimidade, é silenciar por entre nuvens caliginosas que ameaçam envolver o mundo em trevas, é viajar durante a noite que parece sem fim. A filosofia exige a virtude da esperança, sempre representada pela âncora, sempre ligada ao simbolismo do barco. Sem a mediação do pensamento lunar ou lunático, sem esperar que as estrelas empalideçam à hora da alva, sem estremecer de alegria ao renascer do Sol, nunca a inteligência humana se depurará para ascender ao mais alto grau da epopsia.

A esperança, que é uma das virtudes teologais, adquire plena significação quando relacionada com a tradicional verdade de que Deus está em toda a parte. Em toda a parte não quer dizer em todos os pontos do espaço, segundo uma interpretação empirista que conduz ao panteísmo, mas onde o homem se encontrar, solitário ou convivente, no deserto, na selva ou na cidade. Se o espaço fosse concebido por modelo cousista, se servisse apenas para referências tópicas ou para encher de densidade as distâncias, tal conceito nem sequer seria conciliável com os mais positivos resultados das ciências e das técnicas.

A filosofia é puro pensamento, que superiormente se exprime em arte; mas porque a palavra escrita e o documento literário têm sido os processos mais usados nas comunicações do saber através das gerações e os mais considerados depois da invenção da imprensa, sempre os estudos filosóficos estiveram mais ou menos aliados aos estudos filológicos. Assim se explica que, entre nós, o ensino superior de filosofia viesse a ser ministrado em Faculdades de Letras, ainda que os respectivos professores, por habilitação oficial ou por tendência mental, prefiram os desenhos fixos, como os algarismos, às letras variantes e evasivas. O senso-comum protesta contra o que transcenda os limites da sua possibilidade de conhecer, e, por isso não falta quem preconize que o ensino da filosofia venha a ser, enfim, transferido para a escola onde se ensinam as matemáticas, ou, seja, para as Faculdades de Ciências.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).

 




«O espiritualismo conjuga a tese da irrealidade do mundo sensível com a tese da realidade do espírito que é também tese da realidade do mundo inteligível. O conhecimento não resulta da sensação mas deduz-se do inteligível. E como ao inteligível só o pensamento tem acesso, é pelo pensamento que o conhecimento se alcança. O critério de verdade deixa de depender, como no experimentalismo, do valor de conhecimento da sensação para residir naquilo que Álvaro Ribeiro descreve como “o problema ontológico”, quer dizer, na relação do pensamento com o real segundo o conceito escolástico de verdade: “(...) adequação do intelecto à realidade”. Essencialmente, trata-se de reconhecer ou ignorar a realidade do espírito.

O espiritualismo consiste na afirmação do espírito como real, mas real de uma realidade única e independente de todo o sensível. Forma-se ele nas meditações metafísicas cartesianas. Mantendo-se ainda fiel ao “discurso do método”, à concepção do pensamento como cogito, ou pensamento subjectivo, do qual deduziu a existência do mundo, Descartes começa por meditar o espírito como o mesmo que a alma. Depressa, porém, é levado a transcender o cogito: “(...) o que antes de tudo tenho em mim é a noção de Deus, não a de mim próprio”. A realidade do espírito identifica-se, pois, com a realidade de Deus e o que continua a pôr em dúvida é a existência dos “corpos que nos rodeiam”, dos corpos que compõem o mundo sensível, deles dizendo: “(...) se acaso existem”. Ao afirmar depois a prioridade do infinito – “(...) a noção de infinito está em mim antes que a de finito” – fica aberto caminho para a concepção do espírito como Uno, infinito e absoluto. Boas razões virá a ter Álvaro Ribeiro para pôr no signo de Descartes o último livro, Uma Coisa que Pensa, onde expõe o sistema em que “pensar é pensar universalmente, infinitamente, absolutamente”. Como boas razões terá Hegel para dizer que, ao fim de alguns séculos de navegação à deriva, é com Descartes que a filosofia pode enfim bradar: “Terra!”. Boas razões, porque a concepção cartesiana do espírito é, num caso, o ponto de partida do idealismo alemão e, noutro caso, a origem de uma doutrina do espírito a que se dá cumulativamente a noção de espírito individual de cada homem, como alma de Descartes, “razão animada” em Álvaro Ribeiro, e a noção, essa prioritária, de espírito universal, infinito e absoluto.

O espiritualismo não se desvincula da ciência. O que faz é distinguir entre pensamento e conhecimento, entre pensamento filosófico e conhecimento científico, afirmando que o mundo sensível é irreal porque toda a realidade está no mundo inteligível. É de pensar o inteligível que se deduz o conhecimento do sensível, o que radicalmente dispensa e exclui o experimentalismo.

Acrescenta Descartes que a dedução do conhecimento do sensível se faz com facilidade, a partir do inteligível. É o que diz e exorbitantemente demonstra. Com efeito, deduziu ele, da ideia de extensão, os princípios do movimento que ficaram como fundamentos da ciência moderna. Deduziu o princípio de inércia do qual toda a física, no seu mais amplo significado, depende, ao mesmo tempo que Galileu o “descobria” em pacientes esforços experimentais. Deduziu o princípio do natural movimento rectilíneo dos corpos sem o qual Newton não poderia ter “descoberto” a gravitação universal e o movimento elíptico dos astros. Deduziu a geometria analítica que faz do espaço um composto uniforme, homogéneo e infindável de pontos, sem o qual a ciência não poderia ter hoje, por sua principal investigação, a de “descobrir” a “constituição da matéria” mediante a divisibilidade dos corpos. Deduziu, enfim, o mecanicismo, que veio a constituir a estrutura da ciência moderna e que, anteriormente, Leonardo da Vinci havia preconizado por razões artísticas ou estéticas, que são também razões do espírito.




Cúpula da Catedral de Pisa com a "lâmpada de Galileu".


Galileu e o Doge de Veneza, por Giuseppe Bertini.


Uma réplica do telescópio mais antigo atribuído a Galileu, no Observatório Griffith.




O telescópio "cannocchiali" de Galileu no Musei Galileo, Florença.
 

Mas com o mecanicismo, o espiritualismo torna-se solidário do experimentalismo, o que lhe foi fatal. Já mergulhada no experimentalismo, e dado que o mecanicismo lho torna solidário, a ciência pôde iludir o espiritualismo escapando-se à exigência de pensamento que ele traz prioritariamente consigo.»

Orlando Vitorino (As Teses da Filosofia Portuguesa»).

 

«Todos os louvores que possam ser atribuídos às matemáticas modernas, especialmente aos seus novos processos de cálculo, são louvores mais adequados à técnica do que à ciência. Não trouxeram os novos conceitos da matemática novas teses que alterassem a posição dos problemas filosóficos, e se aperfeiçoaram a inteligência do homem culto também a afastaram dos processos gnósicos. A verdade desta afirmação é confirmada pelos próprios matemáticos que, dados o critério, a terminologia e o método que adoptam, mostram desinteressar-se da resolução das antinomias existentes entre o pensamento hipotético-construtivo e a realidade sentida ou pressentida.

A aplicação das matemáticas à observação, – do que resulta um aperfeiçoamento dos trabalhos de relatório, de inventário e de catálogo, – não oferece qualquer problema lógico. A aplicação das matemáticas à experimentação, desde o elementar predicado aritmético até às mais altas formas de cálculo, como, por exemplo, o das probabilidades, já pressupõe certos princípios de cosmologia. De todos os problemas desta ordem, aquele que o unilateral empirismo não resolve é o de interpretar como da inferência matemática é possível conjecturar a existência de fenómenos e de seres desconhecidos, como pela mecânica se inventa em astronomia e em química, ou, seja, como da dedução se pode chegar à hipótese verosímil, verificável, verdadeira.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«Se uma filosofia não é mera coleção de idéias soltas e sim um esforço de interpretação coerente de conhecimentos disponíveis, então não há como escapar da pergunta quanto à ordem hierárquica das idéias de um filósofo; e se na vida real a importância relativa que ele mesmo dava a uma de suas idéias é diferente daquela que se depreende do puro texto, a realidade deve prevalecer sobre o texto.

Por exemplo, Martial Guéroult dedica tão meticulosa atenção à ordem interna das Meditações de Descartes, que se esquece de perguntar qual o gênero literário do livro. Acaba lendo como puro tratado de metafísica aquilo que é, declaradamente, uma autobiografia espiritual. Resultado: no meio de tantas descobertas maravilhosas que faz sobre a filosofia de Descartes, continua tratando a idéia do “gênio mau” como se fosse apenas “um artifício” (sic). Bem, no texto das Meditações ela é precisamente isso, mas será o mesmo na concepção do mundo do homem René Descartes? Lendo as Meditações como narrativa autobiográfica, não percorremos os seus passos como meras etapas de uma demonstração – de um “processo de validação”, diria Guéroult –, mas como experiências interiores reais, que podem ser refeitas imaginativamente pelo leitor, com a condição de que este se entregue a elas com um espírito, como direi “stanislavskiano” de identificação com o autor. Quando tentei essa experiência, mais de três décadas atrás, cheguei a uma constatação deprimente: a “dúvida universal” proposta pelo filósofo era psicologicamente impossível, qualquer esforço de realizá-la era bloqueado a meio caminho, não pela resistência do ego cogitans que afirma sua própria existência (isto só vem muito depois), mas pela simples razão de que não se pode duvidar de uma só coisa sem afirmar, simultaneamente, muitas outras. Não posso, por exemplo, negar a existência de Deus sem admitir que ouvi falar dela, de modo que afirmo a validade da minha memória ao mesmo tempo que invalido um de seus conteúdos. Não posso duvidar dos dados dos meus sentidos sem distingui-los dos meus pensamentos abstratos, o que supõe toda uma epistemologia implícita como base da pergunta mesma. E assim por diante. A “dúvida universal”, não podendo ser vivenciada na realidade, tinha de ser compreendida, ela sim, como um artifício pedagógico ou retórico concebido por Descartes para expressar – e ao mesmo tempo encobrir – uma experiência interior muito diferente dela. Essa experiência oculta, como vim a compreender depois, só podia ser precisamente a do “gênio mau”, que Descartes vivenciara em sonhos no ano de 1619, muito antes de redigir seu primeiro projeto filosófico, as Regras de 1628. Os sonhos mostram a consciência do filósofo ameaçada de aniquilação pela interferência de uma força demoníaca. Podemos interpretar isso psiquiatricamente como temor da loucura, ou teologicamente, como antevisão ameaçadora da “segunda morte”, a morte da alma. Nos dois casos, a extinção da consciência traz automaticamente a invalidação de todos os seus conteúdos, a privação total de conhecimento. Com toda a evidência, a “dúvida universal” era uma tradução desse temor em linguagem epistemológica, com a diferença de que o temor pode ser vivenciado na realidade, e a “dúvida universal” não pode. Resultado: o que Guéroult enxergara como “um artifício” era na realidade a inspiração originária das Meditações, o que ele vira como cerne da demonstração era apenas um artifício. Descartes havia trocado uma experiência real por uma hipérbole literária, continuando a raciocinar a partir desta como se fosse experiência real. Esse lance decisivo passa-nos totalmente impercebido se nos atemos ao exame da doutrina filosófica – para não dizer do puro texto – enquanto tal, abstraindo de suas raízes existenciais. Uma filosofia, considerada no texto que a veicula, pode ser vista como um edifício teorético impessoal, mas isto também não passa de figura de linguagem: esse edifício não se ergueu sozinho, do nada, por um fiat originário, mas nasceu das experiências vivenciadas por um indivíduo humano real, um “hombre de carne y hueso”, como insistia Miguel de Unamuno. Deslocada dessa base, torna-se um objeto de contemplação, um fetiche no altar da religião acadêmica.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»). 






O Cogito e a recusa cartesiana do empirismo aristotélico


Quando Descartes envia a Mersenne o manuscrito das Meditações, anuncia-lhe: «este pouco de metafísica que vos envio contém todos os princípios da minha física» [1]. Numa carta que escreve algumas semanas mais tarde ao mesmo destinatário, repete-se, no sentido em que lhe confia o objectivo a que se propusera ao publicar as Meditações: «entre nós, confesso-lhe que estas seis Meditações contêm todos os fundamentos da minha física. Mas agradeço-lhe que não o diga a ninguém; porque aqueles que defendem Aristóteles terão talvez mais dificuldade em aprová-las; e espero que aqueles que as lerem se acostumem insensivelmente aos meus princípios e reconheçam a sua veracidade antes que se apercebam de que destroem os de Aristóteles [2]».

A metafísica de Descartes suscitou, e continua a suscitar, inúmeras interpretações, de tal forma é rica e densa. E ninguém pode incriminar aqueles que dela tentam extrair uma ideia original sem tomar plenamente em consideração as intenções do próprio Descartes. Mas os que impõem a si próprios a tarefa de compreender a metafísica cartesiana tal como ela é devem encarar os enunciados acima referidos como possuindo uma importância primordial: através deles, Descartes revela que o objectivo principal, para não dizer o primeiro e único, das Meditações, consiste em lançar os fundamentos da sua física destruindo os princípios de Aristóteles. Tentaremos, portanto, analisar em que sentido e por que razão Descartes afirma que as Meditações contêm todos os fundamentos da sua física e conduzem à invalidação da filosofia natural de Aristóteles.

A primeira verdade indubitável que Descartes alcança nas Meditações através da dúvida metódica e universal é, evidentemente, a proposição «eu sou, eu existo». Interroga-se em seguida: «quem sou eu?». A conclusão é a seguinte: «propriamente falando não sou senão uma coisa que pensa (res cogitans)» [3]. Ora, em que é que Descartes centra a sua meditação após ter presumido a existência do eu e a sua essência como pensamento? O tema que o preocupa nesta fase manifesta-se na seguinte frase: «esta noção e conhecimento de mim mesmo tomados precisamente assim não depende das coisas, cuja existência não me é ainda conhecida; nem, consequentemente e ainda com mais razão, de nenhumas daquelas que são factícias e inventadas pela imaginação» [4]. É sobretudo a dissociação entre espírito e imaginação que ele assume nesta fase. Nesta fase Descartes consagra, portanto, todo o seu esforço à confirmação da independência do conhecimento do eu face à imaginação. Com efeito, volta a dizer um pouco mais adiante: «reconheço que nada daquilo que consigo compreender por meio da imaginação pertence àquele conhecimento que tenho de mim mesmo» [5]. O principal objectivo da análise do pedaço de cera, que ele apresenta em seguida, consiste igualmente em assegurar-se da prioridade do conhecimento do seu espírito sobre a do objecto do intelecto e, ainda mais, sobre a do objecto da imaginação.

Ora, como já mencionado na nossa análise da Regulae, na opinião de Aristóteles «a alma nunca pensa sem imagem». Segundo São Tomás de Aquino, a alma não atinge o conhecimento de si sem primeiramente apreender outras coisas. Ora, o objecto primeiro do intelecto humano é, quanto a ele, «a natureza da coisa material (quidditas sive natura rei materialis)». E, para que o intelecto chegue a conhecer realmente o seu objecto, é necessário converter-se na imagem (phantasma[6]. Dito por outras palavras, de acordo com a tradição aristotélica, o conhecimento do eu não passa de um acto secundário que se sobrepõe ao acto de conhecer o objecto sensível através da imagem. Descartes, ao contrário, defende aqui que o espírito se conhece independentemente da imagem ou da imaginação. Para ele, «pensar e reflectir sobre o seu próprio pensamento» não são senão um mesmo acto que é «ser consciente» [7]. O esforço de dissociação entre o espírito e a imaginação permite-lhe, portanto, no final da segunda Meditação, concluir que «não há nada que me seja mais fácil de conhecer do que o meu espírito» [8]. Ou seja, «a noção que possuímos da nossa alma ou do nosso pensamento precede a que temos do corpo e é mais segura...» [9]. Segundo Descartes, o objecto primeiro do intelecto humano é o nosso próprio espírito. E separar o espírito do corpo representa, no final de contas, destruir a tradição aristotélica que atribui uma primazia epistemológica ao objecto sensível ou à imagem.

Ora, para além dessa inferência relativamente ao conhecimento do eu, a análise do pedaço de cera conduz secundariamente a uma outra, que diz respeito ao papel da imaginação no conhecimento da essência das coisas materiais. É que a concepção que possuímos da essência da cera «não se efectua pela imaginação» mas antes pela «inspecção do espírito» [10]. Descartes frisa por diversas vezes, nesta análise, que a imaginação não desempenha qualquer função determinante no conhecimento da essência das coisas materiais [11]. Portanto, a análise do pedaço de cera tem por função privar a imaginação do poder de formar a ideia da essência das coisas corpóreas para a atribuir ao entendimento puro.

Recordemos que o empirismo aristotélico, em que as Regulae ainda se enquadram, recomenda ao entendimento humano que se volte para a imaginação de modo a formar uma ideia verdadeira das coisas materiais. É sempre contra este empirismo aristotélico que Descartes se ergue pela análise do pedaço de cera na Segunda Meditação. Esta análise prepara, assim, o caminho para o inatismo das ideias, a fim de determinar a essência das coisas materiais a partir das ideias matemáticas no entendimento. E a desarticulação entre as ideias no entendimento e as imagens descritas na imaginação constitui, em Descartes, uma base para a formulação da sua teoria do conhecimento. Com efeito, ele apresenta logo no início da exposição geométrica das Segundas Respostas, a definição de ideia em que afirma: «não atribuo o nome de ideia unicamente às imagens que estão descritas na fantasia; pelo contrário, não lhes dou de modo nenhum esse nome, na medida em que elas estão descritas na fantasia corpórea» [12]. Para Descartes, um dos erros predominantes dos empiristas, nomeadamente Hobbes e Gassendi, é o facto de eles restringirem «o nome de ideia apenas às imagens descritas na fantasia» [13]. Vemos, portanto, que um dos motivos que ele vai precisando gradualmente no decurso das Meditações é o de afirmar que a «concepção ou intelecção pura das coisas, quer sejam corporais quer espirituais, efectua-se sem qualquer imagem ou espécie corpórea» [14], ou seja, o de destruir a tradição empirista que vinha desde Aristóteles.

(In Michio Kobayashi, A Filosofia Natural de Descartes, Instituto Piaget, 1985, pp. 59-64).







[1] Lettre à Mersenne, 11 de Novembro de 1640, A. T. III, p. 233.

[2] Lettre à Mersenne, 28 de Janeiro de 1641, A. T. III, pp. 297-298.

[3] Méditations, A. T. IX, p. 21.

[4] Ibid., p. 22.

[5] Ibid., p. 22.

[6] São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, Pars Prima, q. 84, a. 7, Q. 87, a. 3; cf. E. Gilson, Le thomisme. Introduction à la philosophie de saint Thomas d’Aquin, 6ª ed., Vrin, 1972, pp. 278-279.

[7] Entretien avec Burman, A. T. V., p. 149, tr. fr. A Bridoux Pléiade, Gallimard, p. 1359.

[8] Méditations, A. T. IX, p. 26.

[9] Principes, A. T. IX, p. 28.

[10] Méditations, A. T. IX, p. 24.

[11] Ibid., p. 24: «é preciso, portanto, que eu esteja de acordo, que não conseguiria conceber pela imaginação aquilo que é esta cera e que apenas o meu entendimento a compreende»; p. 25: «e muito menos do senso comum, tal como eles o designam, isto é, o poder imaginativo...»; p. 26; «nós não concebemos os corpos senão pela faculdade de compreender que está em nós e não pela imaginação, nem pelos sentidos».

[12] Deuxièmes Réponses, A. T. IX, p. 124.

[13] Cinquièmes Réponses, tr. fr. Clerselier, A. T. VII, pp. 363-364.

[14] Ibid., p. 387.



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