Escrito por Giovanni Reale
«Bergson doutorou-se em 1889 com uma dupla tese: a tese latina, Quid Aristoteles de loco senserit; a tese francesa, Essai sur les données immédiates de la conscience, imediatamente publicada em livro. Os estudiosos de Bergson não prestam, habitualmente, importância e atenção à tese latina de Bergson, que as Presses Universitaires de France incluíram, no entanto, em tradução francesa, no volume Mélanges, de Henri Bergson. Em Portugal não se fala, praticamente, desta obra. No entanto, é significativo e certamente importante que Bergson tenha começado a sua obra filosófica com a meditação de Aristóteles. Álvaro Ribeiro prestou ao facto a devida atenção, conforme me declarou um dos seus discípulos [António Telmo], lembrando conversações filosóficas do mestre desaparecido. Penso que Álvaro Ribeiro tinha razão. Penso, mesmo, que toda a obra de Bergson pode ser interpretada como uma meditação permanente de Platão e de Aristóteles, a tensão filosófica platonismo-aristotelismo, e que a esta luz o bergsonismo pode ser apresentado de uma maneira nova e reveladora. Esta tensão platonismo-aristotelismo é fundamental, como se sabe, no interior e no íntimo do pensamento português. Ela existe em Leonardo Coimbra, como procurei começar a dizer no estudo “O anti-aristotelismo explícito de Leonardo Coimbra. De qualquer modo, não analisarei neste lugar o texto da tese latina de Bergson. Fica, no entanto, a menção dele: da sua existência, da sua importância, do seu possível profundo significado.»
Manuel
Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra e Henri Bergson: Semelhanças e
Diferenças»).
«La thèse latine de Bergson, Quid Aristoteles de loco senserit, sur
laquelle une récente traduction française a attiré utilement l’attention n’est
pas un simple échantillon d’exégèse aristotelicienne. Au dernier chapitre,
abandonnant la perspective de l’historien de la philosophie pour l’attitude
dogmatique ou critique, Bergson oppose au lieu d’Aristote l’espace selon
Leibniz et l’espace selon Kant. Derrière les apories d’Aristote, les postulats
de Leibniz, les antinomies de Kant, on trouverait les arguments de Zénon dont l’interprétation correcte, fournie par l’Essai, apporte la
réponse de Bergson au problème agité dans la thèse latine.
Relisons donc cet ouvrage dans sa visée la plus ambitieuse: il s’agit bien d’une enquête critique sur les grandes
doctrines classiques de l’espace. Bergson n’y parle pas de Zénon: il y pense
toujours. Aristote d’ailleurs y pensait déjà et c’est l’exposition de la
doctrine d’Aristote qui constitue le sujet du travail de Bergson.
Si Kant n’est pas plus fréquemment consulté c’est que Bergson prudemment préfère ne parler que de ce qu’il peut louer dans les thèses de Kant. Si Leibniz est invoqué, c’est pour ne pas laisser seul le vieil Aristote face au moderne champion de la critique. Kant n’a pas le dernier mot. Aristote peut être critiqué autrement encore qu’il ne l’est par Kant et sans doute peut être rétabli, pour l’éssentiel de sa pensée, contre Kant. Leibniz ici, nonobstant l’apparence, est advantage l’allié d’Aristote, et l’ennemi de Kant, qu’on le croirait d’abord. Aristote a mal appliqué son dynamisme, dans la doctrine du lieu. Kant le corrige par la doctrine de l’espace forme a priori, mais il laisse perdre en chemin le dynamisme, que Leibniz avait su préserver.»
François Heidsieck («Henri Bergson et la
Notion d’Espace»).
«No capítulo II do Essai sur les donnés immédiates de la conscience trata Bergson da multiplicidade dos estados de consciência e da ideia de duração. Podemos dizer que com quatro importantíssimos problemas aí se confronta o esforço analítico do filósofo: o número, o espaço, o tempo e a duração. Os dois primeiros aparecem tratados com explícito relevo n’O Criacionismo, na parte dedicada à Análise Científica. Álvaro Ribeiro escreveu que é em Augusto Comte que Leonardo Coimbra enraíza essa análise. Eu penso, algo diferentemente, que é mais em Renouvier e Hamelin que Leonardo se inspira: no quadro categorial de ambos. É indubitável, no entanto, que o quadro classificativo das ciências de Comte está presente no espírito de Leonardo. Se Leonardo fosse tão bergsoniano como quiseram fazê-lo, como seria possível e explicável que a durée bergsoniana como tal não apareça n’O Criacionismo? A meditação leonardina do número, do espaço e do tempo não é, efectivamente, bergsoniana. A grande inspiração de Leonardo foi Leibniz: um Leibniz que o filósofo vai encontrar confirmado em Renouvier e em Hamelin. O criacionismo leonardino enraíza-se tão profundamente na monadologia leibniziana que é ele próprio uma monadologia. O Criacionismo aí está para o provar, tanto no seu conteúdo filosófico como na sua própria organização interna visível. O projecto de construção de uma monadologia vinha, de resto, um pouco de trás, como é patente no artigo publicado em A Águia com o título de “Uma monadologia (Aos poetas portugueses religiosos”)».
Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra e Henri Bergson: Semelhanças e Diferenças»).
Manuel Ferreira Patrício |
«O autor de O Criacionismo não admite que as ciências matemáticas possuam
especiais processos de demonstração, pois diz usarem elas de “raciocínios,
aparentemente exclusivos, mas que, em condições lógicas idênticas, valem em
todas as ciências”. Leonardo Coimbra parecia estar então convicto da unidade da
razão humana, e julgava aceitáveis os princípios de lógica tradicional. Esta
interpretação parece condicionada pelas palavras seguintes: “O princípio da
razão suficiente, olhando de um golpe um terreno perfeito e completamente
determinado, toma o aspecto do princípio da identidade e contradição. Mas, nem
por isso, o pensamento se move em noções vazias e mortas. Há um desejo da ordem
e sequência, que é o permanente companheiro do dinamismo das noções”.
Digno de nota é que Leonardo Coimbra não pretendesse elaborar a nova lógica que corresponde à dialéctica idealista de noções, uma lógica de categorias intelectuais que substituísse a lógica dos princípios discursivos, aproveitando os trabalhos de Kant, Renouvier e Hamelin. A sua posição perante a lógica tradicional será claramente definida em Notas sobre a abstracção científica e o silogismo. À fluência do pensamento humano opõe apenas a diversidade de noções elaboradas pelas ciências, afirmando assim a relatividade das categorias que julga confirmada pelos resultados da sociologia.
Ao princípio da catolicidade da razão, e à directriz humanista da filosofia, permanece fiel Leonardo Coimbra desde O Criacionismo até A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre. A sua gnoseologia vai, porém, sendo alterada em consequência de vários factores, entre os quais avulta o incessante estudo das ciências. A intuição é substituída pela experiência, e, em vez da intuição racionalista surge a razão experimental; o idealismo, depois da crítica à transcendência, efectuada em A Luta pela Imortalidade, vai sendo reduzido para dar lugar ao realismo da ontologia.
O pensador acompanha o progresso das
ciências matemáticas, estudando nas obras de Bertrand Russel e A. N. Whitehead
as relações com a logística e nas obras de Einstein, Eddington, Weyl e outros,
as relações com a teoria da relatividade e a física quântica. Mas a
actualização dos conhecimentos científicos não altera substancialmente a sua
doutrina sobre a essência e o valor das ciências matemáticas. Sinal disso é que
no livro mais significativo deste período, – A Razão Experimental – Leonardo Coimbra expressamente confirma a
crítica que em O Criacionismo fizera
aos argumentos de Zenão de Eleia contra a inteligibilidade do movimento e às
antinomias da dialéctica transcendental de Kant.
O que perturba o pensador é o uso que da
doutrina de entropia passa a ser feito pela apologética religiosa. As noções de
infinito e de zero, que Sampaio Bruno interpretara com os argumentos fortes de
uma convicta piedade, parecem desmentir a confiança que Leonardo Coimbra antes
votara à cosmologia criacionista. As noções matemáticas não têm já mero valor
especulativo, porque são dotadas de místico sinal de afirmação e negação.
Ao ler, pela primeira vez, a Evolução Criadora, onde já são
discutidas as consequências do princípio de Carnot-Clausius, Leonardo Coimbra
não considerou com devida atenção a prioridade do tempo. O idealismo
permitira-lhe ver na duração um novo aspecto do cousismo, o cousismo
bergsonista. Mas para um pensador realista como Leonardo Coimbra era agora,
quando meditava a obra de Eddington, difícil superar o tempo sem mediação
dialéctica para a eternidade.
Ao fim de qualquer processo filosófico, parece surgir sempre a mesma conclusão: as matemáticas são, de todas as ciências humanas, aquelas em que melhor se espelha a mais alta teologia. Substituir a teologia pela metafísica, como fez o iluminismo, ou pela sociologia, como fez o positivismo, no quadro das ciências filosóficas, é impiedade que equivale a embaciar para sempre, o espelho da verdade. Assim interpretamos a admirável analogia que Leonardo Coimbra escreveu em A Alegria, a Dor e a Graça: “O matemático que dispensa a hipótese Deus é como o homem, que, junto ao lume do carvão, dispensa o calor do solo.”»
Álvaro Ribeiro («As Portas do Conhecimento:
Matemática e Metafísica»).
«... [a] negação da eternidade do mundo, firma-se, originalmente, na teologia cristã: na revelação dos textos sagrados, nas verdades da fé, nos argumentos especiosos sobre a impossibilidade de um real infinito numérico, de uma série causal infinita, de uma infinidade de almas imortais, na distinção agostiniana entre tempo e mundo, ou entre tempo vazio e tempo pleno, com a introdução na filosofia do conceito de tempo – que os antigos não distinguiam de vida e filosoficamente ignoraram – como forma necessária das aparências, dos fenómenos e da existência do ser.
Firma-se a tese, mais recentemente, nas hipóteses fundamentais da ciência moderna quanto à degradação da energia, à desintegração da matéria ou à expansão do universo e, em geral, está ela suposta em todo o processo científico pois a negação da eternidade do mundo é imprescindível à afirmação da irrealidade do mundo sensível que é, de um modo mais patente ou mais secreto, o ponto de partida e o permanente suporte do característico ideísmo da ciência moderna.
A tese está, pois, no cerne da tradição
cristã e abrange, do mais alto ao mais baixo, toda a modernidade, de tal modo
que aparece como a mesma evidência à mentalidade, até em seus estados ingénuos
e oníricos, de todo o homem moderno, seja ele mais sábio ou ignorante, mais
dedicado à positividade científica ou mais entregue à reflexão especulativa.
Chega a provocar um álgido estremecimento verificar como a tese da eternidade
do mundo tão radicalmente desapareceu sem que deixasse qualquer vestígio significativo
na filosofia moderna, na simples cultura, na apenas imagética do homem. Alguns,
como Kant, ainda a lembram mas só para dela fazerem uma antinomia
exemplificativa da inviabilidade da metafísica. Outros, como Nietzsche, ainda
talvez a vislumbrem naquilo a que chamam “o eterno retorno” que, porém, nada
mais é do que o modo cristão, a imagem com que o ritual litúrgico representa a
perenidade da natureza em ciclos que se repetem.
Referida à acção e à vontade, a eternidade do mundo refutaria a prioridade de uma e o primado da outra. Com efeito, se o mundo é eterno, todas as consequências da acção acabarão por desaparecer e todo o acto, diluído no tempo, se perderá na memória. Mas se o mundo não for eterno, então os resultados da acção tornam-se capazes de abranger toda a mundanal e finita existência e qualquer acto, ao poder ser o derradeiro dos actos, será susceptível de representar a salvação ou a perdição não só de cada homem mas de toda a humanidade. O significado e o alcance da acção transporão, portanto, os limites da singularidade individual, onde a antiga ética os circunscrevia, para se ampliarem a todo o género humano segundo o modelo da comunhão litúrgica que é a imagem sempre presente nas exigências religiosas, sociais e políticas que cada vez vieram pesando mais sobre os modos e as formas de convívio entre os homens.
Negada a sua eternidade, o mundo aparece como um acto de criação que a filosofia moderna atribui ou a Deus ou à matéria, termos que são, nas suas consequências e corolários, permutáveis. A própria existência do mundo, a existência da natureza e do homem, será então, ela mesma, um acto, o que constitui a mais alta demonstração da prioridade da acção e do primado da vontade.»
Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).
«A antinomia difere da alternativa em
que não pode ser resolvida por decisão analítica nem por deliberação moral. A
antinomia contra a polémica demonstra a irrealidade das coisas finitas e, portanto,
o absurdo das lutas humanas. Há que ascender à origem comum dos predicados
contrários, e admitir a noção de infinito.
Muitas vezes tem sido discutido se os filósofos gregos atingiram a verdadeira noção de infinito, ou se apenas conceberam o indefinido, quer dizer, o negativo oposto ao positivo. Da resolução deste problema depende a caracterização da filosofia mediterrânea perante a filosofia oriental. O exame dos documentos leva a crer que só Aristóteles, em alguns escritos, nos deixou indícios de haver concebido não só logicamente, mas também ontologicamente, o verdadeiro infinito.»
Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
«Parecendo afirmar e negar ao mesmo tempo a subsistência ontológica do lugar, Aristóteles compara, mediante uma analogia, o lugar a uma vasilha, sendo a vasilha um lugar transportável. Ora, Mobilis in mobili, o lema do submarino Nautilus criado por Júlio Verne em Vinte Mil Léguas Submarinas, constitui, de resto, uma outra analogia igualmente susceptível de fazer ver, em Aristóteles, o lugar como um modo de “estar em”».
Miguel
Bruno Duarte
«A noção de infinito, de que só a teologia pode dar alta representação, entrou para o cálculo matemático por motivos que não interessa agora estudar. O cálculo operativo sobre o acidente que é a quantidade transforma-se com Leibnitz no cálculo diferencial e integral, e procura a abstracção da física para a metafísica. Seria, porém, ilusão geradora de enganos inverter a ordem lógica, atribuindo primazia ao pensamento matemático sobre o pensamento filosófico.
Não interessa, também, para este estudo, averiguar em que medida o pensamento de infinidade e de continuidade permite ver e interpretar o mundo em fluxão. As existências que aparentemente perduram no tempo e resistem no espaço deixam de corresponder a essências, pelo que o pensamento tem de interpretar em termos de história e de profecia a aparência que lhe encobre a realidade essencial. A aplicação do infinito ao espaço e ao tempo transforma-os em conceitos, mas desse modo suscita maior número de dificuldades para a filosofia.
A razão, procurando para além do espaço e do tempo, para além do infinito da extensão e da duração, o verdadeiro infinito das inferências de finalidade, de causalidade e da substancialidade, acaba por verificar que estes processos de conveniência, de concorrência e de convergência se encontram num limite que os transcende. Todas as existências e todas as essências respectivamente se situam segundo uma hierarquia infinita que a razão concebe sem poder compreender o seu misterioso princípio. Quando a noção de infinito se encontra implícita ou explícita no silogismo, segundo a doutrina aristotélica, o pensamento conclui pela existência de Deus.»
Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
«À velha concepção da realidade, peculiar
do naturalismo cientista, existente à sua volta em largos círculos intelectuais,
concepção que ainda hoje se sobrevive escolasticamente, substitui assim o
pensador a concepção de um Universo que supõe interioridade e sempre e
indefinidamente se excede e transcende. Terás o ser e a vida do Espaço e do
Tempo que tiveres, diz a velha e sempre jovem sabedoria. E o filósofo português
adverte, desde o seu primeiro livro, que só ilusoriamente há uma natureza dada no tempo como ser de tempo:
“O tempo e o espaço são informados e
realizados por noções superiores. Não existem em si e para si”.
Ter marcado no ser uma pluralidade
irredutível sempre adunada em todos os planos e formas irredutíveis, ter ao
mesmo tempo procurado saber qual será a unidade essencial sempre implicitamente
requerida, tal a funda característica do pensamento de Leonardo Coimbra. Em O Pensamento Criacionista mostra o
filósofo o profundo sentido da palavra Universo, “a mais bela e a mais
filosófica das palavras que o pensamento dos povos gerou”.
A pluralidade irredutível está em todos os planos e formas de ser, está consequentemente na vida. Desde O Criacionismo, nos aparece a vida, com sua sempre patente ou esboçada individuação, como irredutível originário e não como o que ilusoriamente pode explicar-se a partir de outro plano ou forma de realidade; por este modo, notemo-lo atentamente, restringe-se o evolucionismo a local concepção biológica, o transformismo é superado e o problema da imortalidade aparece com novo sentido.»
José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).
«(...)
o movimento da chamada “física newtoniana”, como aliás das “físicas” posteriores,
o movimento tal como o entende, o estuda e o trata a ciência moderna, é, tão
só, o de deslocação.
Deslocar é passar de um lugar a outro
lugar. Mas a física newtoniana, ou o modo como a ciência a adoptou, entende que
não há lugares no espaço ou, o que é o mesmo, que o espaço não é um conjunto de
lugares como entende a física clássica. O espaço será uma extensão uniforme –
em rigor, informe – homogénea e, se composta de alguma coisa, é de pontos que é
composta, pontos que não têm extensão. O espaço é, portanto, um vazio e a
deslocação dos corpos em tal vazio é um movimento incessante e rectilíneo Uma
quarta determinação se acrescenta ao movimento: a do tempo mas tempo entendido,
tal o espaço, como composto de instantes os quais não têm duração como os
pontos não têm extensão.
De novo nos deparamos aqui com a “natureza
morta”. Espaço e tempo e, em consequência, movimento são conhecidos de modo a
recusar-lhes quaisquer razões próprias. São o vazio que Aristóteles demonstrou
não pode ter realidade e qualquer simples imagem da natureza viva imediatamente
mostra como concebê-lo é um absurdo. Ora o pensamento filosófico não é o
pensamento do “intelecto abstracto” ou da “razão raciocinante” de que falava
Hegel, do intelecto abstracto e da razão raciocinante com os quais o pensamento
ingénuo julga poder substituir-se à filosofia. O pensamento filosófico é concreto
e real, e pensamento do concreto e do real. Não se exerce no vazio, não pensa o
vazio. Também aqui, assim, se demonstra a impossibilidade de a filosofia se
referenciar à ciência.
Convém todavia afirmar devidamente que a deslocação não é propriamente movimento. Realizada num espaço sem lugar e num tempo sem duração, não é mais do que, para empregarmos a bela expressão de um poeta, “voo sem pássaro dentro”. E convém acrescentar, para mais clara elucidação do que se afirma, que a ciência clássica, ou a filosofia da ciência clássica, concebe muitas espécies de movimento entre as quais, embora num espaço composto de lugares, não figura a de deslocação. Será, aí, o movimento em todas as suas espécies, a transição da potência ao acto. Procurando um exemplo no domínio sempre primordial na ciência clássica, o da biologia, dir-se-á que o movimento é, aí, a transição do embrião ao animal, movimento cuja espécie será a da geração. Ao movimento de geração sucede-se o de crescimento: a criança é a potência de que o adulto é o acto. Assim cada movente tem em si a razão de se mover e daí a razão do movimento. E como tudo o que é, é pelos seus predicados, como os predicados se agrupam em categorias, o movimento é sempre a transição de uma categoria para uma outra categoria. Seja, por exemplo, a transição da categoria da quantidade à da qualidade como a água contida em excesso faz passar o copo da quantidade que possuía à qualidade de não a possuir. Ou, num exemplo mais subtil, um grupo de três raparigas que se observa serem belas passa da determinação quantitativa de serem três à determinação qualitativa de serem belas. Os leitores mais informados depressa verão como esta concepção do movimento aproveitou a Kant para a sua distinção entre grupos analíticos e grupos sintéticos: grupo analítico é o que conserva o infinito na mesma categoria, grupos sintéticos são os que fazem transitar de categoria o infinito. E se fazemos esta alusão a Kant é para abrirmos caminho possível à observação dos sinais de como a referenciação à ciência clássica lhe teria sido mais fecunda do que a referenciação à ciência moderna em que se fixou, se imobilizou.»
Orlando Vitorino («4.ª TESE – Enunciado: a filosofia não se referencia à ciência, in «As Teses da Filosofia Portuguesa»).
«(...) ponto e instante, ao aparecerem-nos no seio do Espaço e do Tempo, requerem o mesmo Espaço e o mesmo Tempo como sua imprescritível condição. Tal é a dificuldade crucial em todo o seu rigor.»
José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).
Uma “ontologia” ou “metafísica” do sensível em Aristóteles
1. Características da física aristotélica
Para Aristóteles, a segunda ciência
teorética é a “física” ou “filosofia segunda”, que tem como objecto a
investigação da realidade sensível, caracterizada intrinsecamente pelo
movimento, tal como a metafísica tem por objecto a realidade do supra-sensível,
caracterizada intrinsecamente pela ausência absoluta do movimento [1].
Após as aquisições platónicas,
impunha-se estruturalmente a distinção de uma problemática física; se são dois
os planos da realidade, ou, numa expressão mais aristotélica, se existem dois
géneros diferentes de substâncias estruturalmente distintos, o género
supra-sensível e o sensível, deverão ser necessariamente diferentes entre si as
ciências que tem como objecto de investigação estas duas realidades diversas. A
distinção entre metafísica e física implicará a superação definitiva do
horizonte da filosofia dos pré-socráticos e suporá uma mudança radical do
antigo sentido de physis, que, em vez de significar a totalidade do ser, virá a
significar agora o ser sensível, e “natureza” servirá para designar de
preferência a natureza sensível (mas de um sensível em que a forma continua a
ser o princípio dominante [2].
Não há dúvida de que a palavra “física”
pode induzir em erro o leitor moderno; para nós, a física identifica-se com a
ciência da natureza entendida no sentido de Galileu, isto é, considerada
quantitativamente. Pelo contrário, a posição de Aristóteles é diametralmente
oposta; a sua física não é uma ciência quantitativa da natureza, mas
qualitativa; comparada à física moderna, a de Aristóteles, mais do que uma
“ciência”, acaba por ser uma “ontologia” ou “metafísica” do sensível. Em
resumo, encontramo-nos perante uma consideração
rigorosamente filosófica da natureza; e este tipo de consideração
manter-se-á vigente até à revolução iniciada por Galileu. Por isso, não causará
surpresa o facto de que nos livros da Metafísica
se encontrem abundantes considerações físicas (no sentido já determinado) e,
vice-versa, nos livros da Física
abundantes considerações de carácter metafísico, pois os âmbitos das duas
ciências intercomunicam entre si estruturalmente; o supra-sensível é causa e
razão do sensível como também a própria investigação física (embora em sentido
diferente); e, além disso, é idêntico ainda o método de estudo que se aplica
nas duas ciências. Quanto ao mais, a exposição que se segue (que, por razões de
espaço, se reduzirá a alguns dos temas básicos, os mais determinantes)
plenamente o demonstrará.
2. A
mudança e o movimento
Já dissemos que a característica essencial da natureza é dada pelo movimento, e Aristóteles dedica, portanto, grande parte da Física à análise do movimento e das suas causas.
Que é o movimento?
Sabemos já que o movimento só se tornou
um problema filosófico depois de ter sido negado pelos eleatas, sendo por estes
qualificado como aparência ilusória. Sabemos também que os pluralistas
recuperaram já este conceito, justificando-o em parte. Todavia, ninguém, nem
sequer Platão, soube estabelecer qual era a sua essência e o seu estatuto
ontológico.
Os eleatas negaram o devir e o movimento
porque, na sua opinião, estes suporiam a existência de um não-ser (em geral, o
que chega a ser passa de um estado a outro e cada um destes estados não é o
anterior nem sequer o seguinte: portanto, o nascer e o morrer poderiam parecer
a passagem do não-ser absoluto ao ser e deste ao não-ser absoluto), visto que o não-ser não existe. Aristóteles conseguiu resolver a aporia da
forma mais brilhante.
Ora o movimento é um dado acerca de um facto originário, portanto, não se pode
pôr em dúvida. Como se justifica? Sabemos (pela metafísica) que o ser tem
muitos significados e que um grupo destes deriva do ser enquanto potência e do ser enquanto acto. Relativamente ao ser-em-acto, o ser-em-potência pode
considerar-se não ser, mais concretamente não-ser-em-acto; mas é claro que se
trata de um não ser relativo, já que
a potência é real, porque é uma capacidade real e uma possibilidade efectiva de
chegar ao acto. Ora, referindo-nos ao ponto que nos interessa, o movimento (e
toda a mudança geral) é justamente a passagem
do ser em potência ao ser em acto (o movimento é o acto ou a actuação do
que é em potência enquanto tal, diz Aristóteles) [3].
Assim, pois, o movimento não supõe o não-ser parmenideano, porque se desenvolve
no seio do ser e é a passagem do ser (potencial)
ao ser (actual); desta forma o
movimento perde definitivamente o carácter que poderíamos qualificar de
nulificante, pelo que os eleatas se julgavam obrigados a eliminá-lo, ficando
assim basicamente explicado.
Mas Aristóteles mergulha ainda mais no
movimento, oferecendo-nos considerações que têm uma importância capital e
chegando a estabelecer quais são as possíveis formas de movimento e qual a sua
estrutura ontológica. Vamos, uma vez mais, referir-nos à distinção dos
diferentes significados do ser. Vimos que potência e acto se referem às
diferentes categorias e não só à primeira. Portanto, o movimento, que é
passagem da potência ao acto, referir-se-á
às diferentes categorias (a todas as categorias ou às principais) [4].
E, assim, da lista das categorias podemos deduzir as diferentes formas de
mudança. É certo que algumas das categorias não admitem variação. Assim, por
exemplo, quanto à categoria da relação, pois basta que se mova um dos dois
termos da mesma para que também o outro, mesmo permanecendo invariável, mude o
significado relacional (e, portanto, se aceitássemos o movimento segundo a
relação, admitiríamos o absurdo de um
movimento sem movimento para o segundo o termo); as categorias da acção e
da paixão são já movimentos em si mesmas, não sendo possível o movimento de
movimento; por fim, o tempo, como já vimos, é uma afecção do movimento. Restam
as categorias 1) da substância, 2) da
qualidade, 3) da quantidade, 4) do lugar,
produzindo-se precisamente a mudança segundo estas categorias. A mudança
segundo a substância chama-se geração
e corrupção; a mudança segundo a qualidade
recebe o nome de alteração; a mudança segundo a quantidade denomina-se aumento e diminuição, recebendo o movimento segundo o lugar o nome de translação. Mudança é um termo genérico
que se adapta perfeitamente a estas quatro formas; pelo contrário, o movimento
é um termo que designa as outras três, em especial a última.
O devir em todas as suas formas supõe um
substrato (a saber, o ser potencial) que passa de um extremo ao outro; na
primeira forma, a passagem realiza-se de
um contraditório a outro e, nas outras três, de um contrário ao outro. A
geração é a assunção da forma; a alteração é uma mudança da qualidade, enquanto
o aumento e a diminuição constituem a passagem de pequeno a grande, e
vice-versa; o movimento local é a transição de um ponto a outro. Só os
compostos (os sínolos) de matéria e
forma podem mudar, porque só a matéria implica potencialidade; portanto, a
estrutura hilemórfica da realidade sensível, que implica necessariamente
matéria e potencialidade, é a raiz de todo o movimento [5].
Desta forma as considerações que precedem
levam-nos ao problema das quatro causas já de nós conhecidas. A matéria e a
forma são causas intrínsecas do
devir. Causa externa é, em
contrapartida, o agente ou a causa eficiente; nenhuma mudança tem lugar sem
esta causa, porque não pode haver passagem da potência ao acto sem que exista
um motor já em acto. Finalmente, surge a causa
final, que é o objectivo e a razão do devir. A causa final indica
basicamente o sentido positivo de todo o
devir que, aos olhos de Aristóteles, é fundamentalmente um avançar para a
forma e uma realização desta. Longe de contribuir para a introdução do nada, o
devir surge a Aristóteles como a mudança
que conduz à plenitude do ser, isto é, o caminho que percorrem as coisas
para se actuar, para ser plenamente o que são, para realizar a sua essência ou
forma (e neste sentido se compreende perfeitamente porque é que a physis
aristotélica é, em última análise, esta forma [6].
Ακρόπολη Αθηνών |
A este propósito assinalámos que a teleologia aristotélica apresenta lacunas, não já por causa das limitações que expressamente ostenta em famosas passagens da Física [7], mas pela básica aporia metafísica não resolvida, pela qual o mundo existe não por um desígnio do Absoluto, mas por um anelo quase mecânico e fatal de todas as coisas à perfeição, que o Estagirita intui e afirma, mas não demonstra rigorosamente. Sobre a razão de fundo do finalismo universal, o último Platão, com a sua doutrina do Demiurgo exposta no Timeu, conseguiu uma visão mais profunda; ou se admite um ser que projecta o mundo e lhe proporciona a existência em função do bem e da perfeição, ou não impera o finalismo universal.
3. O espaço e o vazio
Os conceitos de espaço e de vazio estão
ligados à ideia de movimento [8].
Os objectos não estão no não-ser, que não existe, mas estão em algum onde, isto é, num lugar, que, portanto, é algo que existe. E não há dúvida de que o
lugar existe e é uma realidade, se se considerar o facto da deslocação
recíproca dos corpos (no recipiente onde agora há água, quando esta sai, entra
o ar, e em geral, um corpo diferente vem ocupar sempre o mesmo lugar ocupado
pelo corpo que foi retirado e substituído pelo novo); “portanto, é claro que o
lugar é também algo e que a parte do espaço para a qual e desde a qual se
verifica a mudança dos dois elementos é algo distinto de ambos” [9].
Ademais, a experiência mostra-nos que existe “um lugar natural” para o qual
tende cada um dos elementos quando não encontra obstáculos; o fogo e o ar
dirigem-se para cima, a terra e água para baixo. Em cima e em baixo não são algo
relativo para nós, mas uma realidade objectiva, são determinações naturais: “o
em cima não é qualquer coisa, mas aquilo para onde se elevam o fogo e o leve;
e, igualmente, o em baixo não é uma coisa qualquer, mas aquilo para onde vão as
coisas que pesam e estão feitas de terra (...) [10].
Ora, que é o “lugar”? A primeira característica que Aristóteles atribui ao
lugar dimana da distinção entre o lugar que é comum a muitas coisas e o que é
próprio de cada objecto: “(...) o lugar é, por um lado, algo comum em que estão
todos os corpos, por outro, é algo especial em que está imediatamente um corpo
(...), e, se o lugar é o que contém imediatamente cada corpo, constituirá nesse
caso certo limite (...)” [11].
Aristóteles precisa, além disso, que “(...) o lugar é o que contém o objecto de
que é lugar e que não se identifica com nada da própria coisa nele contida”.
Unindo as duas características deduziremos que o lugar é “(...) o limite do
corpo continente, enquanto este se encontra contíguo ao conteúdo” [12]. Por
último, Aristóteles precisa ainda que o lugar não se confunde com o recipiente;
o primeiro é imóvel, ao passo que o segundo é móvel; poderia dizer-se em certo
sentido que o lugar é o recipiente imóvel, enquanto o recipiente é um lugar
móvel: “(...) assim como o vaso é um lugar transportável, o lugar é um vaso que
não se pode transportar. Por isso, quando alguma coisa que está dentro de outra
se move e muda dentro de uma coisa que se move, como um barquinho num rio, tal
coisa serve-se daquilo que a contém mais como recipiente do que como um lugar,
Em contrapartida, o lugar é imóvel; podemos, por isso, dizer antes que o rio
inteiro é lugar, porque o inteiro é imóvel. Assim, pois, o lugar é o primeiro
limite imóvel do continente” [13].
Esta definição tornar-se-á famosíssima e os medievais fixá-la-ão na célebre
fórmula terminus continentis immobilis
primus.
Desta definição do lugar infere-se que
não se pode pensar num lugar fora do universo, nem num lugar em que o universo
esteja colocado; "(...) se se prescindir do universo inteiro, não há nenhuma
outra coisa fora do todo e, por isso, todas as coisas estão no céu; neste caso,
o céu entende-se como o todo. Pelo contrário, o lugar não é céu mas, por assim
dizer, a extremidade do mesmo, e é (limite imóvel) contíguo ao corpo móvel; por
esta razão, a terra está na água, esta no ar, e este, por seu turno, no éter e
o éter no céu; mas o céu não é outra coisa" [14].
E, assim, o movimento do céu enquanto totalidade só será possível num sentido,
no da circularidade sobre si mesmo, sem a possibilidade de translação. Tudo o
que se move está num lugar (e move-se tendendo a alcançar o seu lugar natural);
o que é imóvel não está no seu lugar. Portanto, Deus e as inteligências
motrizes não necessitam estruturalmente de lugar.
Da
definição que demos de lugar infere-se igualmente a possibilidade do vazio.
Tinha-se compreendido o vazio como “o lugar em que não há nada” ou “lugar
privado de corpo” [15].
Mas é óbvio que o lugar em que não há nada constitui uma contradição de termos,
se admitirmos a definição dada do lugar como terminus continentis. Desaparece assim o fundamento prévio sobre o
qual os atomistas tinham edificado a doutrina dos átomos e a concepção
mecanicista do universo.
4. O tempo
Aristóteles dedicou ao conceito de tempo profundas análises que antecipam, na realidade, alguns conceitos que Santo Agostinho desenvolverá e tornará célebres [16].
Este é o ponto focal da doutrina aristotélica do tempo:
“Poderia suspeitar-se pelo que segue que o tempo não existe ou que a sua existência é obscura e dificilmente reconhecível. Uma parte do mesmo existiu e já não existe, uma parte irá existir, mas ainda não existe. E de tais partes se compõe tanto o tempo na sua infinidade como também o que de vez em quando nós percebemos. E pareceria impossível que tal realidade, estando composta de não seres, possua essência. Além disto, é necessário que, se existe um todo visível em partes, desde o momento em que existe, existam também ou todas as partes ou, pelo menos, algumas. Mas do tempo algumas das suas partes existiram, ou outras vão existir, mas nenhuma existe, embora tal realidade seja divisível em partes. E importa igualmente ter presente que o instante não é uma parte; pois a parte tem uma medida, e o todo deve compor-se de partes, enquanto o tempo não parece ser um conjunto de instantes.”
Mas, então, que é o tempo? Aristóteles
procura resolver o seu mistério em função de dois pontos de referência: o
movimento e a alma; se se prescinde de um ou de outro destes pontos de
referência, escapa-nos a natureza do tempo [17].
O tempo não é movimento nem mutação, mas implica-os essencialmente: “(...) a existência do tempo (...) não é possível sem a da mudança; quando não experimentamos nenhuma mudança dentro do nosso ânimo nem advertimos que algo muda, parece-nos que o tempo não decorreu” [18]. E visto que o tempo implica tão estritamente o movimento, podemos considerá-lo como uma modalidade ou propriedade do mesmo. Mas que propriedade? O movimento, que é sempre movimento através de um espaço contínuo, é contínuo e, portanto, deverá ser igualmente contínuo o tempo, porque a quantidade de tempo decorrido é sempre proporcional ao movimento. Por outro lado, no contínuo distingue-se o antes e o depois, que, portanto, devem ter a sua correspondência no movimento, logo, no tempo. Ora “(...) ao ter determinado o movimento mediante a distinção do antes e do depois, conhecemos também o tempo, e dizemos que o tempo realiza o seu percurso, quando percebemos o antes e o depois no movimento” [19]. Daqui dimana a célebre definição de tempo: "o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois". (Phys. Δ 11, 219b 1 s.).
A “percepção” do antes e do depois e,
portanto, do número do movimento, supõe
necessariamente a alma: “quanto (...) pensamos nos extremos como diferentes
do centro e a alma nos sugere que os instantes são dois, o antes e o depois,
dizemos então que por trás destes dois instantes há um tempo, já que o tempo parece
ser o que está determinado pelo instante; e isto permanece como fundamento) [20].
Mas se a alma é o princípio espiritual que numera e, portanto, a condição da
distinção entre o numerado e o número, nesse caso a alma é a conditio sine qua non do próprio tempo,
entendendo-se assim perfeitamente a aporia que Aristóteles apresenta nesta
passagem de incomensurável importância histórica. “Poderia (...) duvidar-se se
existe o tempo pelo menos sem a existência da alma. Na realidade, se não se
admitir a existência do numerante, é igualmente impossível que exista o
numerável, portanto, também não existiria o número. Pois, na realidade, número
é o que foi numerado ou o numerável. Mas,
se é certo que na natureza das coisas só a alma ou o intelecto que nela está
tem a capacidade de numerar, é impossível a existência do tempo sem a alma
(...)” [21].
Eis um pensamento que antecipa consideravelmente a perspectiva agostiniana e as
concepções espiritualistas do tempo, que até recentemente não teve a atenção
que merecia dos estudiosos.
Aristóteles precisou que, para medir o
tempo, se requer uma unidade de medida, e se exige também uma unidade de medida
para medir qualquer coisa. Temos de buscar esta medida no movimento uniforme e
perfeito; e, visto que o único movimento uniforme e perfeito é o circular,
deduz-se logicamente que o movimento das esferas e dos corpos celestes é a
unidade de medida. Deus e as inteligências motrizes, assim como estão fora do
espaço, estão também, enquanto imóveis, fora do tempo.
5. O infinito
Devemos, por fim, referir-nos ao conceito de infinito [22]. Aristóteles nega que exista o infinito em acto. Quando fala de infinito, refere-se sobretudo a um corpo infinito e os argumentos que aduz contra a existência de um infinito em acto visam precisamente a existência de um corpo infinito. O infinito existe só como potência ou em potência. Infinito em potência é, por exemplo, o número, porque sempre é possível acrescentar a qualquer número outro, sem jamais chegar a um limite extremo após o qual não mais se possa avançar; o infinito em potência é também o espaço, porque é divisível até ao infinito, enquanto o resultado da divisão é sempre uma grandeza que, como tal, é ulteriormente divisível; por fim, infinito potencial é também o tempo, que não pode existir simultaneamente na sua totalidade, mas se desenvolve e cresce sem fim.
Aristóteles não chegou a entrever nem de longe a ideia de que o imaterial possa ser infinito, porque associou o conceito de infinito à categoria de quantidade, que só se pode aplicar ao sensível. E explica-se também que o filósofo acabasse por adoptar definitivamente a ideia pitagórica (e, em geral, própria de quase toda a cultura grega), segundo a qual o finito é perfeito e o infinito é imperfeito. Escreve Aristóteles numa página paradigmática:
“Infinito é (...) aquilo fora do qual, se se tomar como quantidade, sempre é possível tomar alguma outra coisa. Pelo contrário, aquilo fora do qual nada há é perfeito e inteiro. Porque definimos assim o inteiro: aquilo a que nada falta, por exemplo, o homem inteiro. E tal como sucede no particular, assim se passa também no mais autêntico significado lógico, isto é, que o inteiro é aquilo fora do qual nada há; mas aquilo fora do qual há alguma coisa que lhe falta não é um todo, pois carece de alguma coisa. Pelo contrário, o inteiro e o perfeito são a mesma coisa em tudo e por tudo, ou algo semelhante por natureza. Mas nenhuma coisa que não tenha um fim é perfeita, e o fim é limite” [23].
Esta exposição ajuda-nos a compreender bastante bem a razão por que Aristóteles tinha de negar necessariamente a Deus o atributo da infinitude. Depois desta concepção do infinito como potencialidade e imperfeição, era forçoso eliminar a antiga intuição dos milésios, de Melisso e de Anaxágoras, que consideravam o Absoluto como infinito: semelhante intuição era excêntrica relativamente ao pensamento de toda a cultura grega e, para poder renascer, haveria que esperar a descoberta de ulteriores horizontes metafísicos.
6. A “quinta essência” e a divisão entre o
mundo sublunar e o mundo celeste
Aristóteles considerou a realidade sensível como dividida em duas esferas claramente diferenciadas entre si (já desde a época do tratado Sobre a filosofia); por um lado, o chamado mundo sublunar e, por outro, o mundo supralunar ou celeste, como assinalámos ao referir-nos à metafísica. Aqui devemos explicar as razões desta diferenciação.
O mundo sublunar caracteriza-se por todas as formas de mudança, entre as quais predomina a geração e a corrupção. Os céus caracterizam-se exclusivamente pelo movimento local e, mais concretamente, pelo movimento circular. Nas esferas celestes e nos astros não pode haver nem geração, nem corrupção, nem alteração, nem aumento, nem diminuição (em todas as épocas os homens viram os céus tal como hoje os vemos; assim, pois, a própria experiência nos diz que são sempre iguais e que, portanto, é preciso concluir que nunca nasceram e, assim como não nasceram, são também indestrutíveis). A diferença entre esfera supralunar e esfera sublunar, esferas que são, por outro lado, igualmente sensíveis, consiste na diferente matéria de que são formadas:
“E, se existe algo movido eternamente, nem sequer tal coisa pode ser movida segundo a potência, a não ser passando de um ponto a outro (como se movem precisamente os céus). E nada impede que exista uma matéria própria deste tipo de movimento. Por esta razão, o sol, os astros e todo o céu estão sempre em acto; e não há porque recear que tais astros se detenham em certo momento, como temem os físicos. Nem se cansam de realizar o seu percurso, porque o seu movimento não é como o das coisas corruptíveis, ligado à potência dos contrários, o que tornaria laboriosa a continuidade do movimento” [24].
Esta matéria corruptível, que é potência dos contrários, é dada pelos
quatro elementos (terra, água, ar e fogo) que Aristóteles, em contraposição a Empédocles afeiçoado às ideias eleatas, considera transformáveis um no outro,
justamente para explicar mais a fundo do que este último autor a geração e a
corrução. Pelo contrário, a outra matéria que só possui a potência de passar de
um ponto a outro e que, portanto, só é susceptível de receber o movimento
local, é o éter, assim chamado porque
sempre flui (aei thein) [25],
e ao qual se deu o nome de “quinta substância”, porque se acrescenta às quatro
substâncias dos outros elementos (água, ar, terra e fogo). E enquanto o
movimento característico dos quatro elementos é rectílinio (os elementos
pesados movem-se de cima para baixo, e os leves de baixo para cima), o do éter,
pelo contrário, é circular (portanto, o éter não é nem pesado nem leve). O éter
não foi gerado, não é corruptível, não está submetido ao desenvolvimento nem à
alteração, nem a outras modalidades que implicam estes movimentos, e por este
motivo são também incorruptíveis os céus, formados de éter. Esta convicção de Aristóteles
subsistirá ao longo de todo o pensamento medieval; só no início da era moderna
desaparecerá a distinção entre o mundo sublunar e supralunar, conjuntamente com
os seus pressupostos determinantes.
Dissemos, no começo, que a física
aristotélica (e também grande parte da sua cosmologia) é, na realidade, uma metafísica do sensível; assim, pois, o
leitor não ficará surpreendido ao observar que a física está repleta de
considerações metafísicas e que, além disso, culmina na demonstração da
existência de um Primeiro Motor imóvel; convencido radicalmente de que, “se não
existisse o eterno, também não existiria o devir”, o Estagirita coroou as suas investigações
físicas demonstrando pontualmente a existência deste princípio. Uma vez mais se
manifesta como absolutamente determinante o resultado da “segunda navegação” a
que se refere Platão no seu Fédon [26].
[1] Cf. Metaph. E 1, 1025b 18 ss.
[2] Sobre o conceito aristotélico de
natureza, cf. O. Hamelin, Aristote,
Physique II, Paris, 1931 e A. Mansion, Introduction
à la Phsyque aristotélicienne, Lovaina-Paris, 1945, p. 92 ss.
[3] Cf. Phys. Γ 1, 201a 10 ss; Metaph. 1065b 33.
[4] Cf. Phys. Γ 1-2; Metaph. K 9.
[5]
Cf. Phys. A 5ss; E 1-2.
[6]
Cf. Phys. B, em part. 7-8.
[7] Phys. B 4-6, a cujo respeito se pode ver Mansion, op. cit., pp. 292-314.
[8] Cf. Phys. Δ passim.
[9] Phys. Δ 1, 208b 6 ss.
[10] Phys. Δ 1, 208b 19-21.
[11] Phys. Δ 2, 209b 31 ss.
[12] Phys. Δ 4, 211a 34s e 212a 5 ss.
[13] Phys. Δ 4, 212a 14-21.
[14] Phys. Δ 5, 212b 16-22.
[16] À doutrina aristotélica do tempo
dedicou um exame exaustivo J.-M. Dubois. Le
temps et l’instant selon Aristote, Paris, 1967. Veja-se também L. Ruggiu, Tempo, conscienza e essere nella filosofia
di Aristotele, Brescia 1968.
[17] Phys. Δ 10, 218b 32-218a 8.
[18] Phys. Δ 11, 218b 21-23.
[19] Phys. Δ 11, 219a 22-25.
[20] Phys. Δ 11, 219a 26-30.
[21] Phys. Δ 14, 223a 21-26 (o itálico é nosso).
[22] Phys. Γ 4-8.
[23] Phys. Γ 6, 207a 7-15.
[24] Metaph. Θ 8, 1050b 20-27.
[25] De caelo A 3 270b 22
s.
[26] Uma interpretação moderna da física aristotélica, em grande parte contrária à nossa, é a de W. Wieland, Die aristotelische Physik, Gotinga 1962.
Ἀριστοτέλης |
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