Escrito por Franco Nogueira
«Lisboa, 7 de Agosto de 1961 - Recebi a seu pedido o embaixador dos Estados Unidos, Elbrick, que em nome do seu Governo, e por instruções formais recebidas de Washington, me fez a seguinte comunicação verbal: "O apoio dos Estados Unidos ao conceito de autodeterminação de modo nenhum implica o apoio americano a quaisquer aspirações intervencionistas ou expansionistas ou a ataques depredatórios contra territórios ultramarinos portugueses por parte de outras nações. Pelo contrário, os Estados Unidos sem dúvida se oporiam, nos planos político, diplomático e nas Nações Unidas, a quaisquer tentativas de estados vizinhos de anexarem territórios ultramarinos portugueses".
Agradeci ao embaixador esta comunicação. E levantei três pontos: a) se me poderia fazer a mesma comunicação em forma escrita: b) se o Governo dos Estados Unidos tencionava levá-la ao conhecimento dos Governos que tinham intenções de anexar territórios portugueses: c) se se poderia tornar público o teor da comunicação, por uma forma a combinar entre o Governo português e o Governo norte-americano. Elbrick respondeu que não tinha instruções, e que ia procurar obtê-las de modo a responder às minhas perguntas. Salientei ao embaixador que o valor do que acabava de me dizer dependia da publicidade que lhe fosse dada.
(...) Lisboa, 9 de Dezembro de 1961 - O conselheiro da Embaixada dos Estados Unidos, Xanthaky, telefonou-me pelas 13.15 horas e informou-me de que o Governo americano tinha feito junto do Governo indiano, por intermédio do embaixador indiano em Washington, uma diligência do teor seguinte: "Em 8 de Dezembro de manhã, o embaixador Nehru [sobrinho do primeiro-ministro indiano] foi informado de que a actual situação relativamente a Goa levou ao Governo português a exprimir a sua profunda preocupação ao Governo dos Estados Unidos. Além disso, por parte do próprio Governo dos Estados Unidos, têm sido dirigidas ao Departamento de Estado perguntas no sentido de saber se o Governo indiano tenciona usar a força para resolver a questão de Goa. Foi dito ao embaixador Nehru que o Departamento tem partido da presunção de que o Governo da Índia não usará a força, uma vez que afirmou que o não faria. Também se tem presumido que o uso da força seria contrário à política fundamental da Índia e muito prejudicaria a imagem da Índia no mundo. Tem-se notado movimentos de tropas, mas presume-se que não serão prelúdio a uma invasão. Foi expressa ao embaixador a esperança de que pudesse confirmar serem correctas aquelas presunções. Foi-lhe salientado que a posição dos Estados Unidos era de oposição ao uso da força, e que se algumas tropas atravessassem a fronteira legal, deveria esperar-se que o assunto fosse apresentado ao Conselho de Segurança, onde a atitude dos Estados Unidos seria de oposição a qualquer acção militar".
Xanthaky acrescentou que o embaixador indiano havia dito ir transmitir a Nova Delhi a comunicação que recebera.
Agradeci a Xanthaky, e disse-lhe que me parecia essencial receber o embaixador dos Estados Unidos na Índia instruções para fazer idêntica diligência em Delhi. Pedi também que me informasse da reacção indiana à diligência».
Franco Nogueira («Diálogos Interditos»).
[No] mês de Setembro de 1961 agravam-se mais e mais as preocupações de Lisboa pelo destino da Índia Portuguesa. Informações de agentes portugueses na União Indiana indicam que, de harmonia certamente com decisões políticas do governo central, há uma concentração de meios militares nas proximidades de Goa, Damão e Diu; e os serviços paquistaneses, sempre muito atentos a movimentos de tropas indianas, corroboram os elementos obtidos pelos portugueses, e pormenorizam mesmo as unidades mobilizadas, seu armamento, seus efectivos. Julga então o governo de Lisboa que se impõe denunciar perante o mundo o que bem podem ser os preparativos de uma agressão. Em nota oficiosa do Ministério dos Estrangeiros, da primeira quinzena de Setembro, são recordadas as declarações feitas ao Parlamento por Nehru, e que não foram desmentidas ou corrigidas. Depois o governo português observa que foram feitas ameaças de recurso à força, o que contraria o direito internacional e a Carta da ONU, que a União Indiana subscreveu; e comenta que o uso da força armada não está previsto como meio de resolver conflitos internacionais. Nega ainda o governo português todas as insinuações indianas quanto à situação em Goa, e acusa o governo de Nova Deli de faltar à verdade e de saber que falta à verdade. E de toda esta denúncia dos propósitos agressivos da Índia são avisados o Conselho de Segurança e os círculos das Nações Unidas, e Portugal constitui o mundo em testemunha do que parece preparar-se. Mas justamente na mesma altura o primeiro-ministro Nehru encontra-se em Moscovo para uma visita oficial e, sem conhecer a nota portuguesa no momento em que fala, declara que fazer a guerra a quem quer que seja constitui um acto de estupidez.
(...) De maior importância para Portugal, e de maior inquietação são os desenvolvimentos que afectam Goa, e que agravam o pessimismo de Lisboa. Em resposta à nota portuguesa sobre o direito de passagem para Dadrá e Nagar Aveli, o governo de Nova Deli afirma que os enclaves passaram a constituir parte integrante da União Indiana, pelo que deixaram de ser relevantes os problemas ali suscitados; mas o gabinete de Lisboa considera que a decisão indiana, constitui acto de força, ataque à sentença do tribunal da Haia, e desrespeito da Carta da ONU; declara que o não reconhece; e eleva seu protesto, entendendo que a sentença da Haia está intacta. Mais perturbadoras, todavia, são as notícias relativas à intensificação dos preparativos militares da União Indiana em torno de Goa. Num seminário organizado em Nova Deli sobre
«colónias portuguesas», o primeiro-ministro Nehru faz ameaças de emprego da força contra Goa; e jornais de língua inglesa, em correspondências de Bombaim, prevêem um ataque militar a Goa no decurso dos próximos dois meses, e alguns sugerem a possibilidade de Portugal ser confrontado com um ultimatum. E o ministro da Defesa, Menon, não cessa de advogar a ocupação violenta de Goa. Para os seus colaboradores, no entanto, Oliveira Salazar duvida de que Nehru destrua a base essencial da sua própria política, e invada Goa.
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Tropas portuguesas em Goa
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(...) Em Lisboa, os departamentos ligados ao problema - Defesa, Ultramar, Estrangeiros - compreendem que Nehru deve ter tomado, na continuação de um estado de espírito que é o seu desde Agosto pelo menos, a decisão de um ataque militar a Goa, Damão e Diu, e em breve. Em 3 de Dezembro de 1961, são avisadas as embaixadas de Portugal em Londres, Paris, Rio de Janeiro e Washington, e instruídas para convidar representantes dos grandes jornais a ir a Goa, e verificar como são normais as condições de vida, e não existe opressão ou terror, ao contrário do que sem cessar proclama o governo de Nova Deli. Depois, nos dias imediatos, multiplicam-se os sinais de agressão, e as informações tornam-se mais precisas. Num comício em Calcutá, Nehru afirma que os princípios da política indiana não podem ser abandonados à pressa, e qualquer desvio pode envolver o país numa cilada, e desencadear um conflito de grandes proporções; mas uma coisa haverá de ter-se por certa, e essa é o fim próximo das
«bolsas portuguesas» em território indiano. Ao largo de Damão e Diu cruzam avisos de guerra indianos; e em águas contíguas a Goa paira o porta-aviões
Vikrant. De Nova Deli, serviços portugueses e paquistaneses obtêm dados seguros: em comboios saídos do Punjab e de Uttar Pradesh, e com destino à fronteira de Goa, foram embarcadas tropas; são observados outros comboios que transportam carros armados, tanques ligeiros e artilharia antiaérea; e em muitas unidades do Exército, da Marinha e da Força Aérea haviam sido anuladas as licenças de oficiais. Simultaneamente, intervém um novo factor: na fronteira norte da Índia, as forças chinesas, sempre presentes como elementos de ameaça, aumentam a sua pressão, e agora atravessam a linha raiana e ocupam mesmo alguns quilómetros quadrados do território indiano. No Paquistão, e em outros países atlânticos, pergunta-se: se para se considerar
«liberta» a Índia diz ter de ocupar Goa, que não é sua, como deverá então sentir-se se não expulsar o exército chinês de território que é efectivamente indiano? Posto assim o problema, duas respostas, segundo se pensa em Lisboa, são possíveis: ou o governo de Nova Deli recua quanto a Goa, para não se dizer que ataca um fraco enquanto fica inerte perante um forte, ou invade Goa para se apresentar ao povo indiano com um triunfo, fácil em si, mas que será classificado de difícil. Oliveira Salazar não acredita que Nehru sacrifique um passado e uma política, que lhe deram prestígio e audiência mundial, por causa de Goa. E pergunta aos seus colaboradores:
«como vai ele sair disto».
Em 6 de Dezembro de 1961, o embaixador dos Estados Unidos é convocado às Necessidades, e é feita uma pergunta: que valor tem a comunicação oficial americana, de 7 de Agosto, de que os Estados Unidos se oporiam política e diplomaticamente, e nas Nações Unidas, à anexação de territórios portugueses por países vizinhos? Tem todo o valor a comunicação, e mantém-se. Então devia ser levada ao conhecimento do governo indiano, que tem precisamente aqueles desígnios. Elbrick cinge-se a dizer que vai transmitir a pergunta a Washington, com urgência. Entretanto, as chancelarias das potências começam a estar conscientes da ameaça sobre Goa. Luns, ministro dos Estrangeiros da Holanda, encontra-se com o secretário de Estado britânico, Lord Home, e este não lhe esconde a sua inquietação; e Home acrescenta que uma divisão indiana acaba de ser transferida da fronteira com a China para as proximidades de Goa. No Rio de Janeiro, a posição portuguesa é encarada favoravelmente; importantes orgãos da imprensa despacham para Goa os seus correspondentes; e mesmo o Itamaraty não esconde o seu repúdio por qualquer acção violenta da parte de Nova Deli. No
Foreign Office há algum embaraço: de um lado, está o mais antigo aliado da Inglaterra, e reconhece-se que a aliança está em pleno vigor; do outro lado, está um importante país da comunidade britânica, onde para mais a Inglaterra tem altos interesses económicos e financeiros. Não se ignoram estes factos em Lisboa, nem se esquece a declaração oficial britânica de 5 de Agosto do Reino Unido; mas nem por isso o embaixador britânico, Sir Archibald Ross, deixa de ser chamado às Necessidades, e o ministro português solicita-lhe que transmita ao seu governo o pedido de uma intervenção política urgente em Nova Deli. Ross comenta que as suas informações não confirmam a gravidade da situação de Goa; mas encaminhará o pedido. Jornalistas americanos, franceses, paquistaneses, britânicos, outros ainda, começam a chegar a Goa. Novas informações são obtidas pelo governo português: duas brigadas de infantaria, dois esquadrões de tanques, duas brigadas couraçadas foram transferidas para Belgão, perto da fronteira de Goa; duas esquadrilhas de bombardeiros ligeiros e duas de reconhecimento encontram-se em Poona; mais de trinta mil homens estão afectados às operações; é estabelecido um quartel-general sob o general Candeth; e o comando operacional é entregue ao general Chaudhuri. Não parecem lícitas mais dúvidas sobre os propósitos indianos. E em Lisboa o ministro dos Estrangeiros, em reunião com a imprensa, põe o país no conhecimento de todos os pormenores, de todos os perigos, e denuncia em termos brutais a hipocrisia, os propósitos agressivos, a duplicidade da União Indiana.
Decorrem as horas e adensa-se a atmosfera de crise. Oliveira Salazar dedica ao problema uma
atenção intensa, ávida, exclusiva: vive dramática e dolorosamente o destino de Goa. Está calmo, no entanto, e lúcido, senhor de si: domina os nervos a poder de vontade. Visita a nova grande sala da ponte sobre o Tejo; recebe a comissão dos Negócios Estrangeiros do Senado dos Estados Unidos. Em contacto permanente com os departamentos da Defesa, dos Estrangeiros, do Ultramar, mantém-se acordado e activo até altas horas da noite. Entende que nenhum esforço é excessivo para salvar Goa. Não acredita na sinceridade de Nehru, nem no seu pacifismo; mas julga-o homem inteligente e incapaz de cometer um erro político de envergadura. Salazar repete e repete:
«Goa é uma jóia de família, de uma família antiga, de grandes tradições. Temos de a conservar na família».
Em 8 de Dezembro, o ministério dos Estrangeiros publica uma extensa nota oficiosa. Nos últimos dias, afirma o texto, o governo indiano tem declarado que forças militares portuguesas cometem actos agressivos na fronteira indo-portuguesa, ou ameaçam a paz e a segurança da União. Não é verdade: tem sido o governo português que, pelo contrário, se tem abstido de reagir às provocações indianas e às violações de fronteira praticadas pelas forças de Nova Deli. Mas há dúvidas? Então o
«Governo Português propõe formal e solenemente o envio de observadores internacionais independentes para a fronteira indo-portuguesa com o encargo de verificar a atitude das forças em presença e determinar a natureza e responsabilidade de quaisquer incidentes que se possam produzir». A estas intenções pacíficas espera-se que corresponda o governo indiano com o mesmo espírito. Por outro lado, enquanto esta proposta é submetida ao governo de Nova Deli por intermédio do Brasil, o governo de Lisboa apresenta o assunto ao Conselho de Segurança, com o fundamento de que Portugal é vítima de uma agressão não-provocada que
«constitui grave ameaça à paz e à segurança». Todas as missões de Portugal no estrangeiro desenvolvem agora intensa actividade: procuram persuadir os governos locais a apoiar a proposta portuguesa e a condenar publicamente qualquer recurso à força, e mobilizam em favor de Goa os meios políticos e de imprensa. Naquele dia 8, Elbrick é de novo convocado às Necessidades: é exacto haver o secretário de Estado Dean Rusk declarado que, na disputa entre a Índia e Portugal, os Estados Unidos não querem tomar partido? E é exacto haver acrescentado que considerava animador o facto de ambas as partes terem prometido resolver o dissídio pacificamente?
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Dean Rusk e J.F. Kennedy
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Se às perguntas for afirmativa a resposta, então dois comentários são pertinentes: se os Estados Unidos se opunham, como formalmente disseram a Portugal, à anexação de territórios portugueses por Estados vizinhos, como podem agora recusar-se a tomar partido, quando precisamente se verifica a hipótese? E que intenções ou promessas pacíficas tem demonstrado ou feito a União Indiana? Elbrick não sabe, vai informar-se; e qualquer atitude pública de Rusk pode não coincidir, necessariamente, com a que haja tomado junto do governo de Nova Deli. Decerto: mas então por que não foi informado o governo de Lisboa? No mesmo dia, pouco antes da meia-noite, Pedro Theotónio avista-se em Washington com Dean Rusk. Este informa que praticou uma diligência junto do governo indiano e está convencido de que a União não atacará Goa; e acrescenta que o embaixador de Nova Deli acaba de lhe falar numa declaração de Nehru, de há pouco, afastando a hipótese de uso da força. Elbrick confirma nas Necessidades a diligência do secretário de Estado. E pormenoriza: foi dito ao embaixador indiano em Washington que o governo dos Estados Unidos parte da presunção de que o governo da Índia não recorrerá à força, uma vez que afirmou que o não faria; também se lhe afigura que o uso da força é contrário à política fundamental da Índia e muito prejudicaria a imagem da Índia no mundo; têm sido notados movimentos de tropas, mas não se pensa que sejam prelúdio de uma invasão; espera-se que estas presunções possam ser confirmadas por Nova Deli como correctas; e foi por último salientado ao enviado indiano que os Estados Unidos tinham uma atitude de oposição ao uso da força e que, se algumas tropas atravessassem a fronteira legal, deveria a Índia esperar uma convocação do Conselho de Segurança, onde os Estados Unidos manteriam aquela atitude. Entretanto, em Londres, o embaixador Manuel Rocheta repete no
Foreign Office as diligências de Lisboa, e é-lhe dito que o secretário de Estado continua preocupado, decerto, mas o governo britânico acredita que a União Indiana não recorrerá ao uso da força. Manuel Rocheta reage: não se sente tão optimista como o
Foreign Office. Em Goa, os responsáveis militares aperfeiçoam as medidas de defesa; e o ministério da Ultramar organiza o embarque de mulheres e crianças, em aviões portugueses que continuam a manter a regularidade das carreiras. E o governador-geral, general Vassalo e Silva, informa que é de serena normalidade a situação interna em Goa. Pela imprensa mundial multiplicam-se os relatos dos correspondentes que continuam a afluir ao território: os menos simpatizantes com a posição de Lisboa não deixam de sublinhar que a população quer ser portuguesa e que é absurdo a União Indiana considerar a existência de Goa como uma ameaça.
Nas quarenta e oito horas seguintes, o gabinete de Lisboa continua pelo mundo a sua campanha incansável. Junto dos governos com que Portugal tem relações diplomáticas, são renovadas diligências prementes: insiste o governo de Lisboa por uma declaração pública reprovando a agressão militar, ou a simples ameaça. Alguns governos têm as suas atenções presas de outro problema que de súbito de agrava: as forças das Nações Unidas na República do Congo acabam de iniciar uma nova ofensiva, agora com poderosos meios de guerra, contra a província do Catanga: e o novo secretário-geral da ONU, U Thant, que sucedeu a Hammarskjold, está absorvido inteiramente com os acontecimentos. Lisboa também sente inquietação por esse motivo: na fronteira de Angola lavra de novo a guerra: do facto beneficia o terrorismo: e além dos aspectos de segurança, as autoridades têm de cuidar dos refugiados que aos milhares afluem ao território português. De todo o lado se erguem problemas ao governo de Lisboa. E dos agentes portugueses vem a confirmação, no dia 10 de Dezembro, de que prossegue a montagem do ataque militar contra Goa: uma brigada de pára-quedistas foi transportada para Poona; mais unidades blindadas foram transferidas para Belgão; o corpo diplomático estrangeiro em Deli está convicto de que Nehru já não recuará; a operação está marcada para o dia 12, em princípio, ou para a data limite de 15 de Dezembro. É um Domingo aquele dia 10 de Dezembro: Oliveira Salazar passa-o na leitura e meditação dos relatórios telegráficos que chegam de minuto a minuto e em reunião, quase permanente, com os ministros mais directamente envolvidos na crise (in
Salazar, Livraria Civilização Editora, 1984, V, pp. 330-331; 347-348; 352-357).
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Oliveira Salazar
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Continua
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