quarta-feira, 10 de maio de 2023

"As forças que romperam os laços entre Portugal e o Ultramar não se apoiaram na vontade das populações ultramarinas, nem na do povo português"

Escrito por António Cabral de Moncada 



«Portugal mantivera durante a guerra uma escrupulosa neutralidade. De igual modo agiu a Espanha. Foi difícil e por vezes precário o equilíbrio da Península. Madrid cultivava boas relações com as potências do Eixo. Lisboa colaborava discretamente com os Aliados. No fundo, entendiam-se as duas capitais para salvaguarda da paz peninsular. Para o fim das hostilidades, foram assinalados os serviços de Portugal para os Aliados: proibição das exportações de volfrâmio para o Eixo, cedência de bases nos Açores, colaboração política geral. No termo da guerra, e tendo ganho a sua paz, era impecável a posição portuguesa. Pediram os vencedores que Portugal ingressasse como membro fundador no Pacto do Atlântico. Solicitaram-lhe depois que apresentasse a sua candidatura às Nações Unidas. Garantias escritas, em particular por carta do Presidente Roosevelt para o Dr. Salazar e por notas do Governo Britânico, foram dadas quanto à soberania portuguesa em todo o Ultramar. Por outro lado, a nossa construção política e sociológica nada tinha de semelhante à dos impérios coloniais que haviam sido constituídos no século XX. Possuía assim legitimidade a convicção de que se reconhecia o particularismo da posição portuguesa, e de que não deveríamos com justiça ser fustigados pelos ventos anticolonialistas. Poderá hoje arguir-se que fiámos em demasia daquela convicção a nossa tranquilidade. No âmbito dos territórios, não tomámos as medidas de segurança que prudentemente se impunham. Mas será grosseiro erro pensar que essas medidas, se adoptadas, teriam sido eficazes o que basta para nos abrigar das forças desencadeadas. Estas estavam ao serviço e representavam altos desígnios imperiais que encontravam no seu caminho o obstáculo português: foram esquecidas as garantias, foram retiradas as promessas: e na sua luta global os novos impérios decidiram que a recusa de Portugal em ceder aos clamores do Terceiro Mundo representava um estorvo intolerável. Foi assim prontamente hostilizada a posição portuguesa. Portugal tinha que fazer uma dupla opção: quanto à política nacional a seguir e quanto à maneira de enfrentar as forças de ataque. Num caso, havia que avaliar com precisão os interesses portugueses. No outro, era indispensável um juízo seguro quanto às possibilidades que possuíam aquelas forças, no tempo e no espaço, e quanto às que nós próprios possuímos. Era o ano de 1961

Franco Nogueira («Fundamentos de uma Política», in «Debate Singular»).


«Profundo e ambicioso no saber, clássico e claríssimo na exposição, deixa-nos um livro excelente – As Crises e os Homens – e um legado único, a biografia de Salazar, que retrata a personalidade ímpar do estadista e toda a História de uma época.

Com a morte de Salazar abandona as lides do Estado. Eram outros os seus desígnios e por mais respeito que lhe merecesse Marcello Caetano, não esconde a sua preocupação no evoluir da política seguida quanto ao Ultramar, e sintetiza a dado momento: “Com a revolução de Abril de 1974 praticou-se um corte com o passado. Muitas forças procuraram, e acaso algumas procuram, que esse corte, além de drástico, seja absoluto: uma rotura com o passado e não apenas com um certo passado. Foi assim posto em causa o próprio facto nacional, e tentou-se a destruição do homem português na sua dimensão psicológica, sociológica, cultural, histórica, em suma, como homem diferenciado com alicerces próprios, autónomos”.

Durante o curto período de 1970 a 1974 entregou-se afincadamente ao estudo da História orientado pelos valores que constituem o nosso património cultural, espiritual, artístico, e pela defesa intransigente da nossa individualidade política. Como tal foi convidado a participar em congressos, colóquios, reuniões ou simples encontros, ou foi colunista na nossa imprensa, quer a nível nacional quer no plano internacional, dando testemunho do que mais tarde viria a denominar “crepúsculo nacional”, que bem pode preludiar uma noite definitiva, como escreveu em Um Político Confessa-se.

O facto é que o seu vaticínio se torna realidade, e, em 1974, Portugal, “a Nação Peregrina em Terra Alheia”, atinge o seu termo. O resto é do domínio público.

Franco Nogueira, como muitos outros, é então preso por malfeitor, fica incomunicável durante meses, e quando o visito no Hospital de Santa Maria, vítima de um enfarte do miocárdio, rodeado pela mais severa segurança, encontro-o resignado e com bonomia a conversar com os médicos que o escutavam atentamente. Regressa a Caxias e, meses após, inexplicavelmente, é liberto em 13 de Maio de 1976, data que ele nunca esqueceu, principalmente por coincidir com o aniversário da primeira aparição em Fátima.

Pouco depois parte para o exílio, em Londres, onde habita um apartamento em St. James. Como diplomata, ministro e homem público, conquistara verdadeiros admiradores que o acolhem na sua permanência em Londres, embora convidado por outros países, como os Estados Unidos da América. O Clube dos Conservadores abre-lhe as portas, com a particularidade de ser o único estrangeiro que o podia frequentar e convidar pessoas das suas relações. Em Londres deixa amizades. No exílio, sempre com Portugal como preocupação prioritária, estuda e lê, prossegue a biografia de Salazar. Cultiva o humanismo no sentido mais amplo do termo, como me escreve por essa ocasião.

No regresso de Londres, talvez por 1981, dado o seu permanente e constante fervor patriótico, Franco Nogueira vive intensamente o desenrolar dos acontecimentos políticos. Fala-se da nossa adesão à C.E.E., na unidade económica e política da Europa. As elites ou classes bem-pensantes achavam-se no poder, e o povo, a nação, completamente à deriva. Desde 1974, encontrava-se uma sociedade doente, anárquica, negativa, derrotista, sem querer, sem ideal, arrastada por valores fugazes e falsos; os responsáveis, pautados por princípios tendentes a abandonar património material e espiritual, confundem Portugal com tudo o que é alheio a Portugal.»

António Maria M. Pinheiro Torres («Franco Nogueira e a Unidade Nacional»).

«Durante a administração republicana de Eisenhower, as teses portuguesas encontraram em Washington uma larga medida de compreensão e apoio. Solidariedade com o Ocidente europeu, respeito pela legalidade, conservadorismo nas ideias, contenção do comunismo no Mundo, eram alguns dos traços determinantes da política externa de Eisenhower e de Foster Dulles. Mas as eleições de 1961 trouxeram ao poder uma administração democrática. Foi revolvida toda a orientação dos Estados Unidos. Apossaram-se de Washington os intelectuais e teóricos de Harvard. Então, obrigações contraídas, solidariedades morais, princípios legais foram abandonados e postos de parte; de um discreto isolacionismo, que procurava equilibrar um imperialismo suavizado, saltou-se para um intervencionismo internacionalista; desapareceram as inibições e os escrúpulos; e lançou-se a ideia do messianismo americano, escudado no altruísmo de promover sociedades pletóricas ou “afluentes” em todas as paragens, de garantir com o sacrifício americano uma ordem mundial baseada no destino livre dos povos, de assegurar a contenção do comunismo utilizando os seus métodos e processos. Os instrumentos forjados surgiram sob o lema da generosidade: a “Aliança para o progresso”, quanto à América Latina; o “Corpo de Paz”, para a África; o mito da “integração europeia”, para a Europa Ocidental; e a intervenção no Vietname. Era o globalismo imperial americano. Era o uso inexorável do poderio dos Estados Unidos para moldar à sua feição governos e sociedades noutros países. Era a política da “Nova Fronteira”. Simbolizava-a o Presidente Kennedy, e Galbraith, Stevenson, Schlesinger, Fredericks, Goodwin, Sorensen, Robert Kennedy, Bowles, Bundy, Rostow, Williams, eram os seus teorizadores e inspiradores; e no plano externo Dean Rusk e George Ball eram executores que procuravam manter um equilíbrio difícil. Encontrávamo-nos perante um facto político novo: e os Estados Unidos constituíam um poder real no Mundo e, ao invés das Nações Unidas, dispunham de meios eficazes de intervenção militar, económica e política. Tratava-se de saber, portanto, se a política da “nova fronteira” correspondia aos interesses constantes dos Estados Unidos e se estes poderiam mantê-la por tempo indefinido. Tratava-se de saber se os Estados Unidos seriam os “polícias” indisputados do mundo. Indispensável se tornava, assim, chegar a um juízo aprofundado e realista do poderio e dos objectivos americanos e da sua capacidade de executarem a nova política no contexto mundial. Na superfície, parecia irresistível o vigor do espírito que animava a “nova fronteira”. Mas por detrás do imediato e do exterior ocultavam-se outros factores. Não estavam sós os Estados Unidos, e a sua hostilidade contra Portugal inseria-se numa luta planetária. Conduzia igualmente um combate global a União Soviética. Decerto: a Rússia era também anticolonialista e, nesse particular, era paralela da dos Estados Unidos a política de Moscovo: mas apenas até ao limite em que uma atitude anticolonialista não favorecesse excessivamente os americanos e não alterasse, em favor destes, o equilíbrio de forças e de posições estratégicas. Daqui haveria que concluir: nas áreas em que a Rússia pudesse depois agir livremente, esta acompanharia Washington numa política anticolonialista levada até aos extremos limites: e isso significava que, sem se darem conta, os Estados Unidos estavam praticando o jogo de Moscovo. Foi o caso do Suez, que abriu as portas do Médio Oriente e do Mediterrâneo à Rússia. Mas quanto às áreas em que, depois de “libertas” do colonialismo, não fosse fácil a acção ulterior de Moscovo, então a União Soviética revelar-se-ia muito mais prudente e discreta: não podendo intervir, não consentiria também que os Estados Unidos interviessem. Com efeito, Moscovo sabia que Washington não permitiria que as posições portuguesas de África e do Atlântico caíssem na órbita da União Soviética; mas esta igualmente não desejava que os Estados Unidos abalassem e desmantelassem a soberania portuguesa ao ponto de ficarem na dependência e contrôle americano aquelas posições. Quer dizer: o problema português era um daqueles (como viria a ser o da Rodésia e o da África do Sul) em que se não verificava acordo entre as grandes potências no quadro da O. N. U. e portanto esta, ao serem encaradas medidas extremas, ficava paralisada. No fundo, o “statu quo” português em África ainda era a solução que melhor traduzia o interesse das duas maiores potências: favorecia a União Soviética, porque eximia ao contrôle directo dos Estados Unidos as posições de Portugal; e favorecia estes porque, em caso de crise grave ou guerra, poderiam contar com a colaboração portuguesa. Mas estes aspectos, importantes em si, não esgotavam o problema quanto aos Estados Unidos. Estes e Portugal eram aliados no Tratado do Atlântico: se contrariássemos a política americana, Washington tinha um de dois caminhos: ou fazer-nos a guerra ou fazer-nos concessões: não podendo enveredar pela primeira alternativa, tinha que adoptar a segunda: e as concessões traduziam-se em nos deixar subsistir, sem embargo de nos poderem criar toda a sorte de dificuldades políticas ostensivas e outras ocultas. Mas estas não eram insuperáveis, e para as vencer poderíamos recorrer a outros meios. Por outro lado, e ao contrário do que os teóricos da “nova fronteira” pareciam acreditar, eram de prever ulteriores desenvolvimentos: os recursos americanos não eram inesgotáveis, e não podiam assegurar a intervenção americana, maciça e em força, no mundo inteiro e ao mesmo tempo: mais tarde ou mais cedo, Washington tinha de escolher. Também ao invés do que supunham os políticos da “nova fronteira”, o apoio dado ao Terceiro Mundo não suscitaria neste qualquer gratidão, nem esta teria significado político ou material, precisamente pela mesma razão por que não tinha significado a actuação dos novos países na O. N. U., isto é, por não terem força nem poder real. Não seria assim o Terceiro Mundo auxiliar válido e eficaz dos Estados Unidos. Era por isso fatal a desilusão americana; e, verificada esta, teriam os Estados Unidos de se voltar para os seus velhos aliados, únicos que efectivamente os poderiam ajudar em caso de conflito ou guerra. A “nova fronteira”, pelo seu artificialismo e demagogia, não poderia além disso deixar de suscitar fadiga no povo americano, e este ficaria a um passo do regresso ao isolacionismo. Finalmente, a Europa Ocidental estava reganhando forças, e tomando consciência da sua excessiva subordinação a Washington: para se libertar desta todos os apoios fora da Europa seriam úteis. Este facto deveria traduzir-se numa crescente compreensão franco-alemã para com a política portuguesa, e numa diminuição da hostilidade britânica. Ponderados serenamente todos estes factores, a política parecia dever consistir em aguentar a pressão americana até que o curso implacável dos acontecimentos fizesse evoluir a atitude dos Estados Unidos.»

Franco Nogueira («Fundamentos de uma Política», in «Debate Singular»).



Posse de Alberto Franco Nogueira como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 2.º plano: Marcello Mathias, Ministro cessante (Lisboa, 1961).


DEPOIMENTO


Não tive ocasião de trabalhar sob a orientação directa do Embaixador Alberto Franco Nogueira na tarefa principal da sua vida, que consistiu no apoio que prestou a nível diplomático à defesa e ao fomento das populações e dos territórios ultramarinos sob responsabilidade portuguesa. Essa defesa e esse fomento, desfigurados acintosamente em areópagos internacionais como opressão e estagnação, foram também uma das missões históricas do povo e dos governos portugueses, prosseguidos pior ou melhor desde pelo menos a Restauração em 1640 até ao seu abandono, em 1974.

A convergência da tarefa principal da vida de Franco Nogueira com uma das missões principais do povo português confere àquela uma ressonância colectiva que as bruscas mutações políticas introduzidas em 1974 não conseguem silenciar: tanto mais alta quanto mais violentos foram os ataques contra a causa portuguesa, e tanto mais ampla quanto mais extensa e longamente foi correspondida pelos sentimentos e pelas acções das populações e dos soldados de Portugal.

Por mais acessória e longínqua que tenha sido a minha actividade em relação àquela tarefa, e portanto por menos exacto que seja o meu conhecimento a respeito das circunstâncias internas, políticas e governativas, que a condicionaram, a admiração que me inspirou o exemplo de carácter, inteligência e dedicação patriótica dado por Franco Nogueira não me consente responder com o silêncio ao convite para tomar parte nesta homenagem à sua memória.

Limita-se esta participação a uma contribuição para o esclarecimento de três teses afirmadas insistentemente, sob várias formas, à sombra das quais tem sido apreciada a tarefa de Franco Nogueira. A saber:

1. A pressão internacional exercida pelas superpotências sobre as Províncias Ultramarinas desde 1956, directamente ou através da ONU, tinha por finalidade libertar os povos locais.

2. A política ultramarina portuguesa consistia na repressão e na subordinação daqueles povos e na estagnação da sua evolução económica, social, cultural e política, em proveito da Metrópole que os explorava.     

3. Os povos coloniais triunfaram nas suas guerras justas contra a Metrópole ajudados por uma elite de intelectuais, soldados e proletários metropolitanos, que agiram em coerência com as aspirações democráticas dos povos das colónias e do povo português.

À sombra destas três teses, a acção diplomática de Franco Nogueira seria condenável por não ter alinhado com os «ventos da História» favoráveis à liberdade, por se ter mesmo oposto à evolução histórica e por ter desprezado os sentimentos dos povos da Metrópole e do Ultramar.

Importa apreciar a consistência de cada uma destas teses para ajuizar das conclusões que nelas se amparam.

Em primeiro lugar, o comportamento das potências que mais reclamavam a independência das Províncias Ultramarinas Portuguesas demonstrou que não a desejavam realmente. Aquilo que os EUA e a URSS desejavam vivamente era romper os laços entre os países ultramarinos e os países europeus, entre os quais Portugal, para os substituir por laços muito mais estreitos que acorrentassem aqueles ao seu domínio exclusivo, económico e estratégico, no decurso da renhida luta em que estavam envolvidos pela supremacia mundial.




Tornou-se evidente, a partir do início de 60, depois do acesso ao poder de N. Kruschtchov e J. Kennedy, que as  superpotências, à medida que foram atenuando a oposição directa ou frontal entre si no continente europeu por medo do alcance crescente dos meios de destruição e entrando aqui numa parceria assente na divisão em zonas de hegemonia estáveis, foram agravando uma competição indirecta ou lateral entre elas noutros continentes, que se concretizou na instalação de governos tão despóticos em relação às populações locais quão servis em relação às superpotências, no que respeita às exigências destas de intensa exploração económica e de utilização estratégica: como no Congo, na Líbia, na Etiópia, etc.

Ilustrando a evidência mencionada, verificou-se que a preparação da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa foi acompanhada, desde 1967, da intensificação das pressões exercidas pelas superpotências, directamente e através da ONU, sobre as Províncias Ultramarinas Portuguesas, e que a conclusão da conferência, em 1975, foi seguida dos violentos assaltos daquelas Províncias enjeitadas.

A condição e o destino das populações alheias, cuja independência os EUA e a URSS, bem como os seus aliados, reclamavam, interessavam-lhes apenas naquela estrita medida em que as queriam reduzir, a qualquer custo, a meros instrumentos úteis à sua competição indirecta. Por isto mesmo foram votadas aquelas populações a guerras civis, fomes, epidemias, retrocessos e subserviências, como mais cruamente sucedeu em Angola e Moçambique.

Mais recentemente, desde o acesso de M. Gorbatchov ao poder e o desinteresse crescente de Moscovo e Washington pela continuação da competição indirecta, tornada ruinosa apesar das vendas de armamentos, é que a ambas as grandes potências procuraram moderar os ímpetos das facções que ambas tinham iludido, pago, armado e excitado, em tentativas tardias para aliviar as responsabilidades e os encargos, a consciência e a bolsa.

Decorre desta exposição que as superpotências provocaram e exploraram o golpe de Estado lisboeta de 1974, abusivamente dito «revolução», para intensificarem ao máximo a sua competição indirecta à custa do Ultramar Português, enquanto esperam obter deste vantagens económicas e estratégicas, numa comédia de libertação das populações locais que lançaram em guerras civis devastadoras e intermináveis.

Alguns anos mais tarde, a partir de 1990, quando as superpotências tiveram de reconhecer que a competição indirecta, também sobre o antigo Ultramar Português, tinha degenerado num mau negócio, é que elas tentaram e continuam a tentar transformá-la numa farsa sanguinolenta de democracia, que nem mesmo a ONU, com todos os seus poderes de persuasão, tem logrado coonestar.

Resulta daquilo que precede que nunca Washington ou Moscovo se interessaram realmente pela liberdade e independência das Províncias Ultramarinas Portuguesas; muito pelo contrário, interessaram-se pela vinculação e pelo sacrifício delas às suas ambições desmedidas de domínio mundial.

Em segundo lugar, a política ultramarina portuguesa não consistiu na repressão e estagnação das populações locais, mas na sua promoção económica, social, educacional, administrativa e política, a ritmos acelerados desde 1961, para a ocasião em que o afrouxamento da competição indirecta das superpotências sobre elas viesse a ceder oportunidades à sua passagem a graus mais elevados de autodeterminação autêntica ou endógena e plena.




Estou em condições de afirmar que este modo de pensar estava contido na orientação seguida por Franco Nogueira; pois que, tendo sido eu convidado em 1966 para proferir uma conferência, dentro dessa linha, no Instituto Ibero-Americano de Bremen, não deixei de a submeter, por iniciativa própria, à apreciação prévia do M.N.E. A resposta que recebi, sóbria mas definida, foi de aprovação.

Por outro lado, não se pode negar que os Ministérios do Ultramar e da Defesa nem sempre corresponderam devidamente à acção desenvolvida por F. Nogueira; como por exemplo nos capítulos melindrosos do povoamento, do trabalho e previdência, da administração de justiça independente e da disciplina militar. Isso, porém, já não se pode atribuir à figura do homenageado.

Em terceiro lugar, a forças que romperam os laços entre Portugal e o Ultramar não se apoiaram na vontade das populações ultramarinas, nem na do povo português.

Apesar de todos os esforços poderosos, persistentes e não raro obcecados, desenvolvidos pelas potências socialistas e capitalistas contra aqueles laços, principalmente desde a primeira corrida à África, em finais do século XIX, com recurso a meios militares, industriais e evangélicos, e desde a segunda corrida à África, em meados do século XX, com recurso e intromissões, abusos e pressões orquestrados pelos «tantãs» e bandas de «jazz» da ONU, sobressaía desesperante o escândalo de as populações locais compreenderem instintivamente que os seus interesses eram melhor servidos pela administração portuguesa, apesar dos seus defeitos, que pelas miragens projectadas e pelos sacões vibrados por Washington, Moscovo e Pequim.

Estas e outras importantes capitais não podiam excluir, portanto, a hipótese escandalosa de algumas Províncias Ultramarinas Portuguesas virem a preferir, a breve prazo, entre as três modalidades de autogoverno completo admitidas expressamente pela ONU (no célebre relatório da «Comissão dos Seis» de 1957, princípio VI), não exactamente a modalidade de «Emersão na forma de Estado Soberano Independente», mas qualquer das duas modalidades alternantes que eram a de «Associação livre com um Estado Independente» ou mesmo a de «Integração num Estado Independente».

Não interessava portanto às superpotências prestar demasiada atenção às vontades reais que as populações ultramarinas estavam a formar, mas apenas a certa vontade presumida e enquanto pudesse ser presumida.

Tornou-se assim cada vez mais urgente às superpotências deslocar a incidências dos seus esforços para o desmembramento da Nação Portuguesa, quer agindo sobre as populações ultramarinas menos responsáveis, quer sobre certos sectores mais volúveis da população metropolitana.

Este método, com antecedentes na história portuguesa do século XIX nos apoios dispensados pela Inglaterra e pela França à burguesia liberal a troco da separação forçada do Brasil, incidiu desta feita sobre alguns políticos de cores menos apropriadas ao clima de guerra de defesa, sobre futuros «doutores» aborrecidos pela hipótese de o serviço militar lhes adiar os canudos, sobre burocratas fardados receosos da concorrência às promoções dos milicianos que se distinguiam na defesa comum, sobre operários prejudicados pela economia de guerra e esperançados que alguma paz, fosse ela qual fosse, lhes abrisse oportunidades melhores, etc.

Foi entre estes sectores da população metropolitana e alfacinha que acabaram por despertar mais eco as políticas capitalistas e socialistas apostadas no desmembramento português, a ponto de os levar a vibrar, apoiar, aplaudir ou tolerar o golpe militar de 1974.

Não foram, portanto, os povos ultramarinos que alcançaram vitórias e independências em guerras revolucionárias contra Portugal. Foi Lisboa que proclamou uma independência original contra as responsabilidades a que estava obrigada para com as populações ultramarinas. Em resumo, aquilo que se verificou não foi uma «descolonização» mas uma «desmetropolização».





Ver aqui, aqui e aqui

Também não é verdade que os golpistas de 1974 tivessem agido em coerência com ideais democráticos. Diferentemente das intenções proclamadas pelo Programa do Movimento das Forças Armadas, nenhuma parcela do povo português, nem além nem aquém-mar, foi ouvida quanto à decisão arbitrária de irradiar várias delas do convívio e da responsabilidade nacional.

Não admira, pois, que o regime político nascido daquele golpe, depois de não ter querido ouvir o povo português quanto ao desmembramento a que o sacrificou em 1974, tão-pouco queira ouvi-lo hoje quanto à incorporação a que quer forçá-lo num organismo alheio que é, desde 1993, a União Europeia.

Na decorrência das reflexões expostas não se afigura correcto opinar acerca da tarefa do Embaixador Franco Nogueira à sombra das teses criticadas, que são falsas. Ao invés, ressalta que ele trabalhou denodadamente, embora dentro do enquadramento de condições que não deixaram de tolher a sua margem de iniciativa, para a defesa e o desenvolvimento das populações ultramarinas, as quais haveriam de atingir necessária e reflectidamente, a capacidade e o exercício de qualquer das modalidades sérias e pacíficas de autogoverno entre as admitidas pela ONU, se não fora o golpe de Estado de 1974.

Em contraste com as forças e os acontecimentos que motivaram e que condicionaram a sua acção, a figura de Franco Nogueira sobressai com o relevo próprio de um nobre exemplo de carácter, inteligência e dedicação à parcela da humanidade que é o povo português, durante uma das provações mais extenuantes da sua longa História.

Possa este exemplo inspirar as novas gerações para ultrapassarem a actual fase turva da vida portuguesa sem abdicarem da identidade nacional na acepção de representação e de realização colectiva da sua liberdade, que se encontra hoje novamente posta à prova.

[Embaixador de Portugal], Coimbra, 17 de Março de 1994.

(In Embaixador Franco Nogueira [1918-1993] – Textos evocativos, Livraria Civilização Editora, 1.ª edição/Outubro 1999, pp. 85-89).


Ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui

Nenhum comentário:

Postar um comentário