terça-feira, 30 de maio de 2023

A linda Inês

Escrito por Luís de Camões



Túmulo de D. Inês de Castro (Mosteiro de Alcobaça).


(...) Passada esta tão próspera vitória,

 Tornado Afonso à Lusitana terra,

A se lograr da paz com tanta glória

Quanta soube ganhar na dura guerra,

O caso triste, e digno de memória

Que do sepulcro os homens desenterra,

 Aconteceu da mísera e mesquinha

Que depois de ser morta foi Rainha.

 

Tu, só tu, puro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres, áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano.

 

Estavas, linda Inês, posta em sossego,

De teus anos colhendo doce fruto,

Naquele engano da alma, ledo e cego,

Que a Fortuna não deixa durar muito,

Nos saudosos campos de Mondego,

De teus formosos olhos nunca enxuto,

Aos montes ensinando e às ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas.

 

Do teu Príncipe ali te respondiam

As lembranças que na alma lhe moravam,

Que sempre ante seus olhos te traziam,

Quando dos teus formosos se apartavam;

De noite, em doces sonhos que mentiam,

De dia, em pensamentos que voavam.

E quanto, enfim, cuidava e quanto via

Eram tudo memórias de alegria.

 

De outras belas senhoras e Princesas

Os desejados tálamos enjeita,

Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas

Quando um gesto suave te sujeita.

Vendo estas namoradas estranhezas,

O velho pai sesudo, que respeita

O murmurar do povo e a fantasia

Do filho, que casar-se não queria,

 

Tirar Inês ao mundo determina,

Por lhe tirar o filho que tem preso,

Crendo co’o sangue só da morte ladina

Matar do firme amor o fogo aceso.

Que furor consentiu que a espada fina

Que pôde sustentar o grande peso

Do furor Mauro, fosse alevantada

Contra uma fraca dama delicada?



Traziam-na os horríficos algozes

Ante o Rei, já movido a piedade;

Mas o povo, com falsas e ferozes

Razões, à morte crua o persuade.

Ela, com tristes e piedosas vozes,

Saídas só da mágoa e saudade

Do seu Príncipe e filhos, que deixava,

Que mais que a própria morte a magoava.

 

Para o céu cristalino alevantando,

Com lágrimas, os olhos piedosos

(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando

Um dos duros ministros rigorosos);

E depois nos meninos atentando,

Que tão queridos tinha e tão mimosos,

Cuja orfandade como mãe temia,

Para o avô cruel assim dizia:

 

Se já nas brutas feras, cuja mente

Natura fez cruel de nascimento,

E nas aves agrestes, que somente

Nas rapinas aéreas tem o intento,

Com pequenas crianças viu a gente

Terem tão piedoso sentimento

Como co’a mãe de Nino já mostraram,

E co’os irmãos que Roma edificaram:

 

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito

(Se de humano é matar uma donzela,

Fraca e sem força, só por ter sujeito

 O coração a quem soube vencê-la),

A estas criancinhas tem respeito,

Pois o não tens à morte escura dela;

Mova-te a piedade sua e minha,

Pois te não move a culpa que não tinha.

 

E se, vencendo a Maura resistência,

A morte sabes dar com fogo e ferro,

Sabe também dar vida, com clemência,

A quem para perdê-la não fez erro.

Mas, se to assim merece esta inocência,

Põe-me em perpétuo e mísero desterro,

Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,

Onde em lágrimas viva eternamente.





Pente cita


Põe-me onde se use toda a feridade,

Entre leões e tigres, e verei

Se neles achar posso a piedade

Que entre peitos humanos não achei.

Ali, co’o amor intrínseco e vontade

Naquele por que morro, criarei

Estas relíquias suas que aqui viste,

Que refrigério sejam da mãe triste.

 

Queria perdoar-lhe o Rei benigno,

Movido das palavras que o magoam;

Mas o pertinaz povo e seu destino

(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.

Arrancam das espadas de aço fino

Os que por bom tal feito ali apregoam.

Contra uma dama, ó peitos carniceiros,

Feros vos amostrais e cavaleiros?



Qual contra a linda moça Policena,

Consolação extrema da mãe velha,

Porque a sombra de Aquiles a condena,

Co’o ferro duro Pirro se aparelha;

Mas ela, os olhos com que o ar serena

(Bem como paciente e mansa ovelha)

Na mísera mãe postos, que endoidece,

Ao duro sacrifício se oferece:


Morte de Policena

 

Tais contra Inês os brutos matadores,

No colo de alabastro, que sustinha

As obras com que Amor matou de amores

Aquele que depois a fez Rainha,

As espadas banhando, e as brancas flores,

Que ela dos olhos seus regadas tinha,

Se encarniçaram, férvidos e irosos,

No futuro castigo não cuidosos.

 

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,

Teus raios apartar aquele dia,

Como da seva mesa de Tiestes,

Quando os filhos por mão de Atreu comia!

Vós, ó côncavos vales, que pudestes

A voz extrema ouvir da boca fria,

O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,

Por muito grande espaço repetistes.

 

Assim como a bonina que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lascivas maltratada

Da menina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

 Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co’a doce vida.



 

 As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

 E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram.

Vede que fresca fonte rega as flores,

Que lágrimas são a água e o nome Amores.

 

Não correu tempo que a vingança

Não visse Pedro das mortais feridas,

Que, em tomando do Reino a governança,

A tomou dos fugidos homicidas.

Do outro Pedro cruíssimo os alcança,

Que ambos, imigos das humanas vidas,

O concerto fizeram, duro e injusto,

Que com Lépido e António fez Augusto.

 

Este castigador foi rigoroso

De latrocínios, mortes e adultérios;

Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,

Eram os seus mais certos refrigérios.

As cidades guardando, justiçoso,

De todos os soberbos vitupérios,

Mais ladrões, castigando, à morte deu,

Que o vagabundo Alcides ou Teseu.

 

Luís Vaz de Camões («Os Lusíadas», Canto III)





Juízo Final (Túmulo de D. Inês de Castro).

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