«Convém introduzir neste ponto uma observação sobre a dificuldade de entender o nada como realidade e como acção, sobre tão só a dificuldade de o dizer. Já vimos como José Marinho fala dele, ou simplesmente lhe alude, num momento decisivo da "teoria da verdade", dizendo "o não-ser ou mais profundo Nada", expressão que suscitou ao aristotelismo de Álvaro Ribeiro uma veemente, pública invectiva. Faltou-lhe, a Álvaro Ribeiro, um esforço de compreensão para a expressão de um pensamento no qual o que se diz por Nada (assim mesmo, com maiúscula) é para significar o que, depois do não-ser passa a sem limite (expressões ainda de raciocínios bastardos) para se afirmar no infinito, que é de onde vai emergir o espírito.
Entender o nada como privação ou ausência de realidade, é nada entender. E para o entender como não-ser, tem de previamente se considerar que já Aristóteles demonstrou que do não-ser nada se pode dizer, nem portanto pensar, uma vez que não é, quer dizer, que não contém predicados nem recebe atributos. Como então compreender que se diga - como Aristóteles diz e na exposição da nossa tese vemos que a ciência conclui - que a matéria é o nada? A interpretação elucidativa, luminosa, vem-nos de Álvaro Ribeiro.
Segundo a doutrina da insubstancialidade do pensamento e do real, o que se designa por matéria só por vício de linguagem se designa por um substantivo e se entende, portanto, como substancial. Todo o pensamento está em evolução como todo o real está em movimento. Se entendemos por substancial o que designamos por um substantivo, convém corrigir o modo de expressão ou o modo de pensar com essa expressão, e, em vez de substantivar, verbalizar, pois o verbo é que significa movimento. Então, o que se entende por matéria deverá conceber-se como se expresso por materializar ou materialização. Enquanto materialização, a matéria significará a resistência a tornar real o pensamento. Mas significará também conduzir ao nada, esvair em nada, como acontece no que Leonardo chamou "cousificação", como acontece ao fim do infeliz caminho que descrevemos ter a ciência seguido.
Agora compreendemos que realidade levou o aristotelismo a formar a noção de matéria ao mesmo tempo que concluía ser ela o nada. Não nada, mas o nada. Como compreendemos, no outro extremo, o que levou o hegelianismo à identificação dialéctica, do ser e do não-ser. Como, enfim, compreendemos o que levou José Marinho a aludir ao "não-ser e mais profundo Nada". A chave da compreensão reside na concepção que Álvaro Ribeiro nos transmitiu da matéria como resistência à realização do pensamento. Sem tal resistência, não haveria nem evolução ou movimento, nem criação ou cisão. Tudo estaria dado de uma vez por todas. Pensamento e realidade seriam o ser imóvel de Parménides ou a verdade de José Marinho antes de se fazer outra de si, verdade que é.
Resistir quer dizer, não apenas opor, mas sobretudo negar. Resistir ao pensamento, ou ao espírito em que o pensamento tem princípio, é um tão absurdo e louco intento que as teologias e as mitologias das religiões o representam numa personificação igualmente absurda e louca, dando-lhe nomes simbólicos, isto é, que dividem ou desintegram, e o génio de um poeta tentou fazer-nos entender chamando-lhe "o espírito que nega".
A resistência, com ela a negação, só existe em relação ao que nega. Esse, o primeiro sentido em que a matéria é o nada: em si mesma, por si mesma, a matéria não existe. Onde existe é no outro de si, a forma que vem do pensamento para se tornar real, a cuja realização resiste e à qual, uma vez tornada real, nega. A forma realizada é o corpo, mas como corpo temos de entender aqui, não só as entidades de realidade biológica e física, também as de realidade moral, institucional, histórica e artística.
Uma vez real, no corpo, a forma, a presença da matéria afirma-se pela morte a que todos os corpos estão inexoravelmente sujeitos. Nascer é decerto começar a morrer, mas compreende-se que os pensadores, desde Sócrates a Leonardo, tenham, uns, afirmado a imortalidade, tenham, outros, negado a morte, uma vez que a morte só reside na matéria e a matéria é o nada.
A ilusão da ciência foi a de considerar que a matéria existe. A de que existe simplesmente, a de que existe em si mesma e por si mesma. A tal ilusão acrescentou o erro de entender que na matéria reside a substancial realidade e, por substancial, única e última. Atribui-lhe, depois, uma conjecturável "constituição íntima" e onde há "constituição" há organização, a qual lhe parece confirmada pela mecânica porque, incidindo ela sobre os corpos, os trata como "porções de matéria". Deste modo ignora a ciência a forma que, como razão de ser ou razão que habita e move os corpos, é, segundo Newton, segredo que Deus guarda ou, como se dirá na ajuda dada por Kant à ciência, segredo que só Deus pode conhecer. Deste modo ignora também como, na expressão luminosa de Leonardo, "a mecânica é o socorro de Deus levado ao nada", quer dizer, à matéria dessas "porções de matéria" a que a ciência reduz os corpos.
A desintegração da matéria, derradeira tarefa da ciência moderna, é pois uma tarefa absurda, vã e, afinal, impossível. Temos visto claramente porquê. Porque a matéria é o nada, porque não possui "constituição" alguma, porque não existe para além das porções de si que nos corpos recebem a forma que o pensamento lhes transmite.
Assim claramente vista, compreendemos que não é à desintegração da matéria que a ciência procede, mas à divisão dos corpos, à separação dos corpúsculos que encontra reunidos ou sintetizados numa forma e vai, sucessiva e sempre transitoriamente, confundindo com os elementos que conjecturou constituírem a matéria. O que, efectivamente, a ciência assim desintegra são as formas e isso, que é uma violência sobre o espírito, sobre a actividade do espírito, só possível pela ignorância de como o espírito é real, isso explica que a ilusória desintegração da matéria corresponda efectivamente à destruição da natureza ou do mundo sensível.
Será evidentemente estulto atribuir à ciência o deliberado propósito de destruir o mundo sensível. Também aqui o mal é feito pela instigação que se faz o bem. O bem que a ciência julga ir fazendo é o de transformar o mundo, um mundo que, por habitar nele o mal, entende imperfeito, de o transformar num mundo em que, planeado para o serviço dos homens, só haverá perfeição e bem. O modo de o conseguir entende ser o de desintegrar, diremos agora decompor, "os corpos que nos rodeiam" nos elementos que os compõem, para, depois, proceder à recomposição em novos corpos desses elementos.
Parece já ter atingido ela hoje, com a eficácia de que faz sua glória e seu orgulhoso critério de verdade, a possibilidade da decomposição mas, ao atingi-la, no nada se esvai ela mesma antes de poder reconhecer que a recomposição, tal como a composição originária, de um mundo sensível, de um real mundo sensível, nunca será o arranjo mecânico de corpúsculos elementares, mas só se realizará mediante uma forma. "Uma forma ou uma alma ou uma síntese" diz Álvaro Ribeiro conjugando o conceito aristotélico de forma com a actualização que o cristianismo lhe dá em alma e o hegelianismo em síntese.
Eros e Psyche
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A "filosofia portuguesa" ultrapassa as limitações da ciência, que são as do tempo e do espaço, desde logo porque é a filosofia de um povo que descobriu e reconheceu sensivelmente como a forma do mundo dos homens é a forma global, representação do "infinito que se encontra percorrendo todos os caminhos do finito". Assim a descreve aristotelicamente Camões no Canto X de Os Lusíadas e com ela pôde este povo pôr em acto a catolicidade, ou universalidade concreta", que o cristianismo até então só possuía em potência. "Com o globo mundo em sua mão", pode a filosofia portuguesa pensar o mundo sensível "maravilha da criação", imagem sempre latente no pensador da alegria que é Leonardo e insistentemente repetida por Álvaro Ribeiro.
Se a tal imagem a acompanha a contrapontística exclamação de José Marinho sobre "o mundo imundo", há aqui uma dramática sensibilidade para com a existência e a persistência do mal, que "é imoral negar", bem contrastante com a fria, obsessiva e trágica sanha do espiritualismo nórdico contra a natureza indomável. Desta sanha se originam belas e elucidativas narrativas mitogénicas, como a da novela Moby Dick, que incitam ao império mecânico do homem sobre a natureza, império já hoje amplamente exercido para, ao fim, ambos, homem e natureza, às mãos um do outro soçobrarem.»
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
«A química e a física, exigindo intelecção subtil de noções que não correspondem a figuras geométricas e de energias incomparáveis com o esforço muscular, são ciências que promovem o pensamento humano à admissão do que outrora foi designado por formas, substâncias e qualidades ocultas. O estudo destas ciências é tão difícil, e está tão sujeito à substantivação dos verbos, que fatalmente declina do método intuitivo para o método especulativo, e do método especulativo para o método positivo, falecendo no plano onde encontra a mecânica. É efectivamente no encontro com a mecânica, no registo mecânico de efeitos previsíveis, que aquelas duas ciências progridem segundo o critério utilitário de aplicação técnica.
Contrário é o movimento do pensamento que, subindo do plano prático ao plano estético, e do plano estético ao plano teórico, procura ver no desenvolvimento da ciência a nudificação das leis da razão. Não conhecemos livro que tão bem exercite e habilite o estudioso a usar da sua inteligência como a Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel, e estranhamos que tão célebre compêndio escolar raras vezes haja servido de modelo para construção de obras didácticas. A lúcida mestria com que Hegel orienta a razão no trânsito do relativo para o absoluto, por entre o sombrio pessimismo da alma pagã que nega a realidade do mundo sensível, se não condiz com o alento da nossa crença e o valor da nossa fé, representa contudo uma aventura espiritual a que não podemos recusar preito de admiração.
Nega Hegel que da física, e muito menos da química, e ainda menos da mecânica, possa ser extraída uma doutrina virtual do ser a que se dê o nome de ontologia ou de mecânica, porque as leis daquelas ciências são relativas, tão precárias como o conhecimento sensível, e de leis relativas não é possível abstrair princípios absolutos. A razão humana desceria ainda mais, em vez de ascender, se pretendesse subordinar-se às leis da Natureza, conforme lhe é exigido pelo positivismo. Se o natural existe, conforme a ciência o descreve, também existe o sobrenatural, com as formas e normas a que a nossa razão aspira.
(…) Os homens interrogam-se sobre o existente de que participam e que os envolve, e na medida em que se sentem presos por fios sensíveis designam a totalidade desse existente pela palavra Natureza. A Natureza não é um cosmos perfeito nem uma possibilidade caótica, mas contém uma regularidade inteligível que, por particular, pressupõe o universal. Acontece por isso que alguns pensadores, desatentos à diferença, confundem a Natureza com o Universo.
O nosso conceito de Natureza provém da filosofia aristotélica, onde a física se completa pela psicologia. A natureza é cognoscível e amável, não é impérvia à inteligência humana e não procede por violência. Ela distingue-se da matéria, que é o elemento da transformação, em ser a condição do que nasce e morre, porque nascer e morrer são fases da vida.
Importa, por isso, não considerar a Natureza como um conjunto de coisas, corpúsculos ou átomos (isolados, justapostos, ou compostos) que caem nos intervalos finitos do espaço e do tempo. Tais acidentes, ou quedas, dão-nos uma visão errada do que subsiste ou subjaz nas manifestações de agentes que gozam daquela liberdade que existe nos três reinos da Natureza. Convém, todavia, não confundir esta liberdade finita dos entes naturais com a infinita liberdade que o homem adquire quando orienta a razão.
Consideramos que a Natureza tem os seus segredos, e falamos em segredos naturais, exactamente porque, nos seus processos de geração e de corrupção, a Natureza é inimitável pela vontade humana. Toda a técnica mais perfeita do homem, incidente sobre mortos objectos reais ou ideais, nunca igualará o poder da Natureza. Aqui se inclina o pensamento humano, com aquela piedade religiosa que inclinou Francisco Bacon, e dessa humildade só obtém a recompensa da elevação.
No entanto, interpretando a Natureza com os princípios lógicos, verificamos que ela não é termo absoluto, infinito, universal. Sabemos que para além da Natureza, que conhecemos e amamos nas formas que ela apresenta à nossa sensitividade e à nossa imaginação, outra realidade existe com que se compõe e aperfeiçoa. A essa realidade, em que há uma vida melhor ou uma vida eterna, aspira o nosso profundo ser, e dizemos ser, porque outros verbos nos dariam uma expressão mais superficial.
Acima da Natureza, que conhecemos imperfeitamente, existe o Sobrenatural. Toda a impiedade dos nossos erros consiste em julgar que o natural tem semelhança com o sobrenatural, e, consequentemente, em querer levar longe demais a nossa inteligência que não se separa da nossa imaginação. Se entre o natural e o sobrenatural não existem as distinções que logicamente nos são ensinadas, embora psicologicamente repugnem; se o princípio de continuidade é igualmente válido nos dois domínios do conhecimento, então a transcendência passa a ser uma palavra vã, e com ela se desvanecem os princípios transcendentais.
Voltaríamos, assim, a construir uma ciência positiva com o nome de ontologia. A doutrina de que os entes sensíveis se compõem de matéria e forma generaliza-se em audaciosa doutrina segundo a qual em todos os entes há que distinguir a essência e a existência, a potência e o acto, para que os princípios lógicos do nosso discurso, saltando por cima das categorias das ciências, se adunem com os princípios ônticos, uns e outros de aplicação universal. Atreve-se por vezes a inteligência humana, no decurso das suas vicissitudes culturais, a ditar leis de projecção em mundos superiores.
Entre a Terra e o Céu que são termos correspondentes a Natureza e Sobrenatural, a ciência dos povos mediterrâneos admitia uma proximidade finita em vez da distância infinita que foi teorizada pela ciência moderna. As leis do nosso mundo, que a mecânica, a química e a física positivamente enunciam, não são válidas no mundo superior, e até as próprias leis matemáticas, a que os Antigos atribuíam valor ontológico, se mostraram referidas às aparências astronómicas. A analogia positiva deixou de estar em vigor para ser substituída pela analogia normativa, indispensável à vida do homem.
Na Crítica da Razão Prática diz-nos Kant que a Natureza, na mais ampla acepção da palavra, é a existência das coisas em legalidade. Significou assim o primado do normativo sobre o positivo, do dever sobre o ser, o que nos mostra que uma filosofia da Natureza se completa por uma Filosofia do Direito. O espírito individual não impõe leis aos fenómenos, conforme por vezes se disse; não há, a bem dizer, leis da ciência; o sábio não legisla, apenas reconhece uma legislação que é prova existencial de um legislador.»
Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
«É já sabido que da reforma pombalina da Universidade de Coimbra resultara a eliminação da doutrina lógica e metafísica de Aristóteles. Todavia, há ainda quem hoje persista em não ver que uma tal reforma tivesse, inclusive, obstado à realização dos princípios filosóficos do liberalismo económico, político e religioso. Por conseguinte, esta decisiva relação pudera finalmente ganhar novos contornos quando Orlando Vitorino se propusera indagar o problema central do pensamento categorial.
Com efeito, tão logo na segunda parte de sua Exaltação da Filosofia Derrotada, o autor, entreabrindo e propiciando a compreensão do leitor quanto ao sistema das categorias económicas, expõe e demonstra a questão fundamental que permite distinguir a filosofia moderna da filosofia clássica, que, como é aparentemente sabido, consiste na projectada inversão kantiana das categorias de Aristóteles. Ora, esta inversão, também assaz reveladora da índole agnóstica da filosofia alemã, concorrera para que as categorias aristotélicas, doravante havidas por incompletas e concomitantemente destituídas de seu poder operativo, fossem sumariamente prescindidas para assim dar lugar a outras categorias susceptíveis de mais exacta aplicação aos objectos do conhecimento científico. Por isso, face aos pressupostos do criticismo decorrentes da obra vulpina de Manuel Kant, cujo artifício dialéctico assentara basicamente na negação da intuição intelectual, Orlando Vitorino argumenta que "as categorias residem no ponto de encontro de todo o real com todo o pensamento, entendendo por todo o real que nada é real se não o implicar e por todo o pensamento que nada é pensamento se não o implicar".
E nisto também se explica como o nosso filósofo, inquirindo a origem milenária da ciência moderna, chegara ao ponto de, na Refutação da Filosofia Triunfante, haver ostensivamente repudiado a falsa ideia dominante segundo a qual se formou uma ruptura entre a teologia e o que se convencionou designar por "filosofia moderna". E se, de facto, de uma ruptura nunca se tratou, é porque, segundo o autor, o primado da vontade, presente na teologia escolástica, acabou por transitar, de algum modo, para a nova fase humanista e científica do chamado pensamento moderno. Daí podermos até dizer, relativamente à concepção que Orlando Vitorino perfizera desse prolongamento, ter concorrido uma dupla influência espiritual vinda de quem mais particularmente lhe transmitira ora uma doutrina do espírito, ora uma teoria da verdade.
Aliás, ambas confirmam que a origem do racionalismo moderno se deve, em grande medida, a algumas das particularidades do racionalismo medievo de expressão sobrenatural. Ou seja: por um lado, temos a possibilidade de, com Álvaro Ribeiro, reconhecermos como "o princípio de separação nítida entre a lei científica e o dogma religioso, imperante nas Universidades, facilitou o advento do racionalismo iluminista, característico da Idade Moderna"; por outro, temos a oportunidade de, com José Marinho, reconsiderar "que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica".
Porém, não obstante o pensamento moderno constituir um prolongamento da escolástica medieval, a verdade é que ainda hoje continua a predominar, principalmente nas instituições universitárias, uma imagem de ruptura que remonta a Renato Descartes. E se ao mesmo remonta, é porque, segundo Orlando Vitorino, parece não ter aflorado a Descartes a mínima suspeita de que a sua filosofia prática ainda traduz e projecta, na sequência milenar da mais ortodoxa tradição agostiniana, o primado absoluto da vontade. Ou seja: com Descartes, a filosofia da natureza, essencialmente mecânica, desenvolver-se-ia até ao presente como uma linguagem da vontade, isto é, uma linguagem que, destituindo de ser e realidade as formas naturais, reduz o conhecimento científico a um conhecimento possuível, dominável e utilizável.
Ora, isso mesmo preconiza o geómetra francês no seio de uma ambiguidade que irá determinar toda a evolução da filosofia nórdica, visto que, no seu mais declarado materialismo, não consegue, de facto, "esconder o mais enraizado espiritualismo". Referimo-nos, pois, à natureza como algo de fabuloso, conquanto equivalente à irrealidade do mundo sensível especialmente preconizada pela filosofia prática. Contudo, uma antinomia aqui mesmo se apresenta face ao carácter de necessidade subjacente às leis e certezas da ciência moderna, tal como, aliás, a enuncia Orlando Vitorino nos termos que se seguem:
"Se a filosofia prática é a ciência de um mundo dado por irreal, como garantir a realidade do conhecimento científico? Se o mundo sensível é irreal, e fabulosa a natureza e fugazes aparições as formas e os corpos, onde e como garantir a realidade do conhecimento do que é irreal? Como tornar redutível a contradição? Como resolver a antinomia? Como escapar ao absurdo?"
A resolução passa sobretudo por atender ao primado do racionalismo e da metafísica enquanto princípios idealistas da filosofia moderna, ou ainda à "radical distinção entre pensamento e natureza para situar no pensamento toda a origem do conhecimento". Trata-se, pois, em termos cartesianos, de uma construção racional de base lógica e matemática, dado estar, simultânea e paradoxalmente, na origem das "ciências exactas" e no consequente surgimento do mais extreme e abstracto espiritualismo. Daí que a afirmação do ser passe desde logo a depender do pensamento, pois, para Descartes, as afirmações do cogitacionismo são, elas próprias, a única garantia de que à irrealidade do mundo sensível venha a corresponder a realidade do conhecimento científico.
Assim, admitir-se-á, quanto à própria natureza, a efemeridade que os modernos lhe atribuíram, posto que inteiramente disponível e reduzida à aparição fugaz. Por outras palavras, os corpos, os fenómenos e as formas naturais, confinados à irrealidade da sua existência fugaz e efémera, darão, por conseguinte, lugar às representações dadas nos "intransponíveis limites que virão a ser o objecto da crítica kantiana". Depois, admitir-se-á, por contrapartida, a eternidade que os antigos atribuíram à natureza, já que, se a "efemeridade supõe o inerte, o morto, o fabuloso e o irreal", a eternidade "representa a vida, com o que ela tem de secreto, de sagrado e intocável", até porque, na concepção clássica, "nada há na natureza que não seja aparência de ser ou símbolo da verdade (…)". Finalmente, admitir-se-á ainda, face ao abismo entre antigos e modernos, a destruição a que os segundos sujeitaram a natureza em nome do conhecimento científico.
Surgido e constituído o racionalismo moderno, tornar-se-ia, então, a filosofia uma ancilla scientiae, tal como já a escolástica previamente tornara a filosofia uma ancilla theologiae. Daí o decaído processo que, procedendo da identidade escolástica entre as leis do pensar e as leis do ser, conduzira, por fim, à abstracção tendencialmente intelectualista e raciocinante da alma humana. Ora, nesse plano particularmente inclinado, acentuar-se-ia ainda a inevitável adulteração do racionalismo aristotélico por via do "racionalismo extreme dos escolásticos", o qual, na sequente acepção da designada lógica formal, limitar-se-ia apenas a uma ontologia fictícia sem já nenhuma espécie de ligação com os reais princípios de investigação e de demonstração do Organon de Aristóteles.
Convém, contudo, notar que seria mais propriamente em escolásticos como Santo Anselmo que Orlando Vitorino acabaria por ver, na "chamada 'prova ontológica da Existência de Deus', a identidade do pensar e do ser na qual se vai fundar e alimentar todo o triunfante desenvolvimento da filosofia moderna, desde Descartes – substituindo a ideia anselmiana, ou pensamento objectivo, pelo cogito ou pensamento subjectivo, e o ser de Deus pelo ser do homem – até Hegel, substituindo a ideia pela razão e o ser pelo real". Ou seja: segundo Orlando Vitorino, a "absolutização da vontade", já de si entendida como o que, por cisão, se separou da verdade absoluta, adquire o seu mais cabal desenvolvimento com a filosofia moderna, nomeadamente através do raciocínio matemático levado ao mais extreme e abstracto espiritualismo a que pode eventualmente chegar o conhecimento científico. Logo, estamos ante um conhecimento especialmente atreito a dominar a natureza, e que teve, de acordo com o nosso autor, "o seu primeiro pensador em Descartes e o último em Hegel".
Todavia, coube justamente a Hegel, com base na sua Ciência da Lógica, a particularidade de ter confirmado a lógica de Aristóteles. Isto é, substancialmente, o que nos diz Álvaro Ribeiro, para quem a lógica de Hegel, firmada no princípio da identificação entre o ser e o não-ser, resulta, no entanto, insusceptível de se coadunar com a afirmação da possibilidade absurda da identidade dos contrários. E se assim é, deriva do facto de o próprio Hegel, transmutando a lógica numa "biografia dos conceitos", ter procurado realizar a tão imprescindível superação das antinomias que já Manuel Kant reconhecera existirem no âmbito do pensamento transcendental.
Todavia, é nesta crucial questão que Orlando Vitorino mais se impõe ao distinguir o pensamento do conhecimento, distinção essa que também implica, na sua óptica, a diferença abissal entre a filosofia antiga e a filosofia moderna. Logo, dir-se-ia uma questão no âmbito da qual o próprio Hegel fizera depender o pensamento do conhecimento, posto ter preconizado a sua lógica na mais estrita dependência do princípio segundo o qual "tudo é e não é ao mesmo tempo". Ou de ter ainda preconizado a contradição como a "lei a que todo o real e todo o racional obedecem".
Na concepção de Orlando Vitorino, Hegel é ou representa, segundo "um termo de Santana Dionísio, a culminância da filosofia alemã e a perfeita sistematização da filosofia moderna ou da filosofia que deu origem à ciência moderna". Nesta ordem de ideias, Hegel é, "mais e melhor do que todos os pensadores alemães", o filósofo da vontade, já que toda a sua sistematização filosófica, partindo da concepção kantiana, decorre mediante a conservação do que nessa concepção fundamentalmente perpassa e tão expressamente a define como tal, que é, no fundo, a do primado da ciência e do conhecimento em geral sobre o pensamento. Desta forma, não obstante a tentativa empreendida por Jorge Frederico Hegel com vista ao ímpeto restaurador da metafísica, segue-se, apesar de tudo, que o próprio só aparentemente visara restabelecer o primado do pensamento "que se pensa a si próprio como o único real de que participa tudo o que se pode dizer real"...».
Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa». Versão especialmente revista).
«Tão própria a intuição é ao pensamento filosófico como ao pensamento poético. O que os distingue é que o pensamento filosófico forma do inteligível o conceito enquanto o pensamento poético forma o símbolo. Do conceito, que implica plena consciência do que se intuiu, desenvolve a filosofia a doutrina do espírito… Ao símbolo, forma-o a poesia em imagem simbólica a qual, como toda a imagem, conserva a figura do sentido e não tem equivalente no conceito porque não apreende mas exprime.
Nesta distinção entre pensamento filosófico e pensamento poético convém acentuar a condição de que, sem a intuição do inteligível, não há nem um nem outro pensamento.
Ora nem tudo o que se apresenta como filosofia contém deveras pensamento filosófico: é o caso da sofística ou escolástica da razão raciocinante e do intelecto abstracto, facilmente denunciável pelo estilo como Álvaro Ribeiro ensina e Platão se diverte a dar exemplos. Também nem tudo o que se apresenta como poesia contém deveras pensamento poético: é o caso dos poemas que, limitando-se a jogos entre imagens sensíveis que não conseguem transpor, compõem a abundante literatura de sentimento e sensualidade que a história agrupa sob designações como as de gongorismo, cultismo, naturalismo, realismo ou surrealismo, a que ainda se chama poesia, embora menor, porque, como dizia Unamuno, "a vontade de fazer versos já é prova de poesia".
Justo e conveniente será observar como entre a poesia menor se encontram aflorações de uma honesta suspeita: a de que não há poesia sem transposição da imagem do sensível para o inteligível. Manifesta-se a suspeita em tentativas de substituir a transposição pela destruição da imagem sensível quer acumulando nela figuras, como acontece no gongorismo, quer decompondo as figuras em suas linhas e cores às quais se procura depois dar, em obras a que chamam de "arte figurativa" composições diferentes das que têm na realidade sensível, segundo um processo equivalente àquele com que a ciência moderna procura decompor ou desintegrar, conforme expusemos na 4.ª tese, os corpos do mundo sensível.
As decomposições, mais propriamente, as desfigurações, a que os "poetas menores" procedem não têm decerto as finalidades catastróficas das desintegrações científicas, não são sem dúvida obra poética, mas na honesta suspeita que as motivou há sem dúvida o trabalho artístico de tentar desprender a imagem sensível do sentido que lhe deu origem. Não sendo obra poética, são exercício artístico.»
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
Prefácio à 3.ª edição dos «Princípios da Filosofia do Direito», de Hegel
Este ano de 1933 ainda era abrangido pelas comemorações do centenário da morte de Hegel em 1831. E se até à data dessas comemorações as obras de Hegel dificilmente se podiam encontrar na própria Alemanha, depois de então as edições e as traduções multiplicaram-se em muitos países da Europa e América. Em Portugal, nos anos sessenta e por iniciativa do movimento da «filosofia portuguesa» – ou da «escola» de Leonardo Coimbra – e realização da Livraria Guimarães, sempre ligada àquele movimento, editaram-se as primeiras traduções do famoso filósofo: a destes «Princípios da Filosofia do Direito» e a da «Estética». Por aí se ficou quanto a Hegel. A «cultura oficial», centrada nas Universidades do Estado, apontou sobre tais edições as suas armas habituais, sempre destinadas a paralisar a actividade intelectual: quer pela insídia quanto à fidelidade das traduções, quer pela exigência, supra e falsa erudita, segundo a qual a compreensão da obra de Hegel só se obtém nos textos originais (ignorando assim que o próprio Hegel afirmara o contrário), quer sobrepondo àquelas duas obras hegelianas outras, mais «modernas», sobre os mesmos «assuntos» (um professor universitário chegou a procurar-me para me dissuadir de continuar a tradução da «Estética» – que ele era incapaz de compreender – oferecendo-me, em troca, editor e compradores para uma tradução da «História da Arte», de E. Faure).
Com toda esta operosíssima e incansável hostilidade, as traduções das duas obras de Hegel foram-se editando e reeditando, sendo esta a 4. edição dos «Princípios da Filosofia do Direito». [1]
A escola da «filosofia portuguesa» não é uma escola hegeliana. Longe disso. Hegel é, como todos os pensadores alemães (ou mais e melhor do que todos os pensadores alemães) o filósofo da vontade. A «filosofia portuguesa» ignora a vontade e é uma filosofia do pensamento, quer dizer: conserva e actualiza o primado do pensamento que, na tradição escolástica, os alemães substituíram pelo primado da vontade.
Hegel é, para empregarmos um termo de Santana Dionísio, a culminância da filosofia alemã e a perfeita sistematização da filosofia moderna ou da filosofia que deu origem à ciência moderna ou, ainda, da filosofia que constitui a última possibilidade de a ciência moderna adquirir plena consciência de si no momento em que se esvai conduzindo os homens e o mundo aos limites de uma catástrofe universal e trágica.
Os cientistas – até os mais atentos, preocupados e temerosos da situação a que a ciência moderna conduziu, como Poincaré, A. Whitehead ou Max Born – não se dão conta disto que o hegelianismo constitui para todo o cientismo e seus prolongamentos técnicos. Uns, seguem suas vias muito pessoais. Outros preferem conservar-se eufóricos e inconscientes. Outros ainda preconizam o «regresso a Kant» que é manifestamente, o incondicional apologeta do conhecimento científico, quem o defendeu da crítica demolidora de D. Hume e, ao mesmo tempo, deu início à filosofia alemã, ou ao «idealismo alemão», que, transitando por Fichte, culminou em Hegel.
O kantismo consiste – como em geral se não ignora – na tentativa de demonstrar que só é cognoscível a realidade dos fenómenos que a ciência moderna se dedica a conhecer. A realidade em que o pensamento (ou a razão pura) se situa será incognoscível. Noutros termos: o pensamento pensa o que se conhece e o conhecimento não resulta do pensamento.
Os epígonos de Kant viram bem que esta concepção ficava à margem da filosofia e a tornava inviável, pois só há filosofia onde o conhecimento resulta do pensamento que se pensa a si próprio como o único real de que participa tudo o que se pode dizer real. A sistematização de Hegel destinou-se a restabelecer a filosofia mas dentro da concepção kantiana ou a partir dela e preservando-a. Para o conseguir, Hegel situou no início de tudo o que é pensar (e insistindo que tudo o que é pensar depende do seu início) a tese de que o não-ser é e o ser não é, tese que coloca na abertura da sua «Ciência da Lógica». Nesta tese se fundava para salvar o kantismo com a sua ciência moderna. Com efeito: o fenómeno cognoscível, objecto da ciência moderna, pode não possuir fundamento ôntico, pode não-ser, mas isso não o impede de ser, visto que não-ser e ser são o mesmo, e a natureza, o mundo, a sociedade – compostos, como são, de aparentes e transitórios fenómenos ou não-seres – nada são, por um lado, enquanto não-seres mas, por outro lado, são porque o não-ser é o mesmo que o ser. Ou porque o não-ser, nada sendo sem o ser e, no entanto, estando aí (na natureza, na sociedade, no mundo), só aí pode estar graças a essa identificação com o ser. Quem estabelece, quem conhece a identificação é algo de muito diferente, até contrário e oposto, ao fenómeno e à aparência, à natureza e à sociedade, às quais é superior e as domina: o espírito.
O espírito manifesta-se, como não-ser, no fenómeno, e é isso que a ciência moderna conhece. O espírito conhece-se como ser na religião, na arte e na filosofia (Hegel chama, ao espírito que se conhece como ser, espírito absoluto). A religião, a arte e a filosofia têm, cada uma, seu domínio singular e próprio. O domínio da filosofia é o pensamento que introduz o ser no não-ser (para os identificar) impondo, ou aplicando, suas leis à natureza (e é isso a ciência moderna), impondo as suas formas à sociedade (e é isso o Direito).
Esta sistematização só aparentemente restabelece a filosofia e o primado do pensamento que o kantismo havia abolido. O leitor já facilmente observará que tudo aí reside na vontade, isto é, na sujeição da natureza e da sociedade a leis e formas que são elaboradas, ou «pensadas», fora delas e soberanamente, mas sem a garantia da verdade que só teriam se fossem pensadas dentro delas, conforme o princípio da «filosofia portuguesa» estabelecido por Leonardo Coimbra e que podemos enunciar assim: «toda a realidade é penetrada de pensamento, que a excede». Ou conforme a «teoria do ser e da verdade», de José Marinho, segundo a qual a condição pré-natural, pré-social, até pré-filosófica e, enfim, absolutamente prévia, é a identificação de tudo o que é (e de tudo o que está sendo – o fenómeno – para deixar de ser ou para ser não-ser, como diz Hegel, ou para ser nada, como diz Marinho), a identificação de tudo o que é, repetimos, com a verdade.
A «filosofia portuguesa» está, pois, nos antípodas do hegelianismo e da modernidade. O que há de mais sério na modernidade é o seu início em Santo Agostinho e o seu termo em Hegel. O que há de mais sério na «filosofia portuguesa» é a sua actualização do aristotelismo. «Aristóteles – reconheceu Delfim Santos – é o pensador sempre presente em todos os pensadores portugueses». A filosofia de Leonardo Coimbra é um dramático e até trágico, um emocionante e arrebatador percurso, desde o platonismo e seu prolongamento na modernidade (a de Kant e da ciência moderna), até ao cristianismo e ao aristotelismo. A obra de Álvaro Ribeiro é uma teorização actualizadora da filosofia aristotélica. Na geração actual e actuante, Banha de Andrade dedicou-se ao estudo e reedição dos textos aristotélicos «conimbricenses» e Pinharanda Gomes lançou mãos e talento à tradução do «Organon», a primeira tradução portuguesa, depois da contra-reforma, de um livro de Aristóteles. E esse livro é o «Organon» ou a lógica. A «Ciência da Lógica», de Hegel, é articulação das teses opostas, pari passu, às teses da lógica aristotélica. Esta começa, tem início, no chamado princípio de não-contradição: «de nada se pode dizer, ao mesmo tempo, que é e não é»; a de Hegel começa, tem início, no princípio que se pode chamar de contradição: «de tudo se deve dizer, ao mesmo tempo, que é e que não é».
A atenção da «filosofia portuguesa» ao hegelianismo, termo da modernidade, tem correspondente na atenção que prestou, num espantoso mas não lido livro de Pascoaes, ao agostinianismo, início da modernidade. Esta tradução dos «Princípios da Filosofia do Direito» é um modesto sinal da honestidade com que se atende ao hegelianismo, sinal que está longe de sequer ter esboçado a «cultura oficial» com sua inspiração, ou apenas pretensão, num hegelianismo de baixa versão socialista. É também demonstração da sábia seriedade com que prossegue a actualização da filosofia clássica (in Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Guimarães Editores, tradução de Orlando Vitorino, 1990, pp. XXXVII-XLII).
[1] Os três prefácios de Orlando Vitorino às consecutivas edições portuguesas da presente obra de Hegel datam respectivamente de 1959, 1976 e 1986. Na 4.ª edição, datada de 1990, encontram-se incluídos aqueles três prefácios devidamente assinados pelo respectivo tradutor.
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