«A fenomenologia do mal manifesta-se por duas vias: a do sofrimento e a da degenerescência. E atenda-se a que se trata do sofrimento e da degenerescência dos homens. Porque só os homens estão sujeitos ao mal que não existe para os entes de pura natureza, desde os animais aos vegetais, nem é admissível e crível que exista para os entes de pura espiritualidade, anjos e demónios.
O mal implica a consciência e, com ela, a individualidade pois só há consciência no indivíduo. Tanto assim é que, observa Leonardo, a consciência pode anular o sofrimento a que causas bem patentes dão normalmente origem, como acontece no martírio, quer o que a santificação reconhece, quer o que se oculta e se excede na obscuridade heróica de tantas mães, pais, irmãos e amantes. O animal, por sua vez, não sofre porque é o exemplar de uma espécie e não possui portanto individualidade. Além disso, acrescenta Leonardo, o sofrimento, quando na forma de doença, é o vigilante da saúde e da vida, e a consciência disso extrai-lhe o carácter do mal.
A outra vertente da existência do mal é a degenerescência. Começa ela pela diminuição da amplitude e do poder da consciência. Ao contrário do que proclamam os fanáticos do progresso infinito, a história dos homens, aquela que os fenómenos superficiais e acidentais da historiografia ocultam, é composta por muitos mais períodos de empobrecimento do que de enriquecimento da consciência, portanto do pensamento e da realidade que só o pensamento cria, pois a consciência é consciência do pensamento.
Os homens individuais agregam-se em povos que, em alguns casos, conseguem elevar-se à entidade espiritual de pátrias. A medida ou a grandeza desses povos não é dada pela totalidade dos indivíduos que os compõem através das gerações mas apenas pelos seus indivíduos representativos, aqueles a que Carlyle chamou "os heróis". São eles que elevam a pátrias os povos que, na origem, não passam de agregados de indivíduos formados por comunidades de natureza, ou nações, e por comunidades de interesses, ou repúblicas. Muitas vezes, quase obscuros na vivida realidade quotidiana, são eles que sustentam com um princípio transcendendo os limites da natureza e dos interesses, da nação e da república sempre tendendo para a dissolução, a perpetuidade dos povos. Esse princípio torna-se consciente como pátria a qual, tendo assim a sua "realidade irredutível" na consciência, é uma entidade espiritual que faz da existência dos povos o movimento criador de civilização.
A este processo, que os seus indivíduos representativos conduzem, movendo-as pelo espírito para a civilização, as nações e as repúblicas cumulativamente oferecem o conteúdo ou a matéria das formas em que a civilização se compõe e opõem a resistência da natureza passiva e dos interesses instalados. Quando a resistência é mais forte do que o movimento criador, abre-se um processo de degenerescência que começa por abafar a pátria nos interesses da república para, depois, diluir a república nalgum comunitarismo de interesses sem definição ou raízes nacionais e, finalmente, imobilizar a nação no desinteresse e na indiferença da natureza entregue a si própria. Este último momento é a consumação da degenerescência dos povos.
A história é, desde modo, feita de progressões e regressões. Porque são raros os povos que conseguem erguer-se de nações a pátrias, de entidades naturais a entidades espirituais, a maior parte fixando ou cousificando a sua existência nos interesses mais ou menos imediatos que são o conteúdo das repúblicas; porque, noutro sentido, a resistência da natureza passiva e dos interesses instalados acaba por, no decorrer do tempo, enfraquecer os povos e parar o movimento criador das entidades espirituais que origina e sustenta as pátrias, os períodos de regressão são, na história, mais frequentes e duradouros do que os períodos de progressão. Contra o fanatismo do progresso infinito e a generalizada convicção dogmática de que esse progresso é o conteúdo do decorrer infinito do tempo, contra a insustentável mitologia de que a história começou no "homem das cavernas" e acabará por fazer da Terra o paraíso da abundância e da imortalidade, contra o generalizado ensino das escolas e sua mundial divulgação de que o homem de hoje é superior ao de ontem, não são raros os autênticos pensadores que assinalam as provas e os argumentos que invalidam tais ilusórias e fanáticas convicções. Assinalam como o progresso infinito é um absurdo insustentável; como "o homem das cavernas" e "as sociedades primitivas" são imagens forjadas pelos historiadores que não se cansam de desenterrar os seus vestígios, na incapacidade de conhecerem os sinais das desaparecidas civilizações deles contemporâneas e de que eles não são mais do que vestígios de suas degenerescências ou existências marginais; como essa imagem da falaciosa historiografia inspirou e sustentou as recentes doutrinas evolucionistas que vão desde as formas naturais até às sociedades e mentalidades humanas; como a obsessão do progresso infinito acaba na idiotia de que são exemplo afirmações de que "os oceanos virão a ser saborosas limonadas" e "a inteligência média dos homens virá a ser superior às de Aristóteles ou Goethe"; como é evidenciável que a capacidade intelectual de um grego representativo na grande época criadora dos gregos é superior à de um europeu representativo do nosso tempo.
Compreende-se assim que Leonardo tenha admitido que as ditas "sociedades primitivas" hoje existentes em África não sejam senão os restos de uma longa e irreversível degenerescência. Como se compreende que Hegel tenha excluído da sua Filosofia da História Universal essas sociedades por estarem fora da história.
Na fenomenologia do mal, a degenerescência tem, pois, mais amplitude do que o sofrimento, embora "toda a criatura gema". Na degenerescência, a consciência diminui-se e esvai-se; no sofrimento, a consciência é a mesma origem dele. Se não se pode moralmente negar a existência do mal, pode metafisicamente negar-se o mal em sua realidade ou essência? E, para esta negação, não temos de nos interrogar se o mal tem realidade essencial, aquela realidade a que Leonardo chamava irredutível porque faz que o que não é não possa deixar de ser?»
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
«(...) Tomás Carlyle observou a decadência do valor da pessoa humana, e das relações pessoais, não só na sociedade inglesa, tradicionalista e conservadora, mas também nos povos latinos que levaram ao extremo as consequências igualitárias das reformas e revoluções políticas. A sua admirável História da Revolução Francesa, publicada em 1837, vale ainda hoje de lição para todos os povos que substituíram o princípio associativo, ou corporativo, pelo princípio contratual, e que, coerentes com o preceito igualitário, decaíram no regime confuso do anonimato.
Tomás Carlyle viu muito antes de Max Scheller a motivação psicológica ou caracterológica do igualitarismo social. O fenómeno do ressentimento, do despeito ou da inveja, conforme se lhe queira chamar, está hoje suficientemente esclarecido. Invejar não é cobiçar. Muitos invejosos se contentam com a vida modesta que lhes coube em sorte. A inveja, ou invídia, consiste em não poder ver o diferente no semelhante, e é portanto um vício intelectual, uma confissão de estupidez, uma factor de maledicência. Ela atinge, porém, ferocidade moral quando exprime indignação contra os homens superiores, quando pretende humilhá-los segundo um critério convencional e abstracto de igualdade. Visto que os invejosos necessariamente formam maioria social, não estranhemos que eles legislem em consequência; mas nessa frenesia anulam as liberdades, as iniciativas e os valores que poderiam engrandecer a Pátria e redimir a Humanidade.
Ver o semelhante no diferente e o diferente no semelhante é aptidão intelectual que poucos homens aperfeiçoam ou desenvolvem. Mais difícil é ainda reconhecer entre os diferentes o inferior e o superior, manifestar admiração pela superioridade. O invejoso não quer ver, e para dar força à vontade pede o auxílio da razão que logo lhe propõe o ideal da igualdade ou a igualdade do ideal, acima de todos os desmentidos da experiência. A vontade realiza depois esse ideal pela violência da uniformização.
Neste momento se demonstra a superioridade do método empirista sobre o método racionalista, se assim for lícito dizer. Coleccionar, classificar e catalogar exemplos, como ensinou Aristóteles, é mais útil processo de aceder à verdade do que dialogar incessantemente segundo os preceitos da retórica. Há exemplos que para o observador valem de experiências. A aceitação e a admiração da superioridade existe em toda a consciência de boa formação moral. Não há homem incapaz de reconhecer a superioridade de alguns dos seus contemporâneos, e nesse reconhecimento reside o princípio da eleição. Se nos períodos de tranquilidade social, em que é mais fácil a crítica, domina a tendência para o nivelamento estagnante, nos intervalos da inquietação moral, política e religiosa todos os homens apelam pela intervenção daquele que consideram superior e a quem juram provisória ou definitiva obediência. Só não reconhecerá a existência de homens superiores o maledicente que, por viciosa filáucia, decaia em impiedosa autolatria.
Discutível, porque variável com o tempo, será o critério de superioridade. O problema que se repete em cada geração consiste em discernir os predicados, os epítetos e os atributos do homem superior. Poderá discordar-se hoje do critério proposto por Tomás Carlyle, na medida em que se discorde do direito divino; não deixará, porém, de merecer o respeito o culto dos heróis, os quais, por definição clássica, nos parecem intermediários entre os homens e os deuses. Este idealismo transcendental, que justifica o poderio dos super-homens, vai de encontro aos limites do humanismo cristão.
Em todas as sociedades civilizadas existe esse processo de cultura que se chama culto dos homens superiores. Cada povo elege as personalidades históricas e as personagens lendárias que celebra na representação social do seu destino e da sua liberdade. Monumentos e documentos são considerados factores educativos das novas gerações, sempre que de viva voz lhes seja atribuída mais alta significação. Não é só o Estado que rememora periodicamente aqueles que serviram a Pátria, são também as associações particulares de devoção espontânea por alguns artistas. Exemplo notável é, entre nós, o do culto camoneano.
Desenho de Tomás Carlyle, por Samuel Laurence
|
Diremos, porém, que um povo só assume verdadeira consciência nacional quando reconhece, distingue e protege o valor espiritual dos contemporâneos. Assim se enuncia o problema do regime, das funções régias, da realeza. Na realidade, varia de época para época o estilo de dignificar, exaltar e nobilitar os homens superiores, mas variando altera também a constituição política.
Muitos enigmas da história desapareceriam se pudéssemos explicar todos os acontecimentos pela intervenção de agentes livres que modificam as constituições políticas dos povos. O exame paleográfico e paleológico dos documentos nem é suficiente para estabelecer a certeza dos factos, nem é conveniente para a conjectura de um determinismo que o homem observa no mundo social, natural e divino. Historiador de génio, Tomás Carlyle situou para além do homem a origem da liberdade, e se foi um místico, ou profeta, deveu tal qualificação ao modo por que soube intuir as verdadeiras leis de Deus. Ora as leis resumem-se no símbolo que nos é dado pela palavra Justiça, símbolo de que vemos apenas o aspecto ideal na rectificação incessante a que os juristas chamam hoje Direito.
Aludimos a Hegel. Aludimos a Hegel, porque o Dr. Rudolf Metz, na sua obra intitulada Die philosophischen Strömungen der Gegenwart in Grossbritannien, traduzida para inglês com o título A Hundred Years of British Philosophy estuda Carlyle ao lado de Coleridge e de Quincey, que inclui no grupo dos primeiros pensadores britânicos que seguiram o idealismo de Fichte em que Tomás Carlyle hauriu os elementos que lhe permitiriam escrever essa obra singular e tão cheia de singularidade que tem por título Sartor Resartus. Não é lícito, porém, reduzir Carlyle a um discípulo de Fichte, porque de todo o romantismo alemão se nutriu o autor de Os Heróis, escritor representativo do pensamento do século XIX, quer dizer, representativo da reacção contra o século XVIII e dos seus antecedentes "modernos".
O pensamento moderno ficou viciado pela insondável oposição da vida à morte, do subjectivo ao objectivo, do eu ao não-eu. Em Fichte desponta a nova claridade, pela admissão da síntese onde parecia haver somente tese e antítese. A moderna lógica de relação tem de dar lugar a nova lógica de meditação, aperfeiçoando a silogística de Aristóteles. Na expressão de Carlyle se notam as mesmas hesitações que na posição instável de Fichte. Assim se explica que a propósito do grande escritor britânico se haja falado de nebulosidades germânicas. A explicação não é justificação. Tal frase gasta pela maliciosa intenção depreciativa revela total incompreensão das características dos pensadores de língua inglesa.
Não haverá talvez nos escritos de Carlyle aquela clareza parada que se observa nos escritos de Macauley; para o visionário da Escócia, a nobreza da literatura consistia na luta com as trevas, na descida aos infernos, na conquista da luz; não consistia, não podia consistir, no fácil discorrer sobre o já escrito, dito ou pensado. Quem apreciar, porém, a vida do pensamento, o movimento da inteligência e a génese das ideias, prosseguirá na leitura das obras de Carlyle, cada vez mais encantado pelo poder do ritmo, empolgado pela beleza das imagens, e não desistirá de acompanhar o escritor na busca da luz perpétua, da luz que deseja, afinal, vitoriosa, e não só vitoriosa, mas também triunfante.
A beleza estilística e a eloquência poética das conferências dedicadas a Os Heróis promovem, efectivamente, a educação intelectual das almas aptas para a admiração e ineptas para a inveja. A alegria de admirar é sinal inconfundível da mocidade de espírito, não só nos homens como nos povos. Extraordinária lição de ética e de épica receberá quem ler com simpatia esta obra prima da literatura universal. Destinada aos que não podem apreciar no texto inglês os sucessivos momentos da luta entre o mal e o bem na arte da eloquência, esta tradução dar-lhes-á pelos menos os elementos bastantes para imaginar o génio que inspirou o pensamento daquele escritor que é hoje justamente celebrado com o nome de Tomás Carlyle.
5 de Outubro de 1953».
Álvaro Ribeiro (in «Os Heróis», de Tomás Carlyle).
Ver aqui |
Representação caligráfica do nome de Husayn ibn Ali ibn Abi Talib
|
«Depreciativamente chamamos dialéctica ao processo de oposição a todo o pensamento especulativo. Aplicamos, assim, à palavra dialéctica o significado que lhe foi dado por muitos filósofos, de Aristóteles a Kant, e que se mantém ainda em certas expressões irónicas da linguagem corrente. Os dialectas são, afinal, os sofistas.
Motivos vários, cuja investigação compete ao historiador da cultura, divulgaram entre nós o erro de que existe um método dialéctico de promoção do pensamento e de representação da realidade, e, o que é pior, atribuíram a sua função a Hegel. Fala-se frequentemente de dialéctica hegeliana, e julga-se que ela, revogando o princípio de contradição, afirma a possibilidade absurda da identidade dos contrários. A lógica de Hegel seria contrária da lógica de Aristóteles.
Chamam alguns vulgarizadores de doutrinas sociológicas dialéctica hegeliana à dialéctica de Fichte, ignorando ou esquecendo que foi o autor dos Grundlage der Wissenschaftslehere, quem, da doutrina da oposição kantista entre fenómenos e nómenos, desenvolveu a oposição do eu e do não-eu, para formular a doutrina lógica da antítese e da síntese como factores de ciência. É evidente que Fichte cruza o esquema da judicação com o esquema da volição, no que se mostrou fiel ao pensamento germânico, acentuadamente violentista, energetista e pessimista. Fácil será verificar que à lógica de Fichte, e não à de Hegel, se subordinam os sistemas de Feuerbach e de Marx.
Hegel não era um pensador dialéctico, mas um pensador dramático. Sabia, portanto, que no drama, no movimento da história, há sempre três actos, três momentos, três personagens, ainda quando a aparência seja dualista ou antinómica. Aceitando as oposições conforme lhes eram apresentadas pela ciência do seu tempo, o erudito Hegel procurou superá-las pelo método sintético ou silogístico, porque sabia que a verdade só se espelha na tríade.
Tal não é o que verificará quem, pelo método de autoridade - que é o recurso às obras dos autores e o desprezo das deturpações dos intérpretes, bem ou mal intencionados -, estudar meticulosamente a história da filosofia. A dialéctica, que parece ter arruinado as doutrinas escolásticas, corresponde ao reconhecimento feito por Kant de que existem antinomias e antilogias no pensamento transcendental. A condenação do pensamento transcendental reconduz, porém, ao dualismo da sensitividade e do intelecto ou entendimento, que são os dois únicos factores da ciência positiva ou positivista.
Kant criticou e condenou a dialéctica, porque acima de tudo foi um pensador de crença que procurava a ciência. Se formalmente admite que filosofar é pensar por tríades, materialmente afirma que o terceiro termo é incognoscível; mas situando-o na crença em vez de o situar na ciência, permite que outros o considerem inexistente. Assim é, por exemplo, que mantém a dualidade do sujeito com o objecto na relação fenoménica, considerando incognoscível o nómeno.
Hegel, depois de estudar as antinomias que Kant reconheceu no pensamento transcendental, na razão pura, na Vernunft, afirmou que elas também se manifestam no intelecto e na sensitividade. A formação de teses contraditórias estava, aliás, admitida pela doutrina escolástica que a considerava lei geral do pensamento, visto que os juízos quanto à qualidade se classificam em positivos e negativos. A dialéctica do sic et non, exposta na Idade Média por Abelardo, contribuiu tanto para arruinar a Escolástica como a coincidentia oppositorum de Nicolau de Cusa na Idade Moderna.
A reforma lógica de Hegel realizou-se toda na teoria das inferências, opondo ao quadro lógico de Miguel Psellus e da silogística escolástica a tábua kantista das categorias intelectuais. Começou Hegel por passar da categoria de quantidade para a categoria de qualidade, libertando o pensamento especulativo de qualquer subordinação aos métodos da matemática. Depois mostrou como o pensamento tem ainda de passar da qualidade para a realidade, a fim de nesta categoria afirmar o seu carácter objectivo.
A quem tiver presente a doutrina escolástica dos transcendentais fácil será verificar que Hegel completa e actualiza magistralmente a crítica de Kant, refutando os subsequentes positivismos francês e alemão. A lógica de Hegel, desprendendo o pensamento humano das condições sensíveis e dramáticas, liberta-o para lhe permitir a ascensão ao absoluto. Não entenderá a lógica de Hegel quem nela não souber ver a estrutura religiosa de uma oração.»
Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
«Evitar o dualismo é uma aspiração solicitada pela dignidade do pensamento, e aspiração que é realizável se alguma confiança concedermos às tentativas para a alcançarem. O dualismo corresponde, no domínio da objectividade, ao que a dialéctica é no domínio do conhecimento. E uma vez que do mal nos estamos a ocupar, é adequado lembrar que, sendo por etimologia a entificação da dualidade, o Diabo é um produtor de dualismos.
O pensamento moderno acabou por dar, nos nossos dias, geral crédito e geral aplicação à dialéctica. Assenta a moderna noção de dialéctica na necessária existência de diferenças na realidade a que logo atribui sentido de elementos contrários que, depois, considera como se contraditórios fossem. Ora as diferenças são a condição necessária da harmonia como a contrariedade é a condição do sentido universal, unificativo do pensamento pois os contrários não são inconciliáveis, nem, sequer, incomplementares. Só a contradição se adequa aos quadros rígidos de ódio, oposição e destruição que a dialéctica pretende sobrepor a toda a realidade, mas a contradição está fora da realidade e, como tal, constitui a designação dos objectos cuja relação não pode ascender até aos domínios do pensamento por se reduzir até ao absurdo e ao irreal. Pretende a forma moderna da dialéctica orgulhar-se de uma origem que estaria na filosofia de Hegel; mas se há alguma distinção que esteja sempre manifesta nesta filosofia é, precisamente, a da contrariedade e da contradição como, por outro lado, o pensamento de Hegel é, na filosofia contemporânea, o mais empenhado em cientificar, mediante o conceito, a conciliação de todos os dualismos. A mais primária, a mais divulgada informação da filosofia de Hegel começa pela exposição dos três momentos da ideia e do real, o que só pode ter como única possível interpretação a da negação, se não do dualismo que ainda pode ser considerado o segundo, transitório momento, decerto de toda a dialéctica que se queira apresentar como forma definitiva do pensamento.
Esta contemporânea valorização da dialéctica tende a interpretar, a traduzir para os seus quadros da contradição, tudo quanto nas anteriores expressões do pensamento considerou os contrários e as diferenças da realidade; ou tende a dar o maior crédito aos intérpretes que acentuaram o dualismo de tais expressões, o que se verifica com tanto mais facilidade quanto é certo que os principais pensadores tiveram uma infinidade de intérpretes e que o dualismo constitui a imediata degradação de todo o pensamento de contrários.
O exemplo mais elucidativo desta versão dualista e dialéctica é-nos fornecido pela filosofia platónica. Com efeito, a doutrina platónica é geralmente interpretada como um dualismo em que o princípio do mal seria representado pela matéria provida de uma entidade necessária e independente. Certo é, porém, que, se tal interpretação encontra textos que a fundamentam, também é textualmente refutada, pois há, nas obras de Platão, passagens que se contradizem: uma vez atribui-se à matéria existência independente e incriada, outras recusa-se-lhe qualquer forma de existência. Ao indicar estas contradições, Plutarco justifica-as observando que Platão era forçado a ocultar, por esse modo, um mistério que seria precisamente o da origem do mal.
Estas observações sobre a dialéctica afiguram-se imprescindíveis por nos esclarecerem quanto ao significado a atribuir aos diversos dualismos do bem e do mal e por nos obrigarem a não interpretarmos o dualismo de contrários como uma dialéctica de contraditórios. Assim, as definições do mal como relativo vêm esclarecer o nosso ponto de partida e, para lá das refutações indiscutíveis que imediatamente concitariam, fornecem-nos elementos que serão utilizados na prossecução do nosso estudo, o que será de especial importância quando tivermos de considerar a origem do mal na própria Divindade.
As refutações a que aludimos referem-se à dialéctica como forma de pensamento e ao dualismo como afirmação de dois princípios reais e opostos. A dialéctica opõe-se à própria natureza da razão; para que ela pudesse ser uma forma de pensamento, seria preciso que a razão se desdobrasse em duas faculdades de conhecimento tão opostas como os princípios a que se refeririam. Ora nem a razão é mais do que uma faculdade nem a dialéctica apresenta um método ou uma pluralidade de métodos que não sejam comuns a toda a actividade racional. Por sua vez, o dualismo pretenderia afirmar-se através de uma explícita contradição: ao postular os princípios do bem e do mal igualmente eternos e infinitos, define-os ao mesmo tempo como dois, isto é, como irredutivelmente opostos.
Por tantos motivos - diríamos até, como é óbvio - não é lícito interpretar as diversas e múltiplas formas do dualismo do bem e do mal como afirmando duas forças opostas e irredutíveis. Representaria isso um grau de pensamento não só inferior mas também ilegítimo. Perante a verídica interpretação, como vimos com a filosofia platónica, o dualismo só constitui um comentário degradado e degenerescente. E remontando a maior parte dos dualismos a uma origem religiosa, aí a indiscrição que nos transmitiu o segredo não alcança profanar o sagrado. Em vão, as exigências de inteligibilidade desdobrarão num dualismo de origens o que constitui misteriosa identidade divina; em vão o pensamento dividirá por duas origens ou dois seres independentes os atributos que não alcança conciliar na mesma divindade.
A religião não deixou por isso de afirmar que num só Deus residem aqueles atributos que, consoante são evocados, conferem à divindade um poder benévolo ou maleficente, como acontecia com o Olimpo grego.»
Orlando Vitorino («A Fenomenologia do Mal»).
Prefácio à 1.ª edição dos «Princípios da Filosofia do Direito», de Hegel
Quase só em nossos dias este livro de Hegel foi séria e consequentemente reconhecido como obra decisiva na evolução da Filosofia do Direito, mau grado o profundo sulco que aparentemente terá deixado em todo o século XIX. Livro de múltiplas leituras, começou por ser visto pelo liberalismo novecentista apenas no que dele pode revelar a leitura mais superficial: uma Filosofia do Direito especialmente elaborada para a monarquia prussiana, o que decerto se não deixava de justificar pelo carácter monarquista que Hegel atribui ao Estado, pela determinação do último elemento da história universal do império germânico, pela crítica, aliás sempre compreensiva, que contém àqueles pensadores que se encontram na ordem do liberalismo político e estadual, como Kant, Rousseau e Montesquieu. Tal apreciação, ao lado da preponderância do positivismo nos domínios mais estritamente jurídicos, explica que o livro de Hegel tenha sido primeiro repudiado, depois esquecido e por fim ignorado.
Mas simultânea com esta apreciação liberalista, a filiação que o marxismo proclamava no hegelianismo, mais deixou suspeitar do que considerar e desenvolver a importância que estes «Princípios da Filosofia do Direito» teriam para um pensamento político que, desde meados do século passado, não tem feito senão expandir-se.
A filiação do marxismo em Hegel é, declaradamente, uma relação quanto ao método dialéctico ou, para evitar mal-entendidos, quanto ao carácter dialéctico da realidade e do pensamento (1). Também na Filosofia do Direito se encontra sem dúvida, a mesma estrutura dialéctica que, no entanto, é noutras obras que está mais directamente exposta e, até, mais adequadamente a uma relação (não só formal mas substancial) com o marxismo, como acontece, por exemplo, na impressionante especulação sobre a dialéctica do senhor e do servo. A Filosofia do Direito terá contribuído, para este pensamento sobremaneira pragmático, mais através da refutação do intelectualismo abstracto dominante nas instituições e no pensamento liberal ou burguês, do que, nem sequer parcialmente, através da sua estrutura e finalidades próprias. Para aquele grupo berlinense de «Jovens Hegelianos», não era decerto na Filosofia do Direito que residia o mais importante pensamento de Hegel. Se nem em Marx, nem em Feuerbach está presente este livro, também do anarquismo (ou, como se queira, do existencialismo) de Max Stirner estes «Princípios» estão ausentes: a angústia de Stirner afigura-se-nos ter o ponto de partida hegeliano naquilo que da «Fenomenologia do Espírito» e da «Enciclopédia», os «Princípios da Filosofia do Direito» recebem como já tratado: o conceito ou a ideia do Espírito em sua universal realidade.
Na reacção que, durante o último período do século, se manifestou contra o positivismo jurídico, nada representou a filosofia de Hegel. Os pensadores que, como Stammler ou Cohen, se recusaram ao positivismo, fundamentaram-se em Kant, não em Hegel. Regressando a Kant, já se observou que os novos pensadores também teriam regressado a Hegel. A verdade, porém, é que só tardiamente isso aconteceu. Podendo datar-se o neokantismo de 1860, ainda em 1920, quando pela primeira vez aparece na Alemanha um pensador como José Kohler, que se declara hegeliano (2), dele foi possível afirmar o seguinte: «Na época em que apareceu a Filosofia do Direito de Kohler, a filosofia de Hegel era quase desconhecida até dos próprios filósofos alemães» (3). O mesmo neokantismo começou por só atender à «Crítica da Razão Pura», assim cindindo a obra e o pensamento de Kant. Mais estranho isso se afigura quando aplicado à Filosofia do Direito que pertence aos domínios kantianos da Razão Prática. Sem considerar o que há de contraditório nesta separação (embora logo Stammler tenha distinguido a autonomia da ciência jurídica e a autonomia das ciências naturais, ambos sujeitos ao mesmo genérico conhecimento categorial), tentou-se elaborar a Filosofia do Direito sobre os mesmos processos de conhecimento que na «Crítica da Razão Pura» se limitam à natureza: como no sujeito de conhecimento residem, antes da apreensão do objecto, as formas, intuições, categorias e síntese a priori que o hão-de tornar cognoscível, assim se admitiu que o mesmo processo se podia estabelecer para o conhecimento do Direito.
Como se viria a verificar, se há nesta concepção algo de decisivo para que o Direito seja possível como Filosofia do Direito, isto é, para que o Direito se afirme como sujeito ou capacidade formal de pensamento, não poderia ela ter lugar dentro de uma filosofia que se apresente como kantiana. Aceitando, como não podia deixar de o fazer, a distinção entre os domínios da Razão Pura, a que pertencem as questões sobre a possibilidade do conhecimento, e os domínios da Razão Prática, a que pertencem as determinações reais da vontade, foi em vão que os neokantianos a procuram sujeitar aos mesmos processos de conhecimento através da definição daquilo a que se chamava ciências da natureza e daquilo que se pôde designar por ciências do espírito. Aqui, porém, já é a filosofia que começa a reaparecer (4).
O neokantismo jurídico não podia, pois, ter resistido a esta crítica e ao que por ela se representava de perduração, no pensamento do direito, do positivismo de que os neokantianos pretendiam libertar o Direito. Com efeito, tratar o que era objecto resultante do pensamento especulativo, ou da criação do homem como espírito, segundo o mesmo processo de conhecimento adequado aos objectos naturais, ou extrínseca e imediatamente dados na sensibilidade, equivalia a remeter para o plano do simples evento, do simples facto positivo, da imediatidade, o que, em princípio, aí se reconhecia que não estava.
A distinção entre mundo da natureza e mundo da cultura, ou entre ciências da natureza e ciências do espírito, era assim uma distinção que, logo ao pensar-se, se diluía. Alguma coisa ou algum abismo tinha, todavia, de separar o real da natureza e o real do espírito, e a questão que então surge é a realidade ou ontologia do mundo do espírito, ou do conceito, ou da ideia (5). É assim que uma vez situado o pensamento filosófico perante a realidade da ideia, o regresso a Kant promove o regresso a Hegel.
Deve reconhecer-se que se verifica, sempre que um pensador aborda o hegelianismo ou atreve qualquer pessoal interpretação, uma inibitória atitude de temor e respeito pela vastidão e profundidade da obra do grande filósofo. Não foi esta, no entanto, a atitude daquelas reacções ou epigonias que o hegelianismo imediatamente promoveu: o existencialismo de Kierkegaard, o socialismo de Feuerbach, Marx e Stirner, bem como a chamada «direita hegeliana» com Michelet, Rosenkranz e Vera, uns e outros se propondo prosseguir, refutar ou superar Hegel, com resultados que não resistiram, na adequação a esse proposto fim, às primeiras críticas. Não sabemos até que ponto tais críticas terão contribuído para a timorata e inibitória atitude que o hegelianismo passou a provocar. Entretanto, outros motivos vieram pesar sobre aquela inibição.
Na Alemanha, a exigência de um regresso a Hegel foi brevemente seguida – tão brevemente que ele ainda não obtivera os primeiros frutos – pelo despertar do nacional-socialismo que, com o seu absorvente carácter doutrinário, logo englobou as primeiras afirmações do pensamento jurídico neo-hegeliano. Alguns aspectos dos «Princípios da Filosofia do Direito», quase os mesmos da superficial interpretação liberalista a que aludimos, justificariam tal absorção, mas, como em geral acontece com as doutrinas jurídicas e políticas abonadas em Hegel, passaram-se em silêncio aqueles outros aspectos que contradiriam tal absorção como, por exemplo, a refutação hegeliana de tudo o que fosse distinções raciais dentro do Estado ou, em geral, a salvaguarda do individualismo.
Esta absorção política do hegelianismo, não só o tornou suspeito e proibido – mais do que o permite a seriedade do pensamento – aos pensadores de outros países, como impediu uma interpretação de tipo individualista, no sentido a que teria pertencido aquela, a que aludimos, de Joseph Kohler. Se não pudémos ler o livro deste escritor, as várias referências com que deparámos, suscitam-nos no entanto uma fundada curiosidade por essa interpretação que será, na espontaneidade inicial do regresso da cultura alemã a Hegel, a primeira feita de um ponto de vista que não sabemos ter sido mais adoptado ou desenvolvido e que nos parece sobremaneira justificado. Com efeito, não só a primeira parte dos «Princípios da Filosofia do Direito», aquela que Hegel designou por Direito Abstracto, é a que se ocupa do direito do indivíduo, como ainda o próprio Hegel observa que todo o livro deve ser lido e compreendido tendo sempre presente, como ele o teve na sua elaboração, esse mesmo Direito Abstracto.
Todavia, enquanto o pensamento alemão se dispersava na multiplicidade de escolas neokantianas, na generalidade dos países o sentido do pensamento subsumia-se no predomínio do positivismo provocando, até nos melhores espíritos, uma incompreensão da filosofia que era especialmente representada pelo paradoxal prestígio e ignorância que envolviam a obra de Hegel. «Nas revoluções do século XIX e em especial na de 1848 – diz-nos Benedetto Croce – todas as facções participaram variamente da escola hegeliana» (6), mas, por outro lado, Hegel nem sequer era lido «e a sua pátria alemã, tão esquecida do grande filho, nem mesmo tornou a imprimir-lhe as obras e profere frequentemente juízos acerca dele que nos espantam, a nós que estamos nos limites extremos da Itália, a nós que não chegámos a esquecê-lo de todo e em certa medida o havemos feito nosso, unindo-o ao nolano Bruno e ao partenopeu Vico» (7).
Quando, em 1932, se comemorou o centenário de Hegel, não foi sem espanto que, reflectindo, os pensadores alemães verificaram como o grande filósofo estava esquecido entre eles. Ao lado deste esquecimento, como vimos já em 1906 denunciado por Croce, podia o pensador italiano assinalar a perduração do hegelianismo não só em Itália mas sobretudo em Inglaterra. Sobretudo em Inglaterra dizia ele, por motivos que revelam a sua admiração pelo livro de Stirling «O Segredo de Hegel», mas também porque não contava ainda com a sua mesma obra nem com a cultura hegelianista que a Escola de Nápoles ia desenvolver na península. Várias razões poderão explicar o êxito do hegelianismo em Itália; duas delas apresentam significativa importância.
Ao contrário do que aconteceu na Alemanha e, depois, em França, o hegelianismo não foi, em Itália, resultado da reacção contra o positivismo. Antes a introdução do hegelianismo coincide com a introdução do positivismo. Com efeito, ao mesmo tempo que Roberto Ardigó difundia em Itália o positivismo, fundava Bertrando Spaventa a Escola neo-hegeliana de Nápoles, donde haviam de sair pensadores como o mesmo Croce, Gentile, Maggiore e Ugo Spirito. Esta independência de qualquer finalidade, esta autonomia perante os imediatos interesses da cultura, deu aos estudiosos de Hegel aquela liberdade, aquele desinteresse que, segundo o próprio Hegel, é condição de todo o pensamento especulativo.
Outra razão radica nas características da cultura italiana, naquelas que podem ver-se representadas no pensamento, a muitos títulos precursor do de Hegel (na concepção da história, na determinação do espírito do povo, por exemplo) de João Batista Vico. Foi significativamente um hegeliano, esse mesmo Croce, que, por assim dizer, arrancou do olvido a obra de Vico e quem, ao mesmo tempo que desenvolvia o neo-hegelianismo italiano, a fazia reconhecer como obra essencial da cultura europeia. Dir-se-á, talvez, que ao olvido de uma obra assim precursora não poderia corresponder a predisposição dos espíritos para a compreensão do que lhe é afim; mas o que, por outro lado, se tem de reconhecer é que quanto alguma vez foi pensado e expresso na cultura de um povo, se nessa expressão porventura se olvidou, não deixará de permanecer através de uma espécie de sabedoria infusa.
Entretanto, também no hegelianismo italiano estes «Princípios da Filosofia do Direito», foram unilateralmente considerados e interpretados, segundo uma aceitação parcelar não só da doutrina mas ainda do valor jurídico e até filosófico deste livro. É assim que Giuseppe Maggiore pode pôr de lado toda a primeira e segunda parte – O Direito Abstracto e a Moralidade Subjectiva: «Um dos obstáculos mais difíceis da filosofia jurídica hegeliana é, sem dúvida, a infelicíssima especulação sobre o direito abstracto. Este direito, como anterior ao Estado e até à Sociedade Civil, não pode ser outro senão o antigo Direito Natural». E, mais adiante, o jurista italiano acentua:
«Só há um direito concreto: o que se realiza no Estado. Qualquer outro direito – extra-estadual ou pré-estadual – é portanto abstracto, é um não-ser. Dialectizar um direito privado (direito da pessoa, da coisa ou contratual), abstracto, ao mesmo tempo que um direito público concreto é absurdo» (8).
Com facilidade se compreende que Portugal seja um país culturalmente dependente, embora não abandone a autonomia artística e filosófica que lhe é própria. Se de algumas poucas correntes filosóficas se pode reconhecer que foram introduzidas na nossa cultura – o tomismo e o positivismo, por exemplo –, só nos mais próximos dias a obra de Hegel começou, não diremos a ser pensada, mas apenas a ser conhecida entre nós. Se, como vimos, o hegelianismo foi, nos outros países, reivindicado pela generalidade das doutrinas políticas embora os seus textos originais estivessem esquecidos e ignorados, também em Portugal se podem encontrar os sinais da inconsequente atenção que alguns dos nossos mais representativos escritores prestam à obra ou ao nome de Hegel.
Por atitude pessoal de Antero e por formalismo de escolas literárias, algumas descrições artísticas fizeram correr a fama da cultura filosófica daquele poeta através de um ingénuo pitoresco coimbrão, vendo-se Antero, à janela de uma «república», a declamar sobre as trevas da noite, trechos de Hegel. Tratava-se de trechos das adaptações de Vera, e o próprio Antero veio a afirmar como não passavam de simples veleidades os seus conhecimentos filosóficos. Entretanto, quem primeiro, entre nós, se referiu a Hegel, foi Alexandre Herculano, poderoso e admirável escritor para quem a filosofia era «fria e vã»: limitou-se a citar Hegel para apoiar a sua defesa dos direitos de autor.
A Teófilo Braga se deve, além de expressões de combate ao longo de outros livros, uma breve e superficial exposição da estética hegeliana em «As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa» (9); capítulo de pequena divulgação, é, no entanto, significativo num pensador que assumiu a direcção espiritual cultural e política do positivismo. Teófilo reuniu assim o que em Itália era representado por R. Ardigó e B. Spaventa numa simultaneidade que causa a estranheza dos historiadores. Compreende-se, portanto, que tendo utilizado de Hegel, para aquele capítulo de «As Modernas Ideias», a primeira tradução francesa da «Estética», que era acompanhada de um longo prefácio, logo nos livros posteriores pretenda refutado o hegelianismo, numa atitude análoga à de Oliveira Martins.
Nos pensadores ainda contemporâneos de Teófilo, nem de Sampaio Bruno conhecemos qualquer referência a Hegel, e, posteriormente, não há de Leonardo Coimbra sinais de uma demorada meditação do hegelianismo, como não também ficaram dos professores que em Lisboa e Coimbra ensinaram filosofia. Explica-se isso por ter correspondido a sua actividade especulativa ou docente – realizada como é neste país culturalmente subordinado – ao período de esquecimento europeu do hegelianismo.
Quando, depois da reacção contra o positivismo, se assiste, como ainda hoje assistimos, à expansão do conhecimento de Hegel, começa tal redescoberta por ser representada entre nós por Fernando Pessoa. Falando do que entende dever constituir o verdadeiro sistema de filosofia, declara: «Há dele um exemplo único e eterno. É essa catedral do pensamento, a filosofia de Hegel» (10). Pouco manifesta o grande poeta as consequências que se deveriam esperar de tal admiração por um hegelianismo considerado sobretudo no que tem de místico; antes, em alguns ensaios, mostra não ter em conta um pensamento que naqueles termos admira e que poderia esclarecer, por exemplo, a sua infeliz tentativa de «uma estética não-aristotélica». No entanto, embora assim análogo às veleidades filosóficas de Antero, vale este, entre nós, como um primeiro sinal.
A atenção definitiva para o hegelianismo ser-nos-á dada pela Faculdade de Direito de Coimbra e está ligada à actividade que a nobre figura de professor que é o Dr. Cabral de Moncada exerceu no livro e na cátedra, para a imposição do estudo filosófico do Direito. A consagração universitária teve-a esta actividade com a criação, em 1936, da cadeira de Filosofia do Direito, mas já antes a obra de Cabral de Moncada encontrava uma audiência entre as gerações mais novas e levara ao aparecimento das primeiras tentativas para pensar o direito do ponto de vista da filosofia: entre elas se deve contar, como inteiramente lograda, a de António José Brandão. Nem este, nem Cabral de Moncada são hegelianos: António José Brandão é um neotomista que nesse «intelectualismo realista vê a única postura filosófica de onde é possível encarar a multiforme realidade por todos os seus aspectos» (11); é Cabral de Moncada um neokantiano de difícil definição tanto na busca de uma posição original como na crítica compreensiva que dedica a quase todas as concepções filosóficas do Direito.
Orlando Vitorino
|
Por outro lado, ao instituir-se entre nós o corporativismo, a sua relação com Hegel é mais verdadeira, embora seja indirecta, do que com a realidade histórica medieval, e na Constituição de 1933 pode reconhecer-se, em diversos pontos, a presença do hegelianismo.
No domínio mais rigorosamente filosófico, o hegelianismo é pela primeira vez afirmado entre nós como o sistema essencial de toda a formação filosófica por um livro que abre, em 1944, a fecunda polémica, já hoje anacrónica, sobre a afirmação da existência das filosofias nacionais (14). Não terá Álvaro Ribeiro abandonado esta espécie de fidelidade a Hegel, mas tem dedicado os seus posteriores livros a uma revalorização do pensamento de Aristóteles, o que não só pode ver-se concordante com o hegelianismo, como se conforma melhor com a nossa tradição filosófica. Tal hegelianismo promoveu, entretanto, as primeiras traduções portuguesas de obras de Hegel.
Revertendo de Hegel para Aristóteles, aquele pensador cedeu às tendências da cultura portuguesa que, sempre que procura os seus fundamentos e caminhos filosóficos, é no aristotelismo da escolástica medieval, ou no aristotelismo dos conimbricenses da Renascença, ou no aristotelismo reconstituído do século XVIII pelo Padre João Baptista, ou na última tentativa aristotélica de Silvestre Pinheiro Ferreira, que encontra aquilo que, ao concluir uma revisão da história da nossa filosofia, o Prof. Delfim Santos pôde assim definir:
«Aristóteles é o pensador sempre presente em todos os momentos do pensamento nacional» (15).
Também na Filosofia do Direito, o pensamento escolástico encontra uma permanência que o Prof. Cabral de Moncada assinala como ainda predominante nos nossos dias; e ao apresentar-se como um filósofo neotomista do Direito, António José Brandão tem de observar ironicamente: «Cá está o espectro da tradição escolástica».
Que saibamos, não existe nenhum estudo sobre as relações entre o pensamento de Hegel e o de Aristóteles, e se é possível mostrar como o hegelianismo de muitos modos prolonga a filosofia das Luzes e quanto a ela deve, não se pode todavia negar a admiração que, dentre todos os filósofos, Hegel dedica a Spinoza e a Aristóteles; para lá da simples admiração, o hegelianismo aceita, em alguns momentos essenciais, conceptualizações do espinosismo e do aristotelismo. São as primeiras culturalmente reconhecidas, e a Spinoza se reportam as noções hegelianas de substância e determinação, de finitude, negação e infinito. Quanto a Aristóteles, se é bem conhecido o capítulo que nas «Lições de História da Filosofia» lhe dedica, ainda se não atendeu convenientemente às múltiplas referências em que Hegel recorre ao filósofo grego para abonar o seu próprio pensamento, algumas de um impressionante significado como, por exemplo, a seguinte:
«Os livros de Aristóteles De Anima, com os tratados que contêm quanto aos aspectos e estados particulares da alma, são, hoje e sempre, a melhor obra, talvez a única com interesse especulativo, que há a esse respeito. O fim essencial de uma filosofia do Espírito só pode ser o de introduzir de novo, no conhecimento do Espírito, o conceito, e também, por consequência despertar a compreensão daqueles livros aristotélicos» (16).
O livro que apresentamos agora aos leitores portugueses será, talvez, o mais difícil dos livros de Hegel; é decerto, um livro de penosa leitura e de muito complexo entendimento. Pode o leitor ter apreendido, por quanto dissemos, como o pensamento filosófico, político e jurídico contido nestes «Princípios da Filosofia do Direito», além de se haver imposto como aquele que todas as doutrinações se obrigam a ter considerado, se apresenta também como origem e fundamento das mais diversas e até contrapolares doutrinas do nosso tempo e, ainda, da mesma evolução, transformação ou actualização delas. Não pode deixar de suscitar um impressionante espanto que a este mesmo livro e uno pensamento de um filósofo possam ir buscar seus princípios movimentos tão diferentes como o individualismo e o fascismo, o corporativismo e o estatismo, o marxismo e o monarquismo.
Se algum conselho não for despretensioso darmos aos leitores, será o de não utilizarem este livro como um tratado de consulta nem de o quererem entender a partir daqueles pontos que lhes sejam mais afins, mas que, antes, penosamente (e com a deslumbrante elucidação de todo o pensar) o procurem compreender desde o seu início até ao seu termo, caso se possa falar, quanto a um livro de Hegel, em algo terminal.
Em matérias como esta de Filosofia do Direito – e no que ela envolve de pensamento político, de fundamento ético, de pragmatismo convivente – a nossa cultura tem andado entregue a uma ingénua ignorância e seu consequente, perturbante desamparo logo que, pela dinâmica da razão, pela deslocação dos interesses, pela apreensão e pelas apreensões quanto ao destino nacional, se têm de abandonar aquelas instituições e regimes ou aquelas doutrinas extrínsecas que connosco perderam relações ou se esvaziaram de conteúdo. Oscilamos, por isso, nos vendavais da opinião, entre a geral irreflexão de um anarquismo informe e os particulares interesses de um estatismo formal. Um e outro extremo têm, decerto, a sua verdade, mas não a têm separada e absoluta. Indivíduo e Estado são o princípio e o fim deste livro, na sua união está a totalidade desta Filosofia do Direito.
Terá o leitor ocasião, ao deparar com as dificuldades do texto, de perdoar as deficiências da tradução. Ao elaborá-la, muitas vezes levados a prossegui-la apoiando-nos e desculpando-nos com a mísera situação em que se encontra, entre nós, o trabalhador intelectual e pensando que, por isso mesmo, mais dele depende o que é essencial.
Utilizámos, para esta tradução, as versões francesa de André Kaan e italiana de Giuseppe Maggiore. E não possuindo nós formação jurídica, muitas vezes tivemos de recorrer aos esclarecimentos de amigos. Entre eles, queremos agradecer a António da Silva Leal que é daqueles de quem mais depende, depois das gerações de Cabral de Moncada e de António José Brandão, o destino da nossa cultura filosófica do Direito – e agradecer também aquela presença que, nas horas que o penar alonga, com a paciência da sua companhia nos deu a imagem da verdade que não tem pressa dominando a impaciência do trabalho que não liberta. (in Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, tradução de Orlando Vitorino, Guimarães Editores, 1990, pp. VII-XXII).
Notas:
(1) À filosofia do Direito hegeliano apenas Marx dedicou um brevíssimo escrito a que deu o título de «Crítica da Filosofia do Direito de Hegel». O carácter deste escrito está, porém, tão afastado do título que apresenta que o tradutor francês (ed. Molitor) julgou-se obrigado a designá-lo por «Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel».
(2) Ainda não conseguimos, infelizmente, ler o livro deste pensador «Lehrbuch der Rechtsphilosophis», escrito, como se vê, numa atitude precursora do regresso a Hegel. A crítica que, no texto, a seguir transcreveremos, mostra bem como a cultura alemã não teve em conta o hegelianismo desenvolvido em Itália desde o início deste século, e fornece ao mesmo tempo o paradigma das acusações que uns aos outros fazem os doutrinadores que se apresentam como hegelianos: a ignorância cultural, ou filológica, ou filosófica, da obra de Hegel. No caso da crítica no texto citada, trata-se de anular, com um motivo completamente inadequado, um pensamento individualista fundado numa interpretação de Hegel cuja viabilidade mais adiante indicamos. É também significativo que o livro de Karl Larenz onde se regista aquela crítica, livro a muitos títulos notáveis, situando-se embora no signo do neo-hegelianismo, a nenhum dos muitos pensadores de que se ocupa, dedica, como a Hegel, tão breve e apressado capítulo.
(3) Karl Larenz, La Filosofia Contemporanea del Derecho y del Estado, trad. castelhana de E. Galán Gutiérrez e Trujol Serra.
(4) Foi precisamente fundando-se no neo-hegelianismo que o Prof. Afonso Queiró, transpondo para a antropologia, a distinção kantiana de nómeno e fenómeno, fez corresponder ao primeiro as ciências culturais e ao segundo as ciências naturais e, alargando a distinção ao conceito de Estado, aqui representa o primeiro como o Estado-Civilização e o segundo como o Estado-Cultura.
(5) Entre nós, este decisivo momento da Filosofia do Direito, é profundamente estudado pelo Dr. António José Brandão em «O Direito-Ensino de Ontologia Jurídica».
(6) B. Croce, O que é vivo e o que é morto na Filosofia de Hegel, tradução portuguesa de Vitorino Nemésio, p. 58.
(7) B. Croce, ob. cit., p. 187.
(8) Giuseppe Maggiore, Filosofia del Diritto, tradizione, introduzione e note, p. 25.
(9) Teófilo Braga, As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, 1.ª Parte.
(10) Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa.
(11) A. J. Brandão, Três Dissertações de Filosofia do Direito, in Revista «O Direito», ano 72, números 1, 3 e 7.
(12) «Assistimos hoje à assimilação de Stammler, de Kelsen e seus discípulos, de Del Vecchio e Radbruch, para apenas citar aqueles que, através das traduções dos seus livros, mais directamente têm sido lidos e estudados», ob. cit.
«Kelsen sucedeu a Duguit na posição honrosa de filho adoptivo das nossas Faculdades de Direito», ob. cit.
(13) Afonso Queiró. Ciência do Direito e da Filosofia do Direito.
(14) Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa.
(15) Delfim Santos, O Pensamento Filosófico em Portugal.
(16) Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 378.
Nenhum comentário:
Postar um comentário