sábado, 5 de março de 2022

Três projetos de poder global em disputa

Escrito por Olavo de Carvalho


«Desde suas primeiras experiências de cooptação de intelectuais, Willi Münzenberg, o executivo principal do plano Stalin-Radek, ficou impressionado com a facilidade com que suas palavras-de-ordem se disseminavam entre os intelectuais - uma docilidade espontânea e inconsciente que jamais a propaganda comunista havia encontrado entre os proletários. Entre os letrados a ação comunista era tão fértil que Münzenberg a chamava “criação de coelhos”. Pode parecer estranho que logo as camadas “mais esclarecidas” sejam assim fáceis de manipular, mas o fenômeno tem uma explicação bem simples. Se as pessoas menos cultas resistem à manipulação porque são desconfiadas da novidade e apegadas a costumes tradicionais, os intelectuais capazes de iniciativa pessoal originária, de resposta direta e criativa aos dados da experiência real são muito raros: à maioria, que já não conta com a tradição para guiá-la nem tem forças para uma reação personalizada, só resta seguir a moda do dia. Nove décimos da atividade mental das classes letradas são imitação, macaquice, eco passivo de palavras-de-ordem que ninguém sabe de onde vieram nem para onde levam.

Essa proporção tende a aumentar na medida mesma da ampliação das oportunidades de acesso às profissões intelectuais, cada vez mais abertas a multidões de incompetentes - o “proletariado intelectual” como o chamava Otto Maria Carpeaux - cujo único teste para a admissão no grêmio é, justamente, a facilidade de impregnação dos cacoetes mentais mais típicos desse grupo social. Daí a proliferação de tantas modas intelectuais, artísticas e políticas cuja absurdidade grotesca é claramente percebida pelo homem das ruas, mas que aos de dentro do círculo parecem a encarnação mais pura do elevado e do sublime.» 

Olavo de Carvalho («O guia genial dos povos»).

 

«Espero o livro em que o marxismo de Estaline apareça inserido na história da Rússia. O que em Estaline é verdadeiramente russo é o que nele é verdadeiramente forte, e não o que nele é marxista.»

Ortega y Gasset («A Revolta das Massas»).


«Das várias formas de escravidão a que o homem se sujeita pelo culto dos sentimentos, a pior é a escravidão às palavras. Por meio do falatório em torno o homem pode ser adestrado para ter certos sentimentos e emoções à simples audição de determinadas palavras, independentemente dos fatos e do contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam reações automáticas. Por isso as massas imaturas aceitam com a maior credulidade os novos regimes de governo que prometem acabar com as guerras e instaurar a paz. Mas é só nominalmente que guerra significa morticínio e paz significa tranqüilidade e segurança. As guerras, no século XX, mataram 70 milhões de pessoas. É muita gente. Mas 180 milhões, mais que o dobro disso, foram mortos por seus próprios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O homem maduro sabe que as relações entre guerra e paz são ambíguas, que só um exame criterioso da situação concreta permite discernir a dosagem do bem e do mal misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da Paz, oferecida à adoração infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a Pablo Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o símbolo da Pax soviética - a ordem social totalitária construída sobre trabalho escravo, prisões em massa e genocídio - se sobrepusesse, na imaginação dos povos, ao símbolo cristão do Espírito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto a Pomba da Paz, também manifestos pela paz, discursos pela paz e até missas pela paz são, muitas vezes, blasfêmias e armas de guerra. No dicionário, os sentidos da guerra e da paz estão nitidamente distintos, mas o homem maduro não se refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a absolutos verbais.











Igualdade, liberdade, direito, ordem, segurança e milhares de outras palavras foram também incutidas na mente das massas como programas de computador para acionar nelas automaticamente as emoções desejadas pelo programador, fazendo com que amem o que deveriam odiar e odeiem o que deveriam amar. Até a esperança, chave da fé e da caridade, se torna aí uma arma contra o espírito, quando se coisifica na expectativa de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das contas, de ganhar mais dinheiro. Jesus deixou claro que não era nenhuma dessas esperanças a que Ele trazia. Era a esperança de fazer de cada um de nós um novo Cristo, encarnação e testemunha do espírito. Quem aceitar menos que isso só ganhará, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de Stalin.» 

Olavo de Carvalho («Jesus e a Pomba de Stalin»).

 

«Olavo foi um gigante na luta pela liberdade e um farol para milhões de brasileiros. Seu exemplo e seus ensinamentos nos marcarão para sempre. Que Deus o receba na sua infinita bondade e misericórdia, bem como conforte sua família.»

Jair Bolsonaro

 

«O niilismo apareceu entre nós porque todos nós somos niilistas! Nada mais cómico do que os cuidados dos nossos sábios perdendo tempo a pesquisar as origens dos niilistas! Os niilistas não nos vieram de parte alguma – estiveram sempre connosco, em nós e entre nós.»

Fiódor Dostoiévski

 

       «O bolchevismo, como realidade, nada tem que ver com o marxismo.»

Hermann von Keyserling

 

        «Lenine gostava de citar a sentença de Heráclito, fazendo-a sua: “Não esqueceis que a guerra é a rainha do universo!”»

Henri Massis



 

«Se fosse possível meter um desejo russo debaixo de uma fortaleza, a fortaleza iria pelos ares.»

Joseph de Maistre

 

«Todos os homens devem tornar-se russos, antes de mais nada. Já que o cosmopolitismo é uma ideia nacional russa, importa em primeiro lugar que cada homem venha a ser russo.»

Fiódor Dostoiévski


«Desconhecemos o silogismo do Ocidente. As melhores ideias, por falta de ligação ou de sequência, paralisam os nossos cérebros, deslumbrantemente estéreis… Nas nossas cabeças absolutamente nada existe que tenha carácter geral – nelas tudo é individual, flutuante e incompleto.»

Piotr Tchaadaïev

 

«Consciente da sua originalidade própria de que, como dissemos, tem uma noção messiânica, a Rússia bolchevista julga-se anunciadora da regeneração do mundo. Para melhor anular as contradições que a minam, começa por querer destruir todos os valores que fizeram aquilo que somos. A cultura helénica, o mundo latino, a civilização cristã nunca tiveram inimigo mais lúcido nem mais implacável do que o que se apoia nos contrafortes dos Urais. E é por isso, em primeiro lugar, que o bolchevismo constitui um perigo – na medida, exactamente, em que assenta sobre um princípio anti-ocidental, anti-humano, na medida em que é o lógico e resoluto antagonista da grande tradição espiritual de que somos os mantenedores.

Bolchevista ou eslavófila, pois – “há no bolchevismo integral grande número de ideias eslavófilas” [Ustrialoff] – é no velho citismo que continua a alimentar-se essa ideologia em que se exalta o ardor virgem de um povo que afirma a superioridade da sua frescura intacta sobre o esgotamento imputado a todas as raças instruídas, cultas, formadas. “Sim, somos citas” – apregoou A. Block - "sim, somos asiáticos, de olhos turvos e ávidos!” É esse citismo que constitui o fundo de todas as aspirações nacionais russas e que alicerça a inimizade irredutível, o antagonismo filosófico e histórico da Rússia e da Europa. “Entre ela e nós” – diz Tiucheff – “não pode haver negociações nem armistício. A vida de uma é a morte da outra". E afirma seguidamente que “o citismo russo reduzirá a cinzas o universo, arrancará a máscara a Atlante, esse burguesote do mundo; porque, num furação de chamas, por entre a tormenta, a boa nova vai alastrar” – isto é, a nova verdade revolucionária dos citas, única “verdade cósmica” destinada a destruir “a Europa estatista e materialista”

Por toda a parte se topam ao serviço da violência as mesmas declamações contra “o Ocidente apodrecido” – lugar-comum dos intelectuais russos -, o mesmo desejo de regeneração universal baseado na convicção de que o povo russo é o corpo de Deus, o povo deífico, e também aquela forma de messianismo que Karl Marx ironicamente definia “a fé na renovação da Europa por meio do cnute e da mistura do sangue europeu com o sangue calmuco.”» 

Henri Massis



 
 


«Em contacto pelas suas fronteiras com os muçulmanos da Turquia, da Ásia Menor, da Pérsia, do Afeganistão, em contacto com os caminhos da Índia, com a Mongólia, o Tibete e a China, a Rússia dos Sovietes, depois do malogro do seu assalto contra a Europa, bateu em retirada para a Ásia onde preparou nova ofensiva contra a Europa: a ofensiva do mundo asiático.» 

Albert Sarraut

  

«Nunca marchámos com os outros povos, não pertencemos a nenhuma das outras famílias do género humano. Não somos nem do Oriente nem do Ocidente, nem nos dizem respeito as tradições de um ou do outro.»

Piotr Tchaadaïev

  

«Não nos considereis filhos da Europa. A Europa não é a nossa mãe… A senda do nosso evidente destino dirige-se para o Oriente… A Rússia cometeu o pecado de menosprezar o seu orientalismo e de se deixar ludibriar por ilusões ocidentais».

Príncipe Trubetzkoy

  

        «Ainda nos encontramos no período gaseiforme.»

Ivan Turgueniev

  

«Vindos ao mundo como filhos ilegítimos, sem herança e sem ligação com os homens que nos precederam à face da terra, nada temos nos nossos corações dos ensinamentos anteriores às nossas próprias experiências. O que é hábito e instinto nos outros povos, temos nós de meter às marteladas nas nossas cabeças. Somos a bem dizer, estrangeiros a nós próprios. Marchamos no tempo por forma tão singular que, à medida do nosso avanço, a véspera foge-nos para sempre – consequência natural duma cultura de importação e de imitação. Entre nós não há desenvolvimento íntimo, progressão natural; as ideias novas varrem as antigas, porque não provêm delas: surgem não se sabe donde. Porque não acolhemos senão ideias feitas, não marca as nossas inteligências o sulco inapagável que todo o movimento progressivo grava nos espíritos e que faz a sua força. Crescemos, mas não amadurecemos.»

Piotr Tchaadaïev


«(...) os Russos tinham sido levados para o cristianismo pela mão de Bizâncio: é natural, pois, que fiquem desconfiando da autoridade do cristianismo ocidental.

As relações da Rússia com o Ocidente continuam, porém, durante algum tempo, e só a queda de Bizâncio e a ideia da “Terceira Roma”, marcam à Rússia o papel e o dever de porta-estandarte da verdade ortodoxa.

(...) É com o czares de Moscovo que a Rússia proclama a autocefalia da sua Igreja e refaz, como “Terceira Roma” o centro da verdadeira fé ortodoxa.

Roma traiu; Bizâncio, segunda Roma, tombou por castigo de Deus; fica de pé a “Terceira Roma”, cidade guerreira e mística da pureza da Fé.»

Leonardo Coimbra


«Quando o ensino público, de estrutura positivista, parece organizado no propósito de oposição ao catecismo – la vacine de la réligion, no dizer de Napoleão I – para que de sucessivos contrastes entre a razão e a fé o estudante escolha livremente um dos caminhos, é sempre instrutivo verificar o drama intelectual e sentimental dos pensadores que finalmente ingressam na zona visível da Igreja Católica, ou que a ela regressam depois de muitos desvarios. Exemplos como os de Newman, Soloviev e Leonardo Coimbra deveriam advertir as autoridades eclesiásticas de quantos erros vigoram ainda na preparação intelectual do nosso clero e na doutrina esquematizada para instrução dos fiéis. Nunca será demais estudar as características do pensamento português, antes de propor no ensino eclesiástico uma sistematização teológica elaborada Além-Pirenéus, ou, por assim dizer, ultramontana.»

Álvaro Ribeiro («Soloviev»).


«Há uma cultura que não temos necessidade de ir buscar à nascente ocidental, porque é de raiz russa… Afirmo que o nosso povo se cultivou há muito, desde que assimilou a essência da doutrina cristã. Objectar-me-ão: o povo russo não conhece a doutrina cristã e não ouve qualquer prédica. Trata-se, porém, de uma objecção vazia de sentido: o povo russo sabe tudo, tudo o que é preciso saber, embora lhe possa acontecer ficar reprovado num exame de catecismo. Instruiu-se nas igrejas onde, durante séculos, ouviu orações e hinos que valem mais do que os sermões.»

Fiódor Dostoiévski 

 

«Nem pela originalidade do seu carácter ou da sua obra, e ainda menos pela sua influência na história ou na civilização, podem os santos russos igualar-se aos santos da Igreja latina ou sequer aos de uma só nação católica como a Itália, a França, a Espanha. Em vão se procuraria entre eles qualquer figura para opor a um Gregório VII ou a São Bernardo, a um Tomás de Aquino, a um Francisco de Assis, a Francisco de Sales ou a um Vicente de Paula.»

A.    A. Leroy-Beaulieu




         «O clero russo tem sempre os olhos postos no Oriente e nunca quis aceitar a sua europeização.»

Georgi Plekhanov

 

Grigori Yefimovich Rasputin


«O camponês russo está mais próximo do chinês, do anacoreta tibetano, do pária hindu, do que do camponês europeu.»

Brian-Chaninov 


«Não foi a necessidade de se unirem para melhor enfrentarem a luta, mas o amor da solidão, a renúncia ao mundo e aos seus combates que povoaram outrora os inumeráveis mosteiros da Rússia. Muitos, talvez a maior parte dos monges russos não tinham em vista a actividade intelectual, nem o trabalho manual, nem a caridade, nem o apostolado; pareciam muito mais próximos dos lamas tibetanos do que dos filhos de São Domingos ou de São Bento. Por isso a Rússia não produziu nada que se possa comparar às grandes figuras de monges pacíficos ou guerreiros, homens de acção, escritores e até governantes, que tanto influíram no mundo latino. A Rússia teve monges mas não teve ordens religiosas.»

A. Leroy-Beaulieu


«Os eremitas iam em ascese até mortificações inverosímeis; mas, em regra, esta ascese era simples mortificação, sem o destino de procurar a verdadeira mística.

A ascética por si, a penitência por si, podem até ser formas sádicas da sensibilidade – só terão um sentido superior, quando são meios, por vezes até necessários, para a mística.

A ascética russa é essencialmente mortificação, remorso penitente, remédio de desespero até; raras vezes poderá ser catarse, via purgativa, caminho de via unitiva, porque esta, sem graça especial, exige uma doutrina, uma exploração das riquezas dogmáticas, que faltou quase sempre no cristianismo russo.»

Leonardo Coimbra


«Diz-se que o povo russo conhece mal o Evangelho, ignora as regras fundamentais da fé! Sem dúvida; mas conhece Cristo e trá-lo no seu coração desde sempre… Será possível conhecer o verdadeiro Cristo sem conhecer a doutrina? Essa é outra questão. O conhecimento de Cristo pelo coração está patente, porém, no nosso povo que se orgulha das suas crenças ortodoxas, isto é, de ser o que pratica a religião de Cristo com mais verdade, com mais ortodoxia. Repito: pode salvar-se muita coisa inconscientemente.»

Fiódor Dostoiévski


«Soloviev discute a situação da espécie humana na escala zoológica, demonstra a relativa infecundidade dos animais superiores, e anula a tese de Schopenhauer sobre a astúcia do génio da espécie. O erro materialista consiste em pretender subsumir o amor no instinto de produção. A atracção sexual – de um sexo pelo outro – há-de ser digna de mais alto grau de inteligibilidade. Demonstra depois Soloviev que o amor humano se caracteriza pela eleição de uma pessoa de outro sexo, por uma fidelidade de pensamento, de sentimento e de comportamento que chega a parecer obsessiva e até patológica, enfim por uma série de atributos reconhecidos pelos literatos mas por vezes negados pelos cientistas. Nos lúcidos comentários aos estudos de Kraft Ebbing e Binet sobre as aberrações do instinto sexual, que contrariam e desmentem a astúcia do génio da espécie, o arguto filósofo eslavo de certo modo antecede a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria do século XX. A medicina psicossomática veio comprovar que a fenomenologia do amor, mais afectiva do que instintiva, apela por uma ontologia do amor, e quem diz ontologia está prestes a dizer teologia.

O amor humano caracteriza-se pela predilecção e pela fidelidade, e ainda quando tais características não se apresentem com inteira pureza ou não se realizem na totalidade – conforme se pode alegar com a variedade das observações empíricas e com as variantes das narrativas literárias –, certo é que há no amor uma inegável tendência para a monogamia virtual. Soloviev nos seus termos diz que a verdade do amor está na realização da individualidade infinita, da imortalidade da carne redimida, da primitiva santidade de Adão à imagem e semelhança de Deus.

Não discutiremos a teologia do matrimónio, nem a liturgia do matrimónio, que estariam em coerência com a doutrina de Soloviev. Elas adoptam por outro ponto de partida um texto do Novo Testamento para glosar o paralelismo simbólico da relação de Deus com o Universo, de Cristo com a Igreja, e do Homem com a Mulher. Estas três relações correlacionam-se numa só analogia cuja encarnação doutrinal floresceu ao calor da Igreja Ortodoxa; mas é ainda difícil determinar em que medida será lícito expandi-la nos quadros mais lógicos da Igreja Católica.»

Álvaro Ribeiro («Soloviev»).


Ver aquiaqui e aqui


Três projetos de poder global em disputa

Palavras mudam de sentido, de peso e de valor conforme as situações de discurso. Ao entrar neste debate, devo esclarecer antes de tudo que não se trata de um debate de maneira alguma. A idéia mesma de debate pressupõe tanto uma simetria oposta entre os contendores, do ponto de vista das suas convicções, quanto alguma simetria direta dos seus respectivos estatutos sócio-profissionais: intelectuais discutem com intelectuais, políticos com políticos, educadores com educadores, pregadores da religião com pregadores do ateísmo, e assim por diante.

Quanto às convicções, se por esse termo entendemos tão-somente afirmações gerais sobre a estrutura da realidade, as minhas não diferem das do Prof. Dugin em muitos pontos essenciais. Ele crê em Deus? Eu também. Ele acha viável uma metafísica do absoluto? Eu também. Ele aposta num sentido da vida? Eu também. Ele entende as tradições, a pátria, a família como valores que devem ser preservados acima de supostas conveniências econômico-administrativas? Eu também. Ele vê com horror o projeto globalista dos Rockefellers e Soros? Eu também. Não há como articular um debate entre pessoas que estão de acordo.

Do ponto-de-vista das posições reais que ocupamos na sociedade, ao contrário, nossas diferenças são tantas, tão abissais e tão irredutíveis que a proposta mesma de colocar-nos face a face é de uma incongruência um tanto cômica. Eu sou apenas um filósofo, escritor e professor empenhado na busca do que me parece ser a verdade e na educação de um círculo de pessoas que têm a amabilidade de prestar atenção ao que digo. Nem essas pessoas nem eu mesmo exercemos qualquer cargo público. Não temos nenhuma influência na política nacional, menos ainda mundial. Não temos sequer a ambição – muito menos um projeto explícito – de mudar o curso da História, seja ele qual for. Nossa única esperança é conhecer a realidade até a medida máxima das nossas forças e um dia deixar esta vida cientes de que não vivemos de ilusões e auto-enganos, não nos deixamos enganar e corromper pelo Príncipe deste Mundo nem pelas promessas dos ideólogos, servos dele.

Na hierarquia do poder vigente no meu país, minha opinião não conta para nada, exceto talvez como anti-exemplo e encarnação do mal absoluto, o que muito me satisfaz. No meu país de residência, o governo me considera, na mais hiperbólica das hipóteses, um excêntrico inofensivo. Nenhum partido político, movimento de massas, instituição governamental, igreja ou seita religiosa me tem na conta de seu mentor, de modo que posso opinar à vontade, e mudar de opinião quantas vezes bem me pareça, sem que isto tenha conseqüências práticas devastadoras para além da minha modesta esfera de existência pessoal.

Já o Prof. Dugin, filho de um oficial da KGB e mentor político de um homem que é a própria KGB encarnada, é o criador e orientador de um dos planos geopolíticos mais abrangentes e ambiciosos de todos os tempos – plano adotado e seguido o mais fielmente possível por uma nação que tem o maior exército do mundo, o mais eficiente e ousado serviço secreto e uma rede de alianças que se estende por quatro continentes. Dizer que o Prof. Dugin está no centro e no topo do poder é uma simples questão de realismo. Para realizar seus planos, ele conta com o braço armado de Vladimir Putin, os exércitos da Rússia e da China e todas as organizações terroristas do Oriente Médio, além de praticamente todos os movimentos esquerdistas, fascistas e neonazistas que hoje se colocam sob a bandeira do seu projeto “Eurasiano”. Eu, além de não ter plano nenhum nem mesmo para a minha própria aposentadoria, conto apenas, em matéria de recursos bélicos, com o meu cachorro Big Mac e uma velha espingarda de caça.











Essa tremenda diferença existencial, que as fotos anexas ilustram, faz com que nossas opiniões, mesmo quando suas expressões verbais coincidem letra por letra, acabem significando coisas totalmente diversas no quadro de nossas metas respectivas. As respostas às perguntas que inspiram este debate mostrarão isso, espero, tão claramente quanto as fotos.

As perguntas são duas: quais são os atores em cena e qual a posição dos EUA no cenário?

Quanto à primeira pergunta: descontado o cristianismo católico e protestante, do qual falarei mais tarde, as forças históricas que hoje disputam o poder no mundo articulam-se em três projetos de dominação global, que vou denominar provisoriamente “russo-chinês”, “ocidental” (às vezes chamado erroneamente “anglo-americano”) e “islâmico”.

Cada um tem uma história bem documentada, mostrando suas origens remotas, as transformações que sofreu ao longo do tempo e o estado atual da sua implementação.

Os agentes que hoje os personificam são respectivamente:

1. A elite governante da Rússia e da China, especialmente os serviços secretos desses dois países.

2. A elite financeira ocidental, tal como representada especialmente no Clube Bilderberg, no Council on Foreign Relations (CFR) e na Comissão Trilateral.

3. A Fraternidade Islâmica, as lideranças religiosas de vários países islâmicos e também alguns governos de países muçulmanos.

Desses três agentes, só o primeiro pode ser concebido em termos estritamente geopolíticos, já que seus planos e ações correspondem a interesses nacionais e regionais bem definidos. O segundo, que está mais avançado na consecução de seus planos de governo mundial, coloca-se explicitamente acima de quaisquer interesses nacionais, inclusive os dos países onde se originou e que lhe servem de base de operações. No terceiro, eventuais conflitos de interesses entre os governos nacionais e o objetivo maior do Califado Universal acabam sempre resolvidos em favor deste último, que embora só exista atualmente como ideal tem sua autoridade simbólica fundada em mandamentos corânicos que nenhum governo islâmico ousaria contrariar de frente.

As concepções de poder global que esses três agentes se esforçam para realizar são muito diferentes entre si porque brotam de inspirações ideológicas heterogêneas e às vezes incompatíveis.

Não se trata, portanto, de forças similares, de espécies do mesmo gênero. Não lutam pelos mesmos objetivos e, quando ocasionalmente recorrem às mesmas armas (por exemplo, a guerra econômica), fazem-no em contextos estratégicos diferentes, onde o emprego dessas armas não atende necessariamente aos mesmos objetivos.

Embora nominalmente as relações entre eles sejam de competição e disputa, às vezes até militar, existem imensas zonas de fusão e colaboração, ainda que móveis e cambiantes. Este fenômeno desorienta os observadores, produzindo toda sorte de interpretações deslocadas e fantasiosas, algumas sob a forma de “teorias da conspiração”, outras como contestações soi disant “realistas” e “científicas” dessas teorias.

Boa parte da nebulosidade do quadro mundial é produzida por um fator mais ou menos constante: cada um dos três agentes tende a interpretar nos seus próprios termos os planos e ações dos outros dois, em parte para fins de propaganda, em parte por genuína incompreensão.

As análises estratégicas de parte a parte refletem, cada uma, o viés ideológico que lhe é próprio. Ainda que tentando levar em conta a totalidade dos fatores disponíveis, o esquema russo-chinês privilegia o ponto de vista geopolítico e militar, o ocidental o ponto de vista econômico, o islâmico a disputa de religiões.






 



Alexandre Dugin






Essa diferença reflete, por sua vez, a composição sociológica das classes dominantes nas áreas geográficas respectivas:

1) Oriunda da Nomenklatura comunista, a classe dominante russo-chinesa compõe-se essencialmente de burocratas, agentes dos serviços de inteligência e oficiais militares.

2) O predomínio dos financistas e banqueiros internacionais no establishment ocidental é demasiado conhecido para que seja necessário insistir sobre isso.

3) Nos vários países do complexo islâmico, a autoridade do governante depende substancialmente da aprovação da umma – a comunidade multitudinária dos intérpretes categorizados da religião tradicional. Embora haja ali uma grande variedade de situações internas, não é exagerado descrever como teocrática a estrutura do poder dominante. Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades essenciais do poder – político-militar, econômico e religioso – se encontram personificadas em blocos supranacionais distintos, cada qual com seus planos de dominação mundial e seus modos de ação peculiares. Isso não quer dizer que cada um deles não atue em todos os fronts, mas apenas que suas respectivas visões históricas e estratégicas são delimitadas, em última instância, pela modalidade de poder que representam. Não é exagero dizer que o mundo de hoje é objeto de uma disputa entre militares, banqueiros e pregadores.

Embora nas discussões correntes esses três blocos sejam quase que invariavelmente designados pelos nomes de nações, Estados e governos, descrever a relação entre eles em termos de uma disputa entre nações ou interesses nacionais é um hábito residual da antiga geopolítica que não ajuda em nada a compreender a situação de hoje.

Só no caso russo-chinês o projeto globalista corresponde simetricamente aos interesses nacionais e os agentes principais são os respectivos Estados e governos. Isso acontece pela simples razão de que o regime comunista, vigorando ali por décadas, dissolveu ou eliminou todos os demais agentes possíveis. A elite globalista da Rússia e da China são os governos desses dois países.

Já a elite globalista do Ocidente não representa nenhum interesse nacional e não se identifica com nenhum Estado ou governo em particular, embora domine muitos deles. Ao contrário: quando seus interesses colidem com os das suas nações de origem (e isso acontece necessariamente), ela não hesita em voltar-se contra a própria pátria, subjugá-la e, se preciso, destruí-la.

Os globalistas islâmicos atendem, em princípio, a interesses gerais de todos os Estados muçulmanos, unidos no grande projeto do Califado Universal. Divergências produzidas por choques de interesses nacionais (como por exemplo entre o Irã e a Arábia Saudita) não têm sido suficientes para abrir feridas insanáveis na unidade do projeto islâmico de longo prazo. A Fraternidade Islâmica, condutora maior do processo, é uma organização transnacional: ela governa alguns países, em outros está na oposição, mas sua influência é onipresente no mundo islâmico.

A heterogeneidade e assimetria dos três blocos reflete-se na imagem que fazem uns dos outros, tal como transparece nos seus discursos de propaganda – um sistema de erros do qual se depreende a forte sugestão de que os destinos do mundo estão nas mãos de loucos delirantes:

1. A perspectiva russo-chinesa (hoje ampliada sob a forma do eurasismo, que será um dos tópicos deste debate) descreve o bloco ocidental como (a) uma expansão mundial do poder nacional americano; (b) a expressão materializada da ideologia liberal da “sociedade aberta” tal como propugnada eminentemente por Sir Karl Popper; (c) a encarnação viva da mentalidade materialista, cientificista e racionalista do Iluminismo e, portanto, a inimiga por excelência de toda espiritualidade tradicional.

2. O globalismo ocidental declara não ter outros inimigos senão “o terrorismo”, que ele não identifica de maneira alguma com o bloco islâmico, mas descreve como resíduo de crenças bárbaras em vias de extinção, e “o fundamentalismo”, noção em que se misturam indistintamente os porta-vozes ideológicos do terrorismo islâmico e a “direita cristã”, como se esta fosse aliada daquele e não uma de suas principais vítimas (de modo que o medo do terrorismo islâmico é usado como pretexto para justificar o boicote oficial à religião cristã na Europa e nos EUA!). A Rússia e a China não são apresentadas jamais como possíveis agressoras, mas como aliadas do Ocidente, a China na pior das hipóteses como concorrente comercial. Em suma: a ideologia do globalismo ocidental fala como se já personificasse um consenso universal estabelecido, só hostilizado por grupos marginais e religiosos um tanto insanos.




3. O bloco islâmico descreve o seu inimigo ocidental em termos que só revelam sua disposição de odiá-lo per fas et per nefas, já que ora o apresenta como herdeiro dos antigos cruzados, ora como personificação do materialismo e do hedonismo modernos. A generosa colaboração da Rússia e da China com os grupos terroristas é decerto a razão pela qual esses dois países são como que inexistentes no discurso ideológico islâmico. Contornam-se com isso incompatibilidades teóricas insanáveis. Alguns teóricos do Califado alegam que o socialismo, uma vez vitorioso no mundo, precisará de uma alma, e o Islam lhe dará uma.

Na mesma medida em que cultiva uma imagem falsa de seus concorrentes, cada um dos blocos projeta também uma imagem falsa de si mesmo. Deixando de lado, por enquanto, as fantasias projetivas islâmicas e ocidentais, vejamos as russo-chinesas.

O bloco russo-chinês apresenta-se como aliado dos EUA na “luta contra o terrorismo”, ao mesmo tempo que fornece armas e toda sorte de ajuda a praticamente todas as organizações terroristas do mundo e aos regimes anti-americanos do Irã, da Venezuela, etc., e espalha, até por meio de altos funcionários, a lenda de que o atentado ao World Trade Center foi obra do governo americano. (1)

A Rússia queixa-se de ter sido “corrompida” pelas reformas liberais de Boris Yeltsin, de inspiração americana, como se antes delas vivesse num templo de pureza e não na podridão sem fim do regime comunista. O governo soviético, convém lembrar, viveu essencialmente do roubo e da extorsão por sessenta anos, sem jamais ter de prestar contas, e corrompeu a população mediante o hábito institucionalizado das propinas, das trocas de favores, do tráfico de influência, sem os quais a máquina estatal simplesmente não funcionava. (2) Quando seus bens foram rateados após a dissolução oficial do regime, os beneficiados foram os próprios membros da nomenklatura, que se transformaram em bilionários da noite para o dia, sem cortar os laços que os uniam ao velho aparato estatal, especialmente à KGB (“não existe isso de ex-KGB”, confessou Vladimir Putin).

Imaginem o que teria acontecido na Alemanha após a Segunda Guerra se os vencedores, em vez de perseguir e castigar os próceres do antigo regime, os tivessem premiado com o acesso aos bens do Estado nazista. Foi exatamente o que aconteceu na Rússia: tão logo dissolvida oficialmente a URSS, seus agentes de influência na Europa e nos EUA se mobilizaram numa bem sucedida operação para bloquear toda investigação dos crimes soviéticos. (3) Ninguém foi punido pelo assassinato de pelo menos dezenas de milhões de civis e pela criação da mais eficiente máquina de terror estatal que a humanidade já conheceu. Ao contrário: o caos e a corrupção que se seguiram ao desmantelamento do Estado soviético não foram causados pelo novo sistema de livre empresa, mas pelo fato de que os primeiros a beneficiar-se dele foram os senhores do antigo regime, uma horda de ladrões e assassinos como jamais se viu em qualquer país civilizado.

Mais ainda. Ao choramingar que foi corrompida pelo capitalismo americano, a Rússia esquece que foi ela que o corrompeu. Desde a década de 30, o governo Stálin, consciente de que a força da América residia “no seu patriotismo, na sua consciência ética e na sua religião” (sic), desencadeou uma gigantesca operação destinada, nas palavras do seu executor principal, Willi Münzenberg, a “corromper o Ocidente de tal modo que ele vai acabar fedendo”. Compra de consciências, envolvimento de altos funcionários em espionagem e negócios escusos, intensas campanhas de propaganda para debilitar as crenças morais da população e infiltração generalizada no sistema educacional acabaram por dar resultados sobretudo a partir da década de 60, modificando radicalmente a sociedade americana ao ponto de torná-la irreconhecível.


Ver aqui






Alena V. Ledeneva


Foi também a ação soviética que deu dimensões planetárias ao tráfico de drogas, desde os anos 50. A história está bem documentada em Red Cocaine: The Drugging of America and the West, de Joseph D. Douglass. Quando a Rússia choraminga que após a queda do comunismo foi invadida pela cultura das drogas, ela colhe apenas o que semeou.

Nada dessa vasta ação corruptora é coisa do passado. Hoje em dia há mais agentes russos nos EUA do que no tempo da Guerra Fria. (4)

A China, bem alimentada por investimentos americanos, dá provas de que a aparente liberalização da sua economia foi apenas uma fachada para a manutenção do regime totalitário, cada vez mais sólido e aparentemente indestrutível.

Quanto à posição dos EUA no quadro mundial, vejamos primeiro como o Prof. Dugin a descreve e depois como ela é na realidade.

Segundo a doutrina eurasiana, os EUA definem-se como a encarnação por excelência do globalismo liberal. (5) O liberalismo tal como o Prof. Dugin o enxerga no rosto da América é, em essência, o da “sociedade aberta” propugnada por Sir Karl Popper.

Eis como o Prof. Dugin resume a idéia liberal:

Para compreender a coerência filosófica da ideologia nacional-bolchevique… é absolutamente necessário ler o livro fundamental de Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos

Popper desenvolveu uma tipologia fundamental para o nosso assunto. Segundo ele, a história da humanidade e a história das idéias se dividem em duas metades (desiguais, aliás). De um lado, há os partidários da ‘sociedade aberta’, que representa a seu ver a forma de existência normal dos indivíduos racionais (assim são para ele todos os homens) que baseiam sua conduta no cálculo e na vontade pessoal supostamente livre. O conjunto de tais indivíduos deve logicamente formar a ‘sociedade aberta’, essencialmente ‘não totalitária’, dado que nela falta qualquer idéia unificadora ou sistema de valores de caráter coletivista, supra-individual ou não-individual. A ‘sociedade aberta’ é aberta precisamente pela razão de que ela ignora todas as ‘teleologias’, todos os ‘absolutos’, todas as diferenças tipológicas estabelecidas, portanto ignora todos os limites que emanam do domínio não-individual e não-racional (supra-racional, a-racional ou irracional, este último termo sendo mais freqüente em Popper).



Do outro lado há o campo ideológico dos ‘inimigos da sociedade aberta’, onde Popper inclui Heráclito, Platão, Aristóteles, os escolásticos, assim como a filosofia alemã de Schlegel, de Fichte e sobretudo de Hegel e Marx. Karl Popper… mostra a unidade essencial de suas abordagens e discerne a estrutura da sua Weltanschauung comum, cujos traços característicos são a negação do valor intrínseco do indivíduo, donde decorre o desprezo pelo racionalismo autônomo, e a tendência à submissão do indivíduo e de sua razão aos valores ‘não-individuais e não-racionais’, o que desemboca sempre e fatalmente, segundo Popper, na apologia da ditadura e do totalitarismo políticos. (…)

Os nacional-bolcheviques… aceitam absolutamente e sem reservas a visão dualista de Popper e estão totalmente de acordo com a sua classificação. Mas, em contrapartida, consideram-se eles próprios os inimigos convictos da ‘sociedade aberta’… Eles rejeitam de uma maneira absoluta a ‘sociedade aberta’ e seus fundamentos filosóficos, isto é, o primado do indivíduo, o valor do pensamento racional, o liberalismo social progressivo, a democracia igualitarista numérica atômica, a crítica livre, a Weltanschauung cartesiano-kantiana…(6)

Agora, o globalismo:

Hoje em dia, é evidente que o Estado Mundial concebido como um Mercado Mundial não é uma perspectiva longínqua ou quimérica, porque aquela doutrina liberal [de Karl Popper] vem se tornando pouco a pouco a idéia governante da nossa civilização. E isso pressupõe a destruição final das nações enquanto vestígios da época passada, enquanto último obstáculo à expansão irresistível do mundialismo… A doutrina mundialista é a expressão perfeita e acabada do modelo da ‘sociedade aberta’. (7)

Globalismo liberal é, portanto, o projeto em curso que visa a implantar em todo o mundo o modelo da “sociedade aberta” popperiana, destruindo no caminho, necessariamente, as soberanias nacionais e todo princípio metafísico ou moral que se pretenda superior à racionalidade individual. É o fim das nações e de toda espiritualidade tradicional, as primeiras substituídas por uma administração mundial científico-tecnocrática, a segunda pela mescla de cientificismo, materialismo e subjetivismo relativista que inspira as elites globalistas do Ocidente.

Sendo os EUA o principal foco irradiador desse projeto, e a Rússia o principal foco de resistência (por motivos que veremos mais tarde), o choque é inevitável:

The main thesis of the neo-Eurasianism is that the struggle between Russia and the United States is inevitable, since the United States is the engine of globalization seeking to destroy Russia, the fortress of spirituality and tradition. (8)

Fiz questão de reproduzir com certo detalhe a opinião do meu oponente porque, embora não a considere falsa no que diz respeito à mentalidade das elites globalistas, realmente inspiradas em ideais popperianos, posso provar sem grande margem de erro que:

1) A descrição não se aplica de maneira alguma aos EUA, nação onde o popperianismo é um enxerto recente, sem raízes locais e totalmente hostil às tradições americanas.





Ver aqui e aqui

2) Os EUA não são o centro de comando do projeto globalista, mas, ao contrário, sua vítima prioritária, marcada para morrer.

3) A elite globalista não é inimiga da Rússia, da China ou dos países islâmicos virtualmente associados ao projeto eurasiano, mas, ao contrário, sua colaboradora e cúmplice no empenho de destruir a soberania, o poderio político-militar e a economia dos EUA.

4) Longe de favorecer o capitalismo de livre-empresa, o projeto globalista tem dado mão forte a políticas estatistas e controladoras por toda parte, não diferindo, nisso, do intervencionismo propugnado pelos eurasianos. O globalismo só é “liberal” no sentido local que o termo tem nos EUA como sinônimo de “esquerdista”. O projeto globalista é herdeiro direto e continuador do socialismo fabiano, tradicional aliado dos comunistas. A própria ideologia popperiana não é liberal-capitalista, no sentido do liberalismo clássico, mas, antes de tudo, “uma abordagem experimental da engenharia social”. (9)

5) O eurasismo se volta contra a “sociedade aberta” popperiana enquanto modelo ideológico abstrato, mas como ao mesmo tempo o eurasismo por seu lado não é só um modelo ideológico abstrato e sim uma estratégia geopolítica, é claro que ele atira na ideologia popperiana para acertar, por trás dela, um poder nacional determinado, o dos EUA, que nada têm a ver com a ideologia popperiana e dela só pode esperar o mal. Pior: o nacionalismo americano é uma poderosa resistência cristã às ambições globalistas que vêm tentando se apossar do país para destruí-lo como potência autônoma e usá-lo como instrumento de seus próprios planos essencialmente antinacionais. A destruição do poder americano removerá do caminho o último obstáculo ponderável à instauração do governo mundial. Aí só restará a partilha dos despojos entre os três esquemas globalistas: ocidental, russo-chinês e islâmico.

6) A Rússia não é de maneira alguma a “fortaleza da espiritualidade e da tradição”, incumbida por mandato celeste de castigar, na pele dos EUA, os pecados do Ocidente materialista e imoral. É, hoje como no tempo de Stálin, um antro de corrupção e maldade como jamais se viu, empenhado, como anunciou a profecia de Fátima, em espalhar os seus erros pelo mundo. Observe-se que essa profecia nunca se referiu ao comunismo em especial, mas aos “erros da Rússia” de modo genérico, e anunciou que a disseminação desses erros, com todo o cortejo de desgraças e sofrimentos que acarretava, só cessaria caso o Papa e todos os bispos católicos do mundo realizassem o rito de consagração da Rússia. Como esse rito jamais foi realizado, não existe a menor razão para não enxergar no projeto eurasiano uma segunda onda e um upgrade dos “erros da Rússia”, o anúncio de uma catástrofe de proporções incalculáveis.

7) Se hoje a Rússia, pela boca do Prof. Dugin, se apresenta ao mundo como portadora da grande mensagem espiritual salvadora, é preciso lembrar que ela já o fez duas vezes:

(a) No século XIX todos os pensadores da linha eslavófila, como Dostoiévski, Soloviev e Leontiev, enxergavam o Ocidente como a fonte de todos os males, e anunciavam que no século seguinte a Rússia iria ensinar ao mundo “o verdadeiro cristianismo”. O que se viu foi que toda essa arrogância espiritual foi impotente para deter o avanço do materialismo comunista na própria Rússia.

(b) O comunismo russo prometeu trazer ao mundo uma era de paz, prosperidade e liberdade acima dos mais belos sonhos das gerações passadas. Tudo o que conseguiu fazer foi criar um inferno totalitário que nem Átila ou Gengis-Khan poderiam ter vislumbrado em pesadelo.

Seria ótimo se cada país aprendesse a curar seus próprios males antes de se fazer de salvador da humanidade. A Rússia de Alexandre Dugin parece ter tirado de seus crimes e fracassos a lição oposta.

(In Olavo de Carvalho, Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Um debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho, VIDE Editorial, 2012, pp. 43-56).




Notas:

(1) V. meu artigo “Sugestão aos bem-pensantes: internem-se”, Diário do Comércio, 30 de janeiro de 2002, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060130dc.htm.

(2) V. Konstantin Simis, URSS: The Corrupt Society: The Secret World of Soviet Capitalism, New York, Simon & Schuster, 1982, e Alena V. Ledeneva, Russia`s Economy of Favours, Cambridge University Press, 1998.

(3) V. Vladimir Boukovski, Jugement à Moscou.

(4) V. http://www.foxnews.com/us/2010/07/04/painting-town-red-russian-spiesreport-says/

(5) Os dois elementos que essa definição funde numa unidade não têm a mesma origem, nem nasceram solidários um com o outro. Os primeiros movimentos liberais do século XIX, vindo no bojo dos movimentos de independência voltados contra as potências coloniais, eram acentuadamente nacionalistas, e os primeiros projetos de governo global que apareceram no começo do século XX inspiravam-se em idéias notoriamente intervencionistas e estatistas.

(6) Alexandre Douguine, “La métaphysique du national-bolchevisme”, em Le Prophète de l’Eurasisme, Paris, Avatar Éditions, 2006, pp. 131-133.

(7) Id., p. 138.

(8) Vadim Volovoj, “Will the prediction of A. Dugin come true?”, em Geopolitika, 11 ou. 2008, http://www.geopolitika.lt/?artc=2825.

(9) Ed Evans, “Do you really know this person?”, em http://itmakessenseblog.com/tag/karl-popper/






Nenhum comentário:

Postar um comentário