«A crise na problemática das relações entre o Estado e a Igreja, que corresponde, aliás, à problemática das relações entre a filosofia e a teologia, deu novo alento aos pensadores que haviam propugnado pelo regresso à Escolástica. Verdade é que a encíclica de Leão XIII, se foi lida, observada e cumprida nos seminários diocesanos e na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, não alcançou êxito filosófico nos ambientes culturais do País. Multiplicaram-se, sem eficiência, as traduções dos livros de Jaime Balmes. As publicações periódicas e não-periódicas de que nos deu notícia Fortunato de Almeida na sua História da Igreja em Portugal não alteraram o andamento normal dos estudos superiores. Só depois de proclamada a República Positivista começaram a ser divulgadas entre nós as publicações do Instituto Filosófico de Lovaina e do Instituto Católico de Paris. A propaganda neotomista de Jacques Maritain, muito conhecida pelos leitores da Action Française, chegou a merecer atenção popular entre os estudantes universitários portugueses, o que hoje parece estar explicado e justificado pelas afinidades de interpretação com a melhor tradição nacional. O segredo de tal êxito não está só na intenção anticartesiana ou antimoderna da polémica medievalista, mas também no facto de Jacques Maritain haver estudado profundamente a obra latina de Fr. João de S. Tomás, conforme nos informa o Dr. António Manuel Gonçalves. Lembremos os nomes de Alfredo Pimenta, João Ameal e Correia de Barros entre os melhores divulgadores da filosofia neotomista, antes de fazer devida referência à obra apologética de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, intitulada A Igreja e o Pensamento Contemporâneo.»
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«Tanto a Ciência não é a expressão adequada total, da razão humana, que ela não encontra em si mesma a sua justificação.
Os princípios racionais e os postulados da Ciência não são dados imediatos da experiência, mas intuições superiores da razão humana. - E todavia estão para a Ciência como a alma para o corpo humano: são eles que verdadeiramente a constroem. Os dados da experiência são o elemento exterior necessário de toda a construção científica, como no corpo vivo os elementos externos que este assimila - mas, assim como estes não criam a vida, assim aqueles não criam a Ciência. Embora experimental, a Ciência supõe uma razão mais vasta que ela. Que experiência humana, se considerada em si mesma, nos permite, por exemplo, elevar a lei universal o princípio, da constância das leis naturais, base necessária de todo o edifício científico?»
D. Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).
«A ciência, na apologia dos iluministas, vale mais do que os outros modos de saber porque é de linguagem rigorosa e exacta. Rigorosa, porque usa de uma terminologia unívoca; exacta, porque transcreve medidas propícias para o cálculo numérico e algébrico. A superioridade da ciência não está, pois, nos seus métodos, mas no estilo claro e preciso com que apresenta os seus resultados.
A ciência impõe-se aos iluministas porque contém um encadeamento necessário de verdades. A necessidade é definida como contrária à imaginação criadora, ao livre arbítrio, à vontade humana. Necessário é o que tem de ser, o que deve ser, enfim o que na realidade obedece a leis lógicas ou ontológicas.
Esta coacção, cogência, ou necessidade, costuma ser ilustrada com exemplos matemáticos, porque na matemática a razão constrói também a ponte da essência para a existência. Não assim para o pensamento metafísico, que parte da existência contingente com a incerteza de atingir a necessidade do ser, o que o obriga a imitar abusivamente os processos da razão matemática. Necessário significará, então, incessante, constante, perene; não serve de predicado para uma substância, se dermos à substância o significado aristotélico; vale de atributo que se aplica somente a Deus.
Atribuir à matéria necessidade seria, além de menção impiedosa, expressão inadequada ao pensamento científico. Não vale de argumento a confusão que na época moderna se estabeleceu entre necessidade e determinismo. O abuso da palavra "necessidade" para significar a impossibilidade do contrário mostra a intervenção do pensamento voluntarista nos quadros do pensamento intelectualista.»
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«O Realismo corresponde em estética ao reinado do positivismo científico. A obra de arte procura exprimir a mesma impassibilidade, a mesma precisão, a mesma objectividade, que a Ciência. ZOLA comparando-se modestamente… a CLAUDE BERNARD, define muito a sério a sua obra como romance experimental; e o nosso EÇA DE QUEIRÓS, espírito mais subtil e equilibradamente francês que ZOLA, professa que, em face dos diversos tipos sociais, "o dever do artista é estudá-los, como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata, que envenene ou nutra". Compreender o mundo como naturalista, eis o ideal do artista [Ramalho Ortigão, em - Notas Contemp., p. 43]; - praticamente, esses adoradores da razão acabavam sempre por lhe render o culto no… "mármore impuro de uma carne pública".
Seguindo os métodos científicos em voga, procurar-se-á explicar o homem pelos instintos elementares da besta humana - reduzindo a religião à psicologia, e a psicologia à fisiologia, e a fisiologia ao instinto de reprodução. Porque por detrás de quase toda a obra realista, sórdido ou elegante, prendendo insistentemente a atenção, mesmo quando se fala… noutra coisa - está sempre o leito de uma alcova...
As religiões (dizia-se assim no plural, porque o singular implica alguma coisa de absoluto, que condena a irreligião dos devotos de todas - e então abraçam-se largamente todas para… não perfilhar nenhuma), as religiões, quando não eram apresentadas como os testemunhos vivos da barbárie ou da superstição das gerações desaparecidas, serviam como motivo de quadros pitorescos, de descrições exóticas e de reconstituições eruditas.»
D. Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).
«A síntese especulativa tem o nome de filosofia [Teófilo Braga - Sistema de Sociologia, 1908, p. 486]. Mas a filosofia, segundo o positivismo, não é mais do que a coordenação das ciências. Essa coordenação é realizada, porém, no nível da física pelo predomínio das noções de matéria e movimento, segundo o iluminismo do século XVII.
A reflexão de Teófilo Braga não vai para além da química que é a primeira ciência onde a noção de síntese se apresenta com as suas virtualidades. Não aproveita, por isso, as noções dos biologistas, psicologistas e sociologistas de língua inglesa que muito contribuíram para o progresso da ciência. A admiração de Teófilo Braga, mais confessada neste livro do que nos anteriores, é toda dirigida para os pensadores franceses, de Descartes aos Enciclopedistas.
Torna-se assim estranho que Teófilo Braga, formado pelas ideias características do século XIX e investigador ousado no campo da historiografia romântica, retroceda ao iluminismo, dissolvente e destruidor do século XVIII. Teófilo Braga vê o positivismo pelos quadros naturais do iluminismo. Assim o afirma neste passo esclarecedor:
"O princípio fundamental do positivismo - se alguma cousa se pode afirmar de um modo absoluto, é que o nosso conhecimento é sempre relativo, - predomina na constituição hierárquica das ciências, ou sistematização do conhecimento do universo. O conhecimento da Matéria só é possível deduzindo-o da relação de Movimento; para ter noções claras do Movimento é necessário observar a Matéria como simples móvel que se desloca. Assim conhecido o Movimento nas três condições de espaço, número e tempo, os vários equilíbrios moleculares e oscilações da matéria caracterizam-se sob estas três condições simples, mas que exercem modificações profundas no seu estado, ou corpos" [Ibidem - p. 465].
(…) Teófilo Braga declarou-se, pelo menos desde 1873, como um escritor fiel aos princípios do positivismo, não como discípulo servil mas como intérprete e continuador do pensamento de Augusto Comte. Do modo por que o nosso compatriota era estimado e admirado pelos positivistas estrangeiros dizem as seguintes notas que transcrevemos do livro do escritor A. do Prado Coelho, já anteriormente citado: "Em Paris, quando se discutia entre os positivistas franceses quem sucederia na direcção daquela colectividade filosófica, depois da morte de Pierre Laffitte (1903), lembraram-se do seu nome, como constou em Portugal, pelo correspondente de O Século" [A. Prado Coelho - Teófilo Braga e a sua obra - Lisboa 1924, p. 208]. E mais adiante: "Teófilo Braga possui um medalhão de Augusto Comte, de ferro brunido, com a seguinte inscrição gravada: 'A son ilustre correligionnaire, monsieur Theophilo Braga, fondateur de la République Portugaise - La Société d'Enseignement Positiviste de Paris 1911'"».
Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).
«Acaso se haverá notado que até agora tenho falado excessivamente da França, e pouco de Portugal.
Poderia justificar-me, dizendo que, à semelhança do que no século XVI dizia PEDRO RAMUS da Universidade de Paris, assim a França é a mãe espiritual de todo o orbe, pelo menos o orbe latino. Até as criações mais admiráveis do profundo mas nebuloso génio germânico, ou do positivo génio inglês, ou do místico génio eslavo, não entram verdadeiramente na grande circulação do pensamento universal, senão depois de passadas pelo belo e claro espírito francês.
Pelo que diz especialmente respeito a Portugal, já desde há muito que emigrou espiritualmente para a França, não estando eu muito longe de supor que o melhor meio de dizer novidades na nossa terra é falar… em português. EÇA DE QUEIRÓS, o português que até hoje teve o espírito mais gaulês, escreveu um dia que "Portugal era um país traduzido do francês em calão". Sem ferir a nota do paradoxo, poder-se-ia dizer que quem deseje saber o que se passou em Portugal, interrogue a... França.
Foi com a geração de 1870 que "o estúpido século XIX", como brutalmente diz LÉON DAUDET, chegou a Portugal.
EÇA DE QUEIRÓS, que a ela pertencia, dirá que então as maravilhas vindas de França caíam cá "à maneira de achas numa fogueira, fazendo uma vasta crepitação e uma vasta fumaraça" [Antero de Quental, em Notas Contemp., p. 372]. O novo culto dessa geração era a Ciência, da qual EÇA se declara, modestamente, "ignorante, mas amando religiosamente a ciência dos outros" - e que iria revelar enfim, sobre as ruínas dos mitos religiosos, a esfinge das Origens; era a Humanidade, "essa rainha de força e graça", que se amava agora, "como há pouco, no ultra-romantismo, se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar"; era a Razão, em nome da qual se interpelava Deus, não o deixando, diziam, sossegar no seu adormecido infinito", e à qual ANTERO DE QUENTAL, "o príncipe dessa mocidade", mais tarde entoaria fervoroso hino num dos seus admiráveis sonetos:
Por ti podem sofrer e não se abatem!
o que, ai! logo desmentiria, suicidando-se; era a Arte, mas a arte realista, a imitação fiel (de facto fiel) da natureza, feita friamente, impassivelmente - concepção de que EÇA deu uma definição lapidar: "a Arte é um resumo da natureza feito pela imaginação" [Correspondência de Fradique Mendes, 1915, p. 84].
Nessa geração cinco homens exerceram um autêntico magistério; poder-se-ia dizer que formaram nesse tempo o governo da inteligência em Portugal - o maior e mais influente ministério que Portugal teve nos últimos tempos. - Foi o Grupo dos Cinco, fotografado na aristocrática praia da Granja.
Da esquerda para a direita: Eça de Queirós, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. Ver aqui
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Estou a vê-los… - No meio, grave e pensativo, com a sua fronte ampla e serena como a frontaria de um templo, ANTERO DE QUENTAL, que EÇA chama com razão "o maior de todos"; à sua direita, de semblante melancólico, OLIVEIRA MARTINS, cujo vasto espírito inquieto resumiu em si toda a curiosidade sábia do seu tempo; na extrema, EÇA, elegante, convindo-lhe à maravilha aquela frase a respeito de FRADIQUE, "a rosa da sua botoeira é sempre a mais fresca, como a ideia do seu espírito é sempre a mais original"; à esquerda, RAMALHO ORTIGÃO, "a Ramalhal figura", em quem concorriam duas qualidades eminentes e raras entre nós, segundo EÇA, "não é bacharel e tem saúde"; e Guerra Junqueiro, perfil agudo e olhar vivo, ainda sem as suas barbas rabínicas e a atitude recolhida de profeta.
Estes homens ilustres, que foram cinco dos maiores espíritos do seu século, concorreram todos mais ou menos para a profunda transformação moral da sociedade portuguesa, abalando fortemente as velhas crenças católicas: - ANTERO DE QUENTAL, imprecando amargamente a Divindade, ou gemendo no "poço morno e húmido da dúvida"; EÇA DE QUEIRÓS, como já foi dito entre nós, com o fino florete da sua ironia, sorrindo; RAMALHO, ostentando a nova ciência, como novos ricos os maços de notas de banco; JUNQUEIRO, com os explosivos dos seus sarcasmos, blasfemando; OLIVEIRA MARTINS, instilando pela análise crítica o racionalismo pessimista do tempo.»
D. Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).
«No bosquejo de história da metafísica em Portugal, que constitui o primeiro capítulo de A Ideia de Deus, Sampaio Bruno estuda a transição do aristotelismo para o iluminismo, e refere-se depois aos pensadores que tentaram conciliar a ciência experimental com a metafísica moderna. Entre eles distingue o autor das Tendências, a quem dedica as palavras seguintes:
"A tentativa de Antero de Quental, no seu fatal, previsto insucesso, constitui uma página mui honrosa, excepcional, rara, única, na parca, contracta mentalidade lusitana" [Bruno - A Ideia de Deus - Porto, 1902 - p. 43].
Não admitia Sampaio Bruno que dos progressos das ciências experimentais, verificados no século XIX, resultasse benefício para a metafísica moderna. A metafísica, em seu parecer, permanecia inalterada apesar de todas as vicissitudes do aperfeiçoamento da cultura. Nem do método experimental, nem do método especulativo, - pois não admitia mais do que estes dois -, adviria para o homem a solução dos problemas filosóficos: o genial pensador apenas confiava na revelação.
A desvalorização dos escritos de Antero de Quental não significa, porém, menos apreço pela figura nobilíssima do artista. A apreciação de Sampaio Bruno à obra de Antero, tanto poética como filosófica, daria, só por si, tema para um estudo especial. No entanto, se para com o poeta mantém sempre as apreciações discordantes dentro de termos respeitosos, já o mesmo não acontece quando encara a personalidade de Oliveira Martins.
Sampaio Bruno não deixa, nas suas obras, de apodar de "espírito orgulhoso e confuso" a Oliveira Martins, acusa-o de ter contribuído para a ruína da velha casa editora Rolland & Semiond com a publicação da Revista Ocidental, relata a humilhação que o economista sofreu durante uma conversa com Eduardo Falcão [Bruno - Os Modernos Publicistas Portugueses - Porto, 1906 - pp. 92, 310, 316]. Não sabemos quais motivos levariam a transformar a divergência ideológica em grima tão acentuada: não possuímos elementos para averiguar das relações pessoais entre os dois escritores. Deixamos apontado o problema a quem estudar este período tão notável da história intelectual da cidade do Porto.
Representante de uma geração que discordava da atitude dos Conferencistas do Casino, o ardente patriota que foi Sampaio Bruno jamais perdoaria as frases escritas por Antero de Quental e Oliveira Martins sobre a nacionalidade portuguesa. Antero de Quental, como é sabido, escrevera no folheto sobre a Revolução em Espanha que "o acto mais patriótico é renegar a nacionalidade". Oliveira Martins, numa crítica ao livro do patriota Horácio Ferrari, publicado em 1877 "na Renascença, revista que saía no Porto", escreveu: "A meu ver, Portugal não é propriamente uma nação (achando-se em analogia de condição com a Bélgica) por isso mesmo que não tem programa, nem pensamento, nem ambição colectivos e definidos".
Sampaio Bruno não se engana, porém, com as intenções educativas do historiador positivista e comenta: "Assim, naquela sua reprimenda ao seu País, Oliveira Martins fornecia-nos, no tema, uma lição perfeita do erro sociológico derivado do erro pessoal, mercê do conceito irredutível do antipatriotismo basilar. Amando o seu País, ele amava-o à pombalina; cria incutir-lhe sentimentos e cobiças que o imaginava assaz bronco para não adquirir de per si. Enganava-se, de todo em todo".
As frases dos "Vencidos da Vida", frases estilisticamente primorosas e tristemente célebres, podem hoje com boa vontade ser interpretadas como justificados desabafos ou como expressões tendentes a estimular o patriotismo. Delas se fez eco Eça de Queirós, cujos romances, lidos em crítica responsável, vão transmitindo o derrotismo aos ouvidos de várias gerações. A verdade, porém, é que foram depois utilizadas por escritores que, citando-as a sério, apoiavam em nomes prestigiados um pensamento de derrotismo nacional.
A infeliz frase anteriana de que "a nossa fatalidade é a nossa história" tende a desvalorizar as figuras que constituem a galeria dos heróis portugueses dos ciclos dos descobrimentos e das conquistas, desde o Infante de Sagres até D. Sebastião. O heroísmo transcendente, alto heroísmo cujas origens e cujos fins se envolvem em brumas genesíacas ou caóticas, não pode ser entendido porque aqueles que habituam os seus olhos às palavras claras, às frases nítidas e aos juízos evidentes. Mostrar que a nossa história é uma fatalidade, ou reduzi-la a um necessitarismo de categorias sociais em conflito com o homem livre que terá de se lhe adaptar pela reforma da mentalidade, será, por muitos anos, o propósito dos admiradores das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.
Sampaio Bruno, pelo contrário, tinha uma alta intuição da liberdade, e bem sabia que ela não depende do aperfeiçoamento das ciências da matéria, dos esforços humanos, mas da humilde abertura da alma às mensagens de bruma, de sonho e de imaginação. O nosso iluminado teólogo alimentava de pensamento messiânico, que exprimia no mito da República, uma esperança religiosa de redenção da Pátria. Nesta ordem de ideias compreendemos que Sampaio Bruno, desculpando-lhe embora o positivismo, manifestasse sincera admiração pelo grande patriota que foi Teófilo Braga».
Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).
«Resumo e símbolo da aventura espiritual (…) é a evolução do filósofo que mais influência exerceu em nossos dias, HENRI BERGSON.
Nada na sua feição de espírito, nem na sua educação intelectual, fazia prever que esse jovem judeu positivista, todo imbuído do rigor dos métodos científicos e da exactidão matemática, haveria de ser o filósofo restaurador dos valores espirituais, morais e religiosos, e acabaria por entrar (pelo menos moralmente) "no interior do catolicismo".
Quando estudante da École Normale, sucedeu certa vez (conta o Padre VALENSIN, professor do Instituto Católico de Lyon) que o professor o admoestasse pela desordem em que deixara alguns livros, dizendo-lhe que "a sua alma de bibliotecário devia sofrer com isso"; o curso logo replicou ironicamente: "ele não tem alma!" Tinha-a, e do melhor quilate; mas só se revelou pouco a pouco, dócil à lição dos factos, até aderir interiormente ao catolicismo.
Partindo do positivismo de HERBERT SPENCER, depressa o ultrapassou. A tese sobre Les Donnés Immédiates de la Conscience, em 1889, levá-lo-ia a estabelecer, com fina análise, a originalidade irredutível da consciência, o que equivale a dizer, da alma. Na obra seguinte, Matière et Mémoire, publicada em 1896, põe em evidência o facto da liberdade humana. Em L'Évolution Créatrice, de 1907, estudando a natureza da vida e da evolução, concluirá que a inteligência (para me servir das expressões de BRÉHIER), "liberta o espírito da sujeição à matéria, tornando-o disponível para uma intuição mais perfeita": a religião tal como se manifesta nos santos e nos místicos. Por fim, em Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, datada de 1932, reconhecerá não só a superioridade radical dos místicos cristãos, mas ainda o carácter transcendente e o valor metafísico do misticismo católico.
(…) há no pensamento bergsoniano princípios e afirmações que ao pensamento católico parecem frágeis ou perigosos. A inclusão no Index de obras de BERGSON significa que os católicos, especialmente os que principiam, não podem tomar tais livros como caminho seguro e sem perigos.
A inteligência e o coração de BERGSON foram mais longe do que os livros indicam. Se estes não dizem mais, foi por escrúpulo de não ousar (como confessou ao Padre VALENSIN) a afirmação de verdades que ainda não podia demonstrar, embora a alma já as tivesse abraçado.
Certo dia perguntou-lhe o Padre VALENSIN o que pensava pessoalmente, de Jesus Cristo. Citamos textualmente a resposta, segundo o testemunho do sábio jesuíta de Lyon: "'Quanto mais leio o Evangelho, quanto mais reflicto, tanto mais me convenço que Jesus era mais do que um homem'... Vedes nele Deus incarnado? insistiu o padre, receoso aliás de uma resposta evasiva. - A resposta foi: 'Sim!' - Meu caro Mestre, replicou VALENSIN, não estais só próximo do reino de Deus, estais já no interior. Noutros tempos, não seria preciso mais nada para receberdes o baptismo" - a Isto, BERGSON fez um gesto silencioso com a mão direita, em que aquele viu dificuldades teológicas para a adesão formal à Fé católica.
O testemunho do Padre VALENSIN é confirmado pela declaração que em artigo sensacional consagrado à memória do filósofo, no dia seguinte ao do passamento deste, fez o professor JACQUES CHEVALIER, com a nota de que BERGSON o autorizara a fazê-lo publicamente após a morte: - BERGSON aceitara a realidade divina do Salvador.
Discutiu-se na imprensa se BERGSON chegou a receber o baptismo. Um dominicano célebre, que manteve relações estreitas com o filósofo, declarou ao jornal Temps Nouveau (número de 27 de Junho de 1941) que "BERGSON manifestou desejo de ser baptizado e chegou a designar o sacerdote para tanto. Mas declarou ser sua vontade esperar, por delicadeza, algum tempo, os acontecimentos. Sei isto do próprio sacerdote designado por BERGSON, o qual, por este facto, foi chamado pela família para junto do defunto, segundo o seu desejo, e orou longamente junto do seu cadáver que, no entanto, não teve funeral cristão".
O problema e o mistério resolveu-os a viúva, em carta a E. MOUNIER, que com autorização daquela foi tornada pública. Nesta carta, a viúva comunicou o seguinte passo do testamento do filósofo, datado de 8 de Fevereiro de 1937, que tudo esclarece: - "As minhas reflexões conduziram-me cada vez mais perto do catolicismo, no qual vejo o acabamento completo do judaísmo. Ter-me-ia convertido, se não tivesse visto preparar-se, desde há anos, a formidável vaga de anti-semitismo que vai desencadear-se sobre o mundo. Quis ficar entre aqueles que amanhã serão perseguidos. Mas espero que venha um padre católico, se o Cardeal Arcebispo de Paris o autorizar, recitar orações no meu funeral. No caso em que tal autorização não seja concedida, recorrer-se-á a um rabino, mas sem lhe esconder, nem esconder a ninguém, a minha adesão moral ao catolicismo, assim como o desejo por mim expresso de ter as orações de um padre católico".
BERGSON morreu no princípio de 1941. Nascido no judaísmo, educado no positivismo spenceriano, depois de longa caminhada intelectual pelos caminhos da cultura contemporânea confessa que chegou à Igreja católica.»
D. Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).
«Leonardo Coimbra quis intervir e influir na vida cultural e espiritual da comunidade portuguesa em obediência a algumas orientações fundamentais em prol da liberdade contra a autoridade; em prol do espírito contra a matéria (luta contra o materialismo, o naturalismo e o positivismo); no horizonte da transcendência contra o horizonte da imanência; em prol da pessoa, contra todos os coisismos; no quadro do cristianismo, fora do quadro do orientalismo e para além do quadro do helenismo. Podemos afirmar que essas grandes orientações estão definidas e assumidas no essencial em 1912, ano em que escreve e publica O Criacionismo. Se procurarmos estas fundamentais orientações em Bergson encontrá-las-emos, mas bastante menos acentuadas e emergindo lenta e laboriosamente do esforço do filósofo. Com efeito: a filosofia da liberdade de Henri Bergson é muito mais tenuemente uma filosofia da liberdade que a de Leonardo Coimbra; também o seu antimaterialismo e o seu positivismo se distanciam muito menos que o de Leonardo do materialismo e do positivismo reinantes; só na fase final da sua vida, visivelmente apenas a partir de Les deux sources de la morale et de la religion (1932), Bergson se inclina para o teísmo, tendo todo o seu pensamento até então apresentado um delineamento panteísta de matriz plotiniana, enquanto Leonardo é indubitavelmente um teísta cristão em 1912; a filosofia de Bergson não é propriamente definível como um personalismo, ao passo que a de Leonardo o é explicitamente já em O Criacionismo; a vinculação de Bergson ao orientalismo mantém-se mesmo em Les deux sources de la morale et de la religion, com o lugar proeminente concedido à experiência mística, enquanto Leonardo já na conferência de 10 de Junho de 1911 tem uma filosofia da história que transcende o helenismo pelo cristianismo e nega e supera o orientalismo búdico em 1912, n'O Criacionismo. Não foi certamente por razões menores (como seria o caso da doença do filho) que Leonardo se converteu ao catolicismo, nem por razões menores (como as que aduz no seu Testamento relativamente à onda anti-semita que se fazia sentir) que Bergson não chegou a essa conversão. (…) A verdade é que Bergson foi apenas, quando muito, adepto de um cristianismo filosófico; Leonardo Coimbra, por seu lado, converteu-se publicamente ao catolicismo, cristianismo de revelação.»
Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra e Henri Bergson: Semelhanças e Diferenças»).
«A filosofia, no seu aspecto intuitivo que se contrapõe ao aspecto intelectual, há-de apresentar-se como arte, e dentro da arte imitará a literatura. "Intelecção ou intuição, o pensamento utiliza sem dúvida nenhuma a linguagem". É esta, aliás, a garantia perfeita de que Bergson é um pensador racionalista.
A fascinação de Bergson pelo elemento musical da linguagem não o impede de ver que a descida da palavra ao elemento gráfico ou gramatical e, consequentemente, à dispersão das letras que se permutam e que se transferem, é um elemento histórico de sinal valorativo. Bergson reconhece que a relação das palavras dispersas só alcança valor pela respectiva razão, e a razão, sendo sinónimo de logos, está implícita no verbo. Esta doutrina se compatibiliza com a outra formulada pelo pensador, de que a razão é a característica própria do homem, e que a antropologia encerra o segredo finalista da evolução da vida sobre a terra.
Duas teses flutuam e brilham sobre a superfície do bergsonismo. A primeira, condição indispensável do filosofar, é a de que há um abismo gnosiológico entre os animais e o homem, caracterizado e denominado por inteligência, com seus processos de generalização e abstracção, dedução e indução, exemplificados nos tratados de lógica elementar, para prévia análise das asserções modais e categoriais. Qualquer tentativa de deduzir o pensamento humano do pensamento animal, à sombra do evolucionismo, contradirá a letra e o espírito da obra de Henrique Bergson.
A segunda tese é a de que no homem, animal racional, está a motivação explicativa e justificativa do evolucionismo, parecendo até que a figura do corpo humano seja paradigmática na relação do microcosmos com o macrocosmos. Quer dizer: a evolução chegou ao seu termo, que é a humanidade superior, ou a humanidade inteligente. Depois da evolução, o nosso filósofo só admite a criação.
Falta agora situar a terceira tese em um dos extremos ou na mediação. Esta tese é a de que ao homem está ainda no futuro destinada a obrigação de ultrapassar a sua condição de inteligente e de aceder a superior vida racional. A intuição, participação mental e oral do espírito humano com o espírito divino, ou do natural com o sobrenatural, é a finalidade suprema da filosofia, ou, melhor, da arte de filosofar.»
Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).
«Uma rápida observação das fontes filosóficas de Bergson e de Leonardo Coimbra é bastante para evidenciar que elas apresentam diferenças significativas. Bergson teve uma formação inicial claramente positivista. Não sucedeu assim com Leonardo Coimbra, cuja formação positivista foi desde logo corrigida pelo benéfico influxo do magistério escrito e convivencial de Sampaio Bruno. A formação de Bergson foi sobretudo condicionada pelo ensino que se fazia nas escolas superiores francesas, nas quais dominavam, por um lado Kant e os seus seguidores neokantianos (com todo o relevo para a figura de Charles Renouvier), e por outro lado o evolucionismo spenceriano e os psicólogos positivistas ingleses. É certo que teve por mestres, na Escola Normal, a Ollé-Laprune e a Boutroux. Isso não anula, porém, a validade geral do juízo anterior. A formação inicial de Leonardo Coimbra não se fez dentro das escolas superiores francesas. Digamos que elas lhe foram úteis na aquisição de informação e competência científica, mas que não parecem ter tido influência positiva na orientação filosófica do pensador. Leonardo formou-se sozinho, formou-se no convívio com jovens radicais da sua geração no Porto, formou-se no convívio com Sampaio Bruno, formou-se sob a influência cristã materna. A Universidade portuguesa não marcou positivamente o jovem Leonardo. Pelo contrário, marcou-o negativamente; Leonardo é contra a Universidade que conheceu como estudante desde o mais fundo das suas entranhas. É mais contra a Universidade de Coimbra do que contra o Curso Superior de Letras, de Lisboa, que conheceu nos primeiros anos do século XX e em que teve Adolfo Coelho como um dos seus professores. O antagonismo com Lisboa não demorará, no entanto, a estalar; a defesa da sua dissertação de concurso não poderá chegar ao fim, em 1912.
(…) Bergson foi ajudado, no seu progressivo afastamento do evolucionismo spenceriano, por toda a linhagem do movimento espiritualista francês, com origem imediata em Maine de Biran e representado na Escola Normal pelos mestres Ollé-Laprune e Émile Boutroux. Leonardo Coimbra recolheu também esta rica herança, mas mergulhou nela mais directamente do que Bergson e interpretou-a, a meu ver, mais nitidamente em sentido filosófico do que este, foi muito sensível aos aspectos psicológicos das análises dos filósofos espiritualistas franceses. De qualquer modo, houve importantes aproveitamentos filosóficos feitos por Bergson dessa tradição espiritualista, como é o caso da afirmação da importância da consciência, da experiência interna - face à experiência externa - como fonte de conhecimento superior, da posição suprema conferida à liberdade em oposição aos determinismos vigentes de diverso cariz, que afirmavam o primado da necessidade.
É este um ponto curioso para o analista comparativo das filosofias de Bergson e de Leonardo Coimbra. Bergson e Leonardo são, indubitavelmente, dois filósofos da liberdade. A relação da liberdade com a necessidade é, no entanto, concebida diferentemente por ambos e isso repercute-se profundamente no essencial das respectivas gnoseologia e metafísica. A oposição de Bergson ao positivismo mecanicista, fundado nas ciências físico-matemáticas, vai conduzir o filósofo a uma decisiva desvalorização e negação do conhecimento de modelo matemático. Contra esse modelo vai Bergson afirmar o supremo valor do conhecimento de modelo biológico. A metafísica bergsoniana quer edificar-se sobre o molde fluido das ciências da vida, não sobre o molde rígido das ciências matemáticas. É neste sentido que se pode ver em Bergson o filósofo anticartesiano por excelência. Muito diferente foi sempre o pensamento de Leonardo Coimbra. Com efeito, não só o filósofo português nunca repudiou o conhecimento de modelo matemático, como ainda em 1927, em Notas sobre a Abstracção Scientífica e o Silogismo, o apresentava como o próprio paradigma do autêntico conhecimento científico. A desvalorização da matemática e a valorização da biologia aproximam Bergson de Aristóteles; a valorização da matemática e a desvalorização da biologia, a que clarissimamente procede no livrinho de 1927 que mencionei, aproximam Leonardo Coimbra de Platão na exacta medida em que o afastam de Aristóteles. Como será possível afirmar que Leonardo Coimbra é apenas uma má tradução de Bergson se este se define, de um certo ponto de vista, como um aristotélico, e aquele se define, do mesmo ponto de vista, como um platónico e anti-aristotélico?»
Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra e Henri Bergson: Semelhanças e Diferenças»).
«Os estudos sobre a memória, estudos a que nenhum evolucionista pode deixar de atender, estudos tanto da memória individual, da memória hereditária, como da memória colectiva, tendem a desenvolver-se tão completamente quanto se desenvolvem os estudos sobre o inconsciente. O corpo humano, que é o único elemento objectivo da hipótese evolucionista, a qual tem a seu favor, no dizer de Bergson, "o triplo testemunho da anatomia comparada, da embriologia e da paleontologia", apresenta-se no bergsonismo com a simples função de servir de suporte nervoso e, portanto, ao cérebro, com a função de escolher e esquecer. Assim realiza, no contraste admirável entre Matéria e Memória, a sua doutrina mais fulgurante, acerca do passado da humanidade.
A explicação dos fenómenos de libertação do espírito obedece também à mesma metodologia. Aludimos principalmente aos fenómenos de clarividência e de clariaudiência, os quais abrem o verdadeiro caminho do progresso da humanidade. Além desses, os fenómenos psicossomáticos, como a intervenção do espírito, ou da alma, na cura de todas as doenças, e até das doenças mortais, merecem o estudo filosófico.
Muito material está recolhido pelos historiadores e nos arquivos dos especialistas dessas ciências. É o estudo desses fenómenos, mais ou menos ligados ao sobrenatural, segundo a cambiante das doutrinas religiosas, o que dará originalidade à literatura, que queira passar do sentimento para o pensamento, e profundidade à filosofia. Assim pensava Bergson quando em 1901 afirmou com toda a solenidade: "Explorar o inconsciente, trabalhar no subsolo do espírito, com métodos apropriados, será a principal tarefa da psicologia do século que se vai abrir"».
Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).
«As espécies são para Bergson uma demora da Vida num compromisso entre a propulsão das suas forças mais íntimas e a resistência duma matéria rebelde.
A conservação é ainda dentro de cada espécie um esforço contra as resistências acidentais da matéria, mas um simples esforço de manutenção dum equilíbrio conquistado.
A espécie pode deflagrar, as suas potencialidades biológicas não se esgotaram no compromisso que ela representa, e, embora adormecida, a Vida fonte, a Vida "Élan", coexiste com a Espécie.
A deflagração desse potencial biológico é o próprio caminho da evolução biológica. Chegada ao homem, a Vida fixa as suas exigências mínimas nas sociedades humanas fechadas, mas, em cada homem, vive e palpita o próprio "Élan", a direcção do impulso criador. Propulsão para o super-homem de Nietzsche?
Ímpeto revelado na consciência da reflexão e destruído pelo ascetismo duma vontade santificada, como em Schopenhauer?
O biologismo de Bergson é carregado de consciência, é mesmo um esforço para a consciência de si, um vago consciencialismo difuso, concentrando-se e intensificando-se nos episódios dramáticos da sua odisseia na travessia da matéria.
A vida chegada ao homem não precisa de novas espécies para subir na libertação da consciência.
Cada homem pode exprimir o segredo mais recôndito da Vida: o seu tactear nas trevas da matéria para a clara luz da consciência; basta que este homem, furtando-se ao ritmo das repetições da espécie, do animal humano social, se ajuste ao ritmo do próprio "Élan Vital".
Então o homem contactará o movimento criador em vez dos círculos redemoinhantes das formas hipnotizadas nos interesses do já criado.
É Deus ou o que Deus deu à Vida como alma do seu querer profundo?
Não o diz claramente o filósofo, mas, se não é Deus que o místico experimenta no seu convívio, é pelo menos o Verbo directo do criador, como que um autógrafo em vez de longínquas e simbólicas transposições.
E esta é a função da religião dinâmica: a experiência de Deus directa e imediata ou em primeira mediação.
A mística é a abertura das almas sobre o Infinito, é a viva experiência de Deus, traduzindo o Universo em dádiva e troca de amor das almas.
Os místicos anteriores ao cristianismo representam para Bergson um esforço de reajuste da alma do homem ao sentido profundo da Vida. Os êxtases de Plotino são momentos duma duração harmónica, caminhando, duração a par do ritmo da origem. Nele se fundem e desaparecem as durações pluralistas da vida que circula em interesses finitos e parcelares.
O êxtase é um contacto, a visão de dois caminhantes às janelas de dois navios paralelos correndo ao mesmo rumo com a mesma velocidade, e para os quais a distância transversal se sumisse: mãos nas mãos, olhos nos olhos, sem mãos nem olhos mais que para o aperto que as une, para o olhar que os funde numa única visão.
A saída do êxtase é a queda da contemplação da verdade nos industriosos enganos dos sentidos.
Misticismo esporádico, de contactos fugazes para logo perdidos na névoa da matéria e das vidas parceladas. A mística oriental da Índia leva, para além dos sentidos e da razão, a um estado de êxtase em que desaparecem sofrimento e inquietações de vontade; mas a alma que viu não recebeu da visão o calor irradiante duma caridade eficaz.
O misticismo budista é uma luz penetrante e fria a que falta o calor radioso duma vontade reconfortada, confiante e proselítica. Mais uma libertação pela contemplação do que uma conversão da própria vontade banhada nas águas originárias e delas emergindo, confiante, heróica e caridosa, abrasada do divino amor das almas.
Esboços do verdadeiro misticismo, como esboços foram os mistérios iniciáticos da Grécia, são atitudes, que, por vezes, se procuram por simples métodos fisiológicos. Não que as práticas da ascética orientalista criem por si a atitude do êxtase e o conteúdo da visão extática, mas porque podem representar um estorvo posto a outro estorvo, que impedia a inserção da atitude espiritual num determinado condicionalismo fisiológico. A preparação mística atinge o seu mais alto valor no profetismo judaico, amplamente varrido do marulho das ondas dum mar universal.
E surge Cristo, o centro de irradiação de toda a religião dinâmica, o ardente coração da nova mística da perfeita união ou caridade.
A mística cristã é uma experiência directa da alma sentindo o impulso original da vida, as dedadas da Mão que lança, senão essa mesma Mão.
A experiência mística pode ser acompanhada de certos desequilíbrios orgânicos, consequências dum tremendo movimento de conversão para a origem e do catastrófico salto de reajuste a uma expansão do novo avanço criador; a experiência mística pode mesmo ser fingida em seus aspectos exteriores, como o entusiasmo dionisíaco pôde ser imitado pela verdadeira embriaguez báquica.
No entanto a verdadeira mística cristã é uma experiência de onde se sai aumentado de inteligência, de firmeza consciente de vontade de rapidez e esperança de visão, insinuando nas dificuldades da vida prática o melhor conselho e o mais fecundo e apropriado gesto; de onde, enfim, o sujeito da experiência sai mais homem, no mais compreensivo, opulento e saudável sentido da palavra: um como que estado de ciência inata, antes, de inocência adquirida.
Aqui há a resposta de sempre daqueles que medem todo o valor da experiência científica pela possibilidade de repetições.
A isso responde Bergson, dizendo que também estas experiências poderão ser refeitas por todos os que se coloquem no condicionalismo que as respeite.
Não queremos entrar por agora na crítica, pois estamos no trabalho inicial de simples exposição; não podemos, porém, deixar de notar que quanto à mística cristã há uma distinção que tem de ser feita para que respeitemos a forma da sua apresentação real.
O místico cristão distingue entre a contemplação adquirida e a contemplação infusa, seja entre as alturas a que pode elevar-se a alma amante de Deus pelo simples poder do seu voo de amor, alturas onde aliás se anuncia a matutina luz dum astro invisível ainda, e o casamento espiritual, a união transformante, o ósculo divino, onde a alma só chegará arrebatada pela violência do Amor transcendente, arrancada dos pináculos do amor humano para o insondável do amor divino.
Esta segunda experiência é uma graça inteiramente gratuita, é uma sobrenaturalização impossível às simples faculdades humanas.
Mas, seja como for, a própria contemplação adquirida é uma superação da vida, um abrir de prisões da alma para o infinito da Caridade e toda a experiência mística encontra em nós uma ampla ressonância de acordo.
Esta experiência revela o Universo como condicionalismo da posição de almas procurando-se e unindo-se no puro amor de Deus.
Este misticismo é, pois, uma experiência de Deus.»
Leonardo Coimbra («A Filosofia de Henri Bergson»).
«A palavra EIDOS que traduzimos aqui por Ideia, tem, com efeito, este triplo sentido: Designa: 1) a qualidade; 2) a forma ou essência; 3) o fim ou desígnio do acto realizando-se, ou seja, no fundo, o desenho do acto supostamente realizado. Estes três pontos de vista são os do adjectivo, do substantivo e do verbo, e correspondem às três categorias essenciais da linguagem. Depois das explicações que demos mais acima, podíamos e devíamos, talvez, traduzir EIDOS por "visão" ou antes por "momento". Pois EIDOS é a visão estável da instabilidade das coisas: a qualidade que é um momento do devir, a forma que é um momento da evolução, a essência que é a forma média abaixo e acima da qual as outras formas se dispõem como alterações daquela, por fim, o desígnio inspirador do acto que se realiza, o qual não é mais do que o desenho antecipação da acção realizada. Reduzir as coisas às Ideias consiste, pois, em decompor o devir nos seus momentos principais, sendo cada um destes subtraído por hipótese à lei do tempo e como que colhido na eternidade. Significa que chegamos à filosofia das Ideias quando aplicamos o mecanismo cinematográfico da inteligência à análise do real.
Mas, a partir do momento em que se coloca as Ideias imutáveis na base da realidade movente, toda uma física, toda uma cosmologia, toda uma teologia se seguem necessariamente. Paremos neste ponto. Não temos a intenção de resumir em algumas páginas uma filosofia tão complexa e tão abrangente como a dos Gregos. Mas, como acabámos de descrever o mecanismo cinematográfico da inteligência, interessa mostrar a que representação do real conduz o funcionamento desse mecanismo. Esta representação é precisamente, pensamos nós, a que se encontra na filosofia antiga. As grandes linhas da doutrina que se desenvolveu de Platão até Plotino, passando por Aristóteles (e mesmo, em certa medida, pelos estóicos), nada têm de acidental, nada têm de contingente, nada que se considere uma fantasia de filósofo. Elas manifestam a visão que uma inteligência sistemática obterá do devir universal quando olhar para ele através de alguns instantâneos, tirados de longe em longe, do seu fluir. De forma que ainda hoje filosofamos à maneira dos Gregos; e encontramos, sem precisar de as conhecer, estas ou aquelas das suas conclusões gerais, na exacta medida em que confiamos no instinto cinematográfico do nosso pensamento.»
Henrique Bergson («A Evolução Criadora»).
«A ciência físico-matemática é absolutamente incapaz de nos ensinar o que é o mundo»
Quem hoje diz Ciência, não diz todo o saber, mas só o saber experimental. Científico, como diz algures BERGSON (1), é só aquilo que é observado ou observável. Nós observamos por meio dos nossos sentidos - pelos sentidos externos os objectos exteriores, a natureza; pelo sentido interior da consciência o mundo interno. A Ciência elabora-se com esses dados dos sentidos…A experiência (compreende-se aqui a observação e a experimentação) é a condição e o limite necessário de toda a construção científica. O que não admite possibilidade de ser de qualquer modo verificado, não pertence ao domínio da Ciência. A elaboração destes dados empíricos pela razão, em ordem a determinar as suas relações, é o que constitui o que nós chamamos modernamente a Ciência. Como advertiu BOUTROUX (2), ela apenas estabelece os factos, resume-os, classifica-os, agrupa-os e sistematiza-os.
(…) A Ciência, pois, por força da sua definição, não esgota os problemas que põe a si mesmo o espírito humano. É apenas um modo de conhecimento, ao lado de outros, com objecto diverso. O facto de por si não lograr atingir aqueles problemas, não quer dizer que sejam inatingíveis. Não os pode contradizer nem substituir, pois os não conhece.
O objecto da Ciência não é o ser como tal, como a nossa linguagem imperfeita poderá fazer crer - mas os fenómenos, ou seja, tudo aquilo que afecta directamente os sentidos. O fundo, o coração das coisas, a sua natureza íntima, o conjunto absoluto do ser e dos seres, a razão suprema de existir, os fins ideais do universo: eis problemas para sempre inatingíveis por meio apenas do método experimental. A realidade é como um oceano imenso, de que a Ciência ignora o fundo, a origem e o fim...
Se se considera em extensão, o objecto da Ciência apresenta-se-nos como necessariamente limitado. - Os seus limites confundem-se com os da experiência. Onde esta não chega, acaba aquele. Ora a experiência é um olho aberto sobre o mundo, mas que, por si mesma, o não abrange todo; por mais que se prolongue, só pode medir um momento de duração, estando para o conjunto do universo como um segmento para a recta indefinida… Em consequência, as primeiras origens e os últimos fins não pertencem ao campo da Ciência, como proclamam os CLAUDE BERNARD e os PASTEUR, que sabiam alguma coisa sobre o que ela, como tal, nunca poderá saber...
Se se considera em profundidade, a substância em si foge-lhe sempre, como um peixe através de uma rede de malhas imensas, e aliás rotas. Por mais que a Ciência avance, não encontra alfim nas suas mãos senão… a rede dos fios em que a envolveu, sem a prender nunca. Como diz com justeza GUSTAVE LE BON, "cada fenómeno tem o seu mistério, o mistério é a alma ignorada das coisas" (3). Da realidade, por assim dizer, não atinge senão o exterior, a superfície - e essa ainda imperfeitamente.
(…) Em suma, a Ciência não vê, na realidade, toda a realidade - precisamente aquela realidade que vê a Religião.
E como atingiria toda a realidade, se, como os mais modernos críticos da Ciência mostraram, ela se elabora abstraindo daquilo que constitui essencialmente as coisas, isto é: a substância, a essência, a causa, o fim?
Estas noções são metafísicas, logo extra-científicas (o que não quer dizer anti-científicas). A Ciência só avançou decididamente no momento em que, fiel ao seu método experimental, se desinteressou delas… Mas não as exclui, antes as implica.
Com efeito, ela não estuda a substância (a química estuda substâncias, mas esta palavra tem aqui um sentido empírico). Por fidelidade de método, não se ocupa senão do facto, do fenómeno, do que é objecto imediato da experiência, do que é de algum modo perceptível aos sentidos. LE DANTEC dirá até, em nome dela, que nós já não conhecemos corpos, mas propriamente relações. (4) - Todavia a própria noção do fenómeno implica a de substância; o fenómeno é mesmo já a sua manifestação.
A noção de essência é igualmente alheia ao trabalho científico. Já LITRÉ reconhecera que a experiência nada pode sobre as questões de essência e origem, que por definição lhe escapam (embora não à inteligência humana). A Ciência ocupa-se somente com estabelecer as condições de produção, coexistência e sucessão dos fenómenos. A Mecânica moderna carece porventura de saber a natureza íntima dos seres? Não se matematiza a Física, na medida em que avança? E a Biologia não se limita a descrever a vida, em vez de a definir? - Mas é só a natureza íntima de um ser que nos explica verdadeiramente a sua actividade, pois que operatio sequitur esse.
(…) Em suma, a Ciência não é uma ontologia. Estuda as relações dos seres, não o ser; e, porque só estuda relações, é que depende das matemáticas, na própria medida dos seus progressos. HENRY POINCARÉ não disse que as leis físicas eram equações diferenciais? A dedução não entra na Ciência experimental, na razão directa do seu avanço.
É que, como demonstrou BERGSON, ela tende a desfazer em fumo algébrico a existência concreta do fenómeno da natureza (5). Não esgota todo o conteúdo inteligível dos dados da experiência - começando por abstrair de condições integrantes deles e reduzindo-os a uma simplicidade inteiramente teórica. Supor que encerra toda a realidade nas suas fórmulas, e pelos seus métodos, é decretar a priori que na natureza não há senão o que é sensível - o que é já da mais transcendente, embora errada, metafísica.
(…) A análise dos conceitos científicos revela-nos que eles não encerram em si directamente um juízo ontológico das coisas. Pois acaso se pretenderá que as noções primordiais da Ciência sejam uma definição da realidade última?
A matéria e a energia são a própria base, as duas grandes coordenadas da Ciência - e todavia ela desconhece a sua natureza íntima. Enquanto tem por objecto a matéria e por condição o determinismo, a Ciência é, num certo sentido, materialista; isto não quer dizer de modo algum que os sábios o sejam, como adverte POINCARÉ (6). Sendo na verdade uma questão metafísica, a questão do materialismo, como a do determinismo, não pode ser resolvida em última instância pela Ciência.
A vida, eis outra incógnita para sempre insolúvel pelo método experimental. A biologia estuda as condições em que ela se manifesta, mas não a pode definir, pois não sabe o que ela é, donde vem, para onde vai, como judiciosamente notava o químico JOÃO BAPTISTA DUMAS (7). Ainda que a vida não tenha química especial, é seguramente alguma coisa mais que uma química.
(…) O que prova a radical impotência da Ciência para alcançar a realidade toda, é a perfeita equivalência prática de teorias contraditórias nos princípios sobre problemas fundamentais.
Sobre a constituição da matéria, por exemplo, digladiam-se, desde que o problema se pôs, o atomismo e o dinamismo - e hão-de digladiar-se sempre, acrescenta POINCARÉ. (8) - Hoje estão em favor as doutrinas energéticas. A física actual "desmaterializou por assim dizer a matéria, tirando-lhe o seu aspecto substancial e reduzindo-a a uma simples forma de energia", como dirá L. DE BROGLIE. Na estranha física quântica, o electrão - elemento último da matéria - é ao mesmo tempo corpúsculo e onda; ou, dirá LECOMTE DU NOUY, não é senão uma onda de probabilidade, empregando a linguagem da metafísica ondulatória.
(…) Que são as leis? - Seguramente nada exige que as leis sejam consideradas como puramente convencionais, isto é, que a ordem do mundo só esteja no nosso espírito, como quer LE ROY; antes a experiência confirma o contrário.
Newton, por William Blake
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Ainda as leis não se equivalem todas no ponto de vista do seu significado objectivo. Se há leis experimentais que traduzem as condições reais de produção de certos fenómenos concretos, como as biológicas, por exemplo; da maior parte das leis físicas se poderá dizer, a exemplo de MARITAIN (9), que na sua expressão matemática são meras funções da variação de certas grandezas abstractas dos fenómenos. Embora assentando numa sólida base experimental, a ciência físico-matemática, na sua elaboração superior, tende a substituir as realidades concretas por símbolos matemáticos. O seu verdadeiro objecto não são, com efeito, as coisas em si, mas grandezas puramente abstractas. Na verdade, numa explicação matemática do universo, não se trata já de uma explicação, mas de uma transposição.
De facto fabrica-se uma espécie de película matemática, que se procura ajustar à realidade física - admitindo portanto todos os graus de aproximação. Como esta translação do físico ao matemático pode fazer-se, semelhantemente a toda a tradução, de mais de uma maneira, compreende-se que há aí lugar para convenção e contingência. Em rigor, a "ciência moderna", por excelência, ou seja, a ciência físico-matemática, é absolutamente incapaz de nos ensinar o que é o mundo e, a fortiori, a sua origem, pois que no seu estudo omite e despreza tudo que não seja a quantidade. Convêm-lhe, portanto, o que afirmava OLLÉ-LAPRUNE (10): - que ela não corresponde à própria noção de ciência - conhecimento das coisas; MARITAIN acrescentará que, tal-qual a adora o "cientismo", não é propriamente ciência, mas antes uma espécie de disciplina prática (11).
(…) Em resumo: - A Ciência estabelece factos, embora procurando reduzi-los à expressão matemática, o que é simplificá-los, empobrecê-los; descobre e formula leis, que não pode considerar-se como expressão absoluta da realidade, se bem que a traduzam; e constrói teorias, hoje unanimemente reputadas como meramente representativas. Em tudo isto, o domínio científico inteiramente distinto do domínio filosófico e religioso, como afirma TERMIER (12), que é simultaneamente sábio e católico.
Em conclusão, a Ciência, segundo a definem os seus cultores mais autorizados, não é toda a ciência do homem, mas só o saber experimental. Tem por objecto os fenómenos, as causas segundas - não a explicação últimas das coisas. Ignora, e ignorará sempre, como ciência, a natureza íntima dos seres, a sua primeira origem e último fim, o sentido do ideal moral, os destinos humanos...
É uma ignorância por definição. Quem diz científico, diz abstracção daqueles problemas. A Ciência ignora-os - porque não são da sua competência. Ignorar, porém, não é eliminar, pois eliminação é também uma resolução por negação. E como poderia resolvê-los de qualquer modo, se os não conhece? Toda a solução deles que se pretenda fazer passar em nome da Ciência, como nos volumes de um GUILLEMINOT (13) por exemplo, não é... científica. Consoante disse BOUTROUX, a Ciência não é tudo… (14)
Mas se os não conhece, supõe-nos. Olhando o mundo só do ponto de vista da experiência pura, é maior ainda a sombra do mistério - porque para o penetrar se dispõe apenas de uma luz, e luz aliás de pouco alcance. Como escreveu TH. RIBOT, o conjunto dos conhecimentos humanos assemelha-se a um grande rio, correndo a transbordar sob um céu resplandecente de luz, mas de que se desconhece a nascente e a foz, que nasce e morre nas nuvens… (15)
Ora a Religião ensina-nos precisamente sobre a nascente e a foz de todas as coisas - sobre Deus (in A Igreja e o Pensamento Contemporâneo, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 1944, pp. 20-32; 35-38 e 42-43).
Notas:
(1) L'âme et le corps, em - Le Matérialisme Actuel, FLAMMARION, Bibliothèque de Philosophie Scientifique, 1913, p. 14.
(2) Science et Religion, 1911, p. 230.
(3) Aphorismes, 1913, p. 124.
(4) Science et Conscience, 1908, p. 72.
(5) Essai sur Les Données Immédiates de la Conscience, 1889, p. 258.
(6) Les conceptions nouvelles de la matière, em - Le Matérialisme Actuel, p. 50.
(7) Cit. por GAULTIER, L'Idéal Moderne, p. 286.
(8) Le Matérialisme Actuel, (les conceptions nouvelles de la matière), p. 67.
(9) Antimoderne, 2.ª ed., 1922, p. 50.
(10) La Philosophie, p. 92.
(11) A propos de la Révolution cartésienne. Philosophie scholastique et physique mathématique (in - Revue Thomiste, Abril-Junho de 1918, p. 178).
(12) Documéntation Catholique, 24 de Nov. de 1923, col. 913.
(13) Les Nouveaux Horizons de la Science, 4 vol.
(14) Science et Religion, p. 233.
(15) Cit. por GAULTIER, L'Idéal Moderne, p. 287.
O Cardeal Cerejeira retratado por Henrique Medina
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