Na mesma altura, a 4 de Março de 1942, Salazar recebe Campbell. Este torna ao problema político-militar da evacuação do governo português em caso de emergência. Mas de algum modo a evolução da guerra - envolvimento alemão na campanha da Rússia, extensão do conflito ao Extremo Oriente, entrada dos Estados Unidos - parecia dar menor acuidade à hipótese. Por outro lado, com o apoio americano intensifica-se o bloqueio inglês, e Portugal sente-se mais afectado; e por sua parte a Inglaterra encara com irritação crescente os fornecimentos de volfrâmio à Alemanha, que há por exagerados. Aumentam os embaraços portugueses no abastecimento de alguns géneros e matérias-primas, e para tentar uma solução é enviado a Londres Tomaz Fernandes, consultor económico dos Estrangeiros; mas não se mostram compreensivas as autoridades britânicas. E então, ao serem debatidos estes assuntos, põe-se áspera a entrevista entre Salazar e Campbell. Depois, Salazar alude a um aspecto do plano de evacuação: o das destruições a fazer no continente, no caso de invasão por forças hostis. Ora a polícia portuguesa, diz Salazar a Campbell, descobrira uma organização secreta, dirigida e financiada por ingleses, que se propunha também fazer aquelas destruições, mas em bases mais extensas do que as do plano oficial. "Era inútil sublinhar que o governo português não estava disposto a trabalhar em tais termos; era preciso que o governo inglês acabasse por escolher entre o governo português e a actividade secreta conduzida por ingleses conchavados com alguns portugueses". E acentua o chefe do governo: "no caso de o governo inglês preferir a actividade dos seus organismos secretos, o governo português recusa-se a mais negociações do género com o governo britânico; e este apenas contará com as suas forças ocultas, é evidente, só enquanto a polícia não conseguir desmanchar as suas maquinações". Campbell reconhece a existência da organização secreta; mas afirma que já dissera para Londres dever a mesma ser desmantelada. Salazar não comenta....
(...) Salazar concede uma entrevista ao Temps, de Paris, que destaca algumas afirmações: "não vemos na solidariedade russo-anglo-americana, tal como é hoje afirmada, um elemento muito tranquilizador para os povos que deverão adaptar-se à nova ordem europeia"; e "estamos decididos a nunca admitir que a autoridade do Estado ignore os direitos da consciência ou que o Estado absorva toda a vida da Nação".
FDR e Winston Churchill em Casablanca (14 a 24 de Janeiro de 1943). |
Franco Nogueira («Salazar», III, «As grandes crises», 1936-1945).
«...Clausewitz falara de "alguma coisa de vaporoso e de fluído [que] não se deve concentrar em parte alguma de um corpo sólido", embora sendo capaz de atingir as bases do exército inimigo "qual combustão lenta e gradual" [De la guerre, Ed. de Minuit, 1955, II Parte, cap. 26, pp. 552]. De igual modo, o coronel Lawrence, campeão da guerra do deserto e grande amigo de Churchill, tinha preconizado que se recorresse a uma força inapreensível, invulnerável, sem frente nem retaguarda, capaz de se espalhar por toda a parte, à maneira de um gás.
(...) Qualificada como "quarta arma", ao lado do exército, da marinha e da aviação, por Hugh Dalton, ministro encarregado de coordenar esta luta heterodoxa, a "guerra da sombra" encontrou um campo de eleição no decorrer da II Guerra Mundial. Dois factores para isso contribuíram largamente: por um lado, a natureza ideológica e política do conflito; por outro, as novas possibilidades técnicas oferecidas pela rádio e pela aviação, o que permite atravessar impunemente o espaço dominado pelo inimigo, e estabelecer ligações regulares entre agentes internos e aliados externos.
Ao mesmo tempo, o combate assume uma tonalidade cada vez mais multiforme, alternada ou em simultâneo militar, política, ideológica ou social, tanto mais que, no campo da resistência interna, depressa se passa da luta contra o ocupante à vontade de transformar, depois da guerra, as estruturas da sociedade e do Estado. Isto não vai deixar de levantar problemas espinhosos ao primeiro-ministro, iniciador e campeão desta subversão armada, mas ao mesmo tempo de espírito profundamente conservador. É assim que a pequena guerra se articula com a grande guerra, no coração da geoestratégia mundial».
François Bédarida («Winston Churchill»).
«A grande crise da Europa é não saber conservar a paz dentro de si mesma. Tem ainda o primado da ciência, da literatura, das artes, possui os segredos da técnica; sabe organizar o trabalho, mas não sabe ter paz. A origem do seu mal não reside propriamente na densidade da população, no esgotamento do solo ou do subsolo, na estreiteza das terras ocupadas, mas numa doença do espírito. E, como a antiga Roma, em certo momento da sua decadência, parece já "não suportar nem os males nem os remédios".
Gladiadores na antiga Roma |
A força essencial à vida das sociedades não é a última ratio, é a primeira; dela deriva a moral, o direito, a organização social; e nestes termos já não assegura a paz, gera a guerra. Ou a fazer a guerra ou a armar-se para ela, a Europa, apesar de intenso trabalho e duras restrições, empobrece enormemente: divisa-se a crescente proletarização das nações europeias e diante da hipertrofia do Estado que, a título da defesa colectiva, concentra em si toda a riqueza e poder, os homens limitam-se a esperar, em troca de trabalho servil, o suficiente para as necessidades fundamentais da vida. Mas neste extremo tem desaparecido aquela parcela de liberdade e dignidade humana que nós teimamos em crer essenciais à vida civilizada.
O definhamento da economia como a diminuição moral do europeu põem sem sério risco a resistência da Europa perante eventualidades que podem não ser meras criações do espírito, pois é frágil e precária a força dos Estados - pese o facto embora às imaginações exaltadas que deliram ante as vitórias e as conquistas. A força dos Estados depende da sorte vária das batalhas; para além disso o que vale e conta é a organização da vida e a força moral dos povos, se pelos mesmos princípios de morte não tiverem sido ainda destruídos.
Para haver paz não é suficiente a arrumação étnica das populações, nem os acordos económicos, nem a segurança natural das fronteiras. Tampouco a alcançam as combinações diplomáticas que não se baseiam na coexistência de interesses reais, nem as criações artificiosas da política, nem a teimosia de sustentar contra a pressão da vida o que nem a história nem a geografia se encarregaram de consagrar e manter. A paz é sobretudo uma criação do espírito, fruto da força que se limita, isto é, da consciência que sabe distinguir e respeitar a linha de separação do direito próprio e alheio e até sacrificar o seu interesse a interesse maior que lhe é estranho.
Claustro do Mosteiro da Batalha |
Oliveira Salazar («A Europa em Guerra. Repercussão nos Problemas Nacionais», in Discursos e Notas Políticas, III, 1938-1943. Na Assembleia Nacional, em 9 de Outubro de 1939, durante a sessão em que a Câmara se congratulou pelo êxito da viagem do Chefe do Estado às terras portuguesas de África).
Portugal e o Hemisfério Ocidental
Demora-se Salazar na Beira menos do que o seu habitual, e na segunda quinzena de Setembro está de regresso a Lisboa. Há agora uma pausa nas conversações com a Inglaterra. Para mais, antes de responder aos comentários de Monteiro e à diligência britânica, Salazar pondera de novo a situação com Santos Costa e Teixeira Sampaio. E tem de acolher em Lisboa visitantes que de propósito aqui se deslocam para o ouvir. Recebe antes, porém, o embaixador de Espanha, em 18 daquele mês. Nicolau Franco garante a Salazar não haver qualquer modificação na política externa espanhola: nenhuma pressão fora exercida pelas potências do Eixo no sentido da entrada da Espanha na guerra, do ataque a Gibraltar ou da passagem por território espanhol de forças para o Norte de África. Salazar pergunta: «tem o generalíssimo esperanças de manter a Espanha até ao fim alheia ao conflito?». Franco responde afirmativamente. Por seu lado, Salazar faz uma síntese da situação portuguesa, e nega os rumores em curso quanto às ilhas portuguesas; mas não esconde ao embaixador que a sua preocupação se centra agora sobre Gibraltar cuja «inutilização obrigaria os ingleses a servirem-se de outra ou outras, e essa ou essas talvez não pudessem deixar de ser portuguesas». Paralelamente, Pedro Theotónio acha Serrano Suñer desorientado, e julga que a sua influência junto do General Franco está ultrapassada. Depois Salazar recebe Lord Barnby, «a quem pude dar meia hora», e que é um entusiasta de Portugal, e vivo defensor em Inglaterra da política de Lisboa. E vem Myron Taylor, alto representante pessoal de Roosevelt na Santa Sé. Taylor mantém reserva sobre as suas diligências junto de Pio XII; não sente dúvidas da vitória final da Inglaterra; faz numerosas perguntas sobre a campanha russa; prevê a organização futura dos Estados Unidos da Europa; e afirma a Salazar que este, graças ao seu prestígio no mundo, poderia desempenhar o papel de relevo na feitura da paz.
Papa Pio XII |
E agradece a Salazar a oferta da edição inglesa dos seus discursos, que aquele mandara entregar no hotel de Taylor. E acompanhado de Campbell vem Lord Halifax, desajeitado e negligente, patrício e lúcido. Enquanto secretário de Estado, Halifax trocara com Salazar numerosas mensagens, e ficara com alto respeito pelo chefe do governo português: mas os dois homens não se haviam encontrado. Halifax abre-se sobre os Estados Unidos: não receia o imperialismo americano, nem a intervenção deste nos negócios europeus, que serão guiados pela mão da Inglaterra; e afirma a sua fé no puro desinteresse americano, no seu idealismo, no seu fundo cristão. Salazar escuta, e depois comenta: «não contrariei abertamente as suas opiniões, mas informei-o lealmente, quando solicitado, do que sabemos em matéria de facto». Hallifax oferece os seus bons ofícios em Washington, para pretensões de Portugal junto do governo americano.
Depois de reflectir, Salazar responde aos argumentos e às sugestões de Armindo Monteiro. Em 30 de Setembro de 1941, envia a este um despacho extenso, e firme. Parte de um princípio: o problema político máximo é o da retirada do Governo para os Açores e perda da neutralidade portuguesa. Mas antes deste ocupa-se Salazar de um outro: as destruições que a Inglaterra deseja ver realizadas em Portugal no caso de invasão por forças alemãs ou espanholas. Há «que moderar e reduzir até ao razoável a tendência inglesa para a destruição em massa de tudo o que possa ser utilizado pelo inimigo». Não podendo no momento lançar-se na ofensiva, a Grã-Bretanha tem por táctica levantar «obstáculos à vida e força da Alemanha»: «tudo o que leve as populações a viver mal, a sentir-se mal, a odiar os causadores das suas desgraças - e a Inglaterra parte do princípio de que a responsabilidade de tudo será no espírito das vítimas atribuído à Alemanha - é útil à vitória inglesa». Ora «nós não podemos aderir a este modo de ver, e temos por assente que só deverá ser destruído o que tenha influência directa na condução da guerra, por parte do inimigo, contra nós próprios ou os nossos aliados». E isso porque o ocupante improvisa em poucas horas as soluções que lhe bastam, mas «as ruínas ficam para ser reparadas, se o forem, pelos naturais. (Ainda temos pontes destruídas quando das invasões francesas)».
Oliveira Salazar |
Londres |
Naquele estado de ânimo, Salazar recebe Sir Ronald Campbell em 4 de Outubro. Campbell é distinto, profissional de alta estirpe, de apuro cortês até ao meticuloso; mas a sua mentalidade imperial, vitoriana, parece sucumbir ao peso de Palmerston e Disrael. Salazar trata agora o enviado britânico com ironia, e mal oculto desdém. Campbel mostra-se optimista com a situação militar. Salazar sorri, e observa: «não estranho o estado de espírito inglês, desde que verifico ser este orientado no sentido de contar como vitórias suas algumas vitórias que, no seu entender, o inimigo almejara e não conseguira». Tenta Campbell discutir o problema magno pendente entre os dois governos, e puxa de meia dúzia de folhas de papel. Salazar atalha: Londres teria de compreender «ser absolutamente impossível fazer negociações nas duas capitais ao mesmo tempo». Campbell «recolheu as suas notas». Então o embaixador queixa-se da polícia portuguesa, que acusa de estar infiltrada pelos alemães, e apresenta alguns casos de embaraços suscitados por aquela. «Pacientemente expliquei ao embaixador que ia resolver as dificuldades». Campbell insiste. Salazar ri-se, e diz ao enviado inglês que já conhecera vários embaixadores da Inglaterra e que a todos é sempre preciso explicar tudo desde o princípio: como a Grã-Bretanha «é democrática e liberal e parlamentarista e o regime português é antidemocrático, antiliberal e antiparlamentar», a embaixada pensa que os amigos da Inglaterra e os defensores da aliança são os inimigos do governo, «os aspirantes às mudanças que lhes dessem situações políticas». Campbell protesta a maior consideração da Inglaterra pelo governo português e o seu chefe. Reage Salazar: «dei-lhe a entender, meio por palavras, meio por gestos, que depois de tantos anos de governo e de trabalho recto, tudo isso me era já perfeitamente indiferente».
Por fim, Campbell suscita a questão das exportações do volfrâmio para a Alemanha. Salazar critica asperamente a atitude da Grã-Bretanha. Muitas minas de volfrâmio são propriedade da Inglaterra; mas esta não as explora, para assim as manter em reserva, com prejuízo da economia do país onde se encontram, enquanto adquire volfrâmio na Turquia ou na Birmânia; e a Alemanha, sem interesse nas minas, apresenta-se a pagar bons preços e a valorizar uma riqueza portuguesa. Campbell muda de assunto. Portugal queria comprar e embandeirar com a bandeira portuguesa um barco italiano surto em Lourenço Marques: mas como podia o governo britânico concordar, quando o governo português não autoriza que a Grã-Bretanha compre alguns pequenos barcos portugueses? Então Salazar responde com outra pergunta: foi autorizada a venda de barcos de pesca à Inglaterra e a construção de outros em estaleiros portugueses, e depois disto a Grã-Bretanha não autoriza a compra de um barco italiano em Portugal: perante esta recusa, com esquecimento do passado, como pretende Londres que se concedam mais autorizações? Salazar comenta: «tenho verificado haver um funcionário da Embaixada que prepara os papéis ao embaixador e lhe faz apresentar com um grande ar de argumentação fulminante razões que são geralmente idiotas». Campbell diz para Londres que Salazar está «lúgubre» e «deprimido».
Sem dúvida: Salazar convenceu-se de que o gabinete de Londres se lançara numa tentativa de ludíbrio pessoal: e endurece a sua posição. Deseja ouvir Monteiro: «gostava que meditasse no assunto, e, quando pudesse, me escrevesse sobre ele». Assume no entanto responsabilidade suprema: «a mim nada me custa mudar de orientação, e esquecer-me também das pretensões inglesas até que a satisfação dos nossos legítimos pedidos seja encarada a sério por esse governo ou os seus burocratas», e entretanto «vamos fazer alguma coisa que possa levá-los a queixar-se», e isso porque tem notado que «os ingleses tratam em geral melhor e cuidam mais dos interesses dos países que os tratam mal». Monteiro, por seu lado, aproveita as oportunidades para repisar a atitude portuguesa: e num almoço na embaixada de Espanha a que assistem Churchill e Eden, conta a estes, perante os demais convidados estupefactos, como a prematura fuga de D. João VI e da família real para o Brasil, realizada a conselho inglês, causara tão má impressão que os portugueses ainda não haviam perdoado à memória do príncipe tão precipitado abandono.
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