Oliveira Salazar («A Europa em Guerra. Repercussão nos Problemas Nacionais», in Discursos e Notas Políticas, III, 1938-1943).
«No dia 23 de Dezembro [de 1941] [Salazar] recebe o ministro alemão: este felicita-o pela condução do caso de Timor e dá-lhe novas seguranças sobre a soberania portuguesa. No dia de Natal telegrafa a Monteiro para repisar as suas suspeitas quanto à campanha nos Estados Unidos e para lhe dizer que em Washington tem mostrado e aconselhado tranquilidade. E no final daquele ano Salazar sente-se céptico, desiludido. Desabafa com Monteiro: "os factos da vida ensinaram-me a descrer dos ricos, dos poderosos e dos grandes". Não descrê, todavia, do país e do imperativo de o transformar. Todos os portugueses, comenta Salazar, foram educados na tese de que a independência e integridade de Portugal são dádiva gratuita da Inglaterra, porque o país não teria condições de vida livre. "Ainda que esta doutrina fosse tese histórica inegável, deveríamos considerá-la politicamente errada. A verdade política deve reivindicar para a Nação a base suficiente de independência efectiva". Mais: "sei que a doutrina que defendo não conquistou ainda toda a massa de Portugal. Parte importante confunde ainda consciência nacional e interesse nacional com servilismo pró-britânico"».
Franco Nogueira («Salazar», III).
Portugal e o Hemisfério Ocidental
Na sua política da Península, Salazar tem constantemente de fazer e refazer tudo. Não julga que Portugal haja de sair da sua neutralidade; e apenas quando esta estiver irremediavelmente perdida será de considerar a hipótese de abandonar o território continental. Mas a Espanha acaba de pôr em causa as coordenadas desta política. Para colaborar com a Alemanha na luta anticomunista, Franco envia forças espanholas - a Divisão Azul - para a frente de batalha russa. Depois, pronuncia um violento discurso contra a Inglaterra e os Estados Unidos. Salazar fica atónito, e pergunta a Pedro Theotónio: «Mas porquê e para quê uma agressão contra a Inglaterra e os Estados Unidos?». Salazar supõe que o generalíssimo prepara uma mudança de política externa para breve, e decerto a ruptura com Londres, antes de mais, como acto preparatório do ataque a Gibraltar. Por outro lado, o Japão continua para o sul um avanço que vai além da China, e ocupa bases aeronavais na Indochina, com a anuência da França; e em Madrid julga-se que dentro de pouco a América estará em guerra. Tem repercussões em Londres e Washington o ataque de Franco; e Salazar procura recompor as malhas esgaçadas, paciente e tenazmente. Tem uma nova conversa com Sir Ronald Campbell. Este pergunta «se considerava possível continuar Portugal na sua actual posição de neutro e em paz no caso de a Espanha entrar na guerra ao lado da Alemanha, atacando Gibraltar». Teoricamente, responde Salazar, era viável; mas reconhecia que praticamente a situação se tornaria excepcionalmente difícil. Campbell, sem comentar estas afirmações, e«certamente indo atrás da ideia fundamental que tinha no cérebro durante esta conversa», declarou então «não saber se, no caso de a Espanha atacar e tornar inutilizável Gibraltar, era ainda de interesse para a Inglaterra a neutralidade portuguesa». Aqui Salazar guarda reserva mental: ilude a pergunta implícita no comentário de Campbell para evitar dizer a este que «isso não era bastante», só por si, para tirar Portugal da sua neutralidade. Prefere perguntar se, «não podendo utilizar Gibraltar, a Inglaterra não tinha bases em África devidamente apetrechadas». E o embaixador «citou Freetown, pondo muito em relevo que essa base se encontrava muito para o sul». Mas como narra Campbell, para o Foreign Office, esta mesma entrevista? Começa por dizer: «tive uma oportunidade de quebrar o gelo».
Estreito de Gibraltar |
Roosevelt e Churchill durante a conferência secreta de 9 a 12 de Agosto de 1941 no Atlântico Norte, que resultou na Carta do Atlântico. |
Pouco após, em fins de Agosto, a 28, Salazar concede nova audiência a Campbell, em S. Bento, que se prolonga das onze da manhã às duas da tarde. Desta vez o enviado britânico ataca de frente: se a Espanha entrar na guerra, só ou aliada da Alemanha, Londres entende que não é possível manter-se a neutralidade portuguesa. Salazar fica tranquilo, calmo. Põe três hipóteses: resistência armada da Espanha à pressão alemã; ataque da Espanha a Gibraltar com ou sem assistência de técnicos alemães; aliança com a Alemanha e operações em conjunto. Qual a hipótese mais provável? Há que pôr de parte a primeira: a Divisão Azul, o discurso de Franco, o pacto anticomunista, impossibilitam a Espanha de opor qualquer resistência à Alemanha. Há que excluir a última hipótese: a generalidade dos espanhóis não apoiará uma aliança hispano-alemã para fazer a guerra. Fica a segunda hipótese: a opinião pública espanhola estará com o governo que empreenda a conquista de Gibraltar. Mas esta hipótese suscita considerações: ainda que a Espanha tomasse Gibraltar, o destino final do território será o que for determinado pelo resultado da guerra; mais importante do que apoderar-se a Espanha de Gibraltar é para a Alemanha inutilizar e fechar o estreito; e isto pode a Espanha fazê-lo com os seus próprios meios, sem aliança formal com a Alemanha. «A conclusão é, pois, de que a Espanha agirá sozinha». Salazar reconhece, todavia, que a terceira hipótese também não é impossível. «Mas o ataque a Gibraltar nada tem que ver com o ataque ou a ocupação do nosso país», diz Salazar a Campbell. Neste ponto, toda uma rede de raciocínios é possível: a Alemanha não reconhecerá à Espanha absoluta liberdade de acção na Península, nem a Itália tão-pouco, porque nem uma nem outra desejam uma grande potência na entrada do Mediterrâneo; a quem possuir as costas espanholas pouco benefício suplementar decorrerá da posse das costas portuguesas; decerto a Alemanha, com Portugal ocupado, poderia então falar em nome de toda a Europa continental; mas então perderia a única ligação que lhe resta com o mundo extra-europeu e magoaria as repúblicas latino-americanas; Portugal e Espanha são as únicas portas possíveis sobre o mundo; é muito grave quebrar todas as amarras; e de tudo será de concluir que a Alemanha se absterá de uma agressão contra Portugal. Campbell escuta com atenção, mas torna ao princípio: com tropas alemãs em Espanha, e à mercê de um golpe fulminante, seria impossível a saída do governo português.
Marechal Pétain |
Pétain e Hitler |
Salazar então acentua: «O governo não pode praticar um acto tão grave» sem «que o acompanhe a compreensão do povo» quanto à «necessidade daquele sacrifício para se alcançar um fim superior»; e «ninguém compreenderia um acto de tal transcendência só porque os espanhóis atacaram Gibraltar ou têm forças nas fronteiras com o confessado propósito de evitar um ataque do lado de Portugal». Deste modo, «é preciso que o país não tenha a impressão de uma fuga injustificada, mas de uma retirada in extremis»; «é preciso, enfim, que o governo não perca o seu prestígio transferindo a sua sede para os Açores». Campbell comenta que lhe parece estar a ouvir o que nas vésperas da capitulação da França lhe dizia o marechal Pétain. Serenamente, Salazar explica ao embaixador que não há paralelo entre as duas situações: no caso português, «não se discute se se devem aceitar as imposições alemãs, ou não, e se o governo se deve sujeitar ao mando de governo estrangeiro, ou não»; apenas se discute «o momento em que as conveniências militares» e políticas «lhe aconselham ou impõem transferir-se para onde possa usar da sua liberdade de acção». Campbell concorda. E então, com aparente descaso deixa cair a pergunta que no fundo era a sua obsessão: quando Gibraltar não fosse já utilizável, e se o governo português houvesse sido transferido para os Açores, seriam nestes dadas facilidades à esquadra britânica? Dando às suas palavras extrema simplicidade, Salazar responde: «não vejo que a isso se oponham quaisquer dificuldades». Campbell tenta resumir toda a conversa numa só frase, de «cujo conteúdo não sou capaz de me recordar», mas que era inexacta, e por isso Salazar sublinha: «Isso é o que V. Ex.ª diz» (7).
Desta conversa, Salazar dá conta minuciosa a Monteiro. Ao fazê-lo, formula considerações suplementares. Salazar notou claramente os degraus que Ronald Campbell procura transpor; e não julga que haja dado margem para desconfiança, e a alegação desta pelos ingleses, como pretende Monteiro, é somente um expediente para ocultar o verdadeiro objectivo, que consiste na utilização dos Açores pela esquadra britânica. Salazar, contudo, pisa e repisa os argumentos e as posições fundamentais. E vai mais longe: «a minha confiança numa vitória rotunda da Inglaterra é fraca, se é que existe, através da visão desapaixonada dos acontecimentos e do interesse português». Ao ler isto, Monteiro não se contém, comenta: «Diante desta ordem de ideias, as actuais negociações são uma contradição. Vai-se então o Dr. Salazar ligar ao vencido? Valha-nos Deus! Parece loucura». Depois de insistir no seu apego à neutralidade, que está para além das estipulações dos tratados, e de invocar a consciência do país, que «põe acima de tudo a honra nacional», Salazar remata com uma declaração gelada: «Não se devem deixar dúvidas no espírito do Secretário de Estado de que, se Portugal estiver neutral, as forças dos Açores ou de Cabo Verde ripostarão ao ataque da esquadra britânica até ao limite das suas possibilidades. Não julgo que dignamente possamos fazer outra coisa». Monteiro, estonteado, sente-se aturdido: «Este homem vive na Lua! O que temos é de evitar que aconteçam coisas que nos levassem à situação de ter de fazer fogo durante dez minutos contra a esquadra britânica!».
Base das Lajes (Açores). |
De harmonia com o convite feito na reunião do gabinete inglês de novo o Foreign Office pondera as relações com Portugal, em particular quanto aos Açores. Antes de mais não julga o Foreign Office possível qualquer atitude de má-fé: seria fatal quando se trata com Salazar: e tornaria mais difícil obter facilidades no arquipélago. Por outro lado, se Salazar se tem mostrado partidário da aliança luso-britânica, e desta faz a base da sua política, não se sente no entanto obrigado para os Estados Unidos, de que desconfia e por que não tem a menor simpatia. Comenta depois o Foreign Office: «Se é ou não desejável que os americanos estejam nos Açores, é assunto da mais alta política. A óbvia obsessão com que o Estado-Maior americano pretende aquelas ilhas é menos uma expressão do desejo americano de ajudar o esforço de guerra aliado do que uma expressão do expansionismo imperial americano. É isto que precisamente o Dr. Salazar receia, e deve ser tido em consideração». Conclui o Foreign Office que um arranjo anglo-português sobre os Açores é coisa natural, no quadro da Aliança; mas os americanos devem ser mantidos afastados, tanto quanto possível, no interesse britânico e no interesse português; e as conversações com Portugal devem prosseguir, por isso, antes de qualquer atitude violenta e antes que se «intrometa a complicação americana nas nossas negociações directas com os portugueses». Eden concorda com este parecer do seu departamento, e envia a Churchill uma minuta em que defende uma política de negociações com Portugal, ao mesmo tempo que mantém à distância os americanos, sem prejuízo de estes serem informados do progresso das conversas. Para travar Roosevelt, Churchill expede um telegrama ao presidente sublinhando que apenas em face de provocação alemã ou espanhola seriam os Açores tomados pela força. Nesta base continua Campbell as suas entrevistas com Salazar.
Sobre as conversações de Estado-Maior, era português o último documento, e fora entregue em 10 de Julho. E agora, a 6 de Setembro e conforme na véspera Campbell anunciara a Salazar, o Foreign Office entrega a Monteiro a resposta britânica. Esta aplaude a decisão portuguesa de transferir para os Açores, nas condições previstas, a sede do governo; e para definição dessas condições o gabinete inglês deseja prosseguir a troca de pontos de vista. Mas então, e pela primeira vez por escrito, Londres afirma claramente uma posição contrária à de Lisboa: o gabinete inglês, com efeito, exprime as mais graves dúvidas quanto a retardar a deslocação para os Açores até que o continente seja atacado pela Alemanha, com ou sem a colaboração de outra potência; e sente ser-lhe impossível concordar na viabilidade de Portugal se manter neutro no caso de entrar na guerra a Espanha, ainda que esta não ataque Portugal desde logo. Em qualquer caso, e nesta última hipótese, o governo de Sua Majestade declara que a manutenção da neutralidade portuguesa em tais circunstâncias seria desvantajosa para a Inglaterra e contrária aos interesses da aliança anglo-portuguesa. E Monteiro, depois de remeter para Lisboa este memorial britânico, expõe a Salazar o seu ponto de vista pessoal. Partilha da tese britânica: a entrada da Espanha na guerra, só ou com a Alemanha, deve corresponder ao abandono imediato da neutralidade portuguesa. Porquê? Se a Espanha ataca Gibraltar em nome da unidade, não se satisfará sem Portugal. «O pretexto político está criado desde há muito e inscrito nas bandeiras da Falange: a unificação da Península». E «a reintegração da Península na sua unidade coonestará a beligerância espanhola e fornecerá ao público explicação suficiente desta». Por isso, «confesso a V. Exª que não consigo separar, nas condições presentes, um ataque a Gibraltar de um ataque a Portugal». Monteiro continua: «no estado actual das coisas não acho razoável supor - e por isso tenho de o dizer a V. Exª - que os ingleses cruzem os braços diante de uma recusa nossa, afastando resignadamente a sua poderosa esquadra para o meio da costa de África». Assim, «se nessa altura não nos tivermos decidido por posição que convenha à defesa dos nossos interesses, ficaremos à mercê do primeiro acaso. Se a Inglaterra se apresentar para ocupar uma base nos Açores, resistir-lhe-emos - diz V. Exª no final do seu ofício, com evidente razão de princípio - e automaticamente tombaremos para o lado da Alemanha; se esta der uns tiros na fronteira, cairemos para o lado da Inglaterra. Pode V. Exª ligar o seu grande nome a esta política?». Ora, «nós dependemos do mar e de quem domina o mar». «Tudo isto», diz Monteiro, «é horrível; mas é dentro do horrível que V. Ex.ª tem de agir». E termina: «V. Ex.ª perdoará a vivacidade de certas passagens, levando-a à conta apenas do meu muito desejo de lhe ser útil neste ponto e de, tanto quanto em minhas forças cabe, o ajudar a abrir caminho para o País nas graves circunstâncias que atravessamos». Deste modo, estão agora nitidamente vincadas as duas posições: Monteiro, em absoluto confiado na vitória da Inglaterra, julga que apenas ao lado desta poderá Portugal garantir o seu futuro, e para tanto deseja que o país abandone a sua neutralidade, ainda que não haja ataque directo a Portugal, e que este entre na guerra; Salazar, para além de dúvidas quanto a um triunfo inglês absoluto, quer manter a neutralidade portuguesa, e para o efeito agarra-se a critérios jurídicos (cumprimento do tratado luso-espanhol por parte de Madrid), ou morais (respeito pela soberania das nações), ou políticos (influência que exerce sobre Franco para travar este de uma precipitação), e confia além disso na sua destreza pessoal.
14 de Abril de 1941: Oliveira Salazar envia um batalhão para os Açores. |
Quando são recebidos em Lisboa os despachos de Monteiro e Tovar, o chefe do governo está no Vimieiro, na primeira quinzena de Setembro, e aqueles são-lhe remetidos para a aldeia (ibidem, pp. 334-345).
Notas:
(6) Por muito conhecidos, não se reproduzem aqui os oito pontos. Sendo um resumo dos quatorze pontos de Wilson, da guerra de 1914-18, consagravam a livre vontade dos povos, a livre escolha de governo por cada um, igualdade no comércio mundial e no acesso às matérias-primas, colaboração económica internacional, segurança colectiva, liberdade dos mares, desarmamento, não engrandecimento territorial.
(7) No seu relato para Londres, Campbell também não refere a frase que utilizou.
(8) Ochôa morrera em virtude de ataque cardíaco. A escolha de Caeiro, alta figura da vida portuguesa, obedeceu da parte de Salazar ao desejo de prestigiar a França, e o marechal Pétain, indicando à Alemanha que continuava a considerar aquela uma potência.
Continua
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