domingo, 2 de julho de 2023

São Bernardo, guia espiritual

Escrito por António Quadros




Cerco de Lisboa, de Roque Gameiro.



Levante

«(...) A ocupação do Mediterrâneo pelos Sarracenos no século VII significa para os Europeus a impossibilidade do grande comércio e a supressão do tráfico entre o Ocidente e o Levante. Por isso mesmo, a Europa, durante os séculos VIII e IX, só conheceu um regime de economia agrícola e de consumo doméstico ou local, sendo a terra o fundamento único de toda a estrutura da sociedade. No século X, porém, começa a renascer o grande comércio, favorecido pela prosperidade do regime agrícola, por uma forte natalidade, e por uma consequência desta última, a saber: a existência de numerosas pessoas que não conseguiam a fixação no solo, nem meio de vida na sociedade agrícola.

Tal renascimento do comércio realizou-se a partir de dois grandes focos: a Itália (que continuava as suas relações com Bizâncio) e a Flandres; aí se criaram e desenvolveram as cidades da burguesia. Junto às antigas povoações (militares ou eclesiásticas) ergue-se e desenvolve-se o forburgo, – foris burgus, suburbium, novus burgus, portus: e de um portus, precisamente, se derivou o nome de Portugal. O portus comerciante, em pouco tempo, começa a suplantar o velho burgo feudal, e o renascimento do municipalismo, desta forma, aparece-nos como consequência do renascimento comercial-marítimo. Ora, estava a nossa costa a meio caminho, por mar, entre a Flandres e a Itália, os dois focos do desenvolvimento burguês; a linha de navegação do Atlântico vinha ligar-se nos nossos portos à linha de navegação do Mediterrâneo. Ao que nos parece, é a este fenómeno geral europeu que se deve a independência do nosso país, com o auxílio das gentes do Norte que iam chegando por via marítima, em pequenas frotas de comércio ou nas grandes armadas dos cruzados – que as Cruzadas, aliás, eram também uma consequência do fenómeno económico a que nos referimos. Constitui-se nas nossas costas uma burguesia cosmopolita. Derramam-se os mercadores portugueses pelas cidades comerciais da França, da Flandres, da Inglaterra; e, por outro lado, estabelecem-se nos nossos portos colónias de comerciantes estrangeiros, que adquirem importância fundamental.

É a expansão desse mesmo comércio que, mais tarde, levará Portugal até o Oriente: e, desta forma, o desenvolvimento da burguesia nas cidades italianas e flamengas, o renascimento do municipalismo, a conquista de Lisboa pelos cruzados (1147), o estabelecimento do Castelo da Mina (1482) e a tomada de Malaca por Albuquerque (1511), são como que fases de um movimento único, pontos diferentes de uma só trajectória.»

António Sérgio («Breve Interpretação da História de Portugal»).

 

«Na gradual desvalorização das figuras nacionais, que realizou nos sucessivos volumes dos seus Ensaios, segundo um critério anti-romântico de desmistificação integral, António Sérgio foi desenhando uma interpretação economista da História de Portugal, alicerçada aliás em documentação fidedigna, mas, incorrendo no anacronismo de atribuir pragmática inteligência a um povo que se movia por fanatismo obstinado, transmitiu aos seus leitores o consentimento para o materialismo histórico. Apoiando-se na doutrinação de António Sérgio, alguns escritores consideravam como obstáculos ao progresso cultural, político e social muito de quanto a tradição histórica e a diferenciação regionalista continuavam a manter entre nós, e de aí concluírem ser indispensável, antes de mais, destruir quanto nos torna diferentes dos outros povos peninsulares, europeus e americanos. A unificação internacional dos meios de cultura facilitaria essa demolição, depois da qual se pensaria então em construir a sério a nova sociedade ou o novo mundo, adiamento cómodo que dispensa de pensar o que conviria para já fazer.

Assistiu António Sérgio ao sucessivo aparecimento de vários escritores marxistas que se dedicaram à chamada tarefa de revisão histórica e à divulgação dos respectivos resultados em termos de ensino liceal. O novo escol doutrinado a contradizer o velho critério do ensaísta, libertar-se-ia de preconceitos nacionalistas, mas seria, afinal, por sua vez guiado por mentores ou monitores ultrapireneicos, tanto aqueles que de longe nos enviam os livros e os ofícios, como aqueles que chegam até nós para exibirem a sua luzida e polida mediocridade. A pedagogia de António Sérgio, pela reforma de mentalidade, não lograva libertar os Portugueses de outra modalidade de demagogia.

Deve-se, portanto, a António Sérgio a tendência para depreciar os valores nacionais, não só os históricos mas também os presentes, analisados à luz de uma crítica fria. Este juízo sobre a existência ou a situação, facilitou aos discípulos a formação de tropos severos e adversos à Pátria. Assim qualquer plumitivo pôde passar a dizer que os Portugueses eram incapazes de se governar bem, de promover as técnicas industriais e as técnicas educativas, de formar uma cultura própria, incapazes, como eram, de cultivar certos géneros literários, como o romance, o teatro e o ensaio, enfim, adversários ou inimigos do Espírito.

Pensador profundamente sério, culto e ágil, António Sérgio realizou uma útil crítica filosófica às doutrinas que a moda trouxera do estrangeiro ao nosso país, e fundamentou-se na dialéctica dos princípios firmes, fortes e tradicionais. No nosso ambiente literário, artístico e político, António Sérgio é ainda hoje invocado e citado pelas felizes observações de crítico, expositor, divulgador, e letrados há que o julgam o primeiro nosso pensador original. Neste aspecto, a valorização de António Sérgio como único mestre de filosofia transgride os limites do razoável, porque além do mais significa ignorância da História de Portugal.

Temos de enfrentar sem receio a verdade de que, no século XX, Portugal assistiu ao aparecimento de filósofos vários que pretenderam renovar todos os ramos da cultura. Jornalistas, historiadores, literatos, políticos e eclesiásticos uniram-se como adversários de quantos pensadores ilustres ousaram abrir caminhos novos ao advento do Espírito, e a derrota oficial da filosofia portuguesa caracteriza o drama intelectual da nossa centúria. A posição de António Sérgio ficará, na determinação deste movimento, a ser um marco talvez tão notável como a profecia de Fernando Pessoa, o qual, ao anunciar o advento do Super-Camões, não fazia mais do que exaltar a sua original interpretação do transcendentalismo panteísta.»

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).


«(...) Os cristãos refugiados nas Astúrias elegeram rei o nobre Pelágio (m. 737) e principiaram a reconquista. Fernando Magno, falecido em 1065, dividiu os territórios pelos seus filhos, um dos quais, Afonso (“o Grande”, VI do nome) se viu, pela morte dos irmãos, senhor de todas essas terras, alargando-as, ainda, por vitórias sobre os Islamitas. Em 1085 tomou Toledo, que substituiu a cidade de Leão como capital dos seus domínios.

Estava-se numa época de ofensiva geral da Cristandade aos territórios ocupados pelos infiéis; e esse movimento, que tem o nome de “Cruzadas”, favoreceu a não incorporação de Portugal no todo político a que presidiu Castela.

Participaram dele, no último quartel do século XI, Raimundo, filho de Guilherme, conde de Borgonha, e seu primo Henrique, que vieram às Espanhas combater os Mouros. Casaram os dois nobres franceses com duas filhas de Afonso VI, Urraca e Teresa; Raimundo teve o governo de toda a faixa ocidental até o Tejo portucalense, que ia das imediações do Vouga às do rio Minho, e cujo nome deriva da sua principal povoação, Portucale, junto ao Douro. Pouco depois governava Henrique, independente da autoridade de Raimundo, toda a região ao sul do Minho. Faleceu em 1114, sendo já mortos Raimundo e Afonso VI. Deixava um filho, criança ainda, Afonso Henriques.

Os amores da viúva de D. Henrique, D. Teresa, com o conde galego Fernão Peres de Trava provocaram a atitude de revolta nos fidalgos portugueses a que Afonso Henriques se juntou. Do recontro de Guimarães (1128) resultou a vitória do filho e a prisão da mãe. A maior importância deste facto reside na ruptura da ligação entre as duas metades da Galiza, com o triunfo da portucalense sobre a leonesa.»

António Sérgio («Breve Interpretação da História de Portugal»).


«Vai-se perdendo o predomínio céltico na etimologia sagrada da Lusitânia, quando a religião romana substitui a dos Deuses gaélicos e dos druidas pela de uma divindade ou semidivindade romana: o topónimo Lusitânia aparece agora filiado em Lusus, filho de Baco (o Dionisos dos Romanos) e portador do seu tirso.

Esta conotação surge já num mito narrado por Marcos Varrão (116-27 a.C.), é retomada por Plínio o Velho (23/24-79 d.C.) e reflete-se nos autores portugueses humanistas, tendo grande relevo em Camões e depois em Frei Bernardo de Brito.

Esta nova genealogia mítica atribui uma “aura” numinosa ao território lusitano pela ligação ao panteão greco-romano e em especial ao ancestral dionisíaco ou báquico, que todavia não era um culto tão popular como fora o de Lug entre os Celtas, mas antes se relacionava com uma iniciação, para poucos, nos mistérios do Deus do vinho, da fertilidade, da poesia, da tragédia, que tinha pois algumas parecenças com Lug, o Deus de todas as artes.



Segundo Camões, Luso teria ficado sepultado em terra portuguesa, fecundando-a com as suas virtudes heróicas e divinas.

Quando o poeta, n’Os Lusíadas, quer mostrar como os Portugueses são o povo digno de assumir a sucessão dos quatro impérios citados na profecia de Daniel, que é seu o direito ao Quinto Império, chama-lhes forte gente de Luso, e recorda que foi o principal bastião peninsular e o de mais longa resistência à invasão dos latinos, outro sinal de uma dispensação sobre-humana.

Terá sido também com os Romanos que surgiu a derivação de País de Lug para Lux-Citânia, paralelamente à filiação em Luso, filho de Baco, mais erudita, porque se o culto de Lug estava ligado ao Sol e à claridade, Lux era a natural tradução latina: Lux-Citânia, Lusitânia, o país da Luz, o que condizia também com esta terra luminosa e quente do sudoeste europeu, onde se vê o disco solar mergulhar no oceano, para reaparecer na madrugada seguinte vindo do Oriente, e onde já milénios antes se cultuara o Sol nos círculos (às vezes nas ovais ou nos quadrados) de grandes pedras que formavam os cromeleques.

A Lusitânia romana parece não ter correspondido ao território onde viviam as tribos lusitanas, tendo a sua capital em Mérida, mas não há dúvida de que o seu habitat natural terá sido entre o Tejo e o extremo norte da Galiza (segundo Estrabão, por exemplo), abarcando pois duas regiões: entre o Tejo e o Douro, e entre este e o mar Cantábrico, incluindo pois a Galiza.

Já quanto ao Condado Portugalense e depois ao reino de Portugal, é significativo que o topónimo mantenha idêntica conotação solar; por outras palavras, topos ou lugar é o mesmo, o nomos ou o nome não difere, antes converge. De um para o outro topónimo, o mesmo espírito, o espírito do lugar sagrado, pervive e persiste.

Segundo a genealogia corrente, observa-se, Portugal seria um topónimo formado pela evolução semântica do nome de um povoado da Foz do Douro, Portus Cale, Porto de Cale, que viria a ser o Porto.

Uma outra povoação próxima chamava-se também Cale, não teve tanto desenvolvimento e por volta do século X era chamada Galia, vindo a dar por evolução fonética Gaia, a Vila Nova de Gaia dos nossos dias. Não devemos admirar-nos deste cruzamento de dois nomes para um mesmo país, pois todos eles se relacionam com o povo dos Celtas ou dos Gaëls, que se expandiram impetuosamente por toda a Europa do Sul e do Noroeste, constituindo a grande família dos Gauleses (ocupando aproximadamente o espaço hoje francês), dos Galeses (País de Gales), dos Irlandeses (que falavam gaélico), dos Galegos (Galiza) e dos Portugaleses ou Lusitanos.

Porto de Cale é o mesmo que Porto de Gale ou Porto dos Galeses (de predominância céltica, embora tenha havido miscigenação e aculturação com povos muito mais arcaicos, nomeadamente os descendentes da nossa civilização megalítica (ou atlante).

Efectivamente é Porto de Galo e não Porto de Cale que é citado na Crónica do Mauro Rasis (o historiador Ahmed ben Mohammed Arrazi) no século X, mandada traduzir por D. Dinis, e bem assim, séculos depois, no II Volume da Monarquia Lusitana, de Frei Bernardo de Brito, escrito nos fins do século XVI.»

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério. O Cálice da Última Tule», Terceiro Volume).


Abade de Claraval


«[São Bernardo] gostava de dar à Virgem o título de Nossa Senhora, tendo-se esse uso generalizado desde então, e sem dúvida em grande parte graças à sua influência; é que ele era, como se disse, um verdadeiro "Cavaleiro de Maria" e via-a realmente como a sua “dama” no sentido cavalheiresco desta palavra. Se se aproximar este facto do papel que desempenha o amor na sua doutrina, e que desempenhava também, sob formas mais ou menos simbólicas, nas concepções próprias das Ordens de Cavalaria, compreender-se-á facilmente a razão pela qual nós tivemos o cuidado de mencionar as suas origens familiares. Mesmo depois de se fazer monge continuou a ser cavaleiro, como eram todos os da sua raça; e por isso mesmo se pode dizer que ele estava de certo modo predestinado a desempenhar, como o fez em tantas circunstâncias, o papel de intermediário, de conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o poder político, porque havia na sua pessoa como que uma participação na natureza de um e de outro. Monge e cavaleiro, simultaneamente, estes dois caracteres eram os dos membros da “milícia de Deus” da Ordem do Templo; eram também, e primeiro que tudo, os do autor da sua regra, do grande santo que foi chamado o último dos Padres da Igreja e em quem alguns querem ver, não sem alguma razão, o protótipo de Gallaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da “demanda do Santo Graal”».

René Guénon («São Bernardo», in «O Esoterismo de Dante»).


Antiga Abadia de Claraval reciclada (França).


Planta da antiga Abadia de Claraval




 São Bernardo, guia espiritual


Convergentemente com a teleologia e o providencialismo agostinianos e orosianos, que constituíam então o corpus filosófico-histórico fundamental da Escolástica, o pensamento místico e teleológico de S. Bernardo de Claraval caracteriza o espírito da Idade Média, na transição do século XI para o século XII, nesse período renovador em que se dá a génese da nação portuguesa.

Monge da Ordem de Cister desde 1112, Abade do Convento cisterciense de Claraval desde 1115 (até ao fim da sua vida, em 1153) São Bernardo, nobre da Borgonha, desenvolveu um pensamento providencialista na linha de Paulo Orósio em obras como De consideratione e De gratia et libero arbitrio. Mas sobretudo aplicou este pensamento providencialista à profetizada expansão universal da cruz de Cristo. A seu ver esta expansão não podia ser concebida como uma simples propaganda fide ou propagação da fé pela conquista, pelo domínio e pela autoridade eclesiástica, porque dependia antes de mais nada da conversão da própria Igreja e dos cristãos a um ideal mais puro, mais místico e mais cavalheiresco. Tal o espírito com que, acompanhado de trinta cavaleiros da aristocracia borgonhesa recebeu as ordens em Cister. Pouco depois, nomeado Abade de um dos primeiros mosteiros da Ordem, o de Claraval, nele e nos restantes conventos cistercienses, tais exigências de dedicação, entrega e pureza de ideal conseguiu fazer prevalecer S. Bernardo, que o seu nome e a sua obra inflamaram toda uma época decisiva da história europeia.


Rosácea do Mosteiro de Alcobaça.


Nave Central

Claustro

Antes de morrer, não só tinha conseguido escrever algumas obras-primas da literatura mística e religiosa, tal o seu maravilhoso e bem conhecido sermão sobre o Cântico dos Cânticos, como tinha fundado 70 conventos de Claraval, tinha enfrentado e resolvido cismas da Igreja, tinha refutado vitoriosamente as teses racionalistas e cépticas de Abelardo, tinha orientado espiritualmente dois Papas, Inocêncio II e Eugénio III, que fora seu discípulo em Claraval sob o nome de Bernardo de Pisa, tinha convertido Suger, o famoso abade de St. Denis e doutrinário do gótico sumptuoso «como um escrínio de Cristo» a uma concepção mais ascética e despojada do cristianismo, e tinha concebido uma nova arquitectura gótica oposta à clunisina, o gótico cisterciense, de linhas puras, sem ornamentos e sem exuberantes formas luxuosas, com vitrais brancos, de que Alcobaça permanece o mais paradigmático exemplo europeu.

Então, só então, entende que é lícito à Igreja de Cristo expandir-se em movimento ecuménico para o Oriente e para o Sul, onde dominava o Islão. E se a segunda Cruzada, apoiada num grande exército franco-germânico, que S. Bernardo pregou com eloquência, percorrendo toda a França e toda a Alemanha, redundou num fracasso, que mais tarde no De consideratione, explicou pela actuação dos Cristãos em sua liberdade, pois os erros e os pecados por eles praticados, não prescrevem contra os direitos da justiça divina [1], permanecendo pois intactas as promessas de Deus, já a cruzada para o Sul teve um êxito que excederia as suas expectativas, se tivesse podido imaginar que o ímpeto cruzado e templário de D Afonso Henriques, não só conduziria à reconquista total do território português, como levaria a cruz de Cristo aos confins da África, à Índia, ao Extremo Oriente e às Américas, a todo um mundo que o monge borgonhês estava longe de conhecer no seu tempo.




Formado no espírito da cavalaria, projectando o ideal do amor cortês no culto de Maria, interiorizando os mitos e as lendas do ciclo bretão e arturiano, alma de místico, de asceta e de apóstolo que soube conciliar com a inteligência e a vontade tenaz do estadista, doutor da Igreja, S. Bernardo terá sido aos olhos dos seus contemporâneos, como escreveu René Guénon, o protótipo de Galaaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da demanda do Graal [2].

A S. Bernardo ficou a dever a Ordem dos Templários, a primeira das Ordens cristãs de cavalaria, não só a sua regra, recebida no Concílio de Troyes em 1128, mas sobretudo o seu espírito. A regra do Templo só ficou concluída em 1131, dedicando-se logo depois o Abade de Claraval a escrever o tratado de De laude novae militae, em que expôs, desenvolveu e comentou os princípios por que devia reger-se o que chamava a «milícia» de Deus [3], princípios inspiradores do ideal, da missão e do projecto a que deveria dedicar-se essa nova cavalaria.

Ao escolher S. Bernardo como seu guia nos últimos círculos do Paraíso, Dante teve em mente não só a pureza, o ascetismo e idealismo imaculado do monge cisterciense, como também, sugere Guénon e é óbvio, o seu papel decisivo como doutrinário da acção templária [4].

No itinerário, no epos escatológico da Divina Comédia, Virgílio e Beatriz, a sabedoria antiga e o amor humano, tinham sido os primeiros guias do gibelino Alighieri. Agora, na última parte da epopeia (a partir do canto XXVI), o poeta-teólogo escolhe o monge simultaneamente activo e contemplativo, inspirador e doutrinador de Cister, de Claraval e do Templo, o devoto ardente de Santa Maria, para lhe ensinar os caminhos do Empíreo. É S. Bernardo, o santo e o sábio iluminado que lhe explica a rosa celeste, é a oração por ele dirigida à Virgem que a faz interceder junto de Deus a favor do poeta interrogativo, idealista e transviado, é a sua mão que, com um gesto, lhe purifica a vista, fazendo-o penetrar mais e mais na irradiação da Luz suprema que, pela sua essência, é a verdade [5], até ao momento da iniciação em que, como cantou o florentino nos versos finais do poema, como uma roda que se move num movimento uniforme, o meu desejo e a minha vontade / se regulavam pelo Amor, que move o sol e as outras estrelas [6].

Como escreveu Gilson no seu livro sobre o Abade de Claraval, não se pode compreender o sentido último da Divina Comédia sem ter tomado contacto com a pessoa e a teologia mística de S. Bernardo [7]. E se Beatriz se retira e delega no seu lugar esse homem transfigurado pelo amor à imagem de Cristo, disse, é para dar lugar à caridade cisterciense no seio da qual nasce ou pode nascer a visão de Deus, é para abrir caminho à unidade viva do conhecimento e do amor místicos, em grandiosa empresa que S. Bernardo representa, no duplo plano da acção no mundo e no tempo (Ordem Templária ao serviço da Monarquia Universal) e da missão espiritual e religiosa (Ordem de Cister ao serviço de uma Igreja purificada e ascética).

(In António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, I, Guimarães Editores, 1988, pp. 164-167).





[1] Cit. Por René Guénon in Saint Bernard, Éditions Traditionelles, Paris, p. 17. Nesta apreciação da obra de S. Bernardo seguimos também os livros La Théologie mystique de Saint Bernard, de Gilson, Liv. J. Vrin, Paris, 1949, La plus grande aventure du monde-Citeaux, de François Cali, Ed. Arthaud, Paris, 1956, Nouveau visage de Bernard de Clairvaux, de Jean Leclerq, Ed. Cerf, Paris, 1976, bem assim como a excelente rubrica sobre o Santo na Enciclopédia Luso-Brasileira, Verbo, vol. 3, col. 1167 a 1171, assinada por J. Mattoso.

[2] Ibid., p. 20.

[3] Ibid., p. 15.

[4] René Guénon, obr. cit., pp. 15 e 16.

[5] Dante Alighieri, La Divine Comédie, obr. cit., Canto XXXIII, 52.

[6] Ibid., Canto XXXIII, 142-145.

[7] Étienne Gilson, La théologie mystique de Saint Bernard, Liv. J. Vrin, Paris, 1949, p. XXV.





Mosteiro de Claraval





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