quarta-feira, 19 de julho de 2023

Os "fumos da Índia"

Escrito por António Sérgio




«Durante o governo de D. Manuel I foram construídas 16 fortalezas no Índico, desde a primeira em Cochim em 1503, até às últimas de Ternate e Pacém, ordenadas ainda pelo Venturoso, mas cujos trabalhos decorreram já reinando o seu sucessor. É evidente que houve diversas fases neste processo, umas de maior actividade construtiva, outras de claro abrandamento, relacionadas, para além das etapas da política régia, com a personalidade e projectos políticos dos homens que estavam à frente da empresa expansionista portuguesa nesta região, governadores e vice-reis.

Pode dizer-se que os sete anos iniciais da presença portuguesa nestas paragens foram uma fase de experimentação, aliás na sequência de uma descoberta geográfica de relevo mundial. O Índico, os seus povos, culturas, organização política, mecanismos económicos, estrutura social ou geografia religiosa eram amplamente desconhecidos na Europa antes da viagem pioneira de Vasco da Gama, em 1498. As poucas notícias destas partes chegavam ao Velho Continente por intermédio dos muçulmanos, que também asseguravam uma luxuosa e seleccionada circulação de produtos entre os dois continentes, sendo a cidade de Veneza a sua porta de entrada na Europa. A circulação por estas rotas do Levante era demorada e dispendiosa, fazendo-se com recurso a diversos agentes, cada um com sua especialização geográfica. Assim, as primeiras armadas portuguesas que demandaram a Ásia desconheciam profundamente a realidade dos seus destinos, havendo por isso um período de largo reconhecimento.

Estes tempos foram também dedicados a encontrar meios para cumprir os desígnios régios para aquela parte do globo. Lembre-se que D. Manuel I tinha claramente dois grandes objectivos ao persistir no patrocínio a esta aventura, bem sintetizados na frase do degredado português desembarcado em Calecut, aquando da viagem do Gama: “vimos buscar cristãos e especiarias”. Por um lado, desejava substituir os maometanos como intermediários das relações comerciais entre a Ásia e a Europa, engendrando para isso uma nova rota contornando o continente africano a Sul. Para levar a bom porto estes dois desígnios havia, pois, que descobrir os parceiros, forjar as alianças, identificar e combater os inimigos, gizar os meios de financiamento e os caminhos a percorrer. Foi um pouco tudo isto que se fez entre a partida de Vasco da Gama de Lisboa em 1497 e o envio da esquadra de D. Francisco de Almeida, em 1505».

André Teixeira («Fortalezas do Estado Português da Índia, Arquitectura Militar na Construção do Império de D. Manuel I»).

 


«O comércio dos produtos orientais realizava-se com três orgãos, a saber: as feitorias do Oriente, centros da compra das mercadorias; a Casa da Índia em Lisboa, centro de recepção; a feitoria da Flandres, centro de distribuição a compradores do Norte da Europa e das relações financeiras com os devedores e credores externos.

Saía de Lisboa cada ano pelo menos uma frota, que largava pelo mês de Março, a fim de aproveitar no Atlântico os ventos gerais, e monções no oceano Índico. Todas as pessoas que iam na armada, desde o capitão-mor ao grumete, tinham participação no negócio, cabendo a cada uma o direito de comprar uma porção certa de pimenta, determinada pela sua categoria, a qual fazia parte do seu soldo. Depositavam na feitoria do Oriente o dinheiro necessário para fazer a compra, e quem o não tinha vendia o direito a outrem. Esses quinhões dos tripulantes chamavam-se "quintaladas".

As feitorias eram, no Oriente, o escritório e o armazém dos agentes comerciais da Casa da Índia, a que se chamava "feitores". Só estes compravam a fazenda, com dinheiro que vinha de Portugal. Nas armadas, a princípio, iam navios de comerciantes particulares associados à Coroa, os quais contribuíam com importantes capitais. Comprada a pimenta, ela embarcava em fardos, uns da carga geral, do peso de quatro quintais, outros das "quintaladas" da tripulação.

Chegados os navios a Lisboa, tudo tinha de descarregar na Casa da Índia, cujo vedor negociava a especiaria por todos os participantes no negócio: Estado, mercadores e donos das quintaladas. Assim se impedia que pela competência na oferta baixassem os preços. Por via de regra, a Coroa pagava aos importadores toda a mercadoria que era deles, pelo preço que ela fixava, e dispunha da totalidade, como e quando lhe convinha. Da Casa da Índia passavam as especiarias aos navios (a princípio portugueses, logo depois flamengos e holandeses) que as levavam à feitoria da Flandres, em Antuérpia, onde eram entregues às grandes firmas compradoras, alemãs e italianas: Függers, Höschstetter, Welser, Affaitati, Gualterotti, Frescobaldi, e outras. A pimenta, assim como constituía monopólio do rei dentro dos domínios portugueses, era monopólio das grandes firmas compradoras fora deles, porque a Coroa se obrigava a não vender a outrem durante certo prazo. Causava esse monopólio indignação na Europa, a qual transparece num passo da epístola a D. João III que Erasmo escreveu para preceder as suas Chrysostomi Lucubrationis (1527). Aí se lamenta de que, em virtude do monopólio das grandes firmas compradoras, não tivessem baixado os preços (apesar da maior vantagem actual na importação) senão que, pelo contrário, haviam aumentado.




Até meio do século XVII passou o tráfico por quatro sistemas sucessivos: 1.º o monopólio exercido directamente pelo Estado; 2.º a liberdade de comércio para os particulares nacionais; 3.º os contratos de arrendamento; 4.º as Companhias. Foram os apuros financeiros do Estado que levaram a tentar estas mudanças. Verificou-se que a Coroa fazia excessivas despesas com os armamentos próprios, e que, apesar das penas severíssimas, não era acatado o monopólio: de aí a extinção deste, e o desaparecimento, no Oriente, da personagem do feitor. Segundo o Regimento do Trato da Pimenta, Drogas e Mercadorias da Índia (1577), o trato da pimenta, até então defeso sob pena de morte, passou a ser feito livremente nos portos de Cananor, Chale, Cochim e Coulão, todos na costa do Malabar. Ao vir para aí do Extremo Oriente, a especiaria deixava de pagar direitos (quer à entrada, quer à saída) na cidade de Malaca, que se tornava assim um porto franco; e a que daí se trouxesse para o reino ficava isenta outrossim nos portos do Malabar. Se se destinasse a outras partes, porém, pagaria 6 por cento de direitos de exportação. Todos os carregamentos deveriam vir à Casa da Índia, não podendo ser levados a outros pontos, nem revendidos, ainda que os segundos compradores os destinassem a Lisboa.

A liberdade de comércio, agora estabelecida, dispensava a Coroa de adiantar dinheiro para a compra da pimenta: era uma vantagem, que as dificuldades do Tesouro obrigaram a buscar. Mas tais dificuldades persistiam, e impeliram os governantes a um novo ensaio, isto é, a inaugurar o sistema dos arrendamentos. Por este último processo, não só ficava a Coroa dispensada de enviar numerário para efectuar a compra da especiaria, senão que até obtinha, por antecipação do produto da viagem, adiantamentos de dinheiro do arrematante. Este preparava por sua conta as armadas, correndo sob sua responsabilidade todos os riscos da travessia, e tinha, em contrapartida, o monopólio da importação em Portugal. Não havendo este sistema dado feliz êxito aos arrematantes, tentou-se um outro método: a Coroa entregava padrões de juro, a 6 ¼ por cento, no valor de 200 000 cruzados, ao contratador, o qual os colocava na praça como obrigações do Estado, com a garantia da pimenta; no fim do negócio, apuradas as contas, o arrematante resgatava os títulos em importância igual ao saldo que se verificava a favor do Estado. Este método da arrematação, uma vez que fosse aplicado, não a um indivíduo, mas sim a uma sociedade, encaminhava para o regime das Companhias. Em 1624 tentou-se a formação de uma Companhia privilegiada, que teve vida curta e infeliz. A ideia frutificou depois, nas Companhias do Brasil.

Ribeira das Naus

A Casa da Índia (junto aos paços reais da Ribeira e para oeste deles) era ao mesmo tempo o que hoje chamaríamos uma alfândega, uma capitania do porto e um ministério das colónias. Adjacentes a ela estavam a Ribeira das Naus (onde se construíam os navios) e os armazéns (dos materiais para a construção naval, dos mantimentos). Compreendia a Casa da Índia quatro grandes repartições, ou “mesas”: a mesa das drogas, onde se despachava a especiaria; a mesa grande, onde se despachavam a pedraria e os tecidos; a das armadas, que tinha a seu cargo o assento das tripulações dos navios e demais gente que seguia para a Índia; e a mesa do tesoureiro, onde eram pagos os direitos. O movimento da Casa da Índia foi tão grande, que diz o cronista Damião de Góis que aconteceu irem lá pessoas para pagarem os direitos e ser forçoso voltarem no dia seguinte, por não ter havido tempo para contar o dinheiro. A Coroa cobrava de direitos na Casa da Índia a metade da carga dos negociantes seus associados e das quintaladas, assim como metade, também, do valor das mercadorias que os comerciantes expediam para o Oriente. Depois reduziu-se o imposto a um quarto, mais 5 por cento para as obras do Mosteiro de Belém. O Regimento de 1577 estabelece esta pauta de importação, a cobrar na Casa da Índia: pimenta, 18 cruzados por quintal; cravo, canela, noz-moscada, anil, 30 cruzados; gengibre, 5 mil réis, outras matérias, 10 por cento ad valorem. Havia adicionais para o frete e para obras pias, e ainda 100 réis por quintal de pimenta para o vice-rei da Índia. (Para fazer ideia aproximada das quantias, calcule-se pela equivalência de 0,485 da libra esterlina por cruzado.)

Pelo que respeita à navegação no Oriente, tratou-se de a arrancar das mãos dos Árabes, que a tinham quase monopolizada aquando da chegada dos Portugueses. Empregou-se para isso o sistema dos cartazes, que eram “passaportes do mar”, os quais os vice-reis, bem como os capitães de fortalezas, podiam conceder a armadores indígenas, quando lhes merecessem confiança. Os navios indígenas, quando munidos desses cartazes, que eram pagos, ficavam livres de ser apresados pelas armadas de guarda-costa.»

António Sérgio («Breve Interpretação da História de Portugal»).


«Os fumos da Índia (como Albuquerque dizia) embriagavam os pobres portugueses, limitados na Europa à porção côngrua do bragal e do aço, sujeitos a uma forçada sobriedade e a costumes mais presos. Na Índia o fumo desenfreava o animal, que se retouçava delirante nas sedas e nos perfumes, nas frutas e nas mulheres, coberto de diamantes, abarrotado de pardaus de oiro. Breve, porém, esse fumo se dispersou no ar; e a desolação universal trouxe a miséria, o luxo trouxe a fraqueza; e à violência de bárbaros, os portugueses juntaram a mesquinhez de chatins.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).


«Amando o português a pompa (morra homem fique fama), facto bem patente em manifestações suntuárias, quantas vezes extravagantes, nele impressionam, em contrapartida, a tendência oposta para o que é pequeno, uma simplicidade natural, como ainda a mesquinhez da escala posta em muitas obras, mormente nas arquitectónicas. Verifica-se o horror do colossal.

Os “fumos da Índia” por exemplo, traduziram-se em usos bizarros nos quais a ostentação do fausto exótico se alardeava; o mesmo acontece quando da mineração do Brasil; e soberanos como D. Manuel I e D. João V empenharam-se em fazer luzir o oiro dos seus felicíssimos reinados, fora e dentro do País. As suas embaixadas foram espectaculares. Salvas as devidas distâncias, a nossa tendência exprimiu-se nos chamados “brasileiros” tão ridicularizados por Camilo, com seus coletes de cores de arara, abotoados a brilhantes.

(...) Ora o maior inclui o menor. E o difícil possibilita o fácil. Há decerto um factor emocional, uma prefiguração fantástica imaginativa como estímulo de que o lusíada carece. Fernando Pessoa foi lúcido ao referir-se a um sentimento de desemprego só porque já não havia Índias a descobrir.

Inércia e horror ao trabalho têm sido assacados ao português, já desde Clenardo em pleno século XVI, na mesma por Beckford e outros estrangeiros. Bem como a preferência por ocupações não produtivas, parasitárias ou quase. António Sérgio insistiu neste ponto com referência a trechos de economistas antigos.

Parece que sim. No tocante à economia seduzem o português as empresas megalómanas, negócios que ofereçam rápido ensejo de enriquecer. Em vez de cultivar ou produzir aquilo de que precisa, o quotidiano e vital, optava pela procura do ouro, pelo que logo se cifra em numerário, embora tudo gastasse depois na compra de artigos úteis cuja produção menosprezava. Este reparo foi-nos formulado pelos estranhos através dos tempos.

O êxodo que despovoou a comarca de Entre-Tejo-e-Odiana durante os Descobrimentos (de 316.728 habitantes em 1422, a 138.456 em 1535) explica-se não pela penúria, mas pelo espírito aventureiro de ir buscar longe fabulosas riquezas que na sua terra se não granjeariam de súpeto.

Por outro lado, também o português pode apresentar sobejas provas de laborioso, haja em vista o emigrante, pela maneira como se atira ao trabalho e consegue suportar privações no intuito de poupar.

No Entre-Douro-e-Minho os aforamentos singulares e, mais tarde, a introdução da cultura do milho levaram a fixar densíssima população (em 1422: 89.024 habitantes; em 1535: 147.830). Esta acabou por atingir tal excesso que o seu escoamento pela emigração se tornou necessário e normal.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).



Os "fumos da Índia"


Segundo o cômputo de Albuquerque, era para a Coroa de um milhão de cruzados o produto da especiaria em cada ano [, livre do custo e de todas as outras despesas, incluindo nestas as perdas marítimas]. Mas todo esse dinheiro, e mais, gastava o rei D. Manuel com o seu fausto particular e com o que dava loucamente a uma multidão de parasitas, que acorriam à capital de todos os pontos do seu reino. «Cedo não há-de haver vilãos!», exclamava o poeta Gil Vicente: «todos del-rei, todos del-rei!». A corte, escreve Garcia de Resende, passou a ter

 

Cinco mil moradores

Em que entram muitos senhores

A que el-rei dá assentamentos,

Moradias, casamentos,

Tenças, mercês e honores...

 

Apesar, pois, de toda a riqueza da pimenta, «lume dos olhos de Portugal» (Gaspar Correia), a administração financeira era sempre deficitária. [Todos, em Portugal, procuravam viver do comércio da Índia, directa ou reflexamente, por intermédio do monarca.] O dinheiro era dado à aristocracia, e passava desta aos estrangeiros, a quem se compravam todas as coisas. O Transporte, pois, destruía a indústria do País, em vez de ser, como conviria, o servidor e fomentador da sua indústria, pela fixação da riqueza no trabalho nacional. Os Portugueses traziam à Casa da Índia os produtos orientais, e os navios estrangeiros vinham buscá-los a Lisboa. Mais tarde, os Holandeses não procederam da mesma forma, ao despojá-los do monopólio: distribuíam eles mesmos aos mercados consumidores, fomentando assim a sua própria marinha, e não a alheia. Os Portugueses, pelo contrário, tomavam para si a parte difícil, arriscada e dispendiosíssima, do trabalho do Transporte, deixando aos outros o melhor proveito. Além disso, levavam à Índia, para os venderem, os produtos fabris do estrangeiro [, e não produtos seus, pois que os não tinham para tal fim.

 

Vestido o Gama vai ao modo hispano

Mas francesa era a roupa que vestia

De cetim da dalmática Veneza... 

(Camões, Lusíadas, II, 97.)]


Desta maneira, todo o lucro do seu trabalho ia para a finança, o comércio, a agricultura, as indústrias dos demais povos europeus. Na Índia acumulava-se incessantemente o metal amoedado, que os Ingleses mais tarde conquistariam. Para cobrir os deficits constantes, pedia-se dinheiro no mercado de Flandres, e os empréstimos sucediam-se de ano a ano, reformando-se as letras e acumulando-se os juros.

Albuquerque, que veio a governar no Oriente depois do vice-reinado de D. Francisco de Almeida, não era homem para não tentar uma solução da dificuldade. A que imaginou e pôs em prática, graças a um génio excepcional de guerreiro e de político, foi a de criar fontes de receita pela conquista de territórios, pelos tributos impostos a soberanos avassalados. O plano proposto por D. Francisco seria acaso o mais sensato, se fosse sensata a administração da Coroa, e se tivesse base e estabilidade a vida económica do País, desenraizada da terra cada vez mais, cada vez mais anémica na produção, desde que se iniciara o comércio da Mina. Porém, sendo as coisas assim como eram, os lucros provenientes da pimenta não logravam cobrir as grandes despesas, os desperdícios próprios de tal sistema. Poderiam cobri-los os impostos de guerra, os tributos dos chefes avassalados à Coroa?... O certo é que, com a ideia das páreas arraigada no cérebro, o homem «terribil» criou um império, e viu na realidade o que tinha em sonho.




Quando, em 1506, partiu de Lisboa, ia como subalterno de Tristão da Cunha. Como já dissemos, chamavam-se «naus de Meca» os navios que traziam para o mar Roxo os carregamentos de pimenta destinados aos Europeus, que os compravam no Cairo e em Alexandria. Para que, na Europa, fosse o rei de Portugal o único fornecedor das especiarias, cumpria dar caça às ditas naus e esta era, por isso, uma faina constante dos Portugueses, tanto mais que da presa que se fazia participavam as tripulações. Pareceu ser útil para tal caça a posse da ilha de Socotorá, situada à entrada do mar Roxo. Tristão da Cunha dirigiu-se ali, onde chegou no mês de Abril (1507).

Tomada a ilha, construída e guarnecida uma fortaleza, deixou aí Afonso de Albuquerque para que perseguisse as «naus de Meca», e velejou para a Índia em 10 de Agosto, a fim de carregar as especiarias. Albuquerque, desejoso de realizar a sua ideia, fez-se de vela dez dias depois, navegando em direcção do golfo Pérsico. Só tinha seis naus e quinhentos homens. Dirigiu-se a Ormuz, que era um empório de primacial importância, decidido a sujeitá-la e a exigir-lhe um tributo.

[Fernão Lopes de Castanheda, no capítulo LVIII do segundo livro da sua História do Descobrimento e da Conquista da Índia pelos Portugueses, descreve a cidade – a sua beleza, a sua grandeza, a sua importância comercial, que explica os intuitos do conquistador: «Da Índia lhe vem toda a especiaria, droga e pedraria, e muita roupa de algodão, taficiras e alaquecas; de Malaca, cravo, maça, noz, sândalo, cânfora, porcelanas, benjoim, calaim; de Bengala, sinabasos, beatilhas, chantares, mamonas e rembotins, que são géneros de panos finos de algodão que são entre eles muito estimados; de Alexandria e do Cairo, azougue, vermelhão, açafrão, cobre, águas-rosadas, brocados, veludos, tafetás, grãs, chamalotes, oiro e prata em barras e em moeda, e alcatifas; da China, almíscar, ruibarbo e seda. E, afora estas mercadorias que vêm por mar, lhe vêm por terra da Pérsia e de outras províncias da Ásia outras muitas que não têm conto. E de aqui levam as naus em retorno aljôfar, pérolas, cavalos da Arábia e da Pérsia, seda solta, retrós, tâmaras, passas, sal, enxofre, e outras muitas mercadorias. E, posto que nesta ilha não há nenhuns mantimentos, a cidade é mais abastada deles que outra alguma que se saiba no mundo.» Era um empório muito rico, cheio de cor e movimento, um centro do luxo e de prazer. «Há nesta cidade muitos desenfadamentos», diz o cronista; «seus moradores... são todos muito dados a deleitações, assim no comer como em outros apetites carnais... naturalmente músicos, assim de falas como de mãos, e trovadores e dados a ler histórias antigas... e elas e eles andam mui bem ataviados»...].

Os Portugueses, avançando, assolavam a costa meridional da Arábia: por isso a cidade se premunira para a luta, e um sem-número de navios se acumulara no porto. As seis naus portuguesas apareceram por fim, [ – negras, artilhadas, rudes –] e lançaram as âncoras entre a floresta dos mastros... [Ao verem-nas, suspendeu-se a vida;] o terror pesou [; o medo sobrepairante oprimia os peitos, em que flutuavam frígidas interrogações]. Albuquerque exigiu do soberano que se declarasse vassalo de Portugal. [No silêncio aterrado,] a resposta tardava... Súbito, estoira um berro, e ribomba a salva dos seus canhões. Encheu-se o porto de um clamor multímodo. [Sem perder um tiro, –] bombardeou, desmantelou, incendiou, desfez, em delírios rábidos. Foi um louco inferno que durou um dia; as águas cobriram-se de um caos boiante. O sultão, aniquilado, consentiu na construção de uma fortaleza, e pagou o tributo de quinze mil xerafins.

Começou-se então a construir o forte. Aos subordinados do conquistador, no entanto, não sorria aquilo. Tinham vindo ao Oriente para se enriquecerem, não para consagrarem todo o seu esforço a conquistarem tributos a Sua Alteza. Cobiçavam o saque da cidade de Ormuz; sonhavam com a caça das «naus de Meca», de cujo produto lhes pertencia um quinhão; reclamaram, protestaram, insubordinaram-se. O soberano da Pérsia decidiu reagir, e mandou um exército para atacar o intruso; os soldados de Albuquerque, nesse transe, recusaram-se a combater. Ele levou-os à luta adiante de si, às ameaças e às cutiladas. Dos seis navios que vieram, três, abandonando-o, velejaram para o Malabar. Viu-se assim obrigado a retirar de Ormuz, e a seguir para a caça das «naus de Meca», em Socotorá, onde um outro navio o abandonou também.

Fortaleza de Santo Ângelo de Cananor.







Em Novembro de 1508, depois de ter voltado outra vez a Ormuz, acha-se em Cananor, onde abriu a carta de Portugal em que o rei lhe confiava o governo da Índia. Podia, enfim, realizar livremente os seus projectos. Antes de tudo, queria uma capital para o seu império. Goa, colocada a meia altura da costa ocidental, com bom porto, com fácil penetração para o interior, reunia as condições para tal fim. Tomou-a de surpresa em Fevereiro de 1510. Quis fazer dela uma cidade portuguesa; exterminou todos os «mouros», deixando só a gente índia, e fomentou o casamento dos seus subordinados com as indianas. Não consentia que os portugueses negociassem. Com esta pragmática (diz Gaspar Correia) os portugueses eram tidos como cavaleiros, e não como mercadores, e por isso respeitadíssimos. Os naturais viveriam livremente na sua religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao soberano de Portugal. Consolidada a posse da capital, Albuquerque voltou-se rapidamente para os dois extremos do sonhado império: Malaca e Ormuz. Embarcou em princípio de 1511, e em Maio tomou Malaca.

Esta cidade era, no Extremo Oriente, aquilo que Ormuz no Extremo Leste. Assim como Ormuz era o centro das relações comerciais da Índia com a Arábia, a Pérsia, a Europa (com esta, por Aden e Suez, e depois Cairo e Alexandria) assim Malaca constituía o centro a que vinham os produtos do mais remoto Oriente (Molucas, China, Japão), para seguirem para a Índia e para Ormuz, donde depois se distribuíam pelos povos do Norte.

Sem perder tempo, Albuquerque avassalou o arquipélago malaio, levantando fortalezas, deixando nelas guarnições: e, assegurando esse apoio oriental do império, voltou a Goa, de caminho para Ormuz e para Aden, para lhe firmar as bases ocidentais. O seu plano era tomar Aden, e, uma vez ali, embarcar quatrocentos cavaleiros para os desembarcar em Liumbo, donde, num galope, iria a Meca, roubaria de lá o tesouro sagrado e o próprio corpo do Profeta, com os quais resgataria o Santo Sepulcro [ – já que o sultão ameaçava o papa de proibir as peregrinações ao Santo Sepulcro se ele não obtivesse dos Portugueses o abandono da acção no Oriente]. Aden permitir-lhe-ia, ao mesmo tempo, aniquilar o poder do opulento Egipto, que era o maior esteio do império turco e donde vinham à Índia as armadas dos «rumes»; bastaria cortar, para isso, «uma serra mui pequena, que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste João, para lançar as torrentes dele por outro cabo que não fosse regar as terras do Cairo». Já pedira ao rei que para essa obra lhe mandasse especialistas da Madeira, habituados a executarem cortes de terra, para as levadas de rega dos canaviais.

Como o ataque a Aden se malogrou, voltou-se para Ormuz, cujo domínio não estava seguro (1514), e, de volta a Goa, morreu na viagem. A corte de Lisboa, que metera em ferros a Duarte Pacheco, mandara-o substituir por outro fidalgo, o qual trazia na sua armada, destinados a postos de confiança, homens que ele, Albuquerque, enviara [presos] para a metrópole, por culpados de malversações. Próximo da agonia, escreveu ao rei: «quando esta escrevo a Vossa Alteza, estou com um soluço que é sinal de morte». Via-se incompatível com a inferioridade alheia, com a estupidez da corte; e a morte, por isso, era já para ele a libertadora: «mal com el-rei por amor dos homens, mal com os homens por amor del-rei»: tempo era já de se acolher a Deus. Expirou (16 de Dezembro, 1515) à vista de Goa, e nesta cidade foi sepultado. Ficou lendário na memória das gentes, e os naturais, mais tarde, vinham-lhe ao sepulcro pedir justiça contra os desmandos dos Portugueses. Criam que, transformado em peixe que percorria os oceanos, viva ainda o «leão do mar».

(In António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 14.ª Edição, 1998, pp. 71-77).





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