domingo, 9 de julho de 2023

Do valor indómito dos Portugueses na Índia

Escrito por António Sérgio


«No comércio europeu a principal faina era a aquisição dos produtos do Oriente, feita por intermédio das repúblicas marítimas italianas (que tomavam nos portos do Levante e do mar Negro as mercadorias que da Índia as caravanas iam trazendo) e também, um pouco, pelas gentes do Norte de África. Desde cedo tiveram os Portugueses neste tráfico um papel muito importante. As primeiras feitorias foram estabelecidas em Bruges em fins do século XII por negociantes portugueses; pela mesma época, encontramo-los a mercadejar em Montpellier e em Marselha, entrepostos do comércio dos produtos orientais, e, a partir do século XIII, também nos portos de Inglaterra e na série de povoações comerciantes dos estuários dos rios Sena, Somme e Gironda. Ao ser obstruído aquele tráfico pelos piratas do Magreb e pela irrupção dos guerreiros turcos nos portos orientais do Mediterrâneo, o alto comércio europeu viu-se a braços com uma crise grave, a que se juntava a escassez de numerário. A essa crise Portugal empreendeu dar uma solução, procurando terras de onde viesse o oiro e o caminho marítimo para o Oriente.»

António Sérgio («Breve Interpretação da História de Portugal»).


«Se tivessem pensado nos “mouros”, não se sentiriam tão contentes. Como Paulo da Gama tivera o cuidado de lembrar ao irmão, a cidade estava cheia de mercadores muçulmanos. Pelas suas conversas com Monçaide, os comandantes haviam já sabido isto, mas, mesmo assim, não é provável que os portugueses soubessem por completo até onde chegava o poder de oposição que teriam de enfrentar. Eles sabiam que havia influência muçulmana ao longo da costa da Índia, mas não haviam ainda descoberto que Calecute era o seu principal centro de irradiação e a sua fortaleza.

Assim fora durante mais de seiscentos anos, desde a época em que um rei hindu de todo o Malabar, convertido pelos mercadores de pimenta da Arábia que lhe frequentavam os portos, abraçou o Islamismo e abandonou o trono para ir em peregrinação a Meca.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama – O Caminho da Índia»).

 

«“Mouros” era o nome que davam os nossos a um acervo de populações – árabes e etíopes, persas, turcomanos, afegãos, – que, descidos do mar Roxo e do golfo Pérsico, dominavam no litoral da Índia e da África oriental, e exerciam o monopólio do comércio marítimo. Estabelecendo-se para o Extremo Oriente, iam até as Molucas, navegando pelas costas do Aracão e do Pegu, da Birmânia e do Sião, da península de Malaca, das ilhas de Samatra, de Java e de Bornéu, e através as pequenas ilhas do arquipélago de Sonda. Os Portugueses eram, para esses “mouros”, pretendentes que os vinham despojar: e despojá-los não só a eles, mas também aos povos que para o norte continuavam o seu comércio: o egípcio e o veneziano. Trataram, por isso, de indispor o soberano de Calicute – o samorim – com Vasco da Gama, e de armar uma cilada para destruir os Portugueses. Convencido ou violentado, mandou ele perseguir os navegantes, que embarcaram e se defenderam (fim de Agosto).»

António Sérgio («Breve Interpretação da História de Portugal»).


«Entre os dois extremos da hierarquia das diferentes denominações encontravam-se por ordem: os ourives, os tecelões, os oleiros, os lavandeiros, os carregadores, os pescadores, os lavradores, e todas as outras ocupações necessárias ao homem, cada uma delas rígida e hermética, circunscrita pelas leis hereditárias. Os majestosos mercadores muçulmanos iam e vinham e mal modificavam a vida de todos eles. Para estes não eram os lucros fantásticos do comércio das especiarias ou da compra e venda em terras distantes. Exerciam a arte de que seus pais e avós haviam vivido; a sua maior riqueza estava nas jóias de suas mulheres; o seu vestuário era elementar e a alimentação principalmente arroz; a palmeira de coco fornecia-os por completo: dava-lhes as nozes para comerem, leite, água e vinho para beberem, vinagre e açúcar, óleo para lâmpadas, combustível para queimar, fibras para fabricar cordas, madeira para construírem as suas casas de um só andar e folhas para cobrir os telhados, pois na terra do Malabar apenas o palácio do soberano, ou os templos e mesquitas podiam ser cobertos de ladrilhos – mesmo os maiores nobres não tinham autorização para infringir esta lei, que os muçulmanos tinham o cuidado de ver em vigor.

Esta era a sociedade a que os portugueses tinham aparecido de repente, nos seus três navios já gastos, vindos de outro mundo, com mensagens de um soberano de quem ninguém ouvira ainda falar, apalpando caminho conforme podiam entre o cerimonial de uma corte desconhecida e com o seu presente sem valor.




Vasco da Gama e o samorim estavam frente a frente, separados por abismo hiante, situado entre civilizações que jamais haviam tido contacto. Nenhum dos dois possuía qualquer coisa que pudesse ajudá-los a compreender-se. Vasco imaginava ter vindo ao encontro de um rei cristão. O samorim não fazia ideia nenhuma do cenário do qual viera aquele estrangeiro, ou do que importava tal visita. Apesar de haver em Calecute alguns que se encontravam muito mais bem informados, esses eram precisamente quem teria o cuidado de não facilitar as relações pronunciando qualquer palavra amiga ou dando qualquer explicação oportuna.

Os mercadores árabes residentes no Malabar ou que o visitavam não ficaram intrigados, mas furiosos com a chegada dos portugueses. Esta não os apanhara por completo de surpresa. As suas armadas iam todos os anos a Quíloa, Mombaça e Moçambique à procura do ouro de Sofala; e, antes de Vasco de Gama chegar à Índia, diversos navios desses já haviam regressado para esperarem os meses da monção, levando a nefasta notícia de que os cristãos dobraram o Cabo – esse extremo desconhecido da África, nunca visitado pela navegação muçulmana. O mesmo poder agressivo que tomara Ceuta, Alcácer, Tânger e Arzila em Marrocos e desviara o ouro do Sudão de Timbuktu para a costa do Atlântico encontrava-se a caminho da Índia para obter especiarias. O comércio da pimenta – monopólio milenário dos Muçulmanos – estava ameaçado! Os negociantes árabes raivavam e rangiam os dentes. Eles sabiam bem que o samorim não ia pôr objecções. Com a competição pelo negócio das especiarias na sua terra, só teria a lucrar. Não tinha nenhum interesse em proteger o dos muçulmanos.

Os seus mais negros receios confirmaram-se quando pareceu que o samorim estava disposto a receber bem os estrangeiros. Era necessário fazer alguma coisa para os desacreditar imediatamente, ou dentro em pouco tempo esta raça de marinheiros, intrometida e tenaz, infestaria os mares da Índia.»

Elaine Sanceau («Vasco da Gama – O Caminho da Índia»).


«I. O que em Portugal se chama “Estado da Índia” é um conjunto de territórios dispersos, alguns com acesso directo ao mar, outros encravados na União Indiana, com a superfície total de 4 mil quilómetros quadrados e uma população total de 600 mil habitantes. Os territórios constituem administrativamente uma província, composta de três distritos – Goa, Damão e Diu. Como a capital e o distrito mais importante se chamam Goa, muitas vezes se designa por este nome o conjunto: assim, de forma abreviada, Goa é o Estado Português da Índia.

Não se compreende a formação parcelada de Goa, dispersa por uma extensão de 600 ou mais quilómetros na costa ocidental do subcontinente indiano, sem se remontar às origens e sem ter presente a situação política na península do Indostão nos começos do século XVI.

Os navegadores portugueses descobriram o caminho marítimo para a Índia, fazendo o percurso pelo cabo da Boa Esperança, em 1498. Em face dos documentos coevos, pode assentar-se que era triplo o objectivo que levara os Portugueses ao Oriente - comercial, político e religioso, este estreitamente ligado ao fim político. Desviou-se deste modo o comércio do Oriente com a Europa, feito por Suez e pelo Mediterrâneo, e traçou-se-lhe uma nova rota pelo Atlântico, fazendo de Lisboa um empório comercial. O facto traria a decadência às repúblicas italianas e diminuiria o poderio turco. Por outro lado, enfraquecer o poderio turco, tornando insegura a retaguarda no mar Vermelho e no Índico, e aliviar assim a pressão exercida na Europa, consideraram-no os Portugueses da época mais eficaz que a resistência frontal que foi durante muitos anos a estratégia das potências do Ocidente. Por último, “fazer cristandade”, missionar os povos, levar-lhes a mensagem de Cristo era como um imperativo da Nação portuguesa, fielmente traduzido nas ordens emanadas dos Reis. Quando se lêem, por exemplo, as cartas de Afonso de Albuquerque (1507-1515) e de D. João de Castro (1538-1548), mais vivas por sua natureza que os depoimentos dos historiadores, é-se empolgado pela largueza das concepções políticas, pela audácia e ao mesmo tempo realismo dos planos e por essa ânsia de levar a todo o Oriente a fé, a cultura, a alma ocidental. O empreendimento revela-se, no fundo, mais idealista que utilitário: o monopólio comercial não era, enquanto pudesse manter-se, senão a fonte indispensável dos recursos para fazer face às duas outras finalidades.


Ver aqui e aqui




A conquista de novas terras, a sujeição de novas gentes não estavam nos desígnios dos Portugueses. Decerto a questão foi levada mais de uma vez aos conselhos da Coroa, e aí se debateram modos de ver divergentes; mas a linha geral da política da Índia não sofreu variação de vulto a este respeito. Compreende-se que, para os fins indicados, não houvesse necessidade de mais que de ocupar em terra alguns pontos estratégicos para apoio das armadas que vigiavam os mares e garantiam a segurança das novas rotas do comércio, como se compreende também que essa base territorial se obtivesse geralmente por cedência dos pequenos reinos locais em troca de serviços prestados.

Na dispersão das soberanias de tipo feudal que dividiam entre si e em cacho o Indostão, eram constantes as rivalidades e lutas entre os pequenos reinos, as disputas familiares pela sucessão do poder. Precisamente em Goa, o Português foi o aliado do Hindu contra o Mouro, cujo domínio e abusos de autoridade pesavam na vida das populações, ansiosas por libertar-se do jugo daquele. Nos tratados negociados com os soberanos locais, Portugal contentava-se com a licença de erguer fortaleza e com a porção de território necessária à sua defesa; o reconhecimento, à moda do tempo, da soberania do Rei de Portugal, mediante o pagamento de um tributo simbólico, e a liberdade de pregação da fé dos missionários. Em troca, a amizade do Rei de Portugal, ou seja, a segurança dos mares e dos portos e a liberdade de comércio, garantidas pelas suas esquadras. Não havia imposições quanto à vida e às instituições locais: estas eram as existentes, sujeitas à sua evolução natural, influenciadas, como é bom de ver, pela presença do Ocidente, cristão e socialmente mais avançado, naquelas paragens.

O que se chama o Império Português do Oriente foi assim um império absolutamente sui generis: um império de mar que cessaria quando nações concorrentes se apoderassem do comércio e quando enfraquecesse o poderio naval que o canalizava e defendia. Pode dizer-se que terminou quando aqueles dois factores deixaram de pertencer a Portugal em supremacia. Não obstante, Portugal, pioneiro dos descobrimentos e condutor de uma civilização, enraizou-se por muitos modos nos países do Oriente - da Índia à Malásia, à China e ao Japão, sem apoio de uma extensa soberania territorial.

E pode perguntar-se: como se perdeu o Império do Oriente e se manteve Goa portuguesa?

II. Nas pequenas faixas ou bolsas territoriais que constituíam o apoio e reserva das fortalezas e portos de comércio continuavam a viver os aborígenes, com os seus costumes, funcionários e até autoridades, mas evidentemente de mistura com número avultado de mercadores, militares, operários e mestres de construção civil e naval, oficiais de vários ofícios, representantes das ordens religiosas, numerosos missionários, idos da Europa, de passagem uns, estáveis e fixados muitos deles. A “política de casamentos” de Afonso de Albuquerque, execução da ideia de ligar gente à terra por meio de interesses permanentes e da constituição de família legítima, veio a criar pelos tempos uma população em que o sangue português generosamente se cruzara com o de elementos locais, ao mesmo tempo que o ambiente cristão, a cultura ocidental, a implantação de outros usos, costumes e instituições, a expansão da língua, as relações políticas com um país prestigiado da Europa ajudaram à formação e enraizamento de um povo perfeitamente diferenciado dos grupos étnicos do Indostão.

Estranhamente, os adversários das discriminações raciais empenham-se às vezes em contar os homens, que formam o complexo agregado populacional que é Goa, segundo a cor, a língua, a indumentária ou a religião. Ali uns são cristãos, outros hindus, outros muçulmanos. Mas o que na Índia Portuguesa sobretudo importa observar é a mentalidade, as concepções da vida, o ambiente espiritual. Nenhum viajante qualificado, ao passar da União Indiana para Goa, pode subtrair-se à impressão de entrar num país perfeitamente diferenciado. Pensa-se, sente-se, procede-se à europeia. Não há talvez uma fronteira geográfica ou económica, mas há indiscutivelmente uma fronteira humana: Goa é a transplantação do Ocidente em terras orientais, é a expressão de Portugal na Índia.

A marcada evidência e supremacia destes factos tiveram desde longa data consequências relevantes sob o aspecto político e do direito. Desde o século XVI, regimentos, cartas régias e instruções expedidas para o Ultramar – e tinha-se em mente, de modo especial, a Índia – mandam gastar esforço e dinheiro no sentido de integrar na comunidade portuguesa os diferentes povos. D. Manuel, logo em 1505, ao definir as bases da administração portuguesa na Índia, recomendava: “os cristãos, em quaisquer terras onde os houver, vos encomendamos muito que favoreçais em tudo quanto bem puderdes, e os homens os façais honrar e tratar em todas as coisas, e assim mesmo os que novamente se converterem, de qualquer nação que sejam, e uns e outros sejam doutrinados e ensinados nas coisas da fé”.

Vale a pena citar uma informação do Conselho da Índia, logo dos começos do século XVII, apresentada ao Rei sobre a importância daquele tribunal na administração portuguesa. Nela se lê: “a Índia e mais terras ultramarinas de cujo governo se trata neste Conselho não são distintas nem separadas deste reino, nem ainda lhe pertencem por modo de união, mas são membros do mesmo reino, como o é o do Algarve e qualquer das províncias do Alentejo e Entre Douro e Minho (...) e assim tão português é o que nasce e vive em Goa ou no Brasil ou em Angola como o que vive e nasce em Lisboa”.

Várias Instruções daqui expedidas se inspiraram neste conceito, e das mesmas raízes profundas brotou a lei de 2 de Abril de 1761 – ainda os Estados Unidos não tinham alcançado a independência –, lei pela qual se declararam os naturais da Ásia portuguesa perfeitamente iguais perante a lei aos portugueses nascidos no reino, o que se entendia tanto para os indianos, cristãos ou não, como para os descendentes de europeus, como ainda para os muçulmanos.»

Oliveira Salazar («Portugal, Goa e a União Indiana», SNI, Lisboa, 1956).


«D. Francisco de Almeida era um grande senhor e sabia ser generoso. O carácter afável conciliava-o com grande parte dos responsáveis militares e administrativos, a despeito da aversão que gerava em algumas pessoas a inconstância do seu comportamento. Lamentaram a sua partida, não só os que lhe eram fiéis mas também todos aqueles que, por espírito cortesão, se haviam comprometido nas intrigas contra Afonso de Albuquerque e agora receavam os efeitos do seu rancor. D. Francisco permanecia ainda em Cochim, à espera de ventos favoráveis, quando Afonso entrou em funções.  A partir de 7 de Novembro de 1509, data em que surgem as primeiras ordens por escrito sob o título de “capitão-mor e governador das Índias”, começou a avaliar a situação, através de informações prestadas pelos mais antigos da fortaleza, como Diogo Pereira ou o alcaide António Real. Uma das primeiras decisões de Albuquerque seria a de conferir, em nome do rei, a chefia da cidadela do sobrinho D. António de Noronha, enquanto Jorge Barreto partia a juntar-se aos homens do passado, que, em breve, regressavam a Lisboa. Entre os que tinham de voltar nesse ano, João da Nova faltava à chamada: enviado a África em Fevereiro, morrera algumas semanas mais tarde, embora ainda tenha conseguido escrever ao rei a lamentar que na Índia, “nunca se faz guerra senam aos amygos”.

Ao tomar conhecimento dos assuntos em curso, Albuquerque media o alcance da obra do vice-rei. Partira ele de Lisboa na Primavera de 1505, com apenas uma ordem de D. Manuel por único viático e o apoio de uma equipa entusiástica, e havia conseguido, em somente quatro anos, obrigar a maioria dos países ribeirinhos do oceano Índico a considerarem a presença portuguesa, quer admitindo-a quer receando-a. D. Francisco tinha, como ponta de lança, um esquadrão de jovens nobres que rodeavam o seu filho D. Lourenço, de quem se dizia ser favorecido com todas as qualidades e de valentia tão firme que pagou com a vida a sua única derrota. Os companheiros não tinham apenas a presunção de encarnarem todos os valores da cavalaria, mas iam a combate como se fora uma festa e sabiam arrebatar vitórias.»

Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque. O Leão dos Mares da Ásia»).


Mosteiro dos Jerónimos



Do valor indómito dos Portugueses na Índia


A missão de Vasco da Gama, completada pelas de Cabral e João da Nova, fez de Portugal o intermediário máximo, e de Lisboa o empório do grande comércio, frequentado por enxames de navios e mercadores de todo o mundo. D. Manuel tomou o título de «senhor da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia», e mandou erigir o Convento dos Jerónimos, em Belém, em testemunho de gratidão a Deus.

Como dissemos, a irrupção dos Turcos no Levante dificultara grandemente o comércio oriental, feito pelos Italianos. Sujeita a pesados impostos nos portos de passagem, na Arábia e no Egipto, a pimenta (que vinha a Suez nas «naus de Meca» vendia-se no Cairo e Alexandria por quantias muito elevadas. Paga na Índia por dois a três cruzados o quintal, ocasiões houve em que o preço subiu no Egipto a 80 cruzados. A isto acrescentavam-se, para o comprador na Europa, o transporte até Itália, os direitos na alfândega de Veneza, e o lucro do importador. Depois de Vasco de Gama, ofereceu-se a 30 cruzados e menos em Lisboa, e na mesma proporção baixaram os preços da canela, do gengibre e das demais especiarias.

Estava de regresso Vasco da Gama. Mas, como dizia D. Manuel aos Reis Católicos, «da especiaria e pedraria não trouxeram logo tanta como puderam, por não levarem para isso tanta mercadoria como convinha». Era necessário, pois, estabelecer larga e solidamente as bases de comércio. Para isso se organizou em 1500 a mais poderosa armada que jamais partira para longes terras, a de Pedro Álvares Cabral. Largou ela do Restelo a 9 de Março. Compunha-se de treze navios. Passaram a 22 pelas ilhas de Cabo Verde; e um mês depois, indo na bordada de SO., para ganhar bem os ventos gerais, avistaram terra. A 24 encontraram um bom porto, e surgiram nele. Cabral mandou dizer uma missa num ilhéu que havia dentro, no Domingo 26, e erigir solenemente, no 1.º de Maio, uma grande cruz de madeira com as armas de D. Manuel. Expedido um navio para Portugal, com a notícia do que se passara, zarpa a frota em demanda do cabo.

Nas duas narrativas da viagem que possuímos, escritas por pessoas que seguiam nela, não se fala deste contacto com o Brasil como de coisa muito imprevista. Ia na armada Duarte Pacheco, a quem dois anos antes D. Manuel «mandou descobrir a parte ocidental, passando além a grandeza do mar oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela», como escreve ele próprio no seu Esmeraldo. O continente americano era já conhecido dos Portugueses, não só antes de Cabral, mas até antes de Colombo; porém, por medo da competência estrangeira, guardava-se segredo rigorosíssimo sobre grande parte do que se fazia.



Desembarque de Cabral em Porto Seguro, óleo sobre tela de Óscar Pereira da Silva, 1922.


Cabral fundeou em Calicute no dia 13 de Setembro. A missão que levava era negociar um tratado com o samorim e estabelecer ali uma feitoria. Encontrou, como era natural, a mesma resistência que Vasco da Gama, suscitada pelos «mouros» que íamos substituir no grande tráfico. Vários portugueses, – e, entre eles, o que ia nomeado para feitor, – foram mortos. Cabral bombardeou a cidade e seguiu para Cochim, cujo soberano, inimigo do de Calicute, fez todas as facilidades aos portugueses, que carregaram pimenta e algumas drogas [Os chefes de Cananor e de Coulão mandaram-lhe ofertas para negociar com eles.] Cabral, deixando em Cochim um feitor e vários funcionários auxiliares, partiu para Cananor; aí achou barcos carregados de gengibre e de canela, para ele comprar. Em Janeiro de 1501 fez-se à vela para Portugal, onde chegou a 23 de Junho. Trazia dois embaixadores do rei de Cochim, e um do de Cananor.

Três meses antes, partira já de Lisboa João da Nova, com quatro navios. Estabeleceu feitoria em Cananor, carregou aí e em Cochim, e estava de volta dezoito meses depois (Setembro, 1502). Entretanto, haviam demonstrado os acontecimentos que precisava o comércio oriental de ser apoiado pela força. Por isso, em 1502, partiu Vasco da Gama com uma armada de vinte navios. Destes, cinco ficariam na Índia, para protegerem as feitorias de Cananor e de Cochim, e também para irem, durante o Verão, guardar a boca do mar Roxo, para impedir a passagem das «naus de Meca», as quais transportavam a pimenta que era depois comprada pelos Venezianos. Vasco da Gama, de caminho, fez tributário o rei de Quíloa, cobrando assim o primeiro oiro das páreas. Na Índia negociou tratados com os soberanos de Cochim e de Cananor, bombardeou durante dois dias a cidade de Calicute, e atacou no mar, como inimigos, todos os navios de «mouros» que encontrou.

O primeiro grande herói militar da Índia é Duarte Pacheco Pereira, navegador distintíssimo, autor do roteiro intitulado Esmeraldo de situ orbis. Em 1503 foram mandadas três armadas, uma comandada por Francisco de Albuquerque, outra por Afonso, seu irmão, e a terceira por António de Saldanha. Obteve o primeiro que o rajá de Cochim lhe deixasse construir junto do cais uma feitoria fortificada, e, retirando, deixou a Duarte Pacheco no cargo de capitão-mor do mar. Logo depois, veio atacar Cochim o samorim de Calicute, para varrer de lá a nossa gente. Pacheco, com muitíssimo poucos homens e deficientes meios de combate, supre a tudo pelo valor indómito e por notáveis dotes de estratégico. Defendendo o «passo de Cambalão», derrotou o samorim, e firmou no pasmo dos naturais o prestígio imenso dos Portugueses.

Mostrava a experiência que, perante a hostilidade dos naturais, era preciso um maior esforço para manter seguro o comércio da Índia. Por isso, e decorado com o título de vice-rei, então conferido pela primeira vez, partiu D. Francisco de Almeida com uma armada de 22 navios (1505). Deveria permanecer no Oriente um triénio, e levava uns mil e quinhentos homens, «todos gente limpa, em que entravam muitos fidalgos e moradores da casa de el-rei», os quais ficariam de guarnição na Índia, com obrigação de lá servirem três anos. Em Quíloa, como o soberano da terra houvesse deixado de pagar as páreas, tomou D. Francisco a cidade, investindo no seu governo um amigo dos Portugueses. Construiu ali uma fortaleza, e partiu para Mombaça, que tomou (15 de Agosto).






Fortaleza de Jesus de Mombaça. Ver aqui

Três pontos de apoio, por consequência, ficavam tendo os Portugueses na costa da África oriental: Quíloa, Mombaça, e Melinde, cujo rei se conservava fiel.

Seguindo, Almeida levantou a fortaleza de Angediva, e tratou com o respectivo rei a construção da de Cananor. Em Cochim assentou igualmente a fundação de uma fortaleza; e, apenas concluiu o carregamento das naus, expediu algumas para o reino em Dezembro (1505), e as outras em Fevereiro do ano seguinte.

O plano de D. Francisco de Almeida era manter o exclusivo da navegação para os Portugueses e seus aliados, e ter em terra só os pontos de apoio necessários para o carregamento da pimenta e para a reparação e abrigo dos navios. Seria esse, possivelmente, o sistema mais sensato, se a Coroa houvesse organizado as finanças (quer dizer, o comércio do Oriente e as suas despesas na metrópole) de maneira a não ter deficit.

Os «mouros», para se desviarem das naus portuguesas que cruzavam na costa do Malabar, transportavam as mercadorias do Extremo Oriente, cujo porto distribuidor era Malaca, por fora da ilha de Ceilão e por entre o arquipélago das Maldivas. De Malaca traziam, além da pimenta, o cravo, o sândalo, a noz-moscada, etc.; e a canela tomavam-na de Ceilão. Nas ilhas Maldivas carregavam o cairo de que os marinheiros das Índias fabricavam os seus cabos. A Ceilão, por isso, mandou o vice-rei a seu filho D. Lourenço, que ali encontrou, com efeito, muitos navios de comerciantes «mouros». D. Lourenço, além disso, na sua função de capitão-mor do mar, percorreu a costa de norte a sul, varrendo-a de inimigos em muitos combates.

Os negociantes árabes, impedidos de navegarem para fora do mar Roxo e de abastecerem os mercados do Egipto, levaram as suas queixas ao sultão. O poderio maometano, que constituía para a Europa um grave perigo, estava sendo atacado pela retaguarda pela acção dos Portugueses, e o império mameluco do Egipto via-se desfalcado por essa acção de um manancial de riqueza muito importante. Aos nossos inimigos do Egipto juntavam-se também os Venezianos, que se abasteciam de pimenta no Cairo e Alexandria, e a quem priváramos dos lucros do comércio oriental. O sultão do Egipto, pois, enviou à Índia poderosas esquadras, com o fito de expulsarem os Portugueses. Foi uma delas que, surpreendendo D. Lourenço de Almeida à entrada do rio de Chaul (1508), o desbaratou e o matou. Então D. Francisco de Almeida,

 

– lá vem o pai, com ânimo estupendo,

Trazendo fúria e mágoa por antolhos! –

Batalha de Diu (3 de Fevereiro de 1509).

Reuniu rapidamente os seus navios, e, procurando a armada dos inimigos, veio encontrá-la junto de Diu, reforçada pelos navios desta cidade e por trezentas fustas de Calicute. Aí se travou a batalha dos rumes, a primeira grande acção naval do Oriente, na qual a frota do sultão do Egipto foi completamente derrotada (3 de Fevereiro de 1509).

Culminou com esta batalha aquele prestígio de invencibilidade que as façanhas de Duarte Pacheco haviam conferido à nossa gente: porque os Índios, depois dela, viam que um punhado de portugueses não triunfara só das forças deles, mas também das esquadras mais poderosas, munidas de forte artilhamento, tripuladas pelos rumes do sultão do Egipto e por bombardeiros venezianos.

(In António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 14.ª Edição, 1998, pp. 63-67).



Entrada para a Fortaleza de Diu.



Couraça


Baluarte



Artilharia quinhentista portuguesa no Museu Militar de Lisboa.

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