sábado, 21 de dezembro de 2013

Princípio e manifestação (i)

Escrito por René Guénon





Pitágoras de Samos



«Os Pitagóricos acreditam (...) numa espécie de número - o matemático [arithmós mathematikós]; só que dizem que ele não está separado, mas que dele se formam as substâncias sensíveis. É que eles constroem todo o universo a partir dos números - só que não são números compostos de unidades abstractas, mas supõem eles que as unidades têm grandeza espacial. Mas como é que a primeira unidade com grandeza se constituiu, é facto que eles parecem ter dificuldade em explicar.

A doutrina dos Pitagóricos acrescenta, por outro lado, menos dificuldades que as anteriormente mencionadas, mas, por outro lado, contém outras peculiares. De facto, não conceber o número com capacidade para existir em separado remove muitas das consequências impossíveis; mas que os corpos sejam compostos de números, e que este número deva ser matemático, é coisa impossível. Pois não é correcto falar de mudanças espaciais indivisíveis; e por muito que possa haver grandezas deste tipo, as unidades, pelo menos, não têm grandeza; e como é que uma grandeza pode ser constituída por indivisíveis? Mas o número aritmético, pelo menos, consta de unidades abstractas, enquanto estes pensadores identificam o número com coisas reais; em qualquer caso, aplicam as suas proposições aos corpos, como se estes consistissem desses números».

Aristóteles («Metafísica»).


«Triste sorte a dos que, descontentes com a variedade dos idiomas e suspicazes perante as funções psíquicas, enfim, aqueles que combatem o filologismo e psicologismo, não encontram recurso superior ao apelo às matemáticas que alçapremam a paradigma da inteligibilidade universal. Estão anotados na história da cultura europeia os nomes desses pensadores matematicantes que na intenção de fazerem da filosofia uma ciência rigorosa, não resolvem a dificuldade de conciliar o positivismo com o solipsismo. Convém todavia, observar, que a mesma precaução fora exactamente tomada por Aristóteles, que estudou profundamente, integrando-o na sua lógica, tudo quanto havia de assimilável no pitagorismo. Erram portanto quantos escrevem ser a lógica aristotélica fundamentada sobre uma incipiente sistematização zoológica, meramente referida a géneros e espécies.


(...) De certo que todos os esquemas figurativos de repouso presidem à modelação do pensamento, mas são tópicos insuficientes para a representação da verdade. A figuração geométrica é essencialmente válida enquanto que projectada em transcensão mental. Aristóteles mostrou-se, neste particular, um notável discípulo de Pitágoras que contra os pitagóricos desenvolveu uma polémica de saneamento intelectual. A matemática é a ciência dos limites. Todas as doutrinas que vão procurar às matemáticas as garantias lógicas estão por isso condenadas pelo aristotelismo. Elas vingam-se, porém, constituindo gnosiologias positivistas, de um positivismo que pretende fazer da filosofia uma ciência de rigor».

Álvaro Ribeiro («Liceu Aristotélico»).


«(...) o que mais importa, para Aristóteles, é fazer ver que não há razão maior para apor e sobrepor à silogística os raciocínios necessários das matemáticas. Aliás, o matemático faz sempre abstracção de todo o sensível, como seja relativamente ao peso e à leveza, ao quente e ao frio, etc. Por conseguinte, convém reconhecer que na aritmética predomina a quantidade discreta, sem extensão, ao passo que na geometria prevalece a quantidade contínua, já pautada pela extensão, e, por isso mesmo, uma forma menos pura de matemática.

De resto, se na Física aristotélica impera o estudo da matéria informada ou da forma materializada, na geometria figura uma "matéria" cuja "inteligibilidade", já de si alheia ao movimento, propende para a extensão homogénea. Em todo o caso, a Física de Aristóteles culmina, por gradual abstracção das diferenças individuais, na espécie consagrada à ciência do universal. Deste modo, estamos perante uma exigência de inteligibilidade que, por indução da matéria individuada, ascende, por sucessivos e intermédios graus de intelecção, ao movimento universal de seres, entes e substâncias que já de si transcendem a figuração estática e representativa do paradigma geométrico.


Mas a questão torna-se ainda mais complexa quando consideramos a astronomia, a óptica e a mecânica. Ora, se as entendermos no sentido do método e da aplicação matemática, teremos então que concluir, ao abrigo de Aristóteles, que elas propendem para os limites dos corpos físicos com base numa estrutura «inteligível» abstraída da realidade concreta, movente e espectacular do mundo sensível. Tal acontece quando, por exemplo, um astrónomo procura considerar o "globo" solar pelo prisma da óptica matemática, uma vez que o primado da extensão contínua, pura e abstracta não permite entrever quão radiante e misterioso se entremostra o fenómeno da luz solar.

Escusado será, pois, dizer que a Física de Aristóteles implica a enteléquia contempladora das inteligências puras que movem as esferas siderais, quando não relativiza a virtualidade mecanista pressuposta na matéria atómica e corpuscular. Não há, por isso, dúvida quanto à natureza das matemáticas em Aristóteles, não obstante as inúmeras possibilidades especulativas da teorese pitagórico-platónica. Aliás, também Mário Ferreira dos Santos atenta mais particularmente no ponto em questão: "Fundamentavam eles [os platónicos] o seu pensamento no facto de serem o ponto e a linha termos das dimensões, como a forma é termo da matéria, e afirmavam que aquilo que, pelo qual é terminado, seria a matéria dos corpos, e sendo os pontos e linhas os últimos termos, seriam consequentemente o fundamento da matéria".

Contudo, o ponto e a linha, conquanto elementos inerentes ao domínio da matemática, jamais poderão perfazer os elementos substanciais dos corpos. E assim é porque, sem embargo de puderem ser concebidos como os limites da matéria enquanto "coisas incorpóreas em acto", não têm profundidade nem latitude. Contudo, se bem que Mário Ferreira dos Santos nos diga que o ponto carece de toda a magnitude, não deixa de ser curioso que Aristóteles, ao distinguir as quantidades discretas das quantidades contínuas, incluísse a linha, a superfície, o corpo, o lugar e o tempo, mas excluísse o ponto para dele, porventura, fazer o termo comum em que se podem encontrar as partes de uma linha e, por conseguinte, a superfície, o corpo, o lugar e o tempo.

Demais, consideradas as relações de simetria, semelhança e analogia, é deveras consabido como o meio escolar e universitário desvirtua, por via da tradução e da didáctica fixista, a alegoria da caverna de Platão. Daí a expressão espúria: a "analogia da linha". Ora, numa linha não há qualquer tipo de analogia, mas tão-só simetria...».

Miguel Bruno Duarte («Aristóteles e a Filosofia Portuguesa»).







QUALIDADE E QUANTIDADE

Considera-se geralmente a qualidade e a quantidade como dois termos complementares, embora muitas vezes se esteja longe de compreender a razão profunda desta relação; (...) É preciso, então, partir agora da primeira de todas as dualidades cósmicas, a que está no próprio princípio da existência ou da manifestação universal, e sem a qual nenhuma manifestação seria possível: a dualidade de Purusha e de Prakriti, segundo a doutrina hindu, ou, empregando outra terminologia, a da «essência» e da «substância». Estas devem ser encaradas como princípios universais, já  que são os dois pólos de qualquer manifestação; mas, a outro nível, ou antes, a outros níveis múltiplos, como os domínios mais ou menos particularizados observados no interior da existência universal, podemos também empregar analogicamente estes mesmos termos num sentido relativo, para designar o que corresponde àqueles princípios ou o que os representa mais directamente em relação a um certo modo mais ou menos restrito da manifestação. É por isso que poderemos falar de essência e de substância, quer para um mundo, isto é, para um estado de existência determinado por certas condições especiais, quer para um ser considerado em particular, ou até para cada um dos estados desse ser, isto é, para a sua manifestação em cada um dos graus da existência; neste último caso, a essência e a substância são naturalmente a correspondência microcósmica daquilo que representam, sob o ponto de vista macroscómico, para o mundo no qual se situa essa manifestação, ou, noutros termos, não são mais do que particularizações dos mesmos princípios relativos, os quais, por sua vez, são determinações da essência e da substância universais em relação às condições do respectivo mundo.

Entendidas neste sentido relativo, e sobretudo em relação com os seres particulares, a essência e a substância são, em suma, o mesmo que os filósofos escolásticos chamaram «forma» e «matéria»; mas nós preferimos evitar o emprego destes termos, os quais, talvez por motivo de uma imperfeição da língua latina sob este ponto de vista, só traduzem imperfeitamente as ideias que as palavras devem exprimir (1), e que se tornaram ainda mais equívocos em razão do sentido completamente diferente que receberam comummente na linguagem moderna. Seja como for, dizer que todo o ser manifestado é composto de «forma» e de «matéria», equivale a dizer que a sua existência provém ao mesmo tempo necessariamente da essência e da substância, e, por conseguinte, que há em si qualquer coisa que corresponde a um e a outro destes dois princípios, de tal modo que ele é a resultante dessa união, ou, com mais precisão, da acção exercida pelo princípio activo ou pela essência, sobre o princípio passivo ou a substância; e na aplicação que é feita dele especialmente no caso dos seres individuais, a «forma» e a «matéria» que os constitui são respectivamente idênticas àquela que a tradição hindu designa por nâma e rûpa. Já que estamos a assinalar a concordância entre diferenças terminológicas, facto que pode ter a vantagem de permitir a alguns transpor as nossas explicações para uma linguagem à qual estão mais habituados, de modo a percebê-las mais facilmente, acrescentaremos ainda que o que se chama «acto» e «potência», no sentido aristotélico, corresponde igualmente à essência e à substância; estes dois termos são, aliás, susceptíveis de aplicação mais extensa que os de «forma» e de «matéria»; mas, no fundo, dizer que há em qualquer ser uma mistura de acto e potência equivale ao mesmo, porque o acto tem nele aquilo que o faz participar na essência, e a potência, aquilo que o faz participar na substância; o acto puro e a potência pura não se poderiam encontrar na manifestação, já que ambos são os equivalentes da essência e da substância universais.






Compreendido isto, podemos falar da essência e da substância do nosso mundo, isto é, do que é o domínio do ser individual humano, e diremos, de acordo com as condições que definem esse mundo, que estes dois princípios aparecem nele, respectivamente, sob os aspectos da qualidade e da quantidade. Isto pode parecer evidente no que diz respeito à qualidade, já que a essência é, em suma, a síntese principal de todos os atributos que pertencem a um ser e que fazem desse ser o que ele é (atributos ou qualidades são sinónimos, no fundo); notemos que a qualidade, assim encarada como o conteúdo da essência, se é permitida a expressão, não está restringida exclusivamente ao nosso mundo, mas é susceptível de uma transposição que universaliza a sua significação, facto que não nos deve espantar, já que ela representa aqui o princípio superior; mas numa tal universalização, a qualidade deixa de ser o correlativo da quantidade, porque esta, pelo contrário, está estritamente ligada às condições especiais do nosso mundo; aliás, do ponto de vista teológico, não se liga já, de certo modo, a qualidade ao próprio Deus, ao falar dos Seus atributos, enquanto que seria impensável pretender transportar para Ele quaisquer determinações quantitativas? (2). Poder-se-ia objectar que Aristóteles agrupa a qualidade e a quantidade entre as «categorias», que não são mais que modos especiais do ser e que não lhe são co-extensivas; mas isso é porque ele não efectua a transposição que acabamos de referir, coisa que, aliás, não tinha que fazer, já que a enumeração das «categorias» só se refere ao nosso mundo e às suas condições, de tal modo que a qualidade não pode e não deve realmente ser tomada, nesse caso, senão no sentido mais imediato para nós - no nosso estado individual, em que ela se apresenta, tal como dissemos primeiro - como um correlativo da quantidade.

É interessante notar, por outro lado, que a «forma» dos escolásticos é aquilo a que Aristóteles chama eidos, palavra que também se emprega para designar a «espécie», a qual é propriamente uma natureza ou uma essência comum a uma multitude infinita de indivíduos; ora, esta natureza é de ordem puramente qualitativa, porque é verdadeiramente «inumerável», no sentido estrito da palavra, isto é, independente da quantidade, sendo indivisível e completa em cada um dos indivíduos que pertencem a essa espécie, de tal modo que não é afectada ou modificada pelo número destes a quem não se pode atribuir os adjectivos de «mais» ou de «menos». Além disso, eidos é etimologicamente a «ideia», não no sentido psicológico dos modernos, mas num sentido ontológico mais próximo de Platão do que se julga normalmente, porque, quaisquer que sejam as diferenças existentes a este respeito entre a concepção de Platão e a de Aristóteles, elas foram, como acontece muitas vezes, grandemente exageradas pelos seus discípulos e comentadores. As ideias platónicas também são essências; Platão mostra sobretudo o seu aspecto transcendente e Aristóteles o seu aspecto imanente, o que não é forçamente motivo de exclusão (digam o que disserem os espiritos «sistemáticos»), mas de relacionação, embora a níveis diferentes; em todo o caso, trata-se de «arquétipos» ou princípios essenciais das coisas, que representam o que poderíamos chamar o lado qualitativo da manifestação. Além disso, estas mesmas ideias platónicas são, sob outro nome, e por filiação directa, a mesma coisa que os números pitagóricos; e isto mostra bem que estes mesmos números pitagóricos, embora chamados números por analogia, não são de modo nenhum os números no sentido quantitativo e comum que a palavra tem, mas, pelo contrário, são puramente qualitativos, e correspondem, inversamente, do lado da essência, àquilo a que correspondem os números quantitativos do lado da substância (3).

Pelo contrário, quando São Tomás de Aquino diz que «numerus stat ex parte materiae», é do número quantitativo que fala, querendo dizer com isto exactamente que a quantidade vem imediatamente do lado substancial da manifestação; dizemos substancial, porque matéria, no sentido escolástico, não é a «matéria» como a entendem os físicos modernos, mas a substância, quer na sua acepção relativa quando posta em correlação com forma e relacionada com os seres particulares, quer também quando se trata de matéria prima, como o princípio passivo da manifestação universal, isto é, da potencialidade pura, equivalente de Prakriti na doutrina hindu. No entanto, assim que se trata de «matéria», tomada em qualquer sentido, tudo se torna particularmente obscuro e confuso, e não sem razão (4); por isso, como pudemos mostrar suficientemente a relação da qualidade com a essência sem entrar em longos desenvolvimentos, devemos agora explanar mais detalhadamente a relação da quantidade com a substância, porque é necessário primeiro elucidar os diferentes aspectos que pode tomar aquilo a que os Ocidentais chamaram «matéria», mesmo antes da adulteração moderna em que esta palavra estava destinada a ter um enorme papel; uma explicação é tanto mais necessária quanto esta questão é, de certo modo, a própria raiz do assunto principal deste estudo.


«MATERIA SIGNATA QUANTITATE»



Os escolásticos chamam materia, de modo geral, ao que Aristóteles chamava hyle; esta materia, como já dissemos, não deve ser, de modo nenhum, identificada com a «matéria» dos modernos, cuja noção complexa, e até contraditória sob vários aspectos, parece ter sido estranha tanto aos antigos Ocidentais, como para os Orientais; mesmo admitindo que aquela pudesse tornar-se esta «matéria» em alguns casos particulares, ou melhor, falando com mais exactidão, mesmo que pudéssemos fazer entrar naquela a concepção mais recente, ela é muitas outras coisas ao mesmo tempo, e são estas coisas que é preciso distinguir com cuidado e primeiro que tudo; para as designar em conjunto por uma denominação comum como as de hyle e de materia, não temos à nossa disposição, nas línguas ocidentais actuais, um termo melhor que o de «substância». Antes de mais, a hyle, enquanto princípio universal, é a potência pura, em que não há nada de distinto nem de «actualizado», e que constitui o «suporte» passivo de qualquer manifestação; neste sentido é Prakriti ou a substância universal, e tudo o que dissemos atrás sobre esta aplica-se igualmente à hyle assim compreendida (5). Quanto à substância tomada num sentido relativo, como sendo aquilo que representa analogicamente e o princípio substancial, e que desempenha esse papel em relação a uma certa ordem de existência mais ou menos estreitamente delimitada, é ela também que se chama secundariamente hyle, nomeadamente na correlação deste termo com eidos para designar as duas faces essencial e substancial das existências particulares.

Os escolásticos depois de Aristóteles, distinguem estes dois sentidos quando falam de materia prima e de materia secunda; podemos, pois, dizer que a sua materia prima é a substância universal, e a materia secunda a substância no sentido relativo; mas como os termos se tornam susceptíveis de aplicações múltiplas em graus diferentes, assim que se entra no relativo, acontece que o que é materia a um certo nível pode tornar-se forma a outro nível e inversamente, segundo a hierarquia dos graus mais ou menos particularizados considerados na existência manifestada. Em todos os casos, uma materia secunda, embora constitua o lado potencial de um mundo ou de um ser, não é nunca potência pura; a única potência pura é a substância universal, que não se situa só abaixo do nosso mundo (substantia de sub stare, é literalmente «o que fica debaixo», que é dado também pelas ideias de «suporte» e de «substrato»), mas abaixo do conjunto de todos os mundos ou de todos os estados compreendidos na manifestação universal. Acrescentemos que, pelo facto de não ser mais que potencialidade absolutamente «indistinta» e indiferenciada, a substância universal é o único princípio do qual se pode dizer propriamente que é «ininteligível», não porque sejamos incapazes de a conhecer, mas porque não há efectivamente nada a conhecer nela; quanto às substâncias relativas, enquanto participantes da potencialidade universal, participam também da sua «inteligibilidade» numa medida correspondente. Não é depois ao lado substancial que se deve ir buscar a explicação das coisas, mas, pelo contrário, do lado essencial, o que se poderia traduzir em termos de simbolismo espacial, dizendo que toda a explicação deve proceder de cima para baixo e não de baixo para cima; e esta observação é particularmente importante para nós, porque mostra imediatamente a razão pela qual a ciência moderna está realmente desprovida de qualquer valor explicativo.


Antes de ir mais longe, devemos notar já que a «matéria» dos físicos só pode ser uma materia secunda, visto que eles a supõem dotada de certas propriedades, sobre as quais, aliás, eles próprios não estão totalmente de acordo, de modo que não há nelas senão potencialidade e «indistinção»; de resto, como as concepções dos físicos só dizem respeito ao mundo sensível e não vão mais longe, eles próprios não saberiam o que fazer da materia prima. No entanto, por uma estranha confusão, os tais físicos falam a cada momento de «matéria inerte», sem se aperceberem que, se fosse verdadeiramente inerte, a matéria seria destituída de qualquer propriedade e não se manifestaria de nenhuma maneira, de tal modo que não seria absolutamente nada do que os seus sentidos podem perceber, visto que, pelo contrário, esses mesmos físicos declaram «matéria» tudo o que cai debaixo dos seus sentidos; na verdade, a inércia só pode convir à materia prima, porque ela é sinónimo de passividade ou de potencialidade pura. Falar de «propriedades da matéria» e afirmar ao mesmo tempo que a «matéria é inerte», é uma contradição insolúvel; e, curiosa ironia das coisas, o «cientismo» moderno, que tem a pretensão de eliminar o «mistério», só apela, no entanto, ao que há de mais «misterioso» no sentido comum desta palavra, isto é, de mais obscuro e de menos inteligível.

Podemos perguntar agora, pondo de parte a pretensa «inércia da matéria», que no fundo, não passa, de um absurdo, se esta mesma «matéria» dotada de qualidades mais ou menos bem definidas que a tornariam susceptível de se manifestar aos nossos sentidos, é a mesma coisa que a materia secunda do nosso mundo tal como a entendem os escolásticos. Podemos já duvidar que uma tal assimilação seria inexacta se repararmos que, para ter um papel relativamente ao nosso mundo análogo ao da materia prima ou da substância universal relativamente a qualquer manifestação, a materia secunda não deve, de modo nenhum, ser manifestada neste mundo, mas servir exclusivamente de «suporte» ou de «raiz» ao que se manifesta nele; por conseguinte, as qualidades sensíveis não lhe podem ser inerentes, mas procedem, pelo contrário, de «formas» recebidas em si, o que mais uma vez significa que tudo o que é qualidade deve ser posto em relação com a essência. Eis a nova confusão: os físicos modernos, no seu esforço para reduzir a qualidade à quantidade, chegaram, por uma espécie de «lógica de erro», a confundir uma e outra, e a atribuir a própria qualidade à sua «matéria», na qual acabam assim por colocar toda a realidade, ou pelo menos tudo o que eles são capazes de reconhecer como realidade, e que constitui o «materialismo» propriamente dito (in O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 17-23).



Trimurti: Brahma, Shiva e Vishnu 



Notas:

(1) Estas palavras traduzem de maneira pouco feliz os termos eidos e hyle, empregues no mesmo sentido por Aristóteles, e a que voltaremos mais tarde.

(2) Pode-se falar de Brahma saguna ou «qualificado», mas seria impensável falar de Brahma «quantificado».

(3) Pode notar-se que o nome de um ser, enquanto expressão da sua essência, é propriamente um número, entendido neste mesmo sentido qualitativo; e isto estabelece um laço estreito entre a concepção dos números pitagóricos e o termo sânscrito nâma para designar o lado essencial de um ser.

(4) Assinalemos também, a propósito da essência e da substância, que os escolásticos traduzem frequentemente por substantia o termo grego ousia, o qual, pelo contrário, é própria e literalmente «essência»; o que contribui não pouco para aumentar a confusão da linguagem; daí expressões como a de «forma substancial», por exemplo, que se aplica mal ao que constitui, na realidade, o lado essencial de um ser, e de modo nenhum o seu lado substancial.

(5) Notemos que o primeiro sentido da palavra hyle diz respeito ao princípio vegetativo; há uma alusão à «raiz» (em sânscrito mûla, termo aplicado a Prakriti), a partir da qual se desenvolve a manifestação; e pode também ver-se nela uma certa relação com o que a tradição hindu diz da natureza «asúrica» do vegetal, que mergulha efectivamente com as raízes naquilo que constitui o suporte obscuro do nosso mundo; a substância é, de certo modo, o pólo tenebroso da existência (...).

Continua


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