«(...) Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular. Por "referir-se ao universal" entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e acções que, por liame de necessidade e verosimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu».
Aristóteles («Poética», Tradução, Prefácio, Introdução, Comentário e Apêndices de EUDORO DE SOUSA).
«(...) O mundo acadêmico do século XX ainda subscreve a opinião de Sir David Ross, que por sua vez segue Andrônico: a Retórica tem "um propósito puramente prático"; "não constitui um trabalho teórico" e sim um manual para o orador". Mas à Poética, por seu lado, Ross atribui um valor teórico efetivo, sem reparar que, se Andrônico errou neste caso, pode também ter se enganado quanto à Retórica. Afinal, desde o momento em que foi redescoberta, a Poética também foi encarada sobretudo como "um manual prático" e interessou antes aos literatos do que aos filósofos. De outro lado, o próprio livro dos Tópicos poderia ser visto como "manual técnico" ou pelo menos "prático" - pois na Academia a dialética funcionava exatamente como tal: era o conjunto das normas práticas do debate acadêmico. Enfim, a classificação de Andrônico, uma vez seguida ao pé da letra, resulta em infindáveis confusões, as quais se podem resolver todas de uma vez mediante a admissão da seguinte hipótese, por mais perturbadora que seja: como ciências do discurso, a Poética e a Retórica fazem parte do Organon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias, e não são portanto nem teoréticas nem práticas nem técnicas. Este é o núcleo da interpretação que defendo. Ela implica, porém, uma profunda revisão das ideias tradicionais e correntes sobre a ciência aristotélica do discurso. Esta revisão, por sua vez, arrisca a ter consequências de grande porte para a nossa visão da linguagem e da cultura em geral. Reclassificar as obras de um grande filósofo pode parecer um inocente empreendimento de eruditos, mas é como mudar de lugar os pilares de um edifício. Pode exigir a demolição de muitas construções em torno».
Olavo de Carvalho («Aristóteles em Nova Perspectiva»).
«Depois das obras de Álvaro Ribeiro, como Razão Animada, Estudos Gerais, Escola Formal ou a Arte de Filosofar, que reabriram em Portugal, no século XX, os mais altos horizontes da filosofia aristotélica, vejo agora em Olavo de Carvalho, e nesta sua obra, o estudo aristotélico actual mais relevante da Escola Formal, e com não menor relevância até na sua aptidão didáctica para quem se queira iniciar no que mais importa da obra aristotélica, aptidão ou valor que Álvaro também nunca desdenhou ou esqueceu nos seus livros.
E, no entanto, até é possível que o Olavo não se sinta pessoalmente identificado nestes termos, já que não é pequeno o oceano concreto que nos separa a todos, o Atlântico, e um escol requer alguma proximidade e conformidade de conceitos e termos. Mas o que possa faltar de medida e peso, para firmar essa sintonia, sobra na espontânea empatia de sentimentos e pensamentos que existe, seja lá por que razão seja, (se a razão que já adiantei não chegar), e me cumpre constatar, por ser verdade.
O facto, pois, é este: comungamos, interiormente, de uma mesma “traditio”; e, como se vê, cá e lá, para o bem e para o mal».
João Seabra Botelho
«(...) se é certo que [Leonardo Coimbra], por contraste à sua concepção platónica de ciência, interpretara a lógica de Aristóteles como o resultado de uma simples generalização da experiência e da observação, também não deixara de criticar, acompanhando e actualizando a bibliografia científica, o vício cousista da crescente e errónea tendência para o logicismo formalista. Como tal, embora tivesse, de facto, analisado e interpretado a silogística aristotélica com base na lógica de Port-Royal, Leonardo sabia, por intuição, que a actividade dinâmica e nocional do pensamento jamais se limita à inércia conceptual de uma adormecida escolástica, e, desse modo, somente se manifesta enquanto sistema vivo e orgânico em busca eterna e assimptótica do ser divino do qual depende íntima e fraternamente.
De resto, não seria por acaso que Álvaro Ribeiro, realizando a filosofia portuguesa, abrisse caminho para a interpretação do aristotelismo implícito de Leonardo Coimbra. Disso, aliás, dá-nos profunda e admirável expressão quando, firmado na palavra pensada, falada e escrita, translada essa mesma interpretação num movimento espiritual em prol da reabilitação psiconoética da lógica de Aristóteles. E assim, não só repudia a falácia que fizera resvalar a lógica aristotélica para um caso particular da lógica moderna, como também demonstra não serem os símbolos idiomáticos susceptíveis de serem substituídos por sinais de maior estabilidade, convenção e rigor na ordem da abstracção matemática.
Olavo de Carvalho |
De facto, convém ver como, neste aspecto fundamental, Olavo de Carvalho considera a lógica de Aristóteles à revelia da lógica matemática. Por conseguinte, desde o aristotelismo medieval decaído em puro formalismo lógico, até ao predomínio, consolidado na modernidade, da ciência dedutiva de modelo matemático, eis como, para o filósofo brasileiro, o actual império tecnológico é o império decorrente do discurso lógico-analítico, ou, se quisermos, de um discurso para o qual deixaram de concorrer, em forma de círculos concêntricos, a poética, a retórica e a dialéctica. Daí que, a propósito da imaginação enquanto faculdade mediadora entre a sensação e o intelecto, Olavo de Carvalho, remetendo-nos para um exemplo caricato mas assaz revelador, distinga entre a lógica realista de Aristóteles e o que, por via analítica, decaíra na uniformidade técnica e ontologicamente vazia do cálculo mortífero e industrial:
"(...) para os cinco sentidos, só existe o aqui e agora, o caso concreto, o dado imediato; para o pensamento, só existe o conceito, o geral, o esquema de esquemas, cada vez mais rarefeito e universal. Sem a mediação imaginativa, essas duas faculdades cognitivas estariam separadas por um abismo. O homem teria talvez sensações como um coelho; e talvez por dentro até pensasse alguma coisa, como um computador; mas não poderia pensar sobre o que sente de facto, isto é, raciocinar sobre a experiência vivida; nem poderia, de outro modo, orientar a experiência pelo raciocínio, buscando novos conhecimentos. Seria tão eficiente quanto um computador operado por um coelho, e tão vivo quanto um coelho desenhado na tela de um computador"».
Miguel Bruno Duarte
OLAVO DE CARVALHO E A REDESCOBERTA DE ARISTÓTELES
Autor de uma obra que já merece um estudo mais acurado - ultrapassando uma dezena de títulos, entre os quais se destacam A nova era e a revolução cultural (1994), Os gêneros literários: seus fundamentos metafísicos (1993), O jardim das aflições (1995/2000) e O imbecil coletivo (1996) -, Olavo de Carvalho empreende em Aristóteles em nova perspectiva (1996) um esforço hermenêutico sem paralelo, tanto no Brasil como no exterior, sobre a unidade das ciências do discurso do Estagirita. Partindo apenas de umas breves indicações de Avicena e Santo Tomás de Aquino, opera uma verdadeira reconstituição do Organon aristotélico, até então sobrecarregado, historicamente, de interpretações equivocadas ou contraditórias.Quantas vezes nos perguntamos como compreender o papel privilegiado atribuído à Poesia por Aristóteles, considerando-a mais filosófica e de caráter mais elevado que a História, diante da tendência dominante de considerar a lógica, tomada na qualidade de propedêutica, como a chave completa do sistema? Como conciliar o caráter dialético de sua argumentação com a rigidez esquemática com que pretenderam por tanto tempo encarcerar seu pensamento?
Ângelo Monteiro |
A teoria dos Quatro Discursos, colhida no que ficou oculto ou subentendido no pensamento aristotélico, é o elemento-chave dessa hermenêutica, e a prova desse argumento está no fato de Aristóteles ser encarado ora como racionalista, ora como empirista. E tudo isso por conta de uma visão diminuída do seu alcance filosófico, em virtude de preconceitos sedimentados no Ocidente a respeito do papel da imaginação na poética, como de resto nas próprias origens do conhecimento, em favor da demonstração apodíctica, ou do desprezo pela verossimilhança da retórica em comparação com o grau de certeza da lógica. A estreiteza de um ponto de vista meramente lógico do discurso veio amesquinhar até o papel da dialética (por lidar com o domínio das probabilidades) na produção do conhecimento.
Mostrando-se que, entre os Quatro Discursos, há mais uma diferença de grau do que de natureza, Olavo de Carvalho reestrutura o Organon dentro dos quadros de uma história da cultura caracterizada pela "presença das quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria)". Dessa forma,
(...) os quatro conceitos básicos são relativos uns aos outros; não se concebe o verossímil fora do possível, nem este sem confronto com o razoável, e assim por diante. A consequência disso é tão óbvia que chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha percebido: as quatro ciências são inseparáveis, tomadas isoladamente não fazem nenhum sentido. O que as define e diferencia não são quatro conjuntos isoláveis de caracteres formais, porém quatro possíveis atitudes humanas ante o discurso, quatro motivos humanos para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a imaginação à imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, para examinar criticamente a base das consequências e prolongamentos de juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros, construindo com eles o edifício do saber científico.
O conhecimento humano, sendo orgânico, não se faz desligado das amarras do mundo sensível, nem desamparado da luz dos primeiros princípios, já que, em Aristóteles, a sua gnosiologia é inseparável de sua antropologia. Por isso a unidade do conhecimento é um dado por excelência, e, como ela se reencontra na multiplicidade dos seres sensíveis, bem como na diversidade das formas de captá-los, a teoria dos Quatro Discursos - desentranhada por Olavo de Carvalho na "circularidade dinâmica" por ele apontada no sistema aristotélico - é fundamental para a compreensão dessa mesma unidade. Pois o que torna particularmente rica a obra de Aristóteles é o número de interpretações que ela propicia, e que não propiciaria caso fosse unívoca e unilateral sua visão do conhecimento.
Se a riqueza dessa obra advém de sua concepção de que o Ser pode ser dito de vários modos, a compreensão do Organon, sobretudo após a recuperação da poética e da retórica, implica o desvelamento de toda uma metafísica implícita ou subentendida em seu sistema. São quatro, portanto, as formas assumidas pelo Logos ou palavra do Ser: o Logos pronuncia o Ser através da imaginação, alargando o campo do possível; chega a uma decisão prática, fundado na eloqüência da verossimilhança; questiona-se num jogo de múltiplas hipóteses ou probabilidades; e afirma-se, finalmente, na universalidade dos seus princípios. Mas o Logos é retroativo e prospectivo, ao mesmo tempo, por visar o Ser e não apenas o ente; por aspirar à universalidade, mas sem perder de vista a singularidade.
Aristóteles, unindo o céu das essências platônicas com a terra dos seres singulares e sensíveis, busca, através da unidade do diverso, mais do que uma episteme, uma sabedoria metafísica que, ascendendo do plano mitopoético à retórica das decisões humanas e destas à contraposição dialética das probabilidades até às afirmações universais dos primeiros princípios - nos leve finalmente ao conhecimento do conhecimento.
Dessa forma, Olavo de Carvalho, em Aristóteles em nova perspectiva (1996), consegue reabilitar Aristóteles de todos os equívocos que aderiram historicamente à longa e acidentada trajectória de seu pensamento, fazendo-nos redescobrir o sabor verdadeiro de sua filosofia ou sabedoria do Ser (in Escolha e Sobrevivência, Ensaios de educação estética, É Realizações, 2004, pp. 104-106).
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