Escrito por Gianni Vattimo
«Dizer que
a verdade aí está dada no mundo, só pode significar que o espírito abandonou
aquela absoluteidade e infinita transcendência que já vimos serem-lhe inerentes
de acordo com o mesmo processo de saber e pensar e para que pensar e saber não
sejam em vão. A verdade deixará então de se apresentar como princípio para se
confundir com o ser. E, com efeito, o mesmo espírito que, encarnando, abandonou
a absoluteidade, se afirmou, por um lado, como sendo o ser que é e, por outro lado, como sendo também a verdade.
Se o ser ou as formas de ser que há no mundo surgem assim como sendo o mesmo ser, deixam elas de constituir aquilo que o platonismo
concebeu por aparência do ser, na
qual convergem o pensamento que há em nós e o ser que há na aparência. A
relação entre os seres do mundo, que são aparência do ser, e aquele mesmo ser
de que são a aparência, é, nessa concepção, a relação onde se situa a verdade
ou onde o princípio da verdade identifica o seu sentido espiritual com o seu
sentido ôntico. Acentuando e desenvolvendo essa identificação, Aristóteles
preferiu pensar que o ser que há na aparência é o mesmo espírito, dizendo que o
essencial de todos os seres existentes ou aparentes é a enteléquia, sem a qual nenhuma forma pode ter origem, ou a substância, sem a qual nenhuma forma pode
perdurar, enteléquia e substância que representam o que do espírito há nos
seres e o intelecto pode inteligir.
Deste modo
a verdade se manifesta simultaneamente no pensamento e nos seres, e sendo, no
domínio do espírito, o princípio susceptível de intuição e discurso, de ideia e
logos, é, no domínio do ser, o que reside na enteléquia ou aquilo pelo qual o
ser é aparência.
Na
modernidade porém o ser afirma-se, não como aparência, mas como o ser que é a
verdade. O que o pensamento perseguia, a verdade, torna-se manifesto, e o
saber, de cristalização na incessação do pensar, fica de uma vez por todas dado
e não é mais do que conhecimento do que está patente, fixado, dito e escrito em
todas as formas de ser que são a multiplicidade universal dos seres existentes.
Foi a
partir daqui, da transferência do ser da verdade para a verdade do ser, da
transferência do saber da ordem do espírito para a ordem do ser ou, finalmente,
da instauração da verdade como manifesta em todos os seres e do saber como dado
e feito, que o processo da modernidade se desenvolveu numa continuidade
ininterrupta conduzindo, em suas consequências mais flagrantes que nas duas
primeiras partes deste livro descrevemos, à frustração do direito no intuito de
realizar a liberdade, à imposição do primado da vontade e prioridade da acção e
ao repúdio de toda a transcendência.
Na primeira
fase deste desenvolvimento, correspondente à escolástica medieval, foi a
teologia que monopolizou e assegurou a exclusividade ou predomínio da verdade
do ser em todo o processo do saber. Na segunda fase, essa mesma função foi entregue à ciência moderna sobrepondo à verdade do ser, que a divindade seria e se exprimia na religião, a verdade manifesta e dispersa na multiplicidade dos seres existentes ou natureza. Numa e noutra fases, o
pensamento, representado na filosofia, viu-se reduzido a servo da teologia e a
servo da ciência e foi teorizado, já em termos de razão, não de intelecto, nous ou espírito, como incumbido de
determinar as vias e as condições do saber, isto é, de mostrar como é possível
um saber dado no homem de uma verdade dada no ser. Por fim, a mesma filosofia
foi declarada finda e depois substituída, no seu carácter necessariamente
especulativo, por uma “filosofia prática” que se formou e desenvolveu na ciência
moderna e se assegurou contra a intervenção da transcendência pelo recurso seja
a um idealismo extreme seja a um materialismo igualmente extreme que se ignoram
na origem de onde vieram – a ideia e a matéria – e comummente consistem num
anti-transcendentalismo.
De todo
este longo, mas contínuo, coerente e ininterrupto processo, resultou a situação
em que o homem hoje se encontra no mundo e aquela em que o mundo se encontra
no homem: a primeira dominada pela escravidão e a degenerescência, a segunda
suspensa da ameaça de uma destruição catastrófica.
No início
do processo está uma interpretação do cristianismo e a filosofia moderna que
ela tornou possível fornecendo-lhe na minoração da fé em crença e da crença em
vontade, poder e domínio, a convicção de que a verdade está no mundo, nas
formas do ser e até nos “corpos que nos rodeiam”, seja miticamente encarnada
segundo a imagem religiosa seja segundo a interpretação que alarga essa imagem
a todas as formas existentes, a todos os seres vivos e até inertes e que teve
no franciscanismo, a que pertencia Duns Escoto, a mais expressiva exaltação
sentimental, emocional e beatífica.»
Orlando Vitorino
(«Refutação da Filosofia Triunfante»).
«Heidegger
parte da concepção, comum na tradição metafísica, da verdade como conformidade
da proposição com a coisa. Mas (e isto já está presente no parágrafo 44 de Ser e Tempo) esta conformidade só é
possível se o próprio ente for já acessível, só se estiver aberto um âmbito
dentro do qual o estar-aí, pode relacionar-se com o ente. (Tenha-se sempre
conta o paralelo da luz: só pode ver-se alguma coisa se houver luz). No
entanto, é importante sublinhar que a abertura assim proposta é um estar-aberto
do estar-aí ao ente. Isto é,
Heidegger não rejeita redondamente a concepção da verdade como conformidade;
antes a assume como o modo fenomenológico do dar-se originário e imediato da
experiência da verdade, modo do qual é necessário partir e que não pode
eliminar-se como pura aparência. Ao buscar a verdade, esforçamo-nos
efectivamente por nos conformarmos
com a coisa, isto é, tomamos a coisa como norma. Este modo de nos
relacionarmos com a coisa pressupõe uma abertura mais originária (que
comparámos com a luz), só que esta abertura é precisamente um estar-aberto à
coisa como tal. Procurar esta conformidade com a coisa significa tomá-la como norma
do nosso julgar e do nosso dizer: o facto de haver uma norma a que devemos adequar-nos (e à qual também podemos não nos
adequar: afirmando o falso por interesse ou por insuficiente empenho na
indagação) significa que aqui entra em jogo a liberdade. Abrir-se à coisa procurando adequar-se-lhe como norma é
um acto livre: a essência da verdade é a liberdade. Mas dizer que a essência da
verdade é a liberdade (como abrir-se do Dasein
ao ente) não significará reduzir a verdade a algo de “subjectivo”, a um acto
arbitrário do homem? Isto será assim se concebêssemos a liberdade – como habitualmente
se faz, como uma propriedade do
homem. Mas esta liberdade como possibilidade que o homem tem de escolher entre
os entes pressupõe também que os entes são já acessíveis. De maneira que não
pode pensar-se o facto de o ente se tornar acessível, a abertura originária de
que depende a possibilidade de qualquer escolha, como um acto livre do homem
nesse sentido. O abrir-se ao ente não é algo a que o homem possa escolher porque
constitui o próprio Dasein como tal
enquanto ser-no-mundo. Esta liberdade não é, pois, uma faculdade de que o homem
disponha, mas é ela que dispõe do homem.
“O homem
não ‘possui’ a liberdade como propriedade sua, mas precisamente o contrário é
que é verdadeiro: a liberdade, o estar-aí, o estar-aí ex-sistente e revelante,
possui o homem e possui-o tão originariamente que só ela permite a uma
humanidade entrar nessa relação com um ente como tal na sua totalidade, em que
se funda e traça toda a sua história”.»
Gianni
Vattimo («Introdução a Heidegger»).
«A criação
é, na filosofia, uma palavra suspeita, tão estreitamente conotada está com o
significado teológico de criação a partir do nada. A criação a que o pensamento
do homem procede é a de dar existência ao mundo de coisa nenhuma. Coisa nenhuma
não é o nada nem é nada. É, sim, o que fica depois da cindida verdade o ter abandonado
e o fugaz espírito o ter perpassado. E o que fica é o saber de si da verdade
cindida que se esvaiu do ser a que era substancial. Fica porque não tem origem
nem princípio na verdade e, se à verdade é dado, é-lhe dado como extrínseco ou
independente dela e, portanto, não a acompanha no seu retorno ao Uno de onde se
cindiu. Mas fica sem o ser para cuja verdade substancial se formou, sem
substância portanto, como atributo extrínseco ou predicado de que o atributo é
o conceito, ou como potência cuja actualização se esvaneceu com o esvaimento do
ser em cuja verdade se actualizara. Assim, sem substância, sem o conteúdo que
tivera no predicado intrínseco ao ser, sem o acto que fora o acrescentamento do
saber de si à verdade do ser, fica como coisa nenhuma, como o que podemos dizer
mundo de coisa nenhuma.
Com ela
fica o pensamento que permanece, o pensamento do homem que, tendo seu princípio
no espírito, não o acompanha em sua universalidade, une seu movimento até ao
Uno, na sua substituição da verdade cindida à verdade una. Permanece o pensamento
do homem porque nele encontrou conteúdo e realidade o pensamento universal do
espírito universal que, sem ele, eram apenas portadores da liberdade, decerto
absoluta, mas só absoluta, liberdade do não-ser e do sem-limite, portanto
indefinida ou irreal e vazia.
O conteúdo
e a realidade que o movimento do espírito encontrou no pensamento do homem
constituíram o saber de si que, transmitido à verdade do ser, acrescentou o atributo
ao predicado e o acto à potência, realizando as virtualidades ou respondendo às
expectativas contidas no mundo do ser e para as quais ele tem origem.
Assim
independente tanto da verdade substancial quanto do espírito insubstancial, o
saber de si não acompanha o movimento universal de um e outro, e permanece.
Permanece, repetimos, como o atributo sem predicado ou como potência sem
actualidade.
Em
contraste com o conhecimento e o que em geral se designa modernamente por
ciência que são conhecimento ou ciência de outrem. O saber é sempre a expressão
de algum momento significativo do pensamento, e é sempre saber de si.
Entre os
seres, só o homem tem por si o saber de si porque só o homem pensa. O início da
filosofia foi expresso no preceito socrático geralmente traduzido por “conhece-te
a ti mesmo” o qual, atendendo à modernamente imperiosa distinção em que
conhecer e saber se dirá “pensa-te a ti mesmo” equivale a “pensa o pensamento”,
uma vez que, sendo o homem o único que pensa, é o mesmo pensar-se ele a si
mesmo ou pensar o pensamento.
Ora o saber
de si pode ser saber para si e saber para outrem e estes equivalem a ser para
si e ser para outrem. O mundo do ser, que é o da verdade, é o do saber para si.
O saber de si para outrem é o do mundo do espírito.
Dá o
espírito ao ser, mediante o pensamento, o saber de si para que a verdade nele
cindida e prisioneira seja para si e à unidade regresse, esvaindo o ser, então
manifestamente ilusório. Cumpre ao pensamento do homem, imitando o espírito em
que tem princípio, dar ao mundo de coisa nenhuma, que fica da ausência do ser e
da verdade, coisa nenhuma que é o atributo sem predicado ou a potência sem actualidade, o saber
de si que, por ser de coisa nenhuma, não pode ser para si e é necessariamente
para outrem. Ser para outrem é existir. Assim, o pensamento do homem dá
existência ao mundo de coisa nenhuma ou, na expressão mais rigorosa que começámos
por utilizar, cria a existência do mundo.
Há, então,
o mundo que é por essência e o mundo que é por existência. A essência é o que faz
que o ser e o mundo que cria é, portanto, o do ser. A existência é o que faz
que o que é em si seja para outrem e o mundo que cria já não diremos agora que
é o de coisa nenhuma mas o do ente, o do que, não sendo substância nem conteúdo,
no entanto está sendo, é no entanto real. Diremos, não que é, mas que há. E
agora compreendemos que a noção de realidade, na qual os pensadores subsumiram
a insustentável noção do ilusório ser, consiste, não em ser, mas em haver.
Conviria
atentar aqui na dificuldade de pensar sem o recurso ao ser e, pelo ser, à
substância, dificuldade que decorre da prevalência milenária das filosofias do
ser com as consequentes formas que elas instalaram no exercício humano, talvez
demasiado humano, do pensamento, formas entendidas como categorias e, mais
modernamente, transcendentais e apriorísticas, para as quais a realidade
tacitamente se pensa como ser, ou no ser se firmando, ou na verdade do ser
tendo a sua substância. Fazem-se remontar estas formas aos gregos interpretando
a filosofia clássica, num sentido como tendo por princípio, a que todos os
outros afluem, o do ser [Heidegger], noutro sentido como fundando o pensamento
nas categorias, que não são senão classificações, e evocando uma tradição, que
Álvaro Ribeiro recusa e refuta, segundo a qual Aristóteles considera a
substância como a “categoria primeira”. A dificuldade que assim observamos no
exercício humano de pensar teve origem mais uma vez na indistinção entre
espírito e verdade, confundindo-se o movimento de um com o movimento contrário
do outro, identificando-se o pensamento, que é próprio do espírito, com o ser,
que é próprio da verdade, confundindo-se o mundo da essência e do ente. Na
concepção da substância “como categoria primeira”, por exemplo, observa-se que
o termo grego que se traduziu por substância também se pode traduzir por
essência e, a utilizar esta segunda tradução, ficaria claro que o mundo
substancial é o do ser, não o do que dizemos agora ente.
Observa o
erudito francês E. Gilson que a interminável discussão sobre a distinção entre
essência e existência seria elucidada se se tivessem conservado nas línguas
vernáculas as palavras ser e ente, e o que distingue as respectivas
noções, das quais só restam hoje vestígios no italiano. Mostra assim ignorar o
admirável prosador a língua portuguesa onde se conservaram, até com uso
corrente, aquelas duas palavras.
Em sentido
filológico, ser é o que é, ente é o que
está sendo. Os existencialistas contemporâneos supriram a ausência das duas
palavras dizendo o sendo por não
poderem dizer o ente. Em sentido filosófico, ente não é, não o que é, mas o que
existe. Existir é estar sendo para outrem. O mundo da existência é o mundo dos entes
como o mundo da essência é o mundo dos seres.
Vimos como
se confundem essência e substância. Ambas, enquanto palavras, são a tradução de
ousia. Enquanto noções, tem-se feito
remontar a de essência a Platão, a de substância a Aristóteles. Mas a essência,
em Platão, não é, como na filosofia portuguesa, a verdade, sim a ideia. E a
substância, em Aristóteles, também não é, como na filosofia portuguesa, a
verdade cindida e prisioneira no ser, mas provém do espírito. Todavia, a
filosofia portuguesa é igualmente fiel ao platonismo e ao aristotelismo.
A fidelidade ao aristotelismo manifesta-se,
não tanto na presença constante de Aristóteles na história dos pensadores
portugueses, não tanto ainda no realismo que os caracteriza, mas na mais
importante noção do espírito como insubstancial
substante. Trata-se de uma noção de José Marinho a quem Álvaro Ribeiro
atribui “o mais alto valor de opor à fenomenologia do ser a ontologia do
espírito”.
Aparece o
espírito no aristotelismo como o único, mas inesgotável, dispensador de formas.
A forma não se confunde com o limite, próprio do ser, porque o limite é
exterior enquanto a forma é interior, porque o limite define e fixa a definição
e imobiliza na fixidez enquanto a forma é a variável actuação de uma potência
que não se esgota num único acto e, porque interior, se diz que é para os
corpos o que a alma é para o homem e – agora hegelianamente – o que a síntese é
para a composição dos elementos que compõem os corpos numa unidade
indecomponível. Álvaro Ribeiro utilizou a forma, a alma e a síntese para demonstrar
como é frustre e vã a finalidade que a si mesma se atribui a ciência moderna de
alcançar o conhecimento definitivo no conhecimento do último elemento em que
está a decompor os corpos.
Dispensado
de forma, o espírito põe a forma onde está o informe. Como está em movimento incessante,
ou fugaz, logo, onde a põe, a abandona. Não está, pois, na forma, ou naquilo em
que pôs a forma, como substância porque, nesse caso, não a abandonaria e nela
se esgotaria. Está como substante. Quando José Marinho viu que o espírito é
insubstancial, viu que a noção de insubstancial substante é a que lhe convém.
Aristóteles
não distinguiu, porém, como José Marinho entre verdade e espírito. Não opôs
como ele “a fenomenologia do ser à ontologia do espírito”, para empregarmos a
expressão, aliás menos ôntica, de Álvaro Ribeiro. Menos ôntica porque o que diz
“fenomenologia do ser” é a fenomenologia da verdade uma vez que da verdade é o
ser a manifestação, o fenómeno.
O que o
aristotelismo opõe ao espírito, dispensado de formas, é o informe. E dado que a
forma é o interior, a indecomponível e indivisível unidade interior ou íntima,
o informe, embora com limite exterior, é o ser. À luz da “Teoria do Ser e da Verdade”, a forma é o saber de si que o espírito traz à verdade do ser. [Isto
de o aristotelismo não haver oposto, para de novo recorrermos à expressão de
Álvaro Ribeiro, a ontologia da verdade à ontologia do espírito, foi a de onde se
desenvolveu a interpretação que incrustou, no pensamento filosófico e no
pensamento ingénuo, a dualidade de espírito e matéria, como entre si contrários
e opostos. Considerou-se que o informe seria um predicado que se relaciona com
a ideia de informidade e a informidade seria a matéria que Aristóteles dissera
ser nada].»
Orlando Vitorino
(«As Teses da Filosofia Portuguesa»).
«A palavra metafísica aparece tardiamente na
história da cultura europeia. Os pensadores helénicos não usaram tal termo que
consolida uma expressão usada pela primeira vez, no século I A. C., quando
Andrónico de Rodes coligiu os textos aristotélicos. Os 24 livros que desde
então ficaram agrupados sob a capa, ou sob o capítulo, de Metafísica tratam diversas questões filosóficas sem evidente nexo
doutrinal.
Este caso
de catalogação, ou de ordenação didáctica, foi, porém, de más consequências
para a interpretação do aristotelismo e, consequentemente, da Escolástica. Os
pensadores judeus, cristãos e islâmicos da Idade-Média intercalaram assim entre
a física (ciência do movimento, ou da alteração no espaço e no tempo) e a
teologia (ciência da palavra divina) um método de investigação pela razão
intuitiva, e, depois pela razão discursiva, que, ampliado, pretendeu dominar a
totalidade finita do conhecimento humano. A Idade Moderna caracteriza-se
exactamente pelo florescimento de vários sistemas metafísicos, obra da palavra
humana que orgulhosamente se separa da palavra divina, e que parece vitoriosa
de longa polémica contra os intérpretes autorizados das Sagradas Escrituras.
A ambição
de reunir, em uma só e última ciência filosófica, a teologia, a antropologia e
a cosmologia, mediante qualquer monismo de substancialidade, causalidade ou finalidade,
será irrealizável enquanto vivermos, falarmos e pensarmos. A desilusão de várias
gerações atingiu já o mais alto grau de evidência no existencialismo. A
filosofia actual não admite a distinção entre física e metafísica, entre espaço
real e espaço ideal, distinção que é postulada para extrair do tempo a vida do
Espírito.
Quando Kant
demonstrou a impossibilidade de ver na metafísica uma verdadeira ciência,
começou para a filosofia nova idade. Desde então a palavra de Andrónico de
Rodes deveria ter saído do vocabulário filosófico, e, com efeito, sabemos que
Hegel e Comte reduziram ao mínimo o valor e o uso do termo. Infelizmente, em
muitas escolas continuou a ensinar-se metafísica e alguns escritores
conservaram estima pela velha palavra, mas atribuíram-lhe livremente
significações incompatíveis com o rigor lógico de uma verdadeira ciência,
gerando equívocos muito prejudiciais para o desenvolvimento da filosofia.
Kant,
negando sem provas a possibilidade humana de intuição intelectual, minorou o
significado das virtudes teologais e, consequentemente, a apreensão das
verdades implícitas nas Escrituras
Sagradas. Assim, limitou o conhecimento humano a dois factores gnósicos,
que denominou Sinnlichkeit (Sensitividade) e Verstand (intelecto, ou razão discursiva). Quanto à reine Vernunft (razão pura, isto é, sem
interferência da intuição sensível ou da intuição intelectual) atribuiu-lhe a
função de coordenadora dos conhecimentos já obtidos, pelo que a considerou sem
valor gnósico e, portanto, sem valor sófico.
A
gnosiologia de Kant é apenas válida para o mundo sensível que podemos inteligir
mediante as percepções, os conceitos e os juízos. Examinou Kant, na sua notável
analítica, os processos lógicos que permitem às ciências matemáticas e físicas
formular certezas e verificar a respectiva aplicação aos domínios de estudo que
competem à metafísica. Concluiu que o uso das categorias da razão discursiva,
para além das condições subjectivas do espaço e do tempo, é uso transcendental,
mero desvio que não conduz a qualquer verdade objectiva.
(...) Kant ainda
manteve a palavra “metafísica”, e para lhe atribuir algum significado definiu-a
como aspiração inevitável do pensamento humano. Há no coração do homem três
sentimentos que nem a argumentação seguida de violência consegue anular: o
anseio por uma vida melhor, aspiração que comprova a liberdade; a não aceitação
da morte como fenómeno natural, ou luta pela imortalidade; o reconhecimento de
um ente sobrenatural a quem se presta culto e de quem se recebe graça, ente
que, por superior a nós, não pode deixar de ser concebido senão como Espírito,
ou Deus. A estas três aspirações da alma humana deu Kant o nome de ideais, ou
ideias: – liberdade, imortalidade e Deus.
Tais ideias
não são demonstráveis pelos processos gnósicos da epistemologia moderna nem
pelos termos, juízos e raciocínios dos compêndios de lógica; nisto é irrefutável
a crítica de Kant aos escolásticos decadentes. Kant pretendeu, porém, traduzir
em termos de moral o que de válido parecia existir nas antigas teorias do
sobrenatural, e assim reduziu as ideias de liberdade, imortalidade e Deus a
meros postulados da actividade prática. Explica-se assim que ao sistema de Kant, que é uma metafísica de ideais, se tenha dado o nome de idealismo, para
o distinguir dos ideísmos, ou sistemas de ideias, como o de Platão ou o de
Berkeley.
A admissão
de uma metafísica para garantia da moral, metafísica sem construção teórica,
sem base científica, sem relação com a verdade, permitiu a floração de
doutrinas anti-racionalistas e anti-intelectualistas dependentes da vontade e
do sentimento, da posição dos valores, da estimativa axiológica. Verificando
que é a vontade o que principalmente move a política, e que o sentimento é o
que principalmente move a literatura, compreendemos a importância da obra de
Kant na génese do romantismo alemão, movimento anti-metafísico porque
anti-racionalista. Hegel, que só em escritos de juventude admitiu o conceito de
metafísica e que na adulta idade
reconheceu que os princípios válidos em metafísica são afinal princípios de
lógica, reagiu através de todo o seu ensino e de toda a sua obra contra o
excessivo sentimentalismo e o excessivo voluntarismo do pensamento romântico.
Mercê de
vários factores culturais, nota-se nos meios universitários um movimento de
restauração do ensino da metafísica, e não seria mau que esta disciplina figurasse
com a de lógica nos quadros didácticos das Faculdades de Ciências. Teria esse
ensino por função mostrar que a cosmologia não é ciência autónoma, porque a
epistemologia que lhe corresponde tem de proceder em obediência aos princípios
de finalidade, de causalidade e de substancialidade, e não apenas a este
último. As ontologias, as filosofias do ser e as doutrinas da substância, não
satisfazem inteiramente ao problema de restaurar a metafísica como ciência
filosófica e, pelo contrário, não evitam que o pensamento humano regresse ao
caminho errado que conduz do misticismo ao panteísmo, e do panteísmo ao
ateísmo.»
Álvaro Ribeiro
(«Apologia e Filosofia»).
«SE É CERTO
que toda a metafísica deve tomar por fundamento verdades incontestáveis, e se
ninguém contesta que além daquelas verdades muito gerais que alguns dizem
formais e outros metafísicas, como o princípio de identidade, só conhecemos
como coisa certa e inelutável a necessidade da morte do nosso ser biológico e
mais nenhuma outra, então o reconhecimento dessa mortalidade pode e deve
constituir o ponto de partida de toda a investigação metafísica.
Porém é igualmente
certo que, quando o filósofo, em vez de falar em seu próprio nome e raciocinar
como se conversasse na intimidade com outro seu igual, como sempre se deveria
fazer, toma a palavra ante uma assembléia acadêmica para dirigir-se a ela em
nome do consenso intelectual ou científico do seu tempo, então já não pode
adotar esse ponto de partida, pela simples razão de que a comunidade acadêmica
ou a classe letrada, não possuindo a unidade real de um ser biológico, mas
apenas a unidade potencial de um todo matemático ou de um universal indutivo,
não pode tomar responsavelmente consciência de sua própria imortalidade como o
faz o indivíduo de carne e osso, mas sim, reconhecendo embora em palavras o
caráter historicamente transitório de suas crenças admitidas no momento, tende
sempre a tomar por premissa implícita a sua própria imortalidade, na medida em
que sempre espera que algumas das suas crenças, ao menos, sobrevivam ao seu
tempo, já que se admitisse o contrário estaria solapando a própria autoridade
com que pretende, enquanto poder socialmente reconhecido, influir sobre a
moldagem do futuro. Mais ainda, se a individualidade biológica tem um prazo de
duração máxima dificilmente ultrapassável, as comunidades acadêmicas não o têm,
e, por não saberem quanto devem durar, não têm outro remédio senão dar por
pressuposto que devem durar para sempre, mesmo sabendo que não vão durar. A
consequência disto é que toda a especulação filosófica fundada no consenso
científico ou letrado de uma determinada época traz em si um certo coeficiente
de duplicidade e falsidade, na medida em que não pode, ou dificilmente pode,
deixar de tomar como premissa uma crença absurda e autocontraditória segundo a
qual uma duração simplesmente difícil de calcular na prática pode ser admitida
como duração objectivamente ilimitada.
Já o
indivíduo de carne e osso, estando apto a admitir não só a própria morte como
também a certeza praticamente infalível de vir a ser esquecido e não deixar
marcas senão tênues e passageiras na história deste mundo, estando mesmo
obrigado a admiti-lo, pela razão de que a consciência de sua individualidade
biológica é uma só e mesma coisa que o reconhecimento da sua mortalidade física
e dos limites espaço-temporais da sua forma de existência, e estando, ainda
mais, obrigado a reconhecer que esses limites estão balizados por uma
durabilidade média dificilmente ultrapassável, é, por estas razões,
praticamente obrigado a admitir como verdade primeira a certeza inquestionável
da morte, e a filosofar responsavelmente segundo esse axioma infalível, o único,
talvez, que é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, princípio auto-evidente e
fa[c]to de experiência.
O indivíduo
é assim depositário de ao menos uma verdade certa cuja consciência responsável
escapa necessariamente aos consensos coletivos, e, neste sentido, é o guardião
de uma espécie, ao menos, de rigor filosófico, que é inalcançável mesmo às
comunidades científicas mais sérias e devotadas. Enquanto comunidade, nenhuma
pode reconhecer que dentro de um prazo médio determinável terá se transformado
em pó; e, por isto, nenhuma pode responder seriamente por suas palavras ante o
tribunal da consciência de mortalidade.
Por isso
mesmo tem sido uma suma desgraça do pensamento ocidental a crença generalizada
de que os julgamentos da consciência individual devem ser submetidos à
verificação ante o tribunal da comunidade letrada, sempre que essa crença não
seja compensada pela admissão da sua contrapartida necessária: a admissão de
que somente a consciência individual pode ser plenamente responsável por suas
próprias palavras, enquanto as coletividades, destituídas de vida biológica
unitária, diluem sempre sua responsabilidade entre as cabeças individuais que
as compõem e, ao mesmo tempo que proclamam possuir tanto mais autoridade quanto
maior o número de seus membros, na mesma medida se tornam tanto mais incapazes
de assumir uma responsabilidade moral, jurídica ou intelectual pelo que quer
que creiam ou afirmem; e, sobretudo, podem eludir indefinidamente, por serem de
duração indefinida, a admissão da única premissa material universalmente válida
de todos os raciocínios metafísicos, que é a realidade da morte.
A
coletividade, não podendo tomar consciência responsável da sua própria morte,
pode no entanto admitir pro forma a
dos membros que a compõem. Mas mesmo este reconhecimento não é um ato de
consciência, e sim a expressão protocolar da coincidência lógica entre
conteúdos de vários atos efetuados, independentemente, pelos membros
individuais da coletividade.
Nesse sentido,
a coletividade não obedece à condição ótima para dar início à investigação
metafísica, condição que reside no ato de tomar consciência pessoal e
responsável da própria mortalidade. O consenso acadêmico ou letrado tem,
portanto, menos autoridade em metafísica do que o meditador solitário.»
Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).
«[A] persistência
da Escolástica, e dentro da Escolástica o aristotelismo, combatido por uma linha
de pensadores que vai de Francisco Sanches a Luís António Verney, e também de
Amorim Viana a Sampaio Bruno, pareceu sempre como um enigma irritante a todos
quantos não compreenderam a peculiaridade mental dos povos ibéricos. A
Escolástica existe pela conciliação escolar do texto morto, mas sagrado, com a
tradição viva e livre. É também a conciliação da ordem religiosa com a ordem
filosófica no problema de Deus, modo monárquico ou mono-árquico, de assegurar a
liberdade de pensamento e, consequentemente, as liberdades adjectivadas.
Desviados
da linha medieval, erraram os escolásticos modernos quando aplicaram à Física
de Aristóteles o canon de escrituras sagradas, lendo como texto perene os
livros que haviam resultado de sérios processos de observação e experimentação
naturais. A obra lógica, ética e metafísica de Aristóteles permaneceu válida
nas suas linhas peninsulares e resistiu a todas as críticas impertinentes;
assim o entenderam os componentes do escol nos povos peninsulares; mas seja-nos
permitido afirmar que a interpretação portuguesa
da filosofia de Aristóteles é superior à interpretação alemã. Lida directamente,
e não através de comentadores que adaptaram às circunstâncias contingentes e às
oportunidades pretéritas, a obra de Aristóteles refulge no brilho do seu
pensamento essencial, e continua a ser saudada por quantos actualizam a sua
cultura.»
Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).
Que é a
Metafísica?
Nos anos
imediatamente posteriores à publicação das duas primeiras secções de Ser e Tempo, Heidegger encontra-se
perante problemas que (...) apontou no parágrafo final daquela obra e que
condicionam as possibilidades de desenvolvimento do discurso nela iniciado. Em Ueber den Humanismus, de 1947, Heidegger
dirá que Ser e Tempo, não pôde chegar
ao fim do discurso empreendido por insuficiência de linguagem, ainda demasiado
condicionada pela «metafísica» [1].
De qualquer maneira que se avalie esta afirmação (formulada vinte anos depois
de Ser e Tempo), apesar de tudo é evidente que, desde as primeiras páginas
daquela obra, Heidegger mostra que entende a sua indagação como problematização
das próprias bases da filosofia ocidental. Ser
e Tempo, como sabemos, parte da constatação de que o ser, na tradição
filosófica europeia, se concebe de acordo com o modelo da simples-presença. Mas
a presença é apenas uma das dimensões do tempo: trata-se então de pôr a claro o
fundamento da metafísica (entendida por agora como a doutrina do ser que se
encontra substancialmente idêntica no fundo de todo o pensamento europeu),
analisando a relação ser-tempo. Na verdade, esta relação não é tratada
tematicamente em Ser e Tempo, porque
a obra é interrompida antes; mas, pelo menos, chegou-se ao resultado de pôr em
relevo a conexão peculiar que vincula o ser – como aparecer do ente no mundo –
com o Dasein; e também o carácter
constitutivamente temporal e histórico do Dasein.
Apesar de
tudo, atendendo ainda às páginas de Ser e
Tempo sobre a temporalidade e a historicidade do Dasein, o «facto» de que parte Ser
e Tempo (isto é, a tendência que se afirma em toda a tradição filosófica
ocidental para conceber o ser de acordo com o modelo da simples presença) não é
um acidente que se possa pôr de lado com um simples passo teórico; na
dificuldade de prosseguir a sua indagação, Heidegger assinala os pesados
condicionamentos sobre ele exercidos por toda uma tradição de pensamento
cristalizado na linguagem filosófica de que dispõe. Quer teoricamente (na base
da elaboração do conceito de temporalidade e de historicidade de Sein und Zeit), quer praticamente (com a
dificuldade experimentada ao procurar problematizar a concepção metafísica do
ser como simples presença devido à insuficiência), Heidegger encontra-se, pois,
perante a necessidade de reflectir sobre as bases e o significado da
metafísica, isto é, da concepção do ser que ele acha substancialmente unitária
e presente em toda a tradição ocidental. O seu pensamento poderá desenvolver-se
apenas na medida em que, projectando-se, assume efectivamente o seu próprio
passado, a sua própria condição histórica, que é a de pertencer a uma certa
tradição e a uma certa linguagem conceptual [2].
Acerca do
emprego do termo «metafísica», convém adiantar desde já, para efeitos da
clareza, o desenvolvimento do seu significado nas obras de Heidegger. Já em Ser e Tempo (ver, sobretudo, os
parágrafos 1 e 6, no último dos quais se fala explicitamente da necessidade de
uma «destruição da história da ontologia»: já que «apesar de todo o interesse pela ‘metafísica’ o problema do sentido do ser caiu no esquecimento») [3], o
pensamento que concebe o ser na base da simples presença é considerado um
pensamento «infundado», que esquece o verdadeiro problema a que deveria
prestar-se a atenção. Apesar de tudo, o termo metafísica, tanto em Ser e Tempo como nos escritos
contemporâneos da dita obra e nos imediatamente posteriores (pelo menos até ao
escrito sobre a verdade de 1930), continua ainda a indicar em geral o pensamento
que põe o problema do seu mais além (metá)
do ente como tal. Neste sentido, o tratado sobre Que é a Metafísica? [4]
afirmará que a metafísica está conaturalizada com o próprio estar-aí do homem [5],
uma vez que, como se viu em Ser e Tempo,
o conhecimento do ente implica já uma compreensão preliminar do ser do ente,
isto é, o «projecto» dentro do qual o ente chega ao ser, aparecendo na
presença: isto implica um fundamental transcender do ente por parte do Dasein
que, ao compreender o ser, vai sempre mais
além do ente como tal.
Não
obstante, na história do pensamento ocidental, este transcender o ente na
direcção de uma consciência do ser, sempre implicou de facto um «erro», pois
sempre existiu a tendência para conceber o ser na base da simples presença. A
partir do escrito Introdução à Metafísica
de 1935 [6], o
termo metafísica assume assim em Heidegger uma conotação decididamente
negativa: metafísica é todo o pensamento ocidental que não soube manter-se ao
nível da transcendência constitutiva do Dasein,
ao colocar o ser no mesmo plano do ente. Por outras palavras, o conhecimento do
ente pressupõe no estar-aí uma constitutiva compreensão prévia do ser (o
projecto), e isto é o que se entende por transcendência do estar-aí a respeito do ente; essa transcendência reflecte-se no facto
de, desde os começos da história do pensamento ocidental, a filosofia formular
o problema do Ser do ente, isto é,
daquilo que constitui o ente como tal (a sua «essentidade»; basta pensar na
problemática aristotélica da ousía e,
antes, em Parménides e em Platão; precisamente Ser e Tempo tem como epígrafe uma passagem de O Sofista de Platão [7]; mas,
ao levantar-se este problema, o pensamento tende imediatamente a resolvê-lo de
uma maneira errada, a conceber o ser como uma característica comum de todos os
entes, como uma espécie de conceito exageradamente geral e abstracto (daqui o
desvanecimento do próprio conceito de ser e, por exemplo, a caída do ser no
nada da Lógica de Hegel) que se obtém
devido à observação daquilo que todos os entes têm de comum. Mas os entes são
concebidos – e já se verá porque – como simples presenças; de maneira que
também o ser se concebe em toda a história da filosofia ocidental como simples
presença; isto é, de acordo com o modelo do ente, que, por sua vez, é entendido
de uma maneira, conforme se viu em Ser e
Tempo, simplesmente “derivada”. Vista assim, a metafísica coincide com a
compreensão (ou não compreensão) do ser que tem a existência inautêntica; esta
conexão de metafísica com existência inautêntica está explicitamente indicada
na Introdução à Metafísica [8], ainda
que esta obra expresse uma tese já implícita em Ser e Tempo e nos escritos imediatamente posteriores [9]; o
termo metafísica chega a converter-se em sinónimo de esquecimento do ser, Seinsvergessenheit, um termo que no
posterior desenvolvimento do pensamento heideggeriano adquire uma posição
central.
Como se
articula, mais pormenorizadamente, esta reflexão heideggeriana sobre a essência
da metafísica, que tende a responder a uma das perguntas com que terminava Ser
e Tempo, a pergunta sobre como e porque «o ser é ‘concebido, em primeiro
lugar’, partindo da simples presença»? [10]
Este problema da metafísica e da história, que permanece vivo em todo o
pensamento de Heidegger posterior a Ser e
Tempo, caracteriza, porém, de maneira peculiar a sua indagação nos cerca de
quinze anos que se seguem à publicação daquela obra e domina e unifica o
pensamento heideggeriano até ao fim da segunda guerra mundial, o período em
cujo centro de interesse está a figura de Nietzsche, considerado como o
pensador em que a metafísica alcança a sua consumação e manifesta também a sua
essência do modo mais claro. As primeiras obras de Heidegger que seguem Ser e Tempo têm precisamente o sentido
de preparar a exposição e a elaboração do problema da metafísica e da sua
história, mediante uma série de indagações que podem parecer «afastadas» da
linha principal de Ser e Tempo, pois
dão a impressão de pôr de lado o problema da temporalidade [11].
No entanto, o desenvolvimento deste pensamento é bastante linear, até porque,
como diz Heidegger em Que é a
Metafísica?, a essência da metafísica não pode conhecer-se a não ser
levantando concretamente problemas típicos da própria metafísica e procurando
resolvê-los [12].
Mediante esta operação, manifestará a essência da própria metafísica e com ela,
inevitavelmente, também a questão do nexo ser-temporalidade que está na sua
base. Deste modo começa Heidegger a sua reflexão sobre a metafísica – que é,
pois, a reflexão tendente a pôr a claro as características da compreensão
histórica do ser em que nos encontramos lançados, como herdeiros de certa
tradição e de certa linguagem – elaborando, na base dos resultados de Ser e Tempo, algumas questões
metafísicas capitais [13].
Essas questões são: o problema do fundamento e o problema com ele ligado da
«diferença ontológica» [14],
o problema do nada [15],
o problema da verdade [16].
As três investigações constituem um «ciclo» que se fecha com a conferência A Essência da Verdade de 1930, que
contém a abertura para os escritos posteriores e que até se pode considerar
como a primeira obra do «segundo» Heidegger, sobre quem a critica tanto
discutiu...
Como o
próprio Heidegger sugere nas palavras preliminares escritas para a terceira
edição de a Essência do Fundamento
(1949), este ensaio e Que é a Metafísica?
– mas, como veremos, também a Essência da
Verdade –, podem considerar-se unitariamente como elaborações do problema
da negatividade, ou também é já veremos a razão desta identificação o problema da própria metafísica.
O ensaio
sobre a Essência do Fundamento parte da análise do princípio de razão
suficiente, formulado explicitamente como tal por Leibniz, mas que está
presente em toda a história da metafísica como princípio de causalidade. Em
conformidade com este princípio, tudo o que existe tem uma causa ou fundamento,
e o conhecimento do ente é o conhecimento que o conhece no seu fundamento (para
Aristóteles, por exemplo, a ciência é o saber das causas ou princípios). Porque
é que o princípio de razão suficiente tem validade universal, isto é, é válido
para todos os entes? Com base nos resultados de Ser e Tempo, também a validade deste princípio deve fazer-se
remontar ao Dasein: com efeito, não se pode pensar que a validade do princípio
se funda em alguma característica do ser entendido como algo objectivo (isto é,
simplesmente presente). Se os entes vêm ao ser enquanto se situam no mundo como
projecto aberto e instituído pelo Dasein,
a validade do princípio de razão suficiente deverá também ela ser referida ao
estar-aí que institui o mundo em que o ente aparece. Ora bem, o estar-aí como
cuidado, isto é, como «ser-já-diante-de si-em» (um mundo) [17],
é constitutivamente alguém que, enquanto se projecta (abre o mundo), assume
sempre a sua própria situação, e de tal maneira faz que torne presente o ente
que se lhe apresenta: são, como se recordará, as três dimensões da
temporalidade do estar-aí, temporalidade, que constitui o sentido unitário da
preocupação (Sorge). O Dasein, enquanto projecto lançado, tem
já uma compreensão do ser do ente, compreensão que se articula num discurso (o discurso é um existencial) em que os entes estão
concatenados entre si na forma da justificação
ou fundação.
Isto
significa que o princípio de razão suficiente em geral vale só porque existe o Dasein que, projectando-se e assumindo a
situação, abre um mundo como totalidade dos
entes, isto é, como um conjunto «sistemático», ligado por uma estrutura de
justificação fundante (lembremo-nos do que se disse em Ser e Tempo sobre o mundo como totalidade instrumental e de
significados: essa totalidade pode ser tal apenas na forma de um sistema de
referências e, portanto, de justificações e de fundações). O princípio de razão
suficiente vale, pois, porque existe o estar-aí como projecto lançado que abre o
mundo. O «verdadeiro» fundamento é, então, o próprio Dasein porque primeiro e mais fundamentalmente do que o ente,
compreende o ser, isto é, abre um horizonte em que se tornam visíveis os entes,
mas o horizonte transcende e precede (não evidentemente num sentido cronológico)
os entes. Toda a verdade ôntica (todo o conhecimento do ente) supõe a verdade
ontológica (a compreensão do ser, o projecto). Mas o estar-aí como tal não é um
«fundamento» no sentido do princípio metafísico de razão suficiente; nesta
esfera, o fundamento ou é, por sua vez, fundado ou, se é o fundamento último é o
último enquanto se considera justamente como uma simples presença para além da
qual não se pode ir, e da qual tudo «deriva» ou «depende»: não é uma presença que se impõe como tal, precisamente porque é, de
alguma maneira, presença total (o Deus como acto puro de Aristóteles e da
tradição metafísica é precisamente acto
puro uma vez que está todo em acto, todo «realizado», é uma presença
totalmente completa como tal» [18].
O estar-aí
não pode, por sua vez, ser fundado porque é precisamente ele que abre esse
horizonte, o mundo em que se situa toda a relação de fundação; por outro lado,
também não é fundamento último no sentido de ser uma simples presença para além
da qual não se pode ir, e da qual tudo «deriva» ou «depende»: não é uma simples
presença, porque o estar-aí não é outra coisa senão projecto; não é algo que «seja» e que projecte depois o mundo, não é
algo que exista como «base» estável deste projectar. O estar-aí na sua
transcendência, é fundamento, Grund,
só como Ab-grund, como ausência de
fundamento, como abismo sem fundo [19].
O fundar positivo do estar-aí que abre o mundo como conjunto articulado na
forma da «justificação racional» tem pois, por sua vez, a sua raiz numa «falta
de fundamento». Numa negatividade que, apesar de tudo, se manifesta apenas na
base da ideia de fundamento, mas que verdadeiramente abre e torna possível todo
o acto de fundação no interior do ente. É isto o que se propõe dizer Heidegger
quando, nas palavras preliminares escritas em 1949, fala da «diferença
ontológica» como tema desse escrito sobre o fundamento. Diferença ontológica,
outra expressão que nos escritos heideggerianos mais recentes tem uma posição
central, é aquela pela qual o ser se distingue do ente e o transcende [20],
pois é a luz em que o ente se torna visível. A negatividade do Abgrund que o próprio estar-aí é, expressando
cabalmente a diferença ontológica, o facto de o ser (do qual o Dasein deve ter uma compreensão
preliminar para fazer aparecer, isto é, para tornar possível o ente como tal) não ser o ente e, relativamente a este,
não poder aparecer senão na forma da negação.
A conexão do princípio de razão suficiente com o problema da negatividade e do nada está, de resto, testemunhada pela própria formulação que o princípio tem em Leibniz; «ratio est cur aliquid potius existit quam nihil» [21], mas neste ensaio Heidegger limita-se a assinalar o facto e deixa pendente o problema de ver «porque é que com o ‘cur’ se pode vincular o ‘potius quam’ [22]».
Este problema,
«porquê o ente e não antes o nada?», é o problema que Heidegger considera
constitutivo da metafísica (a qual se manifesta sempre como esforço para ir
«mais além» do ente, questionando o ser); com base na solução – ou, dizendo
melhor, da não solução – que dá desse problema, é que a metafísica se define
como tal. A centralidade deste problema consiste no facto de que o «não antes»
expressa a transcendência do estar-aí, o seu reportar-se antes ao ente do que
ao próprio ser. Com efeito, perguntar apenas «porquê o ente...?» significa
permanecer no interior do raciocinar que justifica e funda; mas acrescentar «e
não antes o nada?» significa, como se esclarecerá na Introdução à Metafísica, levantar o problema geral da totalidade de
fundantes-fundados, significa transcender o ente e os seus nexos fundadores
internos, ao tematizar o problema do ser como tal. O facto de que, em A Essência do Fundamento, a diferença
ontológica apareça na forma do não, da negatividade, indica uma peculiar
relação entre ser e nada que é a mesma expressa pela pergunta metafísica
fundamental. Levantar a questão do ser do ente significa também levantar a
questão do nada e, inversamente, só levantando realmente a questão do nada se
levanta a questão do ser do ente.
O nexo
entre o problema do nada e o problema do ser manifesta-se explicitamente em Que é a Metafísica?, a lição inaugural
que Heidegger pronuncia quando em 1928 o chamam a Friburgo como sucessor de Husserl.
Todas as ciências, diz Heidegger, levantam o problema do conhecimento do ente;
do ente e nada mais. Mas, que é este
nada? Para poder elaborar este problema, devemos ver se temos alguma
experiência do nada. Essa experiência dá-se-nos, não a um nível de compreensão,
mas a um nível emotivo, e é a angústia. Da angústia já se tinha falado em Ser e Tempo (parágrafo 40) e fora assinalada
como «situação afectiva fundamental» e «abertura específica do Dasein». De modo diferente do medo, que
é sempre medo de algo, a angústia revela-se como medo «do nada»; a pessoa
angustiada não teme este ou aquele ente, mas antes sente que todo o seu mundo
se afunda na insignificância, e não pode indicar algo preciso que lhe dá medo.
Reconhecer que a angústia é medo do nada significa, porém, algo muito diferente
de fazê-la dissipar: o medo do nada, que é a angústia, explica-se apenas
admitindo que nela aquilo de que se sente ameaçado o Dasein não é este ou aquele ente em particular, mas a própria
existência como tal. Enquanto projecto que abre e institui o mundo como
totalidade dos entes, o Dasein não
está «no meio» dos entes como um ente entre os outros; quando nota a sua própria
transcendência – sente-se num ambiente «estranho», alheio no mundo, em que não se
sente como em sua casa, porque nota justamente que não é um ente do mundo como
os outros. Enquanto modo de existir na trivialidade quotidiana, o estar-aí
concebe-se como ente entre os outros entes, e até se sente protegido e
tranquilo pelos entes que o rodeiam; o simples medo testemunha isto, já que ter
medo de algo significa conceber-se sempre como «dependente» desse algo, de
alguma maneira. A angústia, como medo que não se pode explicar desse modo, como
medo de nada, coloca o Dasein perante a sua própria transcendência, perante a
existência como tal (e para compreendermos melhor, diremos também, perante a
sua própria «responsabilidade»: porque é o Dasein
que abre e institui o mundo).
A novidade
que surge de Que é a Metafísica? (e
menos explicitamente de A Essência do
Fundamento) é a conexão explícita do problema do nada e da angústia com o
problema do ser.
[o nada] «não
é um objecto, nem em geral um ente; o nada não se apresenta por si mesmo nem
junto do ente, a que, porém, diz respeito. O
nada é a condição que torna possível a revelação do ente como tal para o ser
existencial do homem. O nada não só representa o conceito oposto do ente,
mas pertence originariamente à essência do próprio ser» [23].
O
tradicional axioma metafísico ex nihilo
nihil fit, do nada não procede nada, deve inverter-se agora: do nada
procede todo o ente enquanto ente [24].
Aqui importa sublinhar a expressão enquanto:
que do nada provenha todo o ente não quer dizer que do nada provenha a
“realidade” do ente entendida como simples presença, mas o ser do ente como um
colocar-se dentro do mundo, como um aparecer à luz que o Dasein projecta no seu projectar-se: contrariamente à concepção do
ser como simples presença, a concepção do ser que se anuncia como implicitamente
suposta em Ser e Tempo e nestes
escritos posteriores, é precisamente a concepção do ser como “luz” projectada
pelo estar-aí como projecto [25].
O facto, porém, de o Dasein ser
sempre projecto lançado, como vimos, exclui que o ser possa conceber-se como seu
«produto», e que a filosofia de Heidegger se reduza a alguma forma de idealismo
empírico ou transcendental. Estas duas doutrinas supõem sempre,
inseparavelmente, uma concepção do ser como simples presença e uma concepção do
Dasein que esquece o carácter de
ser-lançado: ambas resumem tudo à relação sujeito-objecto, em que o sujeito ou
funda e produz directamente a realidade (simples presença) das coisas
(idealismo empírico: esse est percipi)
ou então, pelo menos, funda e ordena o mundo como mundo da experiência
(transcendentalismo kantiano ou neokantiano). Em ambos os casos, não se vai
além do sujeito e mesmo este, assim como o objecto, concebe-se como presente e
esquece-se o seu carácter de «lançado».
Ora bem, o
sentido do discurso desenvolvido por Heidegger nos dois escritos examinados
(com a elaboração do nexo ser-nada, é precisamente a manifestação do facto de
que, no fundo da relação do Dasein
com o ente, há uma relação mais importante, por enquanto ainda obscura, indica
apenas a «transcendência» do estar-aí, que é relação com o nada enquanto
relação com o diferente do ente, com o que não se reduz ao ente (o nada como
«nada do ente»). É o que expressa explicitamente uma página de A Essência do Fundamento»:
«O projecto do mundo torna certamente
possível – mas aqui não podemos alargar-nos sobre esta possibilidade – uma
compreensão preliminar do ser do ente; mas o projecto como tal não consiste
numa simples relação entre o estar-aí e o ente» [26].
(In Gianni Vattimo, Introdução a Heidegger, Edições 70, 1989, pp. 61-73).
[1] Ueber den Humanismus, op. cit., p. 17.
[2] Veja-se Essere e tempo, tradução citada, p. 77: «A elaboração do problema
do ser... deve assumir a tarefa de indagar a própria história, isto é, de
fazer-se historiografia para poder assim, mediante a apropriação positiva do
passado, entrar em plena posse das possibilidades problemáticas que lhe são
mais apropriadas. O problema do sentido do ser – em conformidade com o modo que
o caracteriza, isto é, pelo facto de ser a explicação preliminar do Dasein na sua temporalidade e na sua
historicidade – leva por si mesmo a compreender-se historiograficamente».
[3] Ibid., p. 78.
[4] Was ist Metaphysik?, Bona 1929; 4.ª edição com um aumento,
Francoforte 1943; 5.ª edição acrescenta com uma introdução, Francoforte 1949;
tradução italiana de A. Carlini, Florença 1953.
[5] Che cos’è la metafisica, trad. cit. 33.
[6] Einführung in die
Metaphysik, Tubinga 1953. E o texto de curso universitário
de 1935, com acrescentos e retoques posteriores (distintos do texto original);
tradução italiana de G. Masi, Milão 1968.
[7] Platão, O Sofista, 244a: “Com efeito, é claro que há pouco tempo estais
familiarizados com aquilo que entendeis quando empregais a expressão ‘ente’;
também nós pensávamos antes que a compreendíamos, mas agora caímos na
perplexidade».
[8] Veja-se Introdução à Metafísica, tradução italiana citada, p. 47, onde a
metafísica se relaciona com a existência inautêntica com uma explícita remissão
ao parágrafo 38 de Sein und Zeit.
[9] Tenham-se em conta em Que é a Metafísica?, por exemplo, o
carácter de «rareza» da experiência da angústia (pp. 24-25 da tradução
italiana), o facto de que a metafísica antiga vê o nada de acordo com o modelo
da presença (p. 29), a afirmação de que a metafísica «se encontra na máxima
proximidade do erro» (33).
[10] Sein und Zeit, trad. italiana, p. 618.
[11] O. Pöggeler, Der Denkweg M. Heideggers, p. 88, vê
aqui precisamente uma interrupção do discurso de Sein und Zeit.
[12] Que é a Metafísica?, trad. italiana citada, pp. 3-4.
[13] Entre estas obras publicadas depois de Sein un Zeit, ocupa um lugar importante Kant und das problem der
Metaphysik, Bona 1929 (tradução italiana de M. E. Reina, Kant e il problema della metafisica,
Milão 1963) trabalho que foi elaborado juntamente com Sein und Zeit e que desenvolve uma temática com especial referência
a Kant...
[14] Von Wesen des Grundes, Halle 1929, 3.ª edição com o agregado de um
prefácio, Francoforte 1949; tradução italiana de P. Chiodi. L’essenza del fondamento, Milão 1952,
reeditada agora juntamente com Sein und Zeit. Turim 1969 (referimo-nos a esta
edição).
[15] E o tema de Que é a Metafísica?
[16] «Von Wesen der Wahrheit»,
Francoforte 1943 (é uma conferência de 1930; tradução italiana de A. Carlini,
«Del’essenza della veritá», Milão 1952.
[17] Sein und Zeit, tradução citada, p. 477.
[18] A conexão entre a teologia (na forma que esta tem na historiografia do pensamento ocidental) e a metafísica, como pensamento ôntico e esquecimento da diferença ontológica, está explicitamente tratada na segunda parte de Identität und Differenz, Pfullingen 1957.
[19] A Essência do Fundamento, tradução italiana citada, p. 677.
[20] Veja-se Ser e Tempo, tradução citada, p. 99: «O ser é o transcendens puro e simples».
[21] A razão é aquilo por que existe
algo em vez de nada».
[22] A Essência do Fundamento, tradução citada, p. 675.
[23] Que é a Metafísica?, tradução citada, p. 24. O sublinhado é de
Heidegger.
[24] Ibid., p. 31.
[25] Durante um seminário privado em
Heidelberga, no Verão de 1964, Heidegger teria dito que o título de Ser e Tempo estaria melhor formulado
como Sein und Lichtung (Ser e
Iluminação).
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