quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O Sal da Terra (ii)

Entrevista a Joseph Ratzinger





Revolução de Maio de 68



«(...) não se pode ignorar a correlação  histórica entre os dois grandes acontecimentos do século XX: o Concílio Vaticano II e a Revolução de Maio de 68.

O Maio de 68 foi um movimento não espontâneo, que tinha um projecto muito concreto de transformação da sociedade. O socialismo científico de Marx e Lenine tinha sido um visível fracasso no seu sonho prometaico de construir o novo edifício da civilização moderna, tendo pagado um assustador preço em termos humanos: guerras, revoluções, centenas de milhões de vítimas em todo o mundo. Nunca se tinha falado tanto de progresso e da libertação do homem, e nunca tinha corrido tanto sangue na história, a ponto de constituir um verdadeiro holocausto ao fetiche da humanidade. O Maio de 68 sancionou o fracasso desta utopia, mas apresentou-se como um novo sonho revolucionário. Sob este aspecto, em lugar de se encerrar nos limites propostos por Eric Hobsbawm, entre 1914 e 1991, o século XX poderá ser limitado aos cinquenta anos que vão desde 1918, o final da I Guerra Mundial, até 1968, o ano da contestação estudantil.

A Revolução de 68 teve um forte impacto, não só na sociedade, mas também na Igreja; contudo, por sua vez, a "viragem conciliar" também favoreceu a explosão da revolta estudantil. Com efeito, a palavra de ordem de 68, "é proibido proibir", tinha as suas origens naquela aversão conciliar a toda e qualquer forma de condenação e de proibição doutrinal. "As exigências do movimento de Maio de 68 coincidiam, em grande medida, com as magnas ideias do Concílio, em especial com as da constituição conciliar sobre a Igreja e o mundo", escrevia o Padre Laurentin. As paróquias e os grupos de católicos e protestantes reuniam-se e organizavam assembleias, de que é exemplo o debate organizado pelo Comité Revolucionário de Agitação Cultural, a 8 de Junho de 1968, no Anfiteatro Richelieu, em Paris, com o tema: "De Che Guevara a Jesus Cristo". De resto, escreve ainda Laurentin, "o Vaticano II já foi, em certa medida, a contestação de um grupo de bispos empenhados contra uma Cúria que tentava realizar um concílio institucionalmente pré-fabricado".

A 21 de Maio de 1968, foi publicado na revista Témoignage Chrétien um apelo destinado a "introduzir a Revolução na Igreja". Evocando esta atmosfera, particularmente entre os dominicanos franceses, recorda o Cardeal Schönborn: "Era como o período da Revolução Francesa; só faltava a guilhotina".


Também em Itália, no dealbar de 68, como recorda Roberto Beretta, se podiam ver "os fermentos do Concílio Vaticano II, as impaciências sobre a aplicação do mesmo, as expectativas mais ou menos justificadas relativamente a alguns dos seus desenvolvimentos, as leituras de tantos teólogos que estavam na moda naquela época, as discussões dos jovens crentes 'empenhados', que eram até 'os melhores', a crème mais avançada e culta do laicado, os quadros dirigentes das associações eclesiais". Com efeito, lendo os documentos de 68, percebe-se que os líderes estudantis e os expoentes da dissensão católica citavam abundantemente os textos conciliares e alguns documentos dos Papas. Os preferidos eram a encíclica Pacem in terris, de João XXIII, as constituições Lumen gentium e Gaudium et spes, do Vaticano II, e a encíclica Populorum progressio, de Paulo VI.

A contestação religioso-eclesial de Itália teve início com o "contra-quaresmal" de Trento, a que se seguiu, em Setembro, a ocupação da Catedral de Parma. A 22 desse mês, a comunidade florentina do Isolotto enviou uma carta de solidariedade aos contestatários de Parma, sublinhando a necessidade de uma opção discriminatória "entre aqueles que estão do lado do Evangelho dos pobres e aqueles que servem a dois senhores, a Deus e ao dinheiro". Foi em torno do Padre Enzo Mazzi, o líder da comunidade de Isolotto - que o Cardeal Florit tinha destituído do cargo de pároco -, que nasceu a primeira "comunidade de base" italiana, a que se seguiram muitas outras.

Alguns dos principais expoentes deste movimento, como Mario Capanna e Marco Boato, provinham de ambientes católicos. Capanna, que era da "Católica" de Milão, recorda: "Fazíamos noitadas a estudar e a discutir os teólogos que na altura eram considerados de fronteira: Rahner, Schillebeeckx, Bultmann [...], juntamente com os documentos do Concílio".

Paolo Sorbi, outro expoente daqueles anos da "Luta Contínua" e protagonista do "contra-quaresmal" do adro da Catedral de Trento, escreve: "Éramos intérpretes do pensamento do Padre Milano, do Padre Mazzolari, do Padre Balducci, do Padre Camilo Torres, pessoas que nos transmitiram o sonho de uma utopia que procurávamos realizar na terra. Ora, as palavras são como pedras. Nós tínhamos levado aquelas palavras a sério, tínhamo-las radicalizado".

O 68 católico desenvolveu-se em duas direcções: uma linha "carismástica" e uma linha "política", uma destinada a desaguar no "pentecostalismo católico", a outra no terrorismo revolucionário ou na teologia da libertação.



"De Che Guevara a Jesus Cristo"




No primeiro caso, os teólogos que, no Concílio, tinham pretendido separar a dimensão carismática (a "alma") da estrutura hierárquica (o "corpo") da igreja propugnavam agora uma visão na qual, em nome dos novos "carismas", se dissolvessem as instituições tradicionais, das dioceses às paróquias. Em começos de 1974, o Padre Laurentin saudava a "prodigiosa expansão do 'movimento de Pentecostes' no catolicismo", e o Cardeal Suenens dedicava uma carta pastoral à "redescoberta do Espírito Santo", exprimindo a sua admiração pelo movimento carismático.

No segundo caso, a presença cristã transformou-se em utopia política, dissolvendo a dimensão transcendente da Igreja de Cristo. "A destruição da teologia era feita por via da sua politização em direcção ao messianismo marxista", recorda o Cardeal Ratzinger. "O Vaticano II tinha actualizado a ideia de que o povo teóforo muda a história e a muda em função de critérios universais; ou seja, tinha introduzido a utopia no interior da linguagem católica", escreveu, por sua vez, o Padre Gianni Baget Bozzo.

As consequências foram catastróficas. Recorda o Cardeal Staford: "Em 1968, aconteceu uma coisa terrível na Igreja; no seio do sacerdócio ministerial, entre amigos, ocorreram por toda a parte fracturas que nunca mais se haveriam de recompor; essas feridas continuam a afligir toda a Igreja". Outro ilustre purpurado, o Cardeal Caffarra, observa que o 68 não foi a causa, mas o resultado de um processo histórico que vinha de há muito.

"A dissensão relativamente à Humanae vitae, a controvérsia sobre o Novo Catecismo Holandês e o nascimento da teologia da libertação de tendência marxista foram o resultado - e não foi por acaso que ele se manifestou precisamente em 1968 - de processos plurisseculares, de dinâmicas que já existiam antes do Concílio e a que a própria teologia pré-conciliar não tinha posto suficiente travão, de maneira que a própria reacção aos dissidentes por parte de um pensamento ético e teológico conservador logo a seguir a 1968 dá mostras de grave 'inadequação'"».

Roberto de Mattei («O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita»).


«Lisboa, 17 de Maio [de 1968] - Tumultos estudantis em França. Greve geral do operariado. Clima de insurreição nacional. Pretexto: ser antiquada a estrutura da Universidade como corporação. Mas daqui se partiu para uma rebelião que age contra as instituições e põe em causa os valores fundamentais do país. Mortos de guerra foram troçados, símbolos nacionais foram espezinhados e denegridos, como sucedeu com a chama votiva no Arco do Triunfo junto à Étoile. E um pouco por toda a Europa a atmosfera é análoga.



Richard Nixon e De Gaulle



(...) Lisboa, 23 de Maio - Situação gravíssima em França. De uma pequena perturbação na Universidade de Nanterre, o movimento ganhou toda a universidade francesa, e daqui passou ao operariado e aos camponeses. Dez milhões de franceses estão em greve, com ocupação de fábricas e terras; bandeiras vermelhas e outras negras foram içadas por todo o lado; e a reclamação que todos apresentam exige uma reforma das "estruturas" - como quem diz uma revolução da sociedade civil. Paralisados estão os transportes, os bancos, os correios, os mercados, os serviços públicos; biliões de francos de prejuízo; corrida ao ouro; desprestígio internacional de França. Ontem o parlamento francês rejeitou por onze votos uma moção de censura ao governo, e esta maioria é escassa para as circunstâncias. Carência da autoridade deixa a todos perplexos, e a frouxidão do Presidente de Gaulle constitui um enigma, e parece inclinar-se para a transigência. De tudo há-de surgir consequências: crise do Mercado Comum, pois o solavanco na economia francesa não permitirá a esta manter a posição até agora sustentada; enfraquecimento da Europa Ocidental; fortalecimento da posição inglesa, que ganhará novo alento contra a França; alívio nos Estados Unidos, que saúdam a diminuição De Gaulle; regozijo na Rússia, que prova poder convulsionar a França a seu capricho, salvo se os acontecimentos já escaparam ao próprio controlo de Moscovo; contracção da influência francesa em África, em proveito dos Estados Unidos, Inglaterra e Rússia. Depois da crise do Suez, em 1956, este é acaso o momento mais sério da Europa Ocidental. Para nós podem ser de tomo as repercussões: de França recebemos apoio político e militar, em termos de armamento e munições: e se isto nos falhar onde encontrar substituto a curto prazo?»

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).


«(...) Um jurista anónimo, compilador erudito de sentenças judiciais encontradas nos arquivos de diversos tribunais do condado de Artois, esboçou, por volta de 1640, uma visão dos crimes contra os costumes, muito influenciada pela Contra-Reforma. Habitante dos Países Baixos espanhóis, um pouco antes de serem conquistados pelos Franceses, consagrou 35 por cento da sua compilação a esse tema, contra apenas 6 por cento dedicados a crimes de sangue, aproveitando a oportunidade para dar a sua opinião numa matéria que manifestamente o apaixonava.

"É uma autêntica febre e uma paixão furiosa, o amor carnal, sem esquecer como é perigoso para quem se deixa levar por ele; porque na realidade onde é que ele se encontra? Deixou de estar em si, o seu corpo tudo fará para encontrar o prazer, o seu espírito passará por mil torturas para servir o seu desejo, e este, à medida que cresce, torna-se furor. Como se trata de uma paixão natural, é tão violenta quanto universal, a todos por sua acção ela faz perder a cabeça: no seu seio, reúne os loucos e os sensatos, os homens e os animais, a todos animaliza, embrutece toda a sabedoria, resolução, prudência, contemplação e todas as demais operações".



Concílio de Trento



Impregnado das doutrinas do Concílio de Trento, de que cita, aliás, as decisões relativas ao casamento, apoiando-se na autoridade dos doutores da Igreja e em obras mais recentes, como a Somme des péchés [Sumas dos Pecados], de Benedicti, publicada em 1584, esse jurista, que foi várias vezes edil de Arras, pretendia com a sua compilação afastar o homem da besta bruta. Citando, a esse propósito, Cícero, recomenda a continência, apesar de "ser difícil guardá-la", porque achava que era "coisa excelente viver com poupança, sobriedade, temperança e prudência". Produto típico de uma época de moderação das paixões e das pulsões, sem ser, no entanto, clérigo, desconfiava da luxúria, "apetite desordenado de todo e qualquer deleite, de qualquer volúpia ou prazer carnal". Benedicti, aliás, definia nestes termos esse prazer: "Toda a efusão voluntária de sémen humano e uma desordenada cópula extraconjugal". Nos Países Baixos como, aliás, em França, os tribunais civis tinham substituído nessas questões os tribunais eclesiásticos, revelando-se na prática muito mais severos do que os seus antecessores na repressão das transgressões sexuais, por pequenas que fossem, na defesa do carácter sagrado do casamento e no recalcamento dos instintos bestiais. O referido erudito anónimo Artois dedicou-se, assim, a estudar na sua compilação todos os graus desse crime, indo da simples fornicação à sodomia. Punida com uma pena ligeira, a fornicação tanto envolvia homens como mulheres solteiros, à excepção das religiosas, das virgens ou dos acusados que tivessem entre si um qualquer grau de parentesco. Nestes últimos casos, a punição era mais grave.

O essencial era a salvaguarda do casamento: "Há uma diferença entre a mulher, a concubina e a puta; a mulher serve para ter filhos e conservar o bem-estar do lar; a concubina para servir o homem fora do casamento; a puta para dar prazer". O "concubinato" dos clérigos, severamente proibido, era tratado pelos bispos como um caso reservado. O Concílio de Trento havia igualmente proibido a mancebia em que viviam muitos leigos. O caso era mais grave quando estavam envolvidos homens casados, sendo estes autorizados a expulsar do território diocesano a respectiva concubina. Os bordéis públicos, inaceitáveis, para Benedicti, numa república civilizada, deviam, no entanto, ser tolerados, no entender do nosso jurista Artois, nas grandes cidades "dessas regiões belgas", mas em lugares discretos e afastados, e desde que não pudessem ser frequentados por homens casados. Depois de ter arrolado treze sentenças (todas elas pronunciadas no território de Arras, entre 1533 e 1581) contra esposos infiéis, apanhados em flagrante com uma prostituta, o nosso autor conclui que "o prazer carnal não convém à natureza dos homens". Queria ele dizer que a procura do prazer sexual colidia com os fins sagrados do casamento, que fora justamente instituído para a perpetuação da humanidade. O crime de adultério é gravíssimo, além de horrendo, porque destrói toda a sociedade humana, corrompe as famílias, perverte as repúblicas [no sentido de coisa pública]».

Robert Muchembled («Uma História do Diabo - Séculos XII a XX»).








«No mesmo livro ["A Politeia"] em que preconizou um muito complicado comunitarismo dos bens para cada sector do estado e da população, preconizou também Platão o comunitarismo das mulheres e dos filhos. Embora se mantenha sempre muito mais fiel ao mestre do que em geral se julga, Aristóteles refuta literalmente esta doutrina que Platão literalmente expôs, e parecerá um tanto surpreendente que tal refutação incida mais demoradamente sobre o comunitarismo das mulheres e dos filhos do que sobre o comunitarismo dos bens. Dir-se-ia que tanto Aristóteles como Platão quiseram ocultar a razão, porventura indizível, de haver uma mútua implicação em todas estas formas do comunismo. É decerto evidente que o comunitarismo dos filhos está implícito no comunitarismo das mulheres, e a natural repugnância que provoca torna-se, no outro, um absurdo de monstruosas consequências. Já, porém, está longe de ser tão imediatamente evidente que o comunitarismo das mulheres esteja implícito no comunitarismo dos bens. É certo que sempre têm sido eles associados, mas nunca essa associação se apresentou como uma relação necessária. É sem dúvida de atender a íntima ligação entre a abolição da propriedade e o apagar da personalidade e da individuação ou o esbater de todas as desigualdades e diferenças, bem como a contrapolar ligação da propriedade com a hereditariedade e a herança, com a individualidade e sua perpetuação, com o amor e a família portanto. Sempre diremos, todavia, que há uma razão que se oculta. Sempre suspeitamos que entre o comunitarismo dos bens e o comunitarismo das mulheres, uma implicação existe de que não temos nem a evidência intuitiva nem o nexo lógico. Explicará ela claramente a associação que sempre se tem estabelecido? Explicará que o comunitarismo das mulheres seja preconizado por quase todas as utopias que têm advogado o comunitarismo dos bens, seja estabelecido pelas mais antigas tentativas de realização do comunismo ou seja deduzido por modernos doutrinadores socialistas de agrupamentos comunitários? Explicará o opressivo policiamento dos costumes naqueles estados que, com a recente adopção do regime comunista, pretendem manter a tradição moral europeia? Ou, na mais recente descolonização dos povos africanos, explicará ela que, com a reivindicação dos bens dos colonizadores, os negros tenham reivindicado também a posse das mulheres dos brancos? Explicará ainda que, nas contemporâneas comunidades "hippies", ou análogas, as mulheres se tornem, com os bens, uma disponibilidade comum? Teremos, enfim, de, à falta de uma intuição evidente e de um nexo lógico, recorrer ao antiquíssimo arquétipo que simbolicamente reúne a mulher e a terra, e portanto alargará a posse comum da terra à posse comum da mulher?».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).





O Sal da Terra


A sua avaliação do mau uso do Concílio também esteve relacionada com o início da revolta estudantil na Europa? Houve, manifestamente, uma mudança durante o tempo que passou em Tübingen. O professor de teologia, que antes tinha sido muito popular, que era tido como progressista, passa, de repente, a ser hostilizado. Os estudantes arrancam-lhe o microfone. Os acontecimentos devem ter sido um choque para si. Mais tarde veio a dizer. "Nestes anos aprendi quando uma discussão tinha de acabar, porque se transformou numa mentira, e quando é que se tem de resistir para preservar a liberdade".







Nunca me arrancaram o microfone. Também nunca tive dificuldades com os estudantes, mas sim com a camada pertencente aos quadros académicos intermédios. As aulas em Tübingen foram sempre muito bem aceites, o contacto com os estudantes era muito bom. Mas eu vi, é verdade, penetrar um novo espírito em que ideologias fanáticas se serviam dos instrumentos do cristianismo, e aí, a mentira tornou-se, realmente, visível para mim. Vi com muita clareza e experimentei, realmente, que os conceitos de reforma se dividiam. Que houve um abuso da Igreja e da fé, que se reivindicava como instrumento de poder, mas para fins completamente diferentes e com intenções e ideias completamente diferentes. A vontade unânime de servir a fé tinha-se quebrado. Em vez disso, deu-se uma instrumentalização através de ideologias que também eram tirânicas, brutais e cruéis. Para mim, tinha-se tornado claro a partir daí que, sobretudo quando se quer continuar fiel à vontade do Concílio, é preciso lutar contra esse abuso. Como disse, eu próprio não tive problemas com os estudantes. Mas vi como a tirania foi realmente exercida, mesmo sob formas brutais.

Para dar uma ideia mais concreta dos acontecimentos dessa altura, quero citar, a este propósito, uma recordação desses anos, que o meu colega protestante Beyerhaus, com quem trabalhei em estreita colaboração, publicou recentemente. "Mas o que é a Cruz de Jesus senão a expressão de adoração sado-masoquista da dor?" E o "Novo Testamento é um documento de desumanidade, um meio de enganar as massas em grande escala!" Estas duas citações não provêm de um panfleto de propaganda bolchevista anti-religiosa, mas de um panfleto, distribuído aos condiscípulos pela associação de estudantes da Faculdade de Teologia Protestante de Tübingen, no verão de 1969. O título era: Jesus o Senhor - Camarada Käisemann. No espírito da crítica marxista da religião, a Igreja era acusada de cumplicidade com a exploração capitalista dos pobres, era atribuída à teologia tradicional uma função de estabilização do regime. Nesta participava também o citado professor de Novo Testamento em Tübingen. Ficou gravado como um trauma na minha memória, como o meu colega Ulrich Wickert e eu pedimos na assembleia de estudantes que a associação de estudantes de teologia protestante se distanciasse das blasfémias proferidas no panfleto. Não - responderam-nos - neste panfleto tinha-se feito referência a graves efeitos sócio-políticos, com os quais era necessário um confronto em nome da verdade. O apelo apaixonado do Professor Wickert para que o "maldito seja Jesus!", desaparecesse do meio de nós, ecoou sem resposta (P. Beyerhaus, Der kirchlich-theologische Dienst des Albrecht-Bengel-Hauses, in. Diakrisis 17, Março, 1969, p. 9). Na associação de estudantes de teologia católica não se chegou a este ponto, mas a orientação fundamental que nela também se verificava, era a mesma. Assim eu sabia do que agora se tratava - quem queria continuar a ser progressista tinha de vender o seu carácter.

(...) Um cardeal pode falar sobre sexo?







Sim, claro. Ele tem sempre de falar de tudo o que é humano. E o sexo não se pode pôr de parte com a etiqueta do pecado, mas é, em primeiro lugar, um dom da criação. No meu trabalho actual, até tenho de falar muito sobre este tema. Procuro evitar que reduzamos a moral, ou até o cristianismo, ao sexto mandamento, mas as questões da Cristandade que aqui se nos colocam, obrigam-nos constantemente a confrontar-mo-nos com esta dimensão da existência humana.

Classificou uma vez a sexualidade como uma espécie de mina flutuante e como força omnipresente. Soa mais a uma atitude de rejeição em relação à sexualidade.

Não, não é o caso, porque seria contra a fé que nos diz que o Homem é criado por Deus no seu todo, e o Homem foi criado por Ele como homem e mulher. A sexualidade não é, pois, nada que só tenha surgido depois do pecado, mas faz, realmente, parte do plano da criação de Deus. Porque criar o Homem como homem e mulher significa também criá-lo de modo sexuado, de forma que pertence, realmente, ao conceito originário da criação e, assim, ao originariamente bom do ser humano.

Se eu disse essa frase como a citou, quis dizer que são precisamente as grandes forças, quando se desprendem do seu centro humano, que também podem desenvolver o maior poder de destruição. Porque a sexualidade forma toda a dimensão corporal do Homem, seja homem ou mulher, e, por causa disso - precisamente porque é grande e porque o Homem sem ela não pode amadurecer e não pode vir a ser ele mesmo - marca a pessoa na dimensão mais íntima dela mesma; naturalmente, pode também, quando sai da unidade do Homem, dilacerar e destruir o Homem.

É preciso reconhecer que esta imagem da sexualidade como força omnipresente se impõe cada vez mais nos nossos dias.

Manifestamente, esse desprender-se da totalidade da pessoa e da reciprocidade da relação entre homem e mulher tornou-se possível sobretudo através da técnica e dos meios de comunicação social, de uma forma que antes não existia. Actualmente pode-se, realmente, neutralizar o sexo e oferecê-lo como mercadoria.



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Mas isso já existe há dois mil anos...

Sim, mas que se possa comprar sexo directamente numa loja ou que, no fluxo de imagens correspondente, as pessoas só possam ser registadas como objectos de sexo e, por isso, já não como pessoas, atingiu outro nível através da comercialização. A possibilidade de transformar a sexualidade em mercadoria e de a difundir como mercadoria, de forma massificada, cria possibilidades de alienação, de abuso, que vão para além do que conhecemos até hoje.

Na Idade Média havia bordéis públicos que eram dirigidos, em parte, pela Igreja local!

Há uma passagem em Santo Agostinho que também pergunta: o que é que aí se pode fazer? E Santo Agostinho responde, tal como é o Homem, é melhor, no sentido de um Estado ordenado, que isso exista de modo ordenado. Nessa medida, podia-se recorrer às reflexões de um grande Padre da Igreja que era suficientemente realista para ver que o Homem neste domínio estava sempre tentado e ameaçado, que houve cultos inteiros que se desviaram para aí. Mas eu creio que, entretanto, existe uma ameaça específica que não existia nos tempos anteriores.

Aquele que vive firmemente de acordo com a moral sexual católica está imunizado contra estas tentações?

Isso já não se pode dizer. Porque o Homem nunca está completamente acabado, mas está sempre a caminho, como verificámos, e, por isso, corre sempre riscos. Tem de voltar sempre a ser ele mesmo. Ele nunca está aí, simplesmente. É sempre livre, e a liberdade nunca está concluída. Mas penso que alguém que, realmente, se encontra numa comunidade de fé viva, na qual as pessoas se apoiam mutuamente, na qual através desse apoio mútuo se chega a um encorajamento, também pode viver bem o próprio matrimónio.

(...) Para os nossos problemas modernos podemos recorrer a textos antigos? Refiro-me agora a textos de Padres da Igreja, a textos de santos.

Podem ser usados no sentido básico, na medida em que contribuem para evidenciar os princípios, o que significa respeito pelo Homem, pela sua dignidade e o que significa sofrimento, mas claro que não para as questões muito concretas. São importantes, na medida em que, assim creio, a nossa geração perdeu o sentido do que é positivo no sofrimento. E aí há realmente coisas que temos de voltar a aprender.






Estamos neste momento a falar de textos antigos - não deparou, nas caves da Santa Inquisição, com segredos, há alguma coisa que nunca se quererá divulgar?

As "caves da Santa Inquisição" são o nosso arquivo, para usar o nome certo; não temos outras caves. Devo confessar que utilizo pouco o arquivo, pela simples razão de que não tenho tempo para isso. Portanto, também não pude deparar com segredos especiais. Acontece que Napoleão nos tirou o arquivo. Uma parte dos materiais foi restituída, mas só uma parte, de modo que está longe de estar completo. Em geral, não é, de longe, tão interessante como as pessoas imaginam. Um professor italiano liberal trabalhou há pouco, por algum tempo, em diversos processos e constatou que estava muito decepcionado. Em vez da luta entre consciência e poder, com a qual esperava deparar, encontrou criminalidade comum. Isto está relacionado com o facto de a Inquisição romana ter sido um tribunal relativamente moderado. Os réus sujeitos à jurisdição civil invocavam um factor religioso, magia ou adivinhação, para serem submetidos ao tribunal da Inquisição, do qual, em geral, podiam esperar um veredicto relativamente indulgente. Mas só sei isto em segunda mão, não estudei as fontes.

Toda a humanidade conhece o que se destaca neste arquivo; o que ainda resta, são, antes de mais, questões que interessam sobretudo o especialista. Só há segredos, na medida em que há muitas coisas que não podem ser tornadas públicas, porque foram tratadas ao abrigo do segredo e da confissão e estão, desse modo, protegidas por esse segredo. Estão depositadas numa casa-forte especial e também não podem ser publicadas.

(...) Uma Igreja Universal tem forçosamente de ser capaz de se confrontar com muitas situações diversas. As diferenças culturais e históricas de cada povo levam a um desnível enorme. A Igreja Católica não consiste apenas no Ocidente emancipado e crítico, cansado de autoridade. Também existem as igrejas mártires do Leste, as Igrejas sócio-politizadas na América do Sul. Além disto há as muitas orientações de fé e de pensamento que se contestam mutuamente. Hoje parece ser mais fácil encontrar as diferenças que existem na Igreja do que os pontos comuns. Ainda existe um consenso?

Sim. Vejo isso quando imaginamos os bispos do mundo inteiro a desfilar diante de nós. As circunstâncias em que se dialoga, os temperamentos, as situações eclesiais que representam, são, naturalmente, muito diferentes. Mas têm em comum o facto de serem todos católicos, o que se expressa, por exemplo, na liturgia, noutras formas de piedade, em decisões morais fundamentais, em convicções marcantes. Mesmo que a Igreja se tenha tornado, essencialmente, mais multifacetada, ela é, segundo o seu núcleo, uma Igreja que se exprime no Credo e também, muito praticamente, na ligação a Roma, que é entendida como ligação a uma identidade comum de fé. Coexistem aqui, sem dúvida, mundos muito diferentes, mas que, para além destas grandes diferenças, têm uma unidade tão grande, que se pode celebrar Missa em conjunto em qualquer altura, falar uns com os outros, e pode haver um entendimento quanto aos conceitos e aos elementos básicos. Julgo que isto também é importante, como a Igreja Católica contribui para a humanidade, mantendo juntos universos tão diferentes num consenso básico e estabelecendo, desse modo, pontes que unem esses mundos.

Este consenso fundamental não é, antes de mais, um consenso mínimo?

Não, não diria isso. Já não tem nenhuma forma tão cristalina, uniforme, como talvez tivesse há cinquenta anos, ou não sei quando. Está muito diversificado por culturas, mas tem uma unidade muito sólida. Quer dizer que todos lêem a mesma Bíblia, que a lêem no mesmo espírito da tradição católica e se sentem ligados ao mesmo Credo e ao mesmo magistério. Realiza-se de maneiras diferentes, mas é uma unidade claramente perceptível, que experimento muito de perto no encontro com os bispos, mas também com grupos de jovens, de todo o mundo. A identificação católica é, para além de todas as fronteiras, uma experiência muito real.






Além disso é preciso considerar que existem, por outro lado, nas diferenças e nos contrastes culturais, correntes mundiais de unidade e de uniformização. A técnica e os meios de comunicação social também criam um clima de unidade mundial. A televisão, actualmente, também chega aos cantos mais pobres do mundo e projecta uma ideologia determinada, e não há quase nenhum lugar em que a técnica esteja completamente ausente. O que hoje se discute é, por um lado, uma tendência de uniformização que leva todos a este mesmo nível de uma técnica mundial à qual se chegou e às concepções que lhe são próprias. A esta uniformização opõe-se, por outro lado, uma revolta de identidade em que as culturas individuais se defendem mais fortemente destas uniformizações e procuram a sua fisionomia originária. Vê-se que essa uniformidade e o alcance da cultura técnica mundial chegam a todo o lado, mas não chegam para levar a uma unidade mais profunda na humanidade, que toca as dimensões mais íntimas do Homem. Neste ponto, encontra-se a situação mais complicada e, em certo sentido, também mais importante da Igreja.

O que quer dizer com isso?

As convicções e os modos de comportamento que unem a Igreja são mais profundos do que as expressões e os padrões de comportamento que se nos impõem através dos meios de comunicação social. O modo de utilizar um computador, o uso de um carro, a produção em cadeia, a construção de um arranha-céus, etc., são coisas que acontecem em todo o mundo da mesma maneira, com poucas variantes, de acordo com as mesmas leis técnicas. Mas podem ligar-se a isso atitudes completamente diferentes em relação à vida. O fazer exterior é o mesmo, em todo o lado, mas isto não significa que as pessoas que fazem a mesma coisa se possam compreender umas às outras, se possam respeitar mutuamente e estar em paz umas com as outras. Para que isso aconteça, as convicções religiosas e éticas são decisivas, e o modo de formar a consciência. Mas é disso que se trata na Igreja. É claro que esta formação interior do Homem, que é quase imperceptível do exterior, é mais difícil e, também, mais importante para a coesão da humanidade e para a preservação da sua dignidade humana. A partir daí será, provavelmente, possível compreender que é essencial uma expressão sensível comum da formação comum da consciência, na comunidade da fé, porque o que não se manifesta permanece sem efeito. Por isso, é importante que, por exemplo, na liturgia, assim como na vida da Igreja em geral, o que há em comum no interior seja perceptível de um ponto de vista sensível, para além das fronteiras culturais.






Será possível definir correntes fundamentais, frentes ou talvez até fracções dentro da Igreja?

Claro que há correntes que percorrem todo o mundo. Em primeiro lugar há a ideia básica da teologia da libertação. No fundo, teve eco em quase todos os continentes. É preciso dizer que também pode ser interpretada num sentido positivo. A ideia fundamental é que o cristianismo também tem de ter efeito na existência terrena do Homem. Tem de lhe dar a liberdade de consciência, mas também tem de procurar fazer valer os direitos sociais do Homem. Mas quando esta ideia é aproveitada num sentido unilateral, procura, em geral, ver no cristianismo o instrumento de uma transformação política do mundo. A partir deste ponto formou-se a ideia de que todas as religiões seriam apenas instrumentos para a defesa da liberdade, da paz e da preservação da criação; teriam, pois, de se justificar através de um sucesso político e de um objectivo político. Esta temática varia segundo as situações políticas, mas atravessa os continentes. Hoje enraíza-se fortemente na Ásia, mas também em África. Até penetrou no mundo islâmico. Aqui também há tentativas de interpretar o Corão no sentido da teologia da libertação. São marginais, mas nos movimentos de terrorismo islâmico, por exemplo, a ideia de que o Islão fosse, realmente, um movimento de libertação - por exemplo, contra Israel - teve um papel fundamental.

Entretanto, a ideia de libertação - se pudermos chamar liberdade ao denominador fundamental da espiritualidade moderna e do nosso século - também se fundiu fortemente com a ideologia feminista. A mulher é considerada o ser oprimido por excelência; por essa razão, a libertação da mulher é o núcleo de toda a actividade de libertação. Aqui ultrapassou-se, por assim dizer, a teologia da libertação política com uma antropológica. Não se pensa apenas na libertação dos vínculos próprios do papel da mulher, mas na libertação da condição biológica do ser humano. Distingue-se então o fenómeno biológico da sexualidade das suas expressões históricas, às quais se chama género, mas a revolução que se quer provocar contra toda a forma histórica da sexualidade conduz a uma revolução que também é contra as condições biológicas; já não pode haver danos naturais; o Homem deve poder moldar-se arbitrariamente, deve ser livre de todos os condicionalismos do seu ser; ele próprio se torna no que quer, e só desse modo é, realmente, "livre" e está libertado. Por detrás encontramos uma revolta do Homem contra os limites que o seu ser biológico envolve. Trata-se, por fim, de uma revolta contra a própria condição de criatura. O Homem deve ser o criador de si mesmo - uma nova edição, moderna, da velha tentativa de ser Deus - de ser como Deus.


O terceiro fenómeno que se observa em todo o mundo - sobretudo num mundo cada vez mais uniformizado - é a busca de uma identidade cultural própria, expressa no termo "inculturação". Na América Latina, a redescoberta das culturas perdidas é agora, depois da onda marxista ter diminuído, uma nova corrente forte. A theologia india quer voltar a despertar a cultura e a religião pré-colombianas e libertar-se, por assim dizer, da penetração excessiva de elementos europeus que lhe foi imposta. As ligações directas ao feminismo são interessantes. Salienta-se o culto da mãe terra e, em geral, do elemento feminino em Deus, o que acentua as tendências do feminismo americano-europeu, que já não quer apenas fazer afirmações antropológicas, mas que também quer formar de novo o conceito de Deus. Tinha-se projectado a estrutura patriarcal para Deus e, assim, fixado a opressão da mulher a partir do conceito de Deus. O elemento cósmico (mãe, terra, etc.) desta renovação de antigas religiões toca depois em tendências do New Age que visa uma fusão de todas as religiões e uma nova unidade do Homem e do cosmos. Voltemos à inculturação. Claro que também existe de forma muito específica, e sobretudo em África e na Ásia, sobretudo na Índia. A questão está em saber até que ponto se pode usar as culturas como revestimentos de diferentes religiões. São apenas revestimentos? Não são unidades vivas? O que é a "cultura"? Aqui estamos perante grandes interrogações e grandes tarefas a realizar.

Referiria ainda dois temas que também dão a volta ao mundo. Um é a ecologia. A ideia vem da consciência de que não podemos tratar a terra como a tratamos. Daí resultou uma espécie de vergonha por causa do ser humano que, por assim dizer, explora a criação. E surge a questão de saber o que é o Homem, se não deve retomar o seu lugar entre os outros seres vivos e outros argumentos do mesmo género. Pode-se fazer ecologia de um modo cristão, a partir da fé na criação, que dá critérios à arbitrariedade humana, que dá critérios à liberdade humana; pode-se desenvolvê-la contra o cristianismo, a partir do New Age, a partir da dimensão divina do cosmos. O outro tema que gostaria de indicar é a corrente relativista que se tornou muito forte. Tem raízes diferentes. Por um lado, o homem moderno considera não ser democrático, ser intolerante ou também inconciliável com o cepticismo necessário ao cientista, dizer que nós temos a verdade, e que o resto não é a verdade ou só é a verdade fragmentada. A questão de saber se podemos conservar a concepção que temos de nós mesmos como cristãos, tornou-se muito urgente, sobretudo a partir de uma compreensão democrática da vida e da ideia de tolerância associada a ela.



Da Constelação de Peixes para a Constelação de Aquário segundo o Movimento da New Age.




Na Índia, isto ligou-se à tradição religiosa desse país, que teve sempre a particularidade de só buscar a Deus no que não tem nome. Tudo o que é religião é, por conseguinte, apenas reflexo, imagem, refracção do que nunca aparece. Por isso, a verdadeira religião não pode existir. Neste contexto, Cristo é, certamente, uma grande figura que sobressai, mas teria de se voltar a pô-Lo, por assim dizer, na consciência de que n'Ele se mostra o que também se mostrou noutros. Assim juntam-se aqui a orientação mundial democrática tolerante e uma grande tradição cultural.

Que importância têm ou que perigo representam estas correntes mundiais para a Igreja Católica? Na consciência da opinião pública de hoje muitas vezes parece ser escandaloso que a fé cristã continue a apresentar-se como a verdadeira religião, que diga que Cristo é mais do que uma figura que sobressai e que a religião é mais do que uma imagem.

Parece-me que as perguntas "Até que ponto se pode falar, em geral, de verdade?" e "Como deve o cristianismo integrar-se na configuração geral das religiões?" obtiveram uma dimensão dramática completamente nova. A tónica desta discussão encontra-se hoje na Índia, mas também é ventilada, através da theologia india, na teologia sul-americana. Na América e na Europa ela está, naturalmente, muito presente, a partir da nossa consciência de relatividade.

O que acontece com as correntes dentro da Igreja que alguns designam por reaccionárias, por fundamentalismo católico?

Perante tudo o que acontece perante as enormes inseguranças que surgem agora e que ameaçam o Homem que, de repente, sente que lhe foi roubada a pátria espiritual, a sua base, há a reacção da defesa de si mesmo e da recusa da época moderna. Esta é, como tal, tida como desfavorável à religião ou, pelo menos, como inimiga da fé. Acrescentaria ainda que o termo fundamentalismo como é usado actualmente, se refere a realidades muito diferentes e que aí se devia especificar mais. O conceito de fundamentalismo apareceu primeiro no protestantismo americano do século XIX. A interpretação histórico-crítica da Bíblia, que se tinha desenvolvido depois do Iluminismo, retirou à Bíblia a evidência que tinha tido e que tinha sido a condição do princípio protestante Só a Escritura. O princípio Só a Escritura, de repente, já não oferecia bases claras. Como faltava um magistério, significava uma ameaça mortal para esta comunidade na fé. A isto acrescentou-se a teoria da evolução, que não punha apenas o relato da criação e a fé na criação em questão, mas que tornava Deus supérfluo. O "fundamento" tinha desaparecido. A esta concepção opôs-se o princípio estrito da interpretação literal da Bíblia, segundo a qual o sentido literal era considerado imutável. Esta tese dirige-se tanto contra a interpretação histórico-crítica da Bíblia, como contra o magistério católico que não permite tal verbalismo. É "fundamentalismo" no sentido propriamente dito. As "seitas" protestantes fundamentalistas registam hoje grandes sucessos na sua missionação na América do Sul e nas Filipinas. Dão às pessoas a sensação de segurança e da simplicidade da fé. Entre nós, contudo, o "fundamentalismo" tornou-se, entretanto, numa fórmula feita, com a qual se designa todas as imagens possíveis do inimigo.







Que correntes fundamentalistas, continuando a usar esta expressão, considera mais positivas e que correntes lhe parecem mais duvidosas ou patológicas, como disse?

Digamos que o elemento comum nas correntes muito diferentes que, entre nós, designamos por fundamentalismo, é a busca da segurança e da simplicidade da fé. Isto, por si, não é nada de mal, porque a fé, afinal - como o Novo Testamento nos diz repetidamente - se destina sobretudo aos simples, aos pequenos, que não podem viver com complicadas subtilezas académicas. Se hoje é glorificada a vida na insegurança e se se desconfia da fé como verdade encontrada, então esta não é, com certeza, a forma de vida para a qual a Bíblia nos quer conduzir. A busca da segurança e da simplicidade torna-se perigosa quando conduz ao fanatismo e à falta de horizontes. Quando se desconfia da razão em geral, a fé também é falsificada e torna-se numa espécie de ideologia de partido, que já nada tem a ver com a entrega, cheia de confiança, ao Deus vivo, enquanto fundamento originário da nossa vida e da nossa razão. Surgem então formas patológicas de religiosidade, como, por exemplo, a busca de aparições, de mensagens do além e outras semelhantes. Mas em vez de acusar o fundamentalismo, que está cada vez mais definido, os teólogos deveriam pensar até que ponto têm culpa de que cada vez mais as pessoas procurem refugiar-se em formas de religiosidade estreitas ou doentes. Quando só se tem perguntas a oferecer e quando não se aponta nenhum caminho positivo à fé, essas fugas são inevitáveis.

Onde é que a Igreja ainda é mais sã? Existe algo como um novo país católico?

Não ousaria dizer isso assim. Por um lado há ilhas, nas quais as tradições se defendem melhor, e, por outro lado, há lugares em que a crise não se tornou tão radical ou em que novos sinais de renascimento da fé tiveram maior eco. Mas a fé está ameaçada em todo o lado; isto faz, provavelmente, parte da sua essência (ibidem, pp. 59-60; 76-77; 79-80 e 101-107).

Continua


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