Concílio Vaticano II |
Na realidade, tratou-se de um confronto entre duas minorias que, em 1963, o teólogo de Lovaina Gérard Philips descrevia como duas "tendências" contrapostas da filosofia e da teologia do século XX: uma mais preocupada em ser fiel aos enunciados tradicionais, outra mais atenta à difusão da mensagem ao homem contemporâneo.
Acontece que a primeira "tendência" era a posição oficial do Magistério da Igreja, sempre afirmada até ao pontificado de Pio XII; a segunda "tendência" era a tendência heterodoxa, repetidamente censurada e condenada pelo mesmo Magistério eclesiástico. No artigo de Philips, cuja importância, como observa Melloni, seria difícil subvalorizar, as duas posições eram colocadas no mesmo plano, com uma clara preferência do autor pela segunda.
Além disso, havia uma relação de forças, substancialmente equilibrada, delineada por algumas votações, como é o caso da primeira sobre o De fontibus Revelationis. A partir deste momento, porém, contando com uma ligeira superioridade numérica, os progressistas começaram a classificar os seus adversários como uma "minoria", acabando por convencê-los disso. E no momento em que os Padres Conciliares "moderados", que constituíam a maioria, aceitaram esta apresentação do contraste existente, assinaram a própria declaração de derrota.
Antes da última sessão do Concílio, em carta a Mons Carli, o Padre Berto escrevia:
"Quanto mais analiso aquilo que aconteceu nas primeiras três sessões, mais penso que, neste Concílio, não existe uma 'maioria' convicta, mas uma 'maioria' arrastada. Há aí duas 'minorias', uma romana e tomista, na qual Sua Excelência tem posição eminente, a outra anti-romana e antitomista, não muito mais numerosa que a primeira, e qualitativamente de valor muito inferior, mas que por dolorosa permissão divina (quam incomprensibilia sunt iudicia Eius!), é a que arrasta a 'maioria' mediante poderosos meios humanos, a imprensa de maior relevo, a rádio, as influências políticas e diplomáticas, o dinheiro".
Segundo Melissa Wilde, o êxito dos progressistas pode ser explicado por um simples facto sociológico: "Tendo constituído uma organização muito mais ampla e mais flexível que as suas contrapartes conservadoras, os progressistas conseguiram desenvolver posições de compromisso a que a vasta maioria dos bispos se sentia em condições de dar o seu apoio". A minoria progressista prevaleceu, sem dúvida alguma, graças à maior força da sua organização, mas esta derivava, por sua vez, da maior força das suas convicções. Escreve um estudioso das leis das revoluções:
"O êxito de uma minoria resulta de uma combinação de forças em virtude da qual os mais sagazes e mais decididos se arriscam a obter uma adesão dos menos activos e da maioria. Numa situação destas, os mais apaixonados levam a melhor sobre os menos apaixonados, os mais decididos sobre os menos fogosos, os audazes sobre os mais tímidos, os enérgicos sobre os fracos, os mais perseverantes e mais tenazes sobre aqueles que divagam e tergiversam e, em geral, aqueles que duvidam, mudam de ideias, hesitam e voltam atrás".
A história é sempre feita de minorias e, em situação de recontro, aquilo que prevalece não é o número, mas a determinação e a intensidade com que estas minorias travam as suas batalhas. A tendência dos moderados é sempre a de ceder perante as correntes radicais da Revolução, como aconteceu com os apoiantes de Kerensky na Revolução Russa e com os girondinos na Revolução Francesa: "Colocados perante a Revolução e a Contra-Revolução, os revolucionários moderados, em geral, oscilam, tentando alcançar conciliações absurdas; mas acabam sistematicamente por preferir a primeira à segunda".
Quando se organizam, as minorias fazem-no sempre de forma discreta e por vezes mesmo em segredo. Não é inadequado falar, neste sentido, de conciliábulos e conspirações. Actualmente, quando se pretende diminuir uma obra de história, acusa-se a mesma de tender para a "teoria da conspiração". Ora, admitir a existência de conspirações mais não é do que admitir que a história é feita da liberdade dos homens, e não é fruto de um Espírito, ou de uma Razão a ela imanente, da qual os homens não são senão instrumentos. Na realidade, não há evento histórico de peso, a começar pelas duas grandes Revoluções da época moderna, a francesa e a russa, que não se tenha iniciado com "conspirações" mais ou menos bem sucedidas. James H. Billington, que estudou a origem da "fé" revolucionária, documentou as origens conspirativas e ocultas dos principais movimentos dos séculos XIX e XX. O Concílio Vaticano II não escapa a esta lei histórica, que ligava de maneira subterrânea o progressismo dos inovadores ao modernismo do início do século.
A 3 de Dezembro, Mons. Borromeo anotava no seu diário:
"Estamos em pleno modernismo. Não se trata do modernismo ingénuo, declarado, agressivo e combativo dos tempos de Pio X, não. O modernismo dos nossos tempos é mais subtil, mais camuflado, mais penetrante e mais hipócrita. Não pretende provocar uma tempestade, pretende que toda a Igreja se torne modernista sem disso se aperceber. [...] O novo modernismo também admite a tradição, mas como consequente à Escritura, originada pela Escritura e pelo Magistério, que originalmente teve por objecto apenas a Escritura. No modernismo, Cristo salva-se, mas não é o Cristo histórico; é um Cristo elaborado pela experiência religiosa, a fim de que houvesse uma figura humana, bem delineada e concreta, que apoiasse as experiências religiosas que não podiam ser expressas, na sua riqueza e intensidade, por meio de puros conceitos racionais e abstractos. [...] Assim também, o modernismo de hoje salva todo o cristianismo, os seus dogmas e a sua organização, mas esvazia-o por completo e inverte-o. Já não se trata de uma religião que vem de Deus, mas de uma religião que vem directamente do homem e indirectamente do divino que há no homem".
Cardeal Alfredo Ottaviani |
Na "ala avançada" do progressismo, distinguia-se um conjunto de teólogos alemães, orientados pelo Padre Rahner, da Companhia de Jesus, e por outros dois teólogos mais jovens, Hans Küng e Josef Ratzinger. Rahner era conselheiro do Cardeal König, de Viena, Küng, de Mons. Leiprecht, bispo de Rottenberg, Ratzinger, do Cardeal Frings, arcebispo de Colónia. A eles juntava-se o Padre Otto Semmelroth, teólogo de Mons. Hermann Volk, bispo de Mainz, e também estreitamente ligado ao Padre Rahner. Estes teólogos eram críticos da "teologia conceptual" romana, a que chamavam, em tom depreciativo, "teologia do Denzinger", e propunham uma nova "teologia da existência", na qual o conhecimento e a vida se fundiriam num único acto de experiência da fé.
(...) Hans Küng, de 34 anos, professor de Teologia Dogmática na Universidade de Tubinga, via em Rahner, para além de um mestre, um amigo, recordando que "cogitávamos juntos para contornar a estratégia da Cúria no Concílio". Se Küng retirava das teses de Rahner as suas consequências lógicas, Josef Ratzinger, aluno de Gottlieb Söhngen, preferia a eclesiologia do Padre de Lubac e do teólogo suiço Hans Urs von Balthasar, que saíra da Companhia de Jesus em 1950. "Balthasar é muito mais um literato. Já Rahner é um verdadeiro teólogo", comentava, não sem razão, Küng.
Nos anos que se seguiram ao Concílio, os caminhos dos dois jovens teólogos divergiram: Küng assumiu posições cada vez mais heterodoxas, chegando mesmo a sair da Igreja, enquanto Ratzinger seguiu um percurso intelectual inverso, que o levou a recuperar o papel da Tradição e das instituições romanas. Quanto a Rahner, que fora mestre dos dois, pretendeu demonstrar que era capaz de ter êxito onde o modernismo fracassara, e assumiu o ambicioso projecto de modificar a doutrina da Igreja permanecendo no interior da mesma. Como observa Alberigo, Rahner "viria a ser um dos guias teológicos determinantes do Vaticano II"».
Roberto de Mattei («O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita»).
«(...) A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos - um incrível realismo. Já no Antigo Testamento a novidade bíblica não consistia simplesmente em noções abstractas, mas na acção imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta acção de Deus ganha agora a sua forma dramática no facto de, em Jesus Cristo, o próprio Deus ir atrás da "ovelha perdida", a humanidade sofredora e transviada. Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas de uma explicação do seu próprio ser e agir. Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o ser humano e salvá-lo - o amor na sua forma mais radical.
«Deus é Amor» (Carta Encíclica DEUS CARITAS EST do Sumo Pontífice Bento XVI aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos sobre o amor cristão).
«Entre os alemães é fácil compreender-me quando digo que a filosofia está corrompida pelo sangue do teólogo. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã, e o próprio protestantismo o seu peccatum originale. Definição do protestantismo: hemiplegia do cristianismo - e da razão... Basta pronunciar o nome "Tübingen Stift" para entender o que é no fundo a filosofia alemã: uma teologia fraudulenta. Os suávios são os melhores embusteiros da Alemanha, mentem inocentemente... Donde provinha pois a alegria que, com o aparecimento de Kant, passou pela Alemanha no mundo dos letrados, nas suas três quartas partes constituído por filhos de pastores e mestres-escola? Donde provinha a convicção alemã, que mesmo ainda hoje encontra eco, de que se iniciara com Kant alguma mudança para um mundo melhor? O instinto teológico do letrado alemão adivinhava o que então voltava a ser possível... Abria-se um caminho indirecto para o antigo ideal, o conceito de "mundo verdadeiro", a noção de moral como essência do Mundo (- as mais perversas noções que existem! -) eram de novo senão demonstráveis, pelo menos impossíveis de refutar, graças a um cepticismo subtil e astuto... A razão, o direito da razão, não vai tão longe... Fizera-se da realidade uma "aparência"; um mundo completamente forjado, o da essência, apresentara-se como a realidade... O êxito de Kant foi apenas um êxito de teólogo: tal como Lutero, como Leibniz, Kant foi mais um freio à já pouco sólida integridade alemã.
O facto de as raças vigorosas do Norte da Europa não terem repelido o Deus cristão, não honra de modo algum o seu talento religioso - para já não falar do seu gosto. Deveriam elas ter triunfado sobre este produto da décadence, mórbido e senil. Mas, porque o não repeliram, caiu sobre elas uma maldição: absorveram nos seus instintos a doença, a senilidade, a contradição - e desde então não voltaram a criar Deus algum! Quase dois milénios decorridos e nem um único Deus novo! Apenas subsistindo sempre e como que por direito, como um ultimatum e maximum da força criadora do divino, do creator spiritus no homem, esse miserável Deus do monoteísmo cristão! Esse híbrido edifício de escombros, feito de zero, de conceito e de contradição, no qual todos os instintos da décadence, todas as cobardias e fadigas de alma encontram a sua sanção!».
Frederico Nietzsche («O Anticristo»).
«Quando se diz que Hegel é, segundo a causa formal, um filósofo cristão, há-de ter-se em conta a herança pietista e o próprio cunho que ele imprimiu à Filosofia da Teologia, o que se aproxima do formulado pelo seu contemporâneo Shleiermacher. E não só, também por todos os outros pensadores situados no ciclo pós-Kant, incluindo Schiller, Fichte e Schelling.
Hegel foi destinado pelos pais à carreira eclesiástica. Por isso, em 1788, com a idade de dezoito anos, ingressou no STIFT, ou Seminário de Teologia de Tubinga, onde completaria o quinquénio de estudos no ano lectivo de 1793. O STIFT não era mais do que uma continuidade do Seminário de Teologia medieval, meio termo entre o Mosteiro e a Universidade: modéstia de vida, comida frugal, mínimo de comodidades; por outro lado, tempo e ambiente para estudo, não só das cadeiras curriculares, mas para leituras livres, aspecto em que os Seminários luteranos se distinguiam dos católicos, onde se exercia um controle da liberdade de leitura. Rigor monacal e vida universitária, contacto directo com a religiosidade da escola suábica da Theologia Vitae, igualmente pietista.
(...) Neste curso teológico juntaram-se três singulares jovens, todos de nome Frederico: o próprio Hegel (Jorge Frederico), Hölderlin (João Frederico) e Schelling (Frederico Guilherme).
(...) A origem da filosofia de Hegel é tripla: teológica, metafísica e crítica.
Do ponto de vista teológico, a presença do magistério de Lutero tem um peso significativo, porque é a Lutero que Hegel atribui a origem da liberdade do espírito, ao quebrar os vínculos com a hierarquia, e ao proclamar o sacerdócio universal. No entanto, o Luteranismo permanece ainda limitado pela subjectividade, e pela imediateidade de sentimento, como em toda a religião afectiva, havendo que elevá-lo ao nível da objectividade absoluta, mediante um absoluto idealismo.
A origem metafísica deriva do conceito de unidade substancial em Espinosa e do Espinosismo, descoberto por Fichte e por Schelling como via superacional do dualismo de Kant. Espinosa significa para Hegel o princípio da Filosofia, porque o método espinosiano permite entender como o ser se oferece apenas como totalidade em todas as suas formas e modos variáveis. Porém, Hegel, do mesmo passo que admite a tese de Espinosa, admite-a para a rectificar quanto à sua rigidez intelectualista e à sua determinação panteísta, o que não evitou que o mesmo Hegel, no decurso do seu processo mental, não afluísse a uma espécie de panteísmo místico, embora resguardando as tónicas da teologia cristã.
Pinharanda Gomes («Introdução à Vida e Obra de Hegel», in G. W. F. Hegel, Estética, em tradução portuguesa de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino).
«Quando o Cardeal Ruffini tomou a palavra, fez-se total silêncio na assembleia. O Cardeal de Palermo ilustrou, com o seu habitual rigor lógico, os seus motivos de preocupação:
1) O termo "ecumenismo", introduzido na teologia pelos protestantes, é equívoco, porque é entendido de modo diverso por protestantes e católicos. Se for conservado no documento, o seu significado terá de ser definido com clareza.
2) O esquema tem de mostrar mais claramente que a proximidade dos católicos com os orientais é muito maior do que a sua proximidade com os protestantes, que reconhecem muito poucos elementos da antiga fé católica, à excepção da Escritura e do baptismo.
3) Se se acrescenta um capítulo especial para os judeus, porque não se há-de falar, dentro desse, das pessoas que aderem a outras religiões? E por que razão descura o ecumenismo os inúmeros católicos que se interessam pelo marxismo, que difunde o ateísmo pelo mundo?».
Roberto de Mattei («O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita»).
O Sal da Terra
(...) "Quem se faz pequeno como esta criança", assim se lê no Evangelho de S. Mateus, " é o maior no Reino dos Céus".
A teologia do pequeno é uma categoria fundamental do que é cristão. Segundo a nossa fé, a grandeza especial de Deus manifesta-se precisamente na ausência de poder. Isto pressupõe que, a longo prazo, a força da História se encontra precisamente nas pessoas que amam, numa força, portanto, que não se pode medir de acordo com categorias de poder. Assim, Deus revelou-se deliberadamente para mostrar quem Ele é, na impotência de Nazaré e do Gólgota. O maior não é, pois, quem mais pode destruir - para o mundo, o potencial de destruição é ainda a verdadeira demonstração de poder - mas, pelo contrário, a mais pequena força de amor já é maior que o maior potencial de destruição.
Transfiguração |
E isso é muito importante. O essencial, também no próprio Cristo, não é que ele tenha anunciado determinadas ideias - o que Ele também fez, como é óbvio - mas eu torno-me cristão, porque acredito neste acontecimento. Deus entrou no mundo e agiu; é, portanto, uma acção, uma realidade, não apenas um conjunto de ideias.
(...) Todas as grandes culturas que conhecemos tiveram ou têm a religião como factor comum mais importante. Parece existir uma espécie de uníssono das doutrinas, por exemplo, na exortação à moderação, na advertência contra o egocentrismo e a autonomia. Então por que razão as religiões não haveriam de ser todas iguais? Por que razão o Deus dos cristãos haveria de ser melhor do que o Deus dos índios? E por que razão haveria de existir só uma única religião que levasse à salvação?
Essa proposta, que foi feita desde o início da investigação histórica na religião do Iluminismo, mas que também tinha surgido antes, já é contraditória, quando se consideram as próprias religiões. É que não são iguais. Há graus diferentes, e há religiões manifestamente doentes que também podem ser destruidoras para o Homem.
A crítica marxista da religião tem razão, na medida em que há religiões e práticas religiosas que são alienantes para o Homem. Lembremo-nos, por exemplo, de que em África, a crença nos espíritos ainda continua a ser um grande obstáculo para o desenvolvimento da terra e para a construção de uma estrutura económica moderna. Se preciso de me proteger dos espíritos, em todo o lado, e se um medo irracional determina todo o meu sentimento da vida, então o que deve ser a religião não é certamente vivido como deve ser, no mais profundo de mim mesmo. E assim, também podemos verificar que no cosmos religioso indiano (o nome "hinduísmo" é, antes de mais, uma designação enganadora que engloba uma multiplicidade de religiões) existem formas muito diferentes; algumas mais elevadas, puras, marcadas pela ideia do amor, mas também formas muito cruéis, das quais fazem parte ritos homicidas.
Sabemos que os sacrifícios humanos marcam de forma horrível uma parte da história das religiões; sabemos que a religião política se transformou num instrumento de destruição e de opressão; conhecemos patologias na própria religião cristã. Queimar bruxas é um regresso a um costume germânico, que tinha sido superado com dificuldade com a evangelização na Alta Idade Média, e que, depois, na Baixa Idade Média voltou a surgir com o enfraquecimento da fé. Resumindo, os deuses não são todos iguais, há figuras divinas muito negativas, quer pensemos no cosmos religioso grego quer, por exemplo, no indiano. A ideia de uma igualdade de religiões fracassa, muito simplesmente, perante os factos da história das religiões.
Mas não seria possível aceitar também que alguém possa alcançar a salvação através de outra fé que não a católica?
Baptismo de Jesus Cristo |
As religiões também podem tornar mais difícil para o Homem ser bom. Isso até pode acontecer no cristianismo, devido a formas de vida erradas do que é ser cristão, a figuras sectárias, etc. Nesta medida, também a purificação da religião na história das religiões e no cosmos das religiões é sempre uma enorme necessidade, para que não se torne num impedimento para a relação correcta com Deus, mas realmente encaminhe o Homem.
Eu diria, se o cristianismo, a partir da figura de Cristo, se apresenta como a verdadeira religião na história das religiões, isso significa que na figura de Cristo surgiu, pela Palavra de Deus, a força realmente purificadora. Não é necessariamente sempre bem vivida pelos cristãos mas é o critério e a direcção das purificações indispensáveis, para que a religião não se torne num sistema de opressão e de alienação, mas realmente num caminho do Homem para Deus e para si mesmo.
Claro que há muitos que pensam que é precisamente a fé cristã-católica que exprime uma visão pessimista do mundo.
Na Revolução Francesa desenvolveu-se a ideologia, de acordo com a qual o cristianismo, que crê num fim do mundo, num juízo, etc., é essencialmente pessimista; a época moderna, pelo contrário, que descobriu o progresso como lei da História, é essencialmente optimista. Entretanto, verificamos que estas confrontações se vão dissolvendo lentamente. Vemos que a confiança em si própria da época moderna diminui visivelmente. Porque se torna cada vez mais claro que o progresso também é um progresso das possibilidades de destruição, e que o Homem talvez não esteja moralmente à altura da própria inteligência, transformando-se as suas capacidades em capacidades para destruir. O cristianismo, de facto, não defende tal ideia segundo a qual a História progride necessariamente, nem que a situação da humanidade vai melhorando, no essencial.
Quando se lê o Apocalipse, vê-se que a humanidade, realmente, se move em círculos. Volta sempre a haver horrores que depois vêm a desaparecer, mas aos quais sucedem outros. E também não se prevê um estado de salvação inerente à História, construído pelo próprio Homem. A ideia de que a condição humana se torna necessariamente melhor não tem fundamento no que é cristão. Mas faz parte da fé cristã a certeza de que Deus nunca abandona a humanidade e de que, por esta razão, também nunca se pode tornar num fracasso total, embora hoje haja muitos que digam que seria melhor a humanidade nem sequer ter aparecido.
Nesta medida, o esquema de optimismo e de pessimismo não é de todo adequado. O cristão reconhece, tal como qualquer pessoa dotada de razão, que é possível existirem grandes crises na História, e que talvez hoje estas estejam diante de nós. Também é capaz de reconhecer que a História não se desenvolve graças a um automatismo interior num sentido positivo, que, portanto, os perigos são muito reais. Tem, contudo, o último optimismo, que Deus segura o mundo nas Suas mãos e que, por isso, até horrores tão terríveis como Auschwitz, que têm de nos abalar profundamente, estão envolvidos pela ideia de que Deus é, apesar de tudo, mais forte do que o mal.
A Cruz - um símbolo horrível?
Em certo sentido, envolve um horror que não lhe devemos retirar. É o modo de execução mais cruel que a Antiguidade conhecia e que não se podia aplicar ao romanos, porque teria manchado a honra romana. Ver que o mais puro dos homens, que era mais do que um homem, é executado de modo tão cruel, pode levar-nos, primeiro a ficar horrorizados connosco. Mas também precisamos de nos horrorizar connosco e de sair do nosso comodismo. Neste ponto, penso que Lutero teve razão quando disse que o Homem tem de se horrorizar consigo próprio para chegar ao bom caminho.
Mas não se fica pelo horror, não se trata apenas de horror, pois do alto da Cruz não olha para nós um homem fracassado, um homem desesperado, uma das terríveis vítimas da humanidade, porque este Crucificado nos diz uma coisa diferente do que Espártaco e seus seguidores fracassados, porque desta Cruz olha para nós a própria bondade de Deus, que se dá nas nossas mãos, que se entrega a nós e que, por assim dizer, suporta connosco todo o horror da História. Numa perspectiva profunda, este sinal, que nos apresenta a dimensão perigosa do ser humano e todos os seus horrores, deixa-nos então contemplar ao mesmo tempo o Deus mais forte, mais forte na Sua fraqueza, e o facto de sermos amados por Deus. É um sinal de perdão, na medida em que dá esperança, mesmo nos abismos da História.
Actualmente coloca-se muito a questão de saber como ainda é possível falar de Deus depois de Auschwitz e como ainda é possível fazer teologia. Eu diria que a Cruz resume antecipadamente o horror de Auschwitz. Deus está crucificado e diz-nos que Deus aparentemente tão fraco é o Deus que perdoa incompreensivelmente e, na Sua ausência aparente, é o Deus mais forte.
A verdade sobre o Homem e Deus parece ser, muitas vezes, triste e pesada. A fé, por si, só é suportável por naturezas mais fortes? Muitas vezes é tida como uma exigência demasiado grande. Como poderemos alegrar-nos com a fé?
Eu diria, pelo contrário, que a fé dá a alegria. Se Deus não está presente, o mundo desertifica-se, e tudo se torna aborrecido, e tudo é completamente insuficiente. Hoje vê-se bem como o mundo sem Deus se desgasta cada vez mais, como se tornou num mundo sem nenhuma alegria. A grande alegria vem do facto de existir o grande amor, e é esta a afirmação essencial da fé. Tu és alguém que é indefectivelmente amado. Foi por isso que o cristianismo encontrou a sua primeira expansão sobretudo entre os fracos e os que sofriam.
Claro que isto agora se pode interpretar num sentido marxista e pode-se dizer que não foi só uma consolação em vez da revolução. Mas eu creio que, de certo modo, já ultrapassámos estas fórmulas. O cristianismo estabeleceu novas relações entre senhores e escravos, de modo a S. Paulo já poder dizer a um senhor: não faças mal ao teu escravo, porque ele se tornou teu irmão.
Pode-se dizer que o elemento fundamental do cristianismo é a alegria. Não me referi à alegria no sentido de um divertimento qualquer que pode ter o desespero como pano de fundo. Bem sabemos que muitas vezes o divertimento é a máscara do desespero. Mas eu refiro-me à verdadeira alegria. É uma alegria que coexiste com uma existência difícil e que torna possível que essa existência seja vivida. A história de Jesus Cristo começa, segundo o Evangelho, com o anjo que diz a Maria: Alegra-te! Na noite do nascimento, os anjos dizem outra vez: Anunciamo-vos uma grande alegria. E Jesus diz: Anuncio-vos a Boa Nova. Portanto, o núcleo de que aqui se trata, é sempre: anuncio-vos uma grande alegria, Deus está presente, sois amados, e isto está estabelecido para sempre.
No entanto, muitas vezes parece ser mais fácil não crer do que crer. É paradoxal; por um lado, em princípio, há fé, o Homem é um ser religioso, por outro lado, é sempre preciso lutar pela fé.
Mas a facilidade de não crer é relativa. Existe, na medida em que é fácil desfazer-se dos laços da fé e dizer que não me esforço, que isso me sobrecarrega e que deixo isso de lado. Este primeiro acto é, por assim dizer, a facilidade de não crer. Viver com isso é que já não é tão fácil. Viver sem fé significa que primeiro uma pessoa se encontra num estado niilista e que depois acabará por procurar pontos de apoio. A vida sem fé é complicada. Quando se considera a filosofia da incredulidade em Sartre, Camus e outros, vê-se bem isso.
O acto de fé talvez seja complicado, enquanto ponto de partida e enquanto aceitação, embora no momento em que a fé realmente me toque - "podes alegrar-te" - volte a ter uma facilidade interior muito grande. Portanto, não se pode acentuar unilateralmente as dificuldades. A facilidade de não crer e a dificuldade da fé situam-se em níveis diferentes. Também a incredulidade tem o seu peso muito grande, que, segundo me parece, ainda é maior. A fé também torna o Homem leve. Isso vê-se bem nos Padres da Igreja, sobretudo na teologia monástica; crer significa que nos tornamos como anjos, dizem eles. Podemos voar, porque já não temos de suportar o nosso peso. Tornar-se crente significa tornar-se leve, libertar-se da força da gravidade, com a qual também tendemos para baixo, e entrar, deste modo, no flutuar da fé.
(...) Mas onde está Deus, onde se pode mostrar? Esconde-se? Parece que Deus se revela muito raramente. As pessoas desesperam porque pensam que Ele não fala com elas, não dá sinais, não interfere na vida delas.
(...) Quantos caminhos há para Deus?
Tantos, quanto há pessoas. Porque mesmo dentro da mesma fé o caminho de cada um é muito pessoal. Nós temos a palavra de Cristo: "Eu sou o Caminho". Neste sentido, há, afinal, um só caminho, e cada um que está a caminho de Deus está também, de alguma maneira, no caminho de Jesus Cristo. Isto não significa que, consciente e deliberadamente, todos os caminhos sejam idênticos, mas, pelo contrário, que o caminho é realmente tão grande que se torna, em cada um, no seu caminho pessoal.
De Tertualiano temos este paradoxo: "Creio porque é absurdo". Santo Agostinho "acreditava para compreender". Porque crê o Cardeal Ratzinger?
Nesse ponto, sou decididamente agostiniano. Assim como a criação vem da razão e é racional, a fé, por assim dizer, é, primeiro, a realização da criação e, por isso, a porta para a compreensão; estou convencido disso. Crer significa, portanto, entrar nesta compreensão e neste conhecimento. A expressão de Tertuliano - ele gosta muito de expressões exageradas - corresponde à síntese do pensamento dele. Ele queria dizer que Deus se mostra precisamente como paradoxo em relação aos valores do mundo. E aí mostra-se de modo divino. Mas Tertuliano era pouco amigo da filosofia; nesse ponto, não partilho a posição dele, mas sim a de Santo Agostinho.
Também desenvolveu algo como uma expressão própria que resuma o essencial da fé?
Não preciso de um novo lema. Parece-me que a frase de Santo Agostinho, que também S. Tomás retomou mais tarde, descreve bem a orientação, tal como é. Eu creio! E no próprio acto de fé está incluído que isto vem d'Aquele que é a própria razão. Ao começar por me submeter com fé Àquele que não compreendo, sei que é precisamente assim que abro a porta para a verdadeira compreensão.
(...) Pertenceu à Juventude Hitleriana?
(...) Foi mobilizado para o exército no final da guerra?
Sim. A partir de 1943 os seminaristas de Traunstein foram todos mandados para Munique para servir na defesa antiaérea. Eu tinha dezasseis anos, e fizemos o nosso serviço durante pouco mais de um ano, de Agosto de 1943 a Setembro de 1944. Em Munique, frequentámos o Liceu Max; portanto, ainda tínhamos aulas. As disciplinas eram reduzidas, mas, apesar de tudo, ainda tínhamos algumas aulas. Por um lado, tudo isto não era, naturalmente, motivo de alegria, mas, por outro lado, a camaradagem também deu o seu encanto a esse tempo.
Em que consistia o seu serviço na defesa antiaérea?
Uma bateria dividia-se em dois elementos essenciais; de um lado, a bateria de tiro e, de outro lado, o posto de comando de tiro. Eu estava no posto de comando de tiro. Também já havia os primeiros instrumentos electrónicos e ópticos para localizar os aviões que se aproximavam e para transmitir os elementos de tiro à bateria de tiro. Para além dos exercícios regulares, tínhamos de estar junto aos aparelhos em cada alerta. O que se tornava cada vez mais desagradável, porque havia cada vez mais alarmes nocturnos e muitas noites eram, realmente, bastante agitadas.
(...) Que corrente espiritual o interessou particularmente e o fascinou?
Heidegger e Jaspers interessavam-me muito; além disso, o personalismo em geral. Steinbchel escreveu um livro chamado Die Wende des Denkens (A viragem do pensamento) em que tinha descrito de modo muito impressionante a passagem do predomínio do neokantismo para a fase personalista. Foi uma leitura chave para mim. E depois, também me interessou muito, desde o início, Santo Agostinho, por assim dizer, como contrapeso de S. Tomás de Aquino.
(...) Acabou por vir a interessar-se pela teologia da História de S. Boaventura. Como é que isso aconteceu?
A teologia fundamental está relacionada sobretudo com a "revelação". O que é, afinal? Pode existir uma "revelação"? E perguntas semelhantes. Quando comecei a estudá-la, e quando tinha aprofundado os meus conhecimentos, verificou-se que, para S. Boaventura, a revelação estava inseparavelmente ligada à aventura franciscana; e que esta aventura estava, por sua vez, ligada a Joaquim de Fiore que tinha profetizado uma Terceira Idade, a Idade do Espírito Santo, como uma nova fase de revelação. Joaquim de Fiore também tinha calculado quando essa Idade deveria começar. E, curiosamente, esse cálculo coincide aproximadamente com as datas de S. Francisco de Assis que, na verdade, introduziu uma fase completamente nova na história da Igreja. Assim, os Franciscanos, ou, pelo menos, uma corrente significativa entre eles, tiveram muito rapidamente a consciência de que o que eram tinha sido anunciado por Joaquim de Fiore: eis a nova Idade do Espírito Santo; é este o Povo de Deus simples, novo, pobre, que não precisa de estruturas temporais.
Assim, o conceito de revelação já não estava simplesmente colocado algures no princípio, muito longe de nós, mas a revelação estava agora ligada à História - como processo que avança na História, que entrou numa nova fase. A revelação já não era, portanto, um tema abstracto para S. Boaventura, mas estava ligada à interpretação da sua própria história franciscana.
O que é que esse estudo o levou a descobrir?
Trata-se de duas grandes questões. Uma poderia formular-se assim: se a fé cristã está ligada a uma revelação que se completou há muito, não está então condenada a estar voltada para trás e a prender o Homem a um tempo passado? Pode então a fé acompanhar a História que continua e tem ainda alguma coisa a dizer? Não tem que envelhecer a pouco e pouco e acabar por ser completamente irrealista? S. Boaventura respondeu, ao salientar fortemente a relação entre Cristo e o Espírito Santo segundo o Evangelho de S. João: a palavra histórica da revelação é definitiva, mas é inesgotável e revela sempre novas profundidades. Assim, o Espírito Santo fala como intérprete de Cristo, com a Sua palavra em todas as épocas e mostra que essa palavra tem sempre algo de novo a dizer. O Espírito Santo não é, como em Joaquim de Fiore, extrapolado para um período futuro, mas é sempre, continuamente, a época do Espírito. A época de Cristo é a época do Espírito Santo.
A segunda questão que se põe, neste contexto, é a da escatologia e da utopia. É difícil para o Homem ter somente esperança no além ou num mundo novo depois do fim do actual. Ele quer uma promessa na História. Joaquim de Fiore, que formulou, concretamente, uma tal promessa, preparou o caminho para Hegel, como mostrou o Padre De Lubac, enquanto Hegel, por sua vez, preparou o esquema de pensamento que iria servir Marx. S. Boaventura opôs-se à utopia que engana o homem. Contra o conceito entusiasta, espiritual-anárquico do movimento franciscano, impôs um conceito objectivo e realista, o que muitos lhe levaram a mal e ainda lhe levam a mal. Mas ele viu a resposta à questão da utopia precisamente em tais comunidades não-utópicas, mas motivadas pela paixão da fé; não trabalham para um mundo do depois de amanhã, mas para que ainda hoje haja alguma luz do paraíso neste mundo. Agora vivem "utopicamente", tão bem quanto possível, renunciando à propriedade, à livre disposição de si mesmos, aos erros e às suas realizações. Assim, o mundo recebe um novo entusiasmo, os seus constrangimentos são rompidos, e Deus torna-se muito próximo no meio deste mundo.
(...) Disse uma vez que um homem assim deveria acentuar "a primazia da verdade sobre a bondade". Julgo que é uma atitude que pode ser perigosa. Isto não corresponderia à imagem do Grande Inquisidor, como Dostoievski o descreveu?
(...) Era tido como teólogo progressista. Nesse tempo era uma estrela como professor, as suas aulas estavam cheias. Discutia muitas vezes sobre a autenticidade, a tolerância. Também protestou contra a paralisação neo-escolástica de Roma e fez pesadas acusações aos responsáveis no Vaticano que levariam a Igreja à paralisação. Como jovem teólogo acusou, nessa altura, a Igreja de ter "rédeas demasiado curtas, demasiadas leis, das quais muitas contribuíram para abandonar o século da incredulidade, em vez de o ajudar no sentido da redenção". Pode-se dizer, com razão, que sem o seu empenho as reformas do Concílio Vaticano II não são concebíveis.
Sinto que me estão a sobrevalorizar um pouco. Se não tivesse havido uma grande orientação nesse sentido, um teólogo e, além disso, um teólogo completamente desconhecido em todo o mundo, não poderia ter significado nada; mesmo quando falava pela boca de um cardeal destacado, conhecido.
Depois de o Papa João XXIII ter convocado o Concílio e de lhe ter dado o lema de dar um salto em frente e de, como ele dizia, aggiornar a fé, de a trazer para os dias de hoje, existiu nos Padres Conciliares um desejo muito forte de ousar, realmente, fazer algo de novo, abandonar o esquema escolar estagnado, e ousar também uma liberdade nova. Esta intenção estava presente desde a América do Sul até à Austrália. Não sei dizer se em África já existia uma vontade própria. Em todo o caso, tal vontade existia na maioria do episcopado.
Não me lembro exactamente das fases que citou, mas é verdade que, na minha opinião, a teologia escolástica, como se tinha fixado, já não era um instrumento para trazer a fé para o diálogo da época. A fé tem de sair dessa couraça, tem também de enfrentar a situação do presente com uma nova linguagem, com uma nova abertura. Assim deve surgir uma liberdade maior também na Igreja. Claro que o pathos de uma pessoa nova também tem importância. Mas, em geral, era uma tomada de consciência que se sentia em toda a Igreja, que estava relacionada com a atmosfera de renascimento do pós-guerra - e com a esperança de que então tivesse chegado uma nova hora para o cristianismo.
Sublinhou que procurava permanecer fiel ao Concílio Vaticano II "sem nostalgia de um ontem irrevogavelmente passado". Por outro lado também falou, não muitos anos depois de o Concílio ter acabado, de uma "falta de espírito do Concílio" e fez um balanço negativo. Tinha-se esperado um salto em frente e deparou-se com um "processo de declínio". O que é que correu mal?
Porque é que isso aconteceu? Diria duas coisas: primeiro, esperámos demais, sem dúvida. A Igreja não somos nós que a fazemos, só por nós. Podemos fazer o nosso serviço, mas os resultados não dependem unicamente da nossa actividade. As grandes constantes da História continuaram o seu caminho. Em parte, também não as tínhamos avaliado bem. Isto é um aspecto; houve uma expectativa demasiado grande que talvez também não tenha sido correcta, na medida em que preferimos ver o cristianismo crescer para os lados e não reconhecemos que a hora da Igreja também pode ser completamente diferente.
O segundo aspecto é que houve uma diferença considerável entre o que quiseram os Padres e o que foi transmitido à opinião pública e que depois marcou a consciência geral. Os Padres do Concílio quiseram aggiornar a fé - mas quiseram também, precisamente desse modo, apresentá-la com toda a sua força. Em vez disso, veio a ter-se cada vez mais a impressão de que a reforma consistia em deitar fora o lastro; que estávamos a tornar a nossa tarefa mais fácil, de modo que a reforma não parecia consistir numa radicalização, mas numa espécie de diluição da fé.
Agora verifica-se, cada vez mais, que através de aligeirar, adaptar e conceder simplesmente, não se escolheu a forma certa de concentração, simplificação e aprofundamento. Quer dizer, no fundo, há dois conceitos de reforma. Um conceito é que se deve renunciar mais ao poder exterior, a factores exteriores, mas para viver cada vez mais da fé. O outro consiste em tornar a História mais confortável, para dizer de uma forma quase caricatural; e então, as coisas correm, obviamente, mal.
Parece que essa interpretação continua errada até aos dias de hoje. Porque, curiosamente, todos reivindicam esse Concílio, tanto os grupos que se vêem como reformadores, como também aqueles que se consideram, antes de mais, como conservadores do Concílio. A herança do Concílio, como já profetizou em 1975, "ainda não se revelou. Ainda aguarda a sua hora e essa hora virá, disso tenho a certeza".
Sim, é verdade, há duas interpretações do Concílio. Torna-se, realmente, cada vez mais claro que os textos do Concílio se encontram absolutamente na continuidade da fé. Por isso, agora há muitas pessoas que já dizem que os textos foram só os primeiros ímpetos. Deveríamos encontrar orientações nesses textos, mas desligarmo-nos deles. Mas, com este ponto de partida, já não se está a falar do Concílio. Com certeza que não se deve fazer dos textos letra morta, mas o que eles querem realmente dizer, o que se pode depreender deles a partir de uma interpretação objectiva, é a grande herança do Concílio. É exactamente a partir daí que se deve apreendê-lo, interpretá-lo e compreendê-lo.. E é assim que surgem imensos impulsos novos, sobretudo na nova relação com o mundo, com a declaração sobre a liberdade religiosa, etc.
É claro que também há, sobretudo, aprofundamentos e encorajamentos da fé, que é preciso aproveitar em primeiro lugar. O que quero acentuar é que a verdadeira herança do Concílio se encontra nos seus textos. Quando são interpretados de forma séria e cuidadosa, fica-se protegido dos extremismos dos dois lados; e então, abre-se, realmente, um caminho que ainda tem um grande futuro. (in O Sal da Terra. O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milénio, um diálogo com Peter Seewald, Multinova, 1997, pp. 17, 19-27; 41; 44-45; 47-50; 53 e 57-59).
Continua
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