Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«Dá-nos Agostinho da Silva uma imagem de si que é a imagem do filho pródigo antes de regressar a casa de seus pais. A casa que abandonou é a escola de Leonardo Coimbra, a Renascença Portuguesa, a mitologia de Pascoaes, a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Sempre a casa lhe esteve e está aberta, com o lume aceso e o pão na mesa. Amuos de Menino - ele é que é o Menino dos "Impérios" - prendem-no lá fora ao frio de um cientismo que deu o que não tinha a dar, à secura de um racionalismo sergista de que já não se vê o que ficou e coisas semelhantes que são o que mais há por esse mundo das universidades, das academias, das instituições, das teocracias sem Deus onde Agostinho parece dizer que gosta de fazer figura».
Ernesto Palma («Agostinho da Silva, filho pródigo»).
«Luís Machado - Professor, em termos do seu percurso, o senhor cursou a Escola Superior para ficar habilitado a leccionar no ensino oficial, e só mais tarde é que faz o doutoramento, não é verdade?
Agostinho da Silva - Não, fiz o doutoramento antes. Um dia passei pelo Rossio e cruzei-me com o homem das Conferências do Casino, o António Augusto Salgado Júnior, que já no Porto era um dos homens que mais sabia de literatura portuguesa, tanto ou mais que os próprios professores da Faculdade. O Salgado logo me veio cumprimentar e alertou-me para o problema da discussão da tese de douramento no Porto; informou-me que o prazo estava quase a acabar, pois faltavam apenas três ou quatro meses. Não sei se sabe, mas a Faculdade de Letras do Porto tinha sido extinta por decreto. Então o Salgado disse-me:
" - Olhe, eu vou fazer o doutoramento, porque quero mesmo seguir a carreira universitária. Agora quanto a si, você é que sabe".
Respondi-lhe:
" - A mim não me interessa muito, porque quem deu cabo da Faculdade do Porto foi a Universidade de Coimbra e a Universidade de Lisboa, de maneira que quando eu puder rebentar com elas, rebento. Carreira também não tenciono seguir, mas sou contra injustiças..."
De repente pensei melhor e disse para mim: "Quem sabe se um dia realmente um doutoramento até não me vai ser útil". E disse-lhe:
" - Também vou!"
Templo de Poseidon |
Na cerimónia, entre a assistência, estava o Doutor Joaquim de Carvalho, que apesar de ser um homem da Universidade de Coimbra não se confundia com o resto da universidade, porque estava à parte; por isso conservei relações com o Joaquim de Carvalho. Um dia escreveu-me para me dizer que tinha assistido ao meu doutoramento. Logo a seguir tive uma bolsa para ir para Paris».
«A Última Conversa com Agostinho da Silva. Entrevista de Luís Machado».
«E o impossível atravessava a religião do povo na Idade Média, outro dos elementos desse paraíso perdido que há a recuperar, segundo o Professor, ou seja o culto do Espírito Santo, o culto do imprevisível, com a coroação do menino imperador, a comida gratuita e a libertação dos presos. Que coisa melhor pode querer Portugal para o futuro? Seguindo Agostinho da Silva, Cristo prometera que depois dele viria o Espírito Santo, o Consolador. O povo português, segundo o Professor, antecipava esse futuro e instaurava desde logo na terra o reino do Espírito Santo.
E, numa daquelas tiradas bem agostinianas, afirmava: "a imaginação estava à solta. Isto é, o povo português, no princípio da Idade Média, já tinha a ideia que tiveram os estudantes franceses no seio dos movimentos de Maio de 68!". A imaginação ao poder, a imaginação a governar a vida!».
Antónia de Sousa («O Portugal de Agostinho da Silva», Comunicação apresentada no Colóquio Internacional sobre Agostinho da Silva "O Mundo avança na medida em que alguém pergunta" realizado nos Paços do Concelho, em Lisboa, 14 e 15 de Fevereiro de 2001).
Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Che Guevara em Cuba (1960). |
A destruição provocada pelo Maio de 68. |
«Que Santo António foi luz do mundo porque foi verdadeiro português e que foi verdadeiro português porque foi luz do mundo. Bem pudera Santo António ser luz do mundo sendo de outra nação; mas uma vez que nasceu português, não fora verdadeiro português se não fora luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens é só privilégio da Graça; nos portugueses é também obrigação da natureza».
Padre António Vieira («Sermões»).
Para Álvaro Ribeiro: sete notas a dez anos cada
1. Acrescentando mais um defeito àqueles que já me conhecem e aos que cuidadosamente oculto, direi que não pertenço ao número dos que, se elaboram uma hipótese, logo a abandonam no caso de de lhe não encontrarem documento de prova. Se ela é lógica ou tal me parece, aí persisto, convencido de que algum dia a pesquisa descobrirá o que falta. Ou, se do futuro se trata, já que vou muito por Vieira e sua História, fico seguro de que os tempos, realizando-se, me virão confirmar. Acedo naturalmente a que tratem esta confiança como um defeito novo.
2. Nestes termos, e já que o nosso Amigo anda muito, ao que penso, nas águas do Estagirita, fantasio que a polémica entre Platão e Aristóteles é, na Grécia, o primeiro embate entre a Europa e o que hoje se usa chamar de Terceiro Mundo. Doutro modo: entre uma freima de transcendentalização do homem e a segurança de que o importante é realizá-lo pleno na plenitude de sua vida sensível, palavra que prefiro a real; entre o triângulo ideal e aquele que se risca na areia, se entrevê nas nuvens, ou se forja no ferro; para termos um pouco de arqueologia: entre a cerâmica do despojamento geométrico e aquela dos cretenses envolvida de vagas, algas e polvos e espumas; entre o indo-europeu (e aqui quase apetece dizer indo-germânico) alto, louro e dolicocéfalo e o mediterrâneo atarracado, trigueiro – etimologicamente «fenício» –, o braquicéfalo mesmo.
Templo de Apolo (Delfos). |
3. De Grécia entenderam pouco os Romanos, mas deles próprios muito; apostaram decididamente no Mediterrâneo, com um simbólico muro de Adriano a defender Inglaterra e suas minas, muro continuado para leste pelo Reno e pelo Danúbio, e, quanto ao Sul, lhes foi fronteira o Saara; embora respeitassem tanto quanto possível, o Mare Nostrum vertebraram-no, por amor do Império, em direito, burocracia e legiões, e o culcaram de estradas, que tinham o enorme defeito de não vencerem o mar; foi-lhes marco final aquele altar erguido na Finisterra de Galiza ao Deus Sol atufando-se em sangue num horizonte que temiam. Se na Grécia venceu, e muito, o velho Platão e teve até a primeira vitória quando os cristãos procuraram, para além do milagre, uma filosofia, foram os romanos, mais que tudo, aristotélicos, mesmo sem filosofarem, coitados, que os não tinham os deuses fadado para tal.
4. A grande invenção de Portugal, no tempo em que existiu pleno, e espero que a tal volte de agora por diante, foi a de pagar um bocado da estrada romana e o transformar em caravela, barco de aventura e de pesquisa, logo substituído pela nau, para o domínio e o lucro, com seus bordos de artilharia e seus porões de pimenta. A muita costa, para seu bem e seu mal, levaram esses navios a Roma de que eram herdeiros. Levaram, porém, e igualmente, uma Grécia alargada, já que estava no pensamento de Albuquerque, pela invenção de uma raça cósmica em seu misto império, fazer do mundo inteiro uma cidade-estado, de algum modo englobando as Leis e a República de Platão e as preocupações constitucionais de Aristóteles. Como também em naus andou Camões, platónico e aristotélico; ao que creio mais platónico do que aristotélico quando se encontrava doente, pobre ou triste e desesperava de sua humanidade; e da dos outros, com sobradas razões.
5. Nunca houve, porém, filosofia portuguesa que fizesse que insisto português, e principalmente o seu comportamento de operário, asceta e sábio. O resto tem sido a interminável polémica que divide em bandos agressivos e de quase igual incompreensão os intelectuais portugueses, fazendo que uns desprezem geometria e lógica, que vão outros ao ataque dos que, por messiânicos, continuamente tentam o que é só para os outros, impossível. Renovam-se, claro está, as formas exteriores, persistem os motivos de dentro, os que já vêm dos gregos, com uns acrescentos, ou umas heranças, do que andou nos Mistérios, transparece na Carta VII ou na teoria da tragédia; estão lá, Platão e Aristóteles, nos nautas que partem e no velho que brada; nos entusiasmos pelo Renascimento alemão e italiano e nas queixas de que andam pardaus a correr por Cabeceiras de Basto; nos adeptos de Trento e no Sebastianismo de Vieira; no iluminismo dos estrangeirados e nos «impérios» do Espírito Santo, refugiados em Açores e Brasil, ou nas guerrilhas que expulsam o françês pedreiro-livre; no grupo da Seara Nova de Sérgio e de Proença e no que desperta no Porto com Leonardo Coimbra e do Porto se abala com este Álvaro Ribeiro, setentão hoje. Mas de síntese nada. Será ela impossível de pensar e a teremos apenas – e ainda bem – de a ver como vivência?
6. É certo que há José Marinho e seu «insubstancial substante», o que avança sobre Spinoza, mas, sendo já bastante, não basta ainda e aqui nos lembraremos do Poeta – «baste a quem basta o que lhe basta o bastante de lhe bastar», e que, no largo horizonte de Brasília, vai Eudoro de Sousa dando suas vigorosas e subtis marteladas de alto artista na noção de complementaridade, ao mesmo tempo teleológica e física. A verdade, no entanto, é que complementar chama a ideia de algum vazio que se trata de encher, quando afinal já existe o pleno e é ele o seu complementar, e que insubstancial substante é já a divisão em categorias do que deve ser uno e é ao mesmo tempo, indestrinçavelmente, as duas coisas. Não vejo, em pensamento que se explicite, saída para o beco em que se meteu a actividade lógica quando, como era de sua obrigação, foi ao fim de si própria. Mas sairá mesmo, porque acredito muito naquilo que não pode suceder.
7. Devo, por outro lado, dizer que me interessa pouquísimo que o português – o que fala e escreve Português, seja de Amarante ou Salvador, de Dili ou de Luanda – elabore e publique filosofia, concorrendo para que haja no mundo livros demais, homens de menos. A poesia de Camões, a palavra de Vieira, os mitos, místicos ou não, de um Fernando Pessoa prende-me apenas na medida em que revelam gente completa que não podou em fórmulas, foi o que foi em cada momento em que o foi, não se pôs a caçar o céu, com risco de apanhar apenas nuvem, quando se irmanava com a terra, nem se agarrou ao solo, só para não escandalizar os outros, correndo aí o perigo de se cobrir de poeira, quando o que lhe apetecia era namorar mesmo ideia pura (sem fome, se possível). Acabemos com a polémica por a ignorarmos santamente, sendo ora platónicos ora aristotélicos, insubstanciais substantes e complementares de nós próprios, indefiníveis e vincados, inexistentes e de um bruto peso, sem um escaninho em que nos metam e neles todos cabendo, tão amplos que os enchamos e tão exíguos que haja sempre lugar à multidão. Dificuldade esta, a de botar português em quadrícula, que o autor modestamente oferece aos pedagogos, aos notários e arquivos de identificação. Mas dificuldade sem a qual jamais seremos ponte alguma entre este mundo branco agonizante – mas renovável – e o de mestiços, amarelos e pretos que vai surgindo para a liberdade e para a vida (in «As Portas do Conhecimento», Dispersos e Escolhidos de Álvaro Ribeiro, IAC, 1987, pp. 367-369).
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