«Os contrários podem ser claros porque são distantes, mas por isso mesmo diremos que não há mérito em reconhecer facilmente as relações de contrariedade. Mérito há, sim, em inteligir a mediação imperceptível e irrepresentável, em negar o vago, em desenhar o que outros não podem ou não querem ver, até ao momento da demonstração metafísica, científica ou técnica. A audácia de pensar por tríades caracteriza efectivamente a arte de filosofar.
É sabido que a doutrina aristotélica do movimento mediador entre contrários, doutrina oposta à da infinidade da rectilínea deslocação, resultou de um aprofundamento da lei de enantodromia, formulada por Heraclito. Assim em lógica, aquela relação, a que alguns regressivamente chamam juízo, terá de apelar para uma correlação que lhe garanta a característica racional. Duas relações formam uma correlação que a consciência há-de apreender na clareza dos quatro elementos, correlação que em matemática se designa por proporção.
A analogia, no significado de movimento intelectual para cima, para o logos, é correlação que pressupõe uma relação inferior e uma relação superior. Situar a interrogação ante a analogia, em vez de a situar perante a alternativa, representa já um grande progresso da razão e o modelo de ensino para os adolescentes. O pensamento científico, o movimento do pensamento científico, em grande parte depende das analogias.
Convém, todavia, exigir sempre que os dois termos de cada relação dual estejam ordenados de harmonia com a realidade, isto é, não confundir os contrários com os opostos, os opostos com os polares, etc. Ninguém dirá, por exemplo, que o Homem é o contrário da Mulher. A analogia tornar-se-á fecunda exactamente pela comparação de umas relações com outras relações, isto é, de comparação dos contrários com os opostos, dos opostos com os polares, etc., segundo uma doutrina de correspondências.
A sombra do positivo é sinal da luz do normativo. Os valores incitam o pensamento a reflectir, quer dizer, a comparar o real com o ideal. Toda a realidade está sempre a ser valorada pelo homem, segundo o seu grau de cultura, e difícil é separar os juízos de existência dos juízos de valor».
Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).
«Observou Pitágoras, estudando a harmonia, que obedecidas certas relações, ela se verificava. Essas relações constituem os chamados "número de ouro", de um papel importante em todas as artes e em seus períodos superiores.
Dessa forma, é a harmonia o ideal máximo dos pitagóricos, a qual consiste em ajustar os elementos diversos da natureza».
Mário Ferreira dos Santos («Tratado de Simbólica»).
FÉDON - Se bem me lembro, depois de se ter admitido e acordado também sobre a existência real das ideias, e que as demais coisas recebem a sua denominação por delas participarem, Sócrates perguntou: - Se tal é a tua doutrina, ao afirmares que Símias é maior que Sócrates e mais pequeno que Fédon, não dizes existir em Símias ao mesmo tempo a grandeza e a pequenez?
- Sim.
- Mas então concordas com certeza - prosseguiu Sócrates - que a afirmação Símias é maior do que Sócrates, não corresponde à verdade, literalmente? Porque Símias não é maior por natureza do que Sócrates, mas sim pela grandeza que nele se encontra; nem maior do que Sócrates, por Sócrates ser Sócrates, mas pela pequenez que Sócrates possui, relativamente à grandeza daquele.
- É verdade.
- Tão pouco é Símias excedido por Fédon, pelo facto de Fédon ser Fédon, mas porque Fédon possui grandeza em relação à pequenez de Símias.
- Assim é.
- Assim sendo, Símias estando no meio de ambos, recebe tanto o qualificativo de pequeno, enquanto a sua pequenez é superada pela altura de um, como de grande, enquanto a sua grandeza excede a pequenez do outro.
Sorrindo, Sócrates comentou:
- Pareço estar a falar como quem redige um contrato. Mas na verdade, a coisa é tal como eu digo.
Símias concordou.
- Isso - afirmou Cebes - parece-me bastante evidente.
- Um dos presentes, objectou, então, quem foi já não me recordo:
- Pelos deuses! Não reconhecemos na nossa discussão anterior, exactamente o contrário do que se diz agora, que é do mais pequeno que nasce o maior e do maior o mais pequeno, e que os contrários são sempre gerados a partir dos seus contrários? Mas agora, parece-me que estamos a afirmar que tal jamais pode acontecer.
Sócrates, inclinou a cabeça e escutou:
- Falaste como um homem - disse - mas não atentaste à diferença entre o que se acabou de dizer e o que se disse antes. Dizíamos então que de uma coisa contrária nascia outra contrária; e agora que o contrário em si mesmo não pode tornar-se no seu contrário, considerado tanto em nós, como na natureza. Antes, meu amigo, falámos das coisas que contém contrários, designando-as com os nomes daqueles; agora referimo-nos aos contrários em si, por cuja presença as coisas designadas recebem o seu nome. E destes últimos afirmámos que jamais podem ser gerados uns dos outros.
Ao mesmo tempo fixou o olhar em Cebes e perguntou:
Acaso, Cebes, te perturbaram também as objecções do nosso amigo?
- Não - disse Cebes - não desta vez. O que não quer dizer que não haja muitos objectos que me perturbem.
- Concordamos portanto - tornou Sócrates - que o contrário jamais pode ser o contrário de si mesmo.
- Concordamos inteiramente - respondeu Cebes.
- Prossigamos pois, disse Sócrates: vê se concordas comigo também neste ponto. Há alguma coisa que designamos com os nomes de quente e de frio?
- Sim.
- Acaso, é o mesmo que denominas de neve e de fogo?
- Não, por Zeus!
- Mas então, o quente é algo distinto do fogo, e o frio é algo distinto da neve?
- É verdade.
- Creio então ser tua opinião, que jamais a neve como tal, após admitir o quente, como dizíamos anteriormente, jamais poderá continuar a ser o que era, ou seja, neve, e ao mesmo tempo, quente; mas ao aproximar-se o calor, ou lhe cederá o seu lugar, ou deixará de existir.
- É evidente.
- Por sua vez, também o fogo, ao aproximar-se-lhe o frio, se retirará ou deixará de existir, mas jamais após admitir o frio, poderá continuar a ser o que era, ou seja fogo, e ao mesmo tempo, frio.
- Isso é verdade - responde Cebes.
- É possível então - continuou - que em alguns exemplos análogos, suceda não só que a ideia em si se aproprie do seu próprio nome para sempre, mas que haja ainda outra coisa que, diferente dela, possua todavia a forma dela, enquanto existir. Mas vejamos ainda exemplos, onde, quem sabe, se possa clarificar o que digo. Deve o ímpar ter sempre este nome ímpar, com que agora o designamos, ou não?
- Com certeza.
- E pergunto isto: acaso é esse nome exclusivo do ímpar, ou haverá também algum outro entre os seres, que não sendo o ímpar, deve ser contudo sempre designado com este nome, por a sua natureza ser tal, que nunca se aparta do ímpar? Refiro-me ao que sucede com a tríade, um exemplo entre outros. Examinando este número não te parece que o seu nome próprio deva sempre servir para o designar e também o de ímpar, ainda que ímpar não seja o mesmo que tríade? Desta mesma natureza do três é o 5 e a metade dos números que, ainda que não sejam o mesmo que ímpar, é sempre cada um deles ímpar. Por outro lado, 2, 4 e a totalidade da série, embora não sejam sinóminos de par, são todavia sempre pares. Concordas ou não?
- Sem dúvida, respondeu ele.
- Agora - prosseguiu Sócrates - atenta ao que tenho intenção de te mostrar. É o seguinte: parece que não só os contrários em si não se aceitam; mas há também tudo aquilo que, sem ser contrário, alberga sempre estes contrários, e que tampouco admitem a ideia contrária à que reside nelas; mas quando esta sobrevem, ou perecem ou se retiram. Ou não devemos nós dizer do 3, que perecerá ou sofrerá qualquer outra vicissitude, continuando a ser 3, preferentemente a tornar-se par.
- É indubitável - respondeu Cebes.
- E não é menos certo - continuou - que 2 não é o contrário de 3.
- Não, com efeito.
- Portanto, não só as ideias contrárias, não suportam a aproximação mútua, mas também há algumas outras coisas que não se sujeitam a tal aproximação.
- É muito certo o que dizes - conveio Cebes.
- Queres então - prosseguiu Sócrates - que na medida em que sejamos capazes, determinemos estes últimos contrários?
- Acaso podem ser eles, Cebes - disse ele - que forçam aquilo de que tomam posse, não só a albergar a ideia que lhe é própria, mas também a do seu contrário?
- O que queres dizer?
- O mesmo que há instantes. Sabes certamente, que as coisas em que a ideia do 3 se encontra, não podem apenas ser 3, mas também são ímpar.
- Por certo.
- Por conseguinte, dizemos, que essa realidade do 3, jamais pode admitir a ideia contrária à ideia que nela opera.
- Pois não.
Pitágoras de Samos (A Escola de Atenas). |
- É óbvio.
- O 3 por conseguinte, jamais participará da ideia de par.
- Claro que não.
- Então a tríade não participa do par.
- Não participa.
- Portanto, a tríade não é o par.
- É claro.
- Agora proponho definir que espécie de coisas, não sendo em si contrárias, não aceitam todavia essa qualidade contrária, tal como a tríade que não sendo o contrário do par, não o aceita, pois leva em si sempre o contrário deste, do mesmo modo que a díade contém o contrário do ímpar, o fogo o contrário de frio, e assim muitos outros exemplos. Vê se aceitas esta definição: não só o contrário não aceita o seu contrário, mas também aquilo que sofre em si algo contrário a isso em que a ideia se apresenta, tão pouco admitirá a ideia contrária à que nele está implicada. Recordo-te outra vez, pois não é mau ouvi-lo repetidamente. O número 5 não aceitará a qualidade do par, nem o seu dobro, o 10, a do ímpar. Este, contrário ao outro, não acolherá todavia a qualidade do ímpar. Nem tampouco o um e meio e as demais fracções análogas, admitirão a do inteiro, o que também sucede com o terço e as demais fracções desta natureza - se é que me segues e estás de acordo comigo.
- Estou em acordo total e sigo-te - afirmou.
- De novo voltando ao princípio - continuou Sócrates - responde-me, sem empregar para responder, as mesmas palavras da minha pergunta, imitando-me somente. Falo-te deste modo, porque, à margem daquela resposta segura que primeiramente dei, à luz do que falámos agora, vejo uma outra segurança. Se pois me perguntares: Que é que existe no corpo que o torna quente?, não te darei aquela resposta segura e ignorante: é o calor, mas uma mais inteligente, de acordo com o que dissemos agora: é o fogo. E se de novo me perguntares: Que é que existe no corpo que faz com que adoeça?, não te responderei que é a doença, mas a febre; ou ainda: Que existe no número para o tornar ímpar?, não te diria que é a imparidade, mas: a unidade, e assim por diante. De modo que, vê se já compreendes suficientemente o que quero dizer.
- Muito suficientemente - respondeu Cebes.
- Responde-me então - prosseguiu Sócrates -. O que é que, existindo num corpo é a causa de ele estar vivo?
- A alma.
- E acaso sucede sempre assim?
- Sim disse ele.
- Então, entrando a alma num corpo, leva sempre consigo a vida?
Morte de Sócrates |
- Sim, leva - respondeu.
- E existe algo oposto à vida, ou não?
- Sim, existe.
- O que é?
- A morte.
- Portanto, a alma jamais aceitará o contrário do que lhe está sempre inerente, segundo se reconheceu no que antes falámos.
- É com toda a razão evidente - respondeu Cebes.
- E então? Ao que não admite a ideia de par, como o chamávamos há momentos?
- Chamávamos-lhe ímpar - respondeu.
- E ao que não recebe em si o justo, nem a música?
- Injusto, um e Inculto, o outro - respondeu.
- Bom. E ao que não acolhe em si a morte, como o denominamos?
- E a alma não acolhe em si a morte?
- Não.
- Portanto a alma é imortal.
- Sim, é imortal.
Eros e Psique |
- Seja - disse ele e de modo satisfatório Sócrates.
- E então Cebes? Se o ímpar lhe fosse necessário ser imperecível, poderia não ser imperecível o número 3?
- Sem dúvida.
- E se o não quente fosse necessariamente imperecível, quando da neve aproximassem o calor, não escaparia, ficando sã e salva e sem se fundir? De certeza não deixaria de existir, nem aceitaria o calor.
- Isso é bem verdade - respondeu.
- Do mesmo modo, penso que se o não-frio fosse imperecível, sempre que algo frio se aproximasse do fogo, jamais se apagaria nem aqueceria, mas continuaria não-quente.
- É necessário - disse.
- Acaso então - prosseguiu Sócrates - não é forçoso também assim a respeito do que é imortal? Sendo este também imperecível, é impossível que quando a morte se abate sobre a alma, ela pereça; porque, e é uma consequência do que antes dissemos, a alma, não aceitará a morte nem pode estar morta, assim como o 3 não será, dizíamos, par, nem tampouco o ímpar, nem o fogo se fará frio, nem o calor que existe no fogo. Porém que impede - poderia alguém objectar - que o ímpar não se torne par, pela aproximação do par, como reconhecemos, mas que ao perecer surja em seu lugar o par? A quem tal objectasse, não poderíamos ripostar que não perece, visto o não-par não ser imperecível. Se porém tivéssemos reconhecido isso, facilmente responderíamos que, perante a proximidade do par, o ímpar e o 3 para longe se afastam. E do mesmo modo argumentaríamos a respeito do fogo e do calor e dos demais contrários. Ou não?
- Com toda a certeza.
- Logo, se acerca do imortal, reconhecemos que é imperecível. a alma será, além de imperecível, imortal, caso contrário seriam necessários outros argumentos.
- Todos, por Zeus! - afirmou Cebes -. Pelos homens e ainda com mais forte razão, segundo creio, pelos deuses.
Zeus |
- É de todo necessário.
- Quando, portanto, a morte sobrevem ao homem, segundo parece, é o que há de mortal nele que morre, mas a parte imortal subtrai-se à morte e afasta-se a salvo e indestrutível, retirando-se da morte.
- É evidente.
- Portanto, Cebes - concluiu - a nossa alma é imortal e imperecível; e de verdade subsistirão as nossas almas algures noutro mundo... (in ob. cit., pp. 139-150).
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