Deste modo, a árvore lusitana não só lançou fortíssimas raízes na Península Ibérica, como estendeu ainda a sua seiva a todos os povos, nações e continentes numa base de fraternidade humana. E ao fazê-lo jamais impôs ou determinou uma ideia de superioridade racial, de que o Brasil, aliás, constitui a prova indesmentível no plano da coexistência multirracial. Há autores, porém, que permanecendo estranhos ao ecumenismo lusocêntrico, concebem uma dialéctica negativa entre raças inferiores e superiores, ademais tida, a seu ver, por comprometedora de uma hegemonia europeia no plano globalmente político, económico e cultural.
É o caso de Julius Evola, que anteviu a possibilidade de um futuro presidente negro dos Estados Unidos (cf. «L’Amérique Négrifiée», in L’Arc et La Massue, Guy Tredaniel Pardes, Paris, 1983, p. 31). Ora, muitos dos discípulos do representante italiano da Tradição Nórdica ou Hiperbórea, verão nesse facto uma espécie de profecia finalmente cumprida, quanto mais não seja por Barack Obama e a sua Administração estarem neste momento a empreender a centralização do poder económico, político e policial contra os direitos constitucionais dos cidadãos americanos, ou ainda a implementar o estabelecimento de bases nominalmente humanitárias para a dominação e a ocupação de África através do AFRICOM, que reunirá, enquanto força de comando, a marinha, o exército e a aeronáutica americanas para, em confronto com a presença chinesa, transformar o continente perdido numa zona de perpétuo conflito.
No entanto, existem muitos outros aspectos focados por Evola sobre o alegado fim do presente ciclo, já de si implicados na recente dialéctica travada entre os Estados Unidos e a União Soviética com vista a uma síntese superadora dos mesmos. Ou seja: não obstante o colapso exterior desta última superpotência, são por demais notórios os pontos em comum entre aqueles que já foram considerados os maiores centros de poder do mundo, seja ao nível da mecanização e da industrialização, seja ainda ao nível da articulação dialéctica entre o capitalismo tal como é supostamente conhecido no Ocidente e o comunismo revolucionário mundial.
Miguel Bruno Duarte
a) A Rússia
A revolução bolchevique apresentou certos aspectos típicos dignos de relevo. Só em escassa medida apresentou características românticas, tempestuosas, caóticas e irracionais próprias das outras revoluções, sobretudo da francesa. Pelo contrário, correspondeu-lhe uma inteligência, um plano bem meditado e uma técnica. O próprio Lenine, desde o princípio até ao fim, estudou o problema da revolução proletária tal como o matemático pode enfrentar um problema de cálculo superior, analisando-o friamente e com calma nos seus pormenores. Segundo as suas palavras, «os mártires e heróis não são necessários à causa da revolução: é de uma lógica que ela precisa, e de uma mão de ferro. A nossa tarefa não é a de fazer descer a revolução ao nível do diletante, mas sim a de elevar o diletante ao plano revolucionário». Isto teve por contrapartida a actividade de um Trotsky que fez do problema da insurreição e do golpe de estado um problema não tanto das massas e do povo, como precisamente um problema de técnica, requerendo o emprego de tropas especializadas e bem dirigidas (1).
Por consequência, constata-se nos chefes uma impiedosa coerência com as suas ideias. Eles são indiferentes em relação às consequências práticas, às calamidades inomináveis que provirão da aplicação de princípios abstractos. O homem, para eles, não existe. Com o bolchevismo, são quase forças elementares que se encarnam num grupo de homens que à feroz concentração do fanático juntam a lógica exacta, o método, a procura exclusiva do meio mais apropriado ao fim desejado, que são próprios do técnico. Foi só no decorrer de uma segunda fase, por eles suscitada e em grande medida mantida dentro de limites estabelecidos, que se produziu o desencadeamento do subsolo do antigo Império Russo, o regime de terror das massas aplicando-se a destruir e a extirpar freneticamente tudo o que estava ligado às anteriores classes dominantes e à civilização russo-boiarda em geral.
Também relacionado com isto, outro aspecto característico é o de que, enquanto as revoluções anteriores, no seu demonismo, quase sempre escaparam das mãos dos que as tinham suscitado e devoraram os seus filhos, isto na Rússia só se verificou num grau fraquíssimo: estabilizou-se uma continuidade do poder e do terror. Se a lógica inexorável da revolução russa não hesitou em eliminar e em abater bolcheviques que tinham a tendência para se afastarem da direcção ortodoxa, sem respeito pelas pessoas e sem escrúpulos quanto à escolha dos meios, no entanto no centro não se deram crises ou oscilações de relevo. Este é um aspecto tão característico como sinistro: nele anuncia-se a época em que as forças das trevas cessarão de actuar, como anteriormente, por detrás do pano, para se identificarem com o mundo dos homens, pois terão encontrado uma perfeita encarnação em seres em que o demonismo se une à inteligência mais lúcida, a um método e a um poder exacto de dominação. Uma das características mais salientes do ponto terminal de cada ciclo é um fenómeno deste género.
Quanto à ideia comunista será induzido em erro todo aquele que ignorar a existência, no comunismo, de duas verdades. Uma, esotérica, por assim dizer, tem um carácter dogmático e imutável, corresponde aos princípios-base da revolução e está formulado nos escritos e directivas do primeiro período bolchevique. A segunda é uma verdade mutável, «realista», forjada caso a caso, com frequência em aparente contraste com a primeira e com eventuais compromissos com as ideias do mundo «burguês» (ideia patriótica, atenuamentos do colectivismo da propriedade, mito eslavo, etc). As variedades desta segunda verdade serão abandonadas assim que elas tiverem atingido o seu objectivo táctico: são puramente instrumentos ao serviço da primeira verdade, e são muito ingénuos os que se deixarem levar por elas e num momento qualquer pensarem que o bolchevismo terá sido «ultrapassado», que terá evoluído» e que irá ao encontro de formas normais de governo e de relações internacionais.
Mas também em relação à primeira verdade não devemos deixar-nos enganar: o mito económico marxista aqui não é o elemento primário. O elemento primário é a negação de todos os valores de ordem espiritual e transcendente: a filosofia e a sociologia do materialismo histórico são simples expressões de uma negação destas, e não é o contrário, tal como a prática comunista correspondente representa apenas um método para a realizar sistematicamente. O resultado a que se chega seguindo esta direcção até ao fim – como o fez o comunismo soviético – é importante: é a integração, ou seja, a desintegração do indivíduo no que se chama o «colectivo», cujos direitos são soberanos. E o objectivo que o mundo soviético procura é precisamente a eliminação, no homem, de tudo o que para ele possa constituir um interesse separado do colectivo. Em particular a mecanização, a desintelectualização e a racionalização de todas as actividades, em todos os planos, fazem parte dos meios postos em acção para atingir esse objectivo – e já não serão considerados, como na actual civilização europeia, consequências sofridas e deploradas de processos fatais. Restringindo-se todos os horizontes ao da economia, a máquina torna-se centro de uma nova promessa messiânica e a racionalização apresenta-se igualmente como uma das vias para liquidar os «resíduos» e os «acidentes individualistas» da «era burguesa».
Nesta perspectiva, a abolição da propriedade e da iniciativa privada, que subsiste como uma ideia-chave da doutrina interna do comunismo para além de certos compromissos de carácter contingente, na URSS representa apenas um episódio e um meio com vista a um fim. Este fim é precisamente a realização do homem-massa e do materialismo integral, em todos os domínios, numa evidente desproporção com respeito a tudo o que se possa deduzir de qualquer mito meramente económico. É próprio do sistema considerar o «Eu», a «alma» e a noção do «meu» como ilusões e preconceitos burgueses, como ideias fixas, princípios de todos os males e de todas as desordens, de que uma cultura realista e uma pedagogia adequada deverão libertar o homem na nova civilização marxista-leninista. Assim procede-se a uma liquidação em bloco de todas as prevaricações individualistas, libertárias e humanístico-românticas da fase que denominámos por irrealismo ocidental. É bem conhecido o dito de Zinoviev «em todo o intelectual vejo um inimigo do poder soviético», tal como também é conhecida a vontade de fazer com que a arte se torne uma arte das massas, que deixe de fazer «psicologia» e de se ocupar com as questões privadas do indivíduo, que não sirva para o prazer das classes superiores parasitárias e que não seja uma criação individualista, mas sim que se despersonalize e se transforme num «poderoso martelo que incite a classe proletária à acção». Que a própria ciência possa prescindir da política, ou seja, da ideia comunista como força formadora, e ser «objectiva», é contestado, e vê-se nisso um perigoso desvio «contra-revolucionário». Um exemplo característico é o caso de Vasilev e de outros biólogos relegados para a Sibéria porque a teoria genética por eles defendida ao reconhecer o factor «hereditariedade» e «disposição inata», ao apresentar o homem de maneira diferente de uma substância amorfa que só toma forma através da acção determinante das condições do meio ambiente, como o pretende o marxismo, não corresponde à ideia central do comunismo. O que há de mais extremo em questão de materialismo evolucionista e de cientismo sociológico no pensamento ocidental, é utilizado sob a forma de dogma e de «ideologia de Estado» para que nas novas gerações se produza uma lavagem ao cérebro e tome forma uma adequada mentalidade profundamente enraizada. Quanto à campanha anti-religiosa, que aqui não tem o carácter de simples ateísmo, mas sim de uma verdadeira contra-religião, já é bem conhecida: é nela que se denuncia a verdadeira essência do bolchevismo, é ela que lhe fornece os meios mais eficazes de fazer desaparecer a grande doença do homem ocidental, essa «fé» e essa necessidade de «crer» que serviram de sucedâneo quando se perdeu a possibilidade de contactos reais com o mundo superior. Também é encarada uma «educação dos sentimentos», orientada no mesmo sentido, para que sejam eliminadas as complicações do «homem burguês», o sentimentalismo, e a obsessão do eros e da paixão. Niveladas as classes, sendo só respeitadas as articulações impostas pela tecnocracia e pelo aparelho totalitário, também os sexos são nivelados, a igualdade da mulher em relação ao homem é legalmente instituída em todos os campos e o ideal é que já não existem mulheres frente aos homens, mas sim simplesmente «camaradas», no seio de uma massa assexuada. Assim, a própria família, não só tal como existia na «era do direito heróico», mas sim tal como ainda subsistia, sob uma forma residual, na tradição burguesa do lar com os seus sentimentalismos e com a sua convencionalidade, é mal vista, e virtualmente dissolvida. O chamado zags já tinha representado uma alteração característica, a este respeito; contudo, é conhecida a acção múltipla desenvolvida na URSS para que a educação se torne essencialmente uma coisa do Estado, e para que a criança prefira a vida «colectiva» à familiar, e para que as classes, o Estado e o partido suplantem os vínculos familiares, tal como todos os outros vínculos de natureza individual.
Na ideologia bolchevique interna não há lugar para o conceito de pátria ou de nação; estas ideias são «contra-revolucionárias», mesmo que, como já dissemos, seja permitido fazer um emprego táctico delas fora da União Soviética, com vista a exercer uma acção desagregadora preliminar. Segundo a primeira constituição soviética, um estrangeiro fazia obrigatória e automaticamente parte da União dos Sovietes desde que fosse um trabalhador proletário, enquanto um russo, se não fosse trabalhador proletário, ficava excluído dela, era por assim dizer desnaturalizado, era um pária de personalidade jurídica (2). Segundo a rigorosa ortodoxia comunista a Rússia valia simplesmente como a terra em que a revolução mundial do Quarto Estado triunfou e se organizou para se expandir posteriormente. O povo russo tinha-se caracterizado sempre por uma mística da colectividade, ao mesmo tempo que por um confuso impulso messiânico tinha-se considerado a si mesmo o povo teóforo – portador de Deus – predestinado para uma obra de redenção universal. Tudo isto foi retomado sob uma forma invertida e modernizada pela teoria marxista. Deus transformou-se no homem «terrestrificado» e colectivizado, e o «povo teóforo» é o que se aplica a fazer triunfar, por todos os meios, a sua civilização sobre toda a terra. A posterior atenuação da forma extremista desta tese, com a condenação do trotskismo, não impede que até agora a URSS sinta não só o direito como também o dever do intervir em toda a parte do mundo para apoiar o comunismo.
Kremlin (Moscovo). |
De uma maneira geral, no ideal soviético-comunista, de resto, para nós revestem-se de maior importância os aspectos em que tentou ou tenta afirmar-se algo de semelhante a uma singular ascese ou catarse em grande com vista a uma superação radical da absoluta realidade e da impessoalidade, mas invertido, dirigido não para cima mas sim para baixo, não para o supra-humano mas sim para o subpessoal, não para a organicidade mas sim para o mecanismo, não para a libertação espiritual mas sim para a total servidão social. É esta característica do bolchevismo, a sua verdadeira fisionomia, o seu sentido último.
Praticamente, que o primitivismo da grande massa heteróclita de que se compõe a URSS, em que com os massacres desapareceram quase todos os elementos racialmente superiores, contribua para relegar para um futuro ainda longínquo a formação efectiva do «homem novo», do «homem soviético», não tem grande importância. A direcção está dada. O mito terminal do mundo do Quarto Estado tomou uma forma precisa e está ao seu serviço uma das maiores concentrações de potência do mundo, uma potência que é igualmente a central para uma acção organizada, subterrânea e aberta, de agitação das massas internacionais e dos povos de cor contra a hegemonia europeia.
b) A América
Se o bolchevismo, segundo as palavras de Lenine, considerou o mundo romano-germânico como «o maior obstáculo ao advento do homem novo» e, tirando vantagem da cegueira das nações democráticas «em cruzada», conseguiu praticamente eliminar aquele mundo no que respeita à direcção dos destinos europeus, ideologicamente viu na América (Estados Unidos) uma espécie de terra prometida. Desaparecidos os antigos deuses, a exaltação do ideal técnico-mecânico deveria ter por consequência uma espécie de «culto da América». «A tempestade revolucionária da Rússia soviética deve unir-se ao ritmo da vida americana». «Intensificar a mecanização já em marcha na América e alargá-la a todos os campos, é a tarefa da nova Rússia proletária», foram directivas quase oficiais. Assim, um Gastev tinha proclamado o «super-americanismo» e o poeta Maiakovsky dedicara a Chicago, «electro-dínamo-mecânico-metrópole» o seu hino colectivista (4). Aqui evidentemente a América enquanto odiada fortaleza do «imperialismo capitalista» passa para segundo plano em relação à América enquanto civilização da máquina, da quantidade e da tecnocracia. As referências a uma semelhança, longe de serem extrínsecas, podem encontrar a sua confirmação em muitos outros campos.
Chicago |
Também a América, na sua maneira essencial de considerar a vida e o mundo, criou uma «civilização», que se encontra em perfeita contradição com a antiga tradição europeia. Ela instaurou definitivamente a religião do utilitarismo e do rendimento, colocou o interesse no lucro, na grande produção industrial, na realização mecânica, visível e quantitativa, acima de qualquer outro interesse. Deu lugar a uma grandiosidade sem alma de natureza puramente técnico-colectiva, privada de todo e qualquer fundo de transcendência e de toda a luz de interioridade e de verdadeira espiritualidade. Também a América opôs à concepção em que o homem é considerado como qualidade e personalidade num sistema orgânico, a concepção em que ele se torna um mero instrumento de produção e de rendimento material num conglomerado social e conformista.
Enquanto no processo da formação da mentalidade soviético-comunista o «homem-massa» que já vivia misticamente no subsolo da raça eslava desempenhou um papel relevante, e que de moderno só tem o o plano com vista à sua encarnação racional numa estrutura política omnipotente, na América o fenómeno deriva do determinismo inflexível pelo qual o homem, ao separar-se do espiritual para se consagrar a uma vontade de grandeza temporal, para além de toda a ilusão individualista cessa de se pertencer a si próprio para se tornar parte integrante de uma entidade de que depende, que ele acaba por deixar de poder dominar, e que o condiciona de múltiplos modos. É precisamente o ideal de conquista material procurado por uma vaga de emigrantes que foram os primeiros a dar o sinal das revoluções e que a sua ética dominante, protestante e puritana, deveria tornar extremamente receptivos à acção do espírito judaico, que trouxe consigo a transformação e perversão que se verifica na América. Já se disse com toda a razão que «na sua corrida para a riqueza e para a potência a América abandonou o eixo da liberdade para seguir o do rendimento… Todas as energias, incluindo as do ideal e inclusivamente da religião, conduzem para o mesmo fim produtivo: está-se na presença de uma sociedade de rendimento, quase de uma teocracia do rendimento, que tem mais tendência para produzir coisas que homens», ou homens apenas enquanto mais eficientes produtores de coisas. «Uma espécie de mística exalta, nos Estados Unidos, os direitos supremos da comunidade. O ser humano, tendo-se tornado mais meio que fim, aceita este papel de roda dentada na imensa engrenagem, sem pensar um instante que seja que possa por isso ficar diminuído», e «daí um colectivismo de facto, que, pretendido pelas elites e alegremente aceite pelas massas, sub-repticiamente mina a autonomia do homem e canaliza tão rigorosamente a sua acção que, sem sofrer com isso e até mesmo sem o saber, é ele próprio a confirmar a sua abdicação». Daqui, «nenhum protesto, nenhuma reacção da grande massa americana contra a tirania colectiva. Ela aceita-a livremente como sendo uma coisa natural, quase uma coisa natural, quase como se fosse mesmo o que lhe convém» (5).
Este estado de coisas provoca o aparecimento de temas idênticos, no sentido de que, até mesmo no domínio mais geral da cultura, se determina necessária e espontaneamente uma correspondência com os princípios formadores do novo mundo soviético.
Assim, embora a América não pense de maneira nenhuma banir tudo o que é intelectualidade, no entanto é certo que em relação a esta, e na medida em que ela não surge como o instrumento de uma realização prática, nutre um instintivo desinteresse quase como que por um luxo com que não se deve entreter demasiado quem se dedicar às coisas sérias, que seriam o «to get rich quick», o «service», uma campanha a favor deste ou daquele preconceito social e assim por diante. Em geral, enquanto os homens trabalham, são sobretudo as mulheres, na América, que se ocupam do «espiritualismo»: daí a sua fortíssima percentagem de membros femininos nos milhares de seitas e sociedades em que o espiritismo, a psicanálise e doutrinas orientais deformadas se misturam com o humanitarismo, o feminismo e o sentimentalismo, visto que, para além do puritanismo socializado e do cientismo, não é muito diferente o nível americano da «espiritualidade». E mesmo quando se vê a América açambarcar com os seus dólares os representantes e as obras da antiga cultura europeia, utilizadas de boa vontade para o relax dos senhores do Terceiro Mundo, o verdadeiro centro no entanto encontra-se bem longe. Na América, com efeito, o inventor ou descobridor de qualquer nova engenhoca que multiplique o rendimento será sempre mais considerado que o tipo tradicional do intelectual; nunca acontecerá que tudo o que for lucro, realidade e acção no sentido material, possa vir a pesar menos na balança dos valores que tudo o que puder provir de uma linha de dignidade aristocrática. Assim, se a América não baniu oficialmente, como o fez o comunismo, a antiga filosofia, fez ainda melhor: pela boca de William James declarou que a utilidade é o critério da verdade e que o valor de toda e qualquer concepção, até mesmo metafísica, tem de ser medido em função da sua eficácia prática, que no fim de contas, no âmbito da mentalidade americana, acaba quase sempre por querer dizer a sua eficácia económico-social. O chamado pragmatismo é uma das marcas mais características da civilização americana encarada no seu conjunto, assim como a teoria de Dewey e o chamado behaviorismo: é a correspondência exacta das teorias retiradas, na URSS, dos pontos de vista de Pavlov sobre os reflexos condicionados e, tal como estas, exclui totalmente o Eu e a consciência enquanto princípio substancial. A consequência desta teoria tipicamente «democrática» é que todos se podem tornar tudo na condição de terem um certo treino e uma certa pedagogia, ou seja, que o homem, em si, é uma substância informe que se pode modelar, tal como o concebe o comunismo quando, na biologia, considera como contra-revolucionária e antimarxista a teoria genética das qualidades inatas. O poder que tem na América a publicidade, o advertising, de resto explica-se precisamente pela inconsistência interior e pela passividade da alma americana, que sob muitos pontos de vista apresenta as características bidimensionais, não da juventude mas sim do infantilismo.
O comunismo soviético professa oficialmente o ateísmo. A América não chegou a tanto, mas, sem se aperceber disso e sendo mesmo frequentemente convencida do contrário, corre por um declive em que já nada resta do que, mesmo no âmbito do catolicismo, tinha o significado de religião. Já vimos a que se reduz a religiosidade do protestantismo: tendo rejeitado todo o princípio de autoridade e hierarquia, tendo-se libertado de todo o interesse metafísico, de dogmas, ritos, símbolos e sacramentos, empobreceu-se ao nível de um simples moralismo que, nos países anglo-saxónicos puritanos e sobretudo na América, passa para o serviço da colectividade conformista.
Siegfried (6) observa justamente que «a única verdadeira religião americana é o calvinismo, como a concepção pela qual a verdadeira célula do organismo social… não é o indivíduo, mas sim o grupo», e em que sendo a própria riqueza considerada, aos olhos de si e dos outros, como um sinal de eleição divina, «se torna difícil distinguir a aspiração religiosa da caça à riqueza… Admite-se assim como moral e desejável que o espírito religioso se transforme num factor de progresso social e de desenvolvimento económico». Por consequência, as virtudes necessárias para se conseguirem os fins sobrenaturais acabam por parecer inúteis e até mesmo nocivas. Aos olhos de um puro americano, o asceta não passa de um homem a perder tempo, um parasita da sociedade; o herói no sentido antigo, é apenas uma espécie de louco perigoso que é conveniente eliminar recorrendo a oportunas profilaxias pacifistas e humanitárias, enquanto o moralista puritano fanático é rodeado de uma auréola resplandecente.
Tudo isto afinal estará assim tão longe do princípio de Lenine que consistia em banir «toda a concepção sobrenatural ou de qualquer modo estranha aos interesses de classe» de destruir como sendo uma doença infecciosa todos os vestígios de espiritualidade independente? Não é de acordo com a mesma mística do homem «terrestrificado» e omnipotente que – tanto na América como na Rússia – toma forma a ideologia tecnocrática? (7)
Há ainda outro ponto para que é conveniente chamar a atenção. Com a NEP na Rússia não se tinha abolido o capitalismo privado senão para substituí-lo por um capitalismo de Estado: tem-se um capitalismo centralizado sem capitalistas visíveis, por assim dizer lançado numa gigantesca empresa a fundo perdido. Teoricamente, todo o cidadão soviético é simultaneamente operário e accionista do trust omnipotente e universal do Estado soviético. No entanto, na prática, ele é um accionista que não recebe dividendos: para além do que ele recebe para viver, o produto do seu trabalho vai imediatamente para o Partido que o volta a investir noutras empresas de trabalho e de indústria sem permitir que se detenha e se acumule num indivíduo, mas fazendo pelo contrário com que o resultado seja uma potência cada vez mais elevada do homem colectivo, sem deixar de estar de acordo precisamente com os planos da revolução e da subversão mundial. Ora, se recordarmos o que se disse sobre a ascese no capitalismo – fenómeno sobretudo americano -, sobre a riqueza que na América em lugar de ser a finalidade do trabalho e o meio para uma grandeza extra-económica ou até simplesmente para o livre prazer do indivíduo, torna-se um meio de produzir novo trabalho, novos lucros e assim por diante, em processos encadeados que levam cada vez mais longe e não permitem pausas. Tendo presente este aspecto, chegamos de novo à constatação que na América se afirma de diversos lados, de uma maneira espontânea e num regime de «liberdade», o mesmo estilo que de modo violento têm a tendência para realizar as estruturas centralizadas do Estado comunista. Assim ,na grandeza inquietante das metrópoles americanas em que o indivíduo – que se tornou o «nómada do asfalto» - toma consciência da sua nulidade perante o reino imenso da quantidade, perante os grupos, os trusts e os standards omnipotentes, perante as selvas tentaculares de arranha-céus e de fábricas, enquanto os dominadores são acorrentados às coisas que eles mesmos dominam – em tudo isto se manifesta ainda mais o colectivo, numa forma ainda mais desprovida de rosto, que na tirania exercida pelo regime soviético sobre elementos frequentemente primitivos e abúlicos.
A estandardização intelectual, o conformismo, a normalização e a moralização obrigatórias e organizadas em grande escala em bases puritanas, são fenómenos tipicamente americanos – mas no entanto coincidentes com o ideal soviético de um «pensamento de Estado» válido para toda a colectividade. Já observaram com toda a razão que todo o americano – chame-se ele Wilson ou Roosevelt, Byran ou Rockefeller – é um evangelista que não pode deixar em paz os seus semelhantes, que sente constantemente o dever de pregar e de fazer os possíveis para converter, purificar e elevar toda a gente ao nível moral standard dos Estados Unidos, de que ele não tem dúvidas de que é o mais alto. Começou-se com o abolicionismo na guerra da secessão e acabou-se com a dupla «cruzada» democrática wilsoniana e rooseveltiana na Europa. Mas também numa escala mais pequena, quer se trate do proibicionismo, da propaganda feminista, pacifista ou naturista, até ao apostolado eugénico, etc., o espírito é sempre o mesmo, é sempre a mesma vontade de estandardizar, a intromissão petulante do colectivo e do social na esfera individual. Não há nada mais falso que pretender que a alma americana seja «aberta», sem preconceitos: não existe nenhuma outra que tenha tantos tabus. Mas ela assimilou-os de tal maneira que nem sequer se dá conta disso.
Já dissemos que uma das razões do interesse que a ideologia bolchevique nutre pela América deriva do facto de ter visto até que ponto no tipo de civilização desta última o tecnicismo contribuiu para o ideal da despersonalização. O standard moral corresponde ao standard prático do americano. O conforto ao alcance de todos e a superprodução na sociedade de consumo que caracterizam a América foram pagos por um preço bem trágico: milhões de homens reduzidos ao automatismo no trabalho, formados segundo uma especialização extrema que restringe o campo mental e embota toda a sensibilidade. No lugar do tipo do antigo artesão, para quem todo o ofício era uma arte, de modo que todos os objectos traziam uma marca de personalidade e, de qualquer maneira, eram produzidos pelas suas próprias mãos, pelo que pressupunha um conhecimento pessoal, directo e qualitativo desse ofício, encontra-se «uma horda de párias que se serve estupidamente dos mecanismos de que só um, o que os repara, conhece os segredos, com gestos quase tão automáticos e uniformes como os movimentos das suas maquinarias». Aqui Estaline e Ford dão-se as mãos e, naturalmente, estabelece-se um círculo vicioso: a estandardização inerente a todo o produto mecânico e quantitativo determina e impõe a estandardização de quem o consuma, a uniformidade dos gostos e uma progressiva redução a poucos tipos, que vai de encontro às tendências que se manifestam directamente nas mentalidades. E na América tudo concorre para este fim: o conformismo, nos termos de um matter-of-fact likemindedness, é a palavra de ordem em todos os campos. Assim, quando as barreiras não são rompidas pelo fenómeno da delinquência organizada e por outras formas selvagens de «supercompensação» (já fizemos alusão à beat generation), a alma americana, aliviada por todos os meios do peso de ser uma vida responsável de si própria, levada para a sensibilidade e para a acção pelos carris já montados, claros e seguros de Babbitt, torna-se simples e natural como o pode ser um legume, solidamente protegida contra toda a preocupação transcendente pelas comportas do «ideal animal» e pela visão moralista, optimista e desportista do mundo.
Nos princípios do bolchevismo alguém tinha proposto o ideal de uma música feita à base de ruídos com carácter colectivo, com vista a purificar igualmente este campo das concepções sentimentais burguesas. Foi o que a América realizou em grande escala e difundiu no mundo inteiro sob a forma de um fenómeno extremamente significativo: o jazz. Nas grandes salas das cidades americanas em que centenas de pares se abanam como fantoches epilépticos e automáticos aos ritmos sincopados de uma música de negros, é realmente um «estado de multidão», a vida de um ser colectivo mecanizado que desperta (10). Há poucos fenómenos que exprimam tão bem como este a estrutura geral do mundo moderno na sua última fase: com efeito, esta estrutura caracteriza-se pela coexistência de um elemento mecânico, sem alma, feito essencialmente de movimento, e de um elemento primitivista e subpessoal que arrasta o homem para um clima de sensações turvas («uma floresta petrificada contra a qual se agita o caos» - H. Miller). Além disso, o que no bolchevismo tinha sido programado e por vezes realizado no que se refere a representações «teatralizadas» do despertar do mundo proletário com vista a uma activação sistemática das massas, na América encontrou já há muito tempo o seu equivalente numa escala muito mais vasta e de forma novamente espontânea: é o delírio insensato dos meetings desportivos, centrados numa degradação plebeia e materialista do culto da acção – fenómenos de irrupção do colectivo e de regressão no colectivo, que de resto, como todos sabem, já desde há muito tempo atravessaram o oceano.
Já o americano Walt Whitman, poeta e místico das democracias sem rosto, pode ser considerado como um precursor da «poesia colectiva» que impele à acção, que, como já dissemos, é um dos ideais e dos programas comunistas. No fundo, é um lirismo deste género que impregna numerosos aspectos da vida americana: desporto, activismo, produção, service. Tal como na URSS basta esperar que desenvolvimentos adequados dissolvam os resíduos primitivos e caóticos da alma eslava, também nos Estados Unidos só basta esperar que os resíduos individualistas do espírito dos rangers, dos pioneiros do Oeste, e do que ainda se desencadeia e procura uma compensação nos feitos dos gangsters, dos existencialistas anárquicos e em fenómenos semelhantes, sejam reduzidos e recuperados para a corrente central.
Se o âmbito desta obra o permitisse, seria fácil avançarmos na verificação de análogos pontos de correspondência, que portanto permitem ver na Rússia e na América duas faces de uma mesma coisa, dois movimentos que, correspondendo aos dois maiores centros de poder do mundo, convergem nas suas obras de destruição. Uma – realidade em vias de formação, sob o punho de ferro de uma ditadura, através de uma estatização e de uma racionalização integrais. A outra – realização espontânea (e portanto ainda mais preocupante) de uma humanidade que aceita ser e que quer ser o que é, que se sente sã, livre e forte e que chega por si própria aos mesmos pontos, sem a sombra quase personificada do «homem colectivo», que no entanto a mantém na sua rede, sem a dedicação fanático-fatalista do eslavo comunista. Mas por detrás tanto de uma como da outra «civilização», por detrás tanto de uma como da outra grandeza, quem souber ver reconhece igualmente os pródromos do advento da «Besta sem Nome».
Apesar de tudo isto, há ainda quem se agarre à ideia de que a «democracia» americana é o antídoto contra o comunismo soviético, a alternativa do chamado «mundo livre». Geralmente, reconhece-se o perigo quando ele se apresenta sob a forma de um ataque brutal, físico, vindo do exterior; mas já não é reconhecido quando toma as vias que passam pelo interior. Já há muito tempo que a Europa sofre a influência da América, e por isso a acção da perversão dos valores e dos ideais própria do mundo norte-americano. E isto por uma espécie de contragolpe fatal. Com efeito, como já alguém disse muito justamente, a América não representa senão um «Extremo-Ocidente», o posterior desenvolvimento até ao absurdo das tendências-base eleitas pela moderna civilização ocidental em geral. É por isso que não é possível uma verdadeira resistência enquanto o mundo se mantiver firmemente ligado aos princípios desta civilização e sobretudo à miragem da técnica e da produção. E com o desenvolvimento desta influência aceleradora poderá portanto acontecer que ao fechar-se a tenaz do Oriente e do Ocidente em volta de uma Europa que, depois da II Guerra Mundial, já privada de toda a ideia verdadeira, deixou, e até mesmo politicamente, de ter a categoria de uma potência autónoma e hegemónica mundial, poderá acontecer, com o dizíamos, que nem sequer se dê por um sentimento de capitulação. A derrocada final poderá nem sequer ter as características de uma tragédia.
O mundo comunista e a América, na sua persuasão de que têm uma missão mundial a cumprir, exprimem uma realidade de facto. Tal como já dissemos, um eventual conflito entre as duas potências corresponderia, no plano da destruição mundial, à última das operações violentas, implicando o holocausto bestial de milhões de vidas humanas, com o fim de se realizar completamente a última fase de involução e da decadência do poder para uma outra das antigas castas até se chegar à mais baixa delas, e ao advento de uma humanidade colectivizada. E mesmo que não se verificasse a catástrofe temida por alguns em relação ao uso das armas atómicas, quando se cumprir este destino toda esta civilização de titãs, de metrópoles de aço, de vidro e de cimento, de massas pululantes, de álgebras e de máquinas que acorrentam as forças da matéria, de dominadores de céus e de oceanos, surgirá como um mundo que oscila na sua órbita e que tem a tendência para se separar dela para se afastar e perder definitivamente nos espaços, onde já não há nenhuma luz, para além da sinistra luz que nascerá da aceleração da sua própria queda (in Revolta contra o Mundo Moderno, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 447-461).
Notas:
(1) Cf. C. Malaparte, La technique du coup d'État, Paris, 1931, pp. 13 e segs.
(2) Cf. Constituição russa de 1918, parágs. 20-22; M. Sertoli, La constituzione russa, Florença, 1928, pp. 67-85. Encontramo-nos em presença desta paradoxal viragem: a classe dos párias constituída numa organização todo-poderosa condenava ao estado de pária quem quer que, de qualquer maneira, aderisse aos valores e permanecesse fiel aos princípios de classe que tradicionalmente definiam os não-párias. O termo «pátria soviética» utilizado na URSS não é mais que um expediente para se poder manipular, em certos casos, certos sentimentos atávicos residuais; assim aconteceu com o «patriotismo» exaltado na Rússia durante a II Guerra Mundial.
(3) Sobre este assunto grande parte da documentação recolhida por R. Füllop-Miller, Mind and face of the Bolshevism (Londres-Nova Iorque, 1927), conserva o seu valor.
(4) Füllop-Miller, ob. cit., trad. ital., Milão, 1927, pp. 13 e segs., 21 e segs. O próprio Estaline (Principî del leninismo, trad. ital., Roma, 1949, pp. 126-128) declarou que a união do espírito revolucionário com o americanismo define «o estilo do leninismo... no trabalho do Partido e do Estado» e define também «o tipo completo do militante leninista».
(5) Cf. A. Siegfried, Les États-Unis d'aujourd'hui, Paris, 1927, pp. 346, 349, 350. À parte, tem de se considerar o fenómeno oposto mais recente, constituído pela chamada beat generation e pelos hipsters, em que uma revolta existencial de uma certa juventude contra a civilização americana tem apenas um carácter anarquista e destruidor, e se esgota em si mesma, sem «ter uma bandeira» nem qualquer ponto de referência superior. Sobre este assunto, cf. J. Evola, L'Arco e la Clava, cap. XIV «La gioventú, i beats e gli anarchici di Destra».
(6) Ob. cit., pp. 35-36, 40, 51.
(7) É recente e significativo, na América, o aparecimento do «cristianismo ateu» e dos chamados «teólogos da morte da Deus» (por ex. T. Altizer, Paul van Buren, John A.T. Robinson), etc.). Para este movimento, a ideia de Deus nas suas características de transcendência e de sobrenaturalidade teria de ser liquidada, pois seria inoperante e já não aceitável por parte do homem moderno; a este, de resto, nem sequer já se deveria falar de «Deus», devido às implicações tradicionais desse termo. Só se salvaria um cristianismo que se deveria «desmesticizar» e secularizar no âmbito de uma insípida moral social e humanitária.
(8) Segundo um inquérito da «Liga antialcoólica americana», os Estados Unidos em 1948 já contavam mais de oitocentas mil mulheres alcoólicas crónicas.
(9) Isto reflecte-se mesmo na severidade inaudita das sanções penais estabelecidas em certos Estados norte-americanos (até à pena de morte) para os «atentados sexuais» contra a mulher.
(10) Poder-se-ia também observar, a este propósito, como é expressiva a criação, tipicamente americana, das cadeias de chorus-girls - puro colectivo feminino caracterizado por gestos e movimentos absolutamente uniformes, por uma nudez banal e uma rítmica sem alma, epiléptico-mecânica.
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