segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O Templo português: um caso atípico e único em toda a Cristandade

Escrito por Juan G. Atienza





Aparição da Virgem a S. Bernardo, de Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682).




«Hugo de Payens, o mestre do Templo, mantivera correspondência com Bernardo de Clairvaux. Ainda existe uma das cartas que Bernardo lhe escreveu. Foi escrita mais ou menos na mesma altura em que Bernardo se viu envolvido no cisma papal. O pequeno monge devia andar muito atarefado. Tratava-se de uma longa carta, dirigida a Hugo de Payens, mas com a intenção de ser aberta a toda a gente. É conhecida como De Laude Novae Militae: "Em louvor da nova cavalaria".

"Uma, duas e três vezes, meu querido Hugo", dizia S. Bernardo, "me pedistes que escrevesse um bilhete de encorajamento para vós e para os os vossos irmãos e, como me está proibida a lança, que brandisse a minha pena contra tiranos hostis; e assegurastes-me que vos seria muito útil [...] Aguardei um certo tempo antes de vos responder, não porque não apreciasse o vosso pedido, mas sim para estar mais apto a satisfazê-lo. Na verdade, fiz-vos esperar o suficiente".

A carta mais do que justificava a longa espera: continha treze capítulos de louvor aos Templários, de mistura com ácidas críticas a cavaleiros seculares.

"Apareceu uma nova cavalaria na terra da Encarnação, uma cavalaria que trava uma batalha dupla, contra adversários de carne e osso e contra o espírito do mal. Não considero uma coisa maravilhosa que esses cavaleiros resistam a inimigos físicos com força física, porque isso, bem sei, não é raro. Mas empunham armas com forças do espírito contra vícios e demónios, e a isso chamo não só maravilhoso, mas também digno de todo o louvor dado a homens de Deus [...] O cavaleiro que tanto protege a sua alma com a armadura da fé, como cobre o seu corpo com uma cota de malha, é deveras sem medo e está acima de toda a censura. Duplamente armado, não teme homens nem demónios".

Entre todos quantos conheciam os Templários, havia alguns que não podiam conciliar as ideias de um homem religioso e da guerra; na lei canónica e no sentimento comum, era sem dúvida homicídio; mas Bernardo, com diplomático sofisma, distinguia entre o homicídio cometido por um cavaleiro secular e aquilo a que chamava malicídio de um cavaleiro santo, que tinha de matar homens para matar o mal. Ver o inimigo como a encarnação do mal foi a partir de então a ideia percursora de toda a propaganda militar, e produziu tanto efeito no século de Bernardo como no nosso.

O desprezo de Bernardo pelos cavaleiros comuns não conhecia limites; eram tão frívolos e vaidosos como os cavaleiros templários eram sérios e dignos de louvor.

"Estorvais os vossos cavalos com seda e cobris a vossa armadura de arrebiques indescritíveis. Pintais as vossas lanças, os vossos escudos e as vossas selas. Os freios das vossas rédeas e os vossos estribos estão incrustados de ouro, prata e pedras preciosas. Com pompa vos enfeitais para a morte, e cavalgais apenas para a ruína [...] São tais adornos próprios de um cavaleiro ou enfeites espalhafatosos de mulheres? Ou talvez penseis que o ouro desviará as armas do vosso inimigo? Que as pedras preciosas serão poupadas? Que a seda não pode ser trespassada? Há três coisas essenciais a um cavaleiro em combate: deve estar alerta para se defender, saltar rápido para a sela e ser pronto no ataque. Mas vós - vós, ao contrário, como mulheres, tendes o cabelo tão comprido que não podeis ver; as vossas roupas são tão compridas que vos roçam pelos pés; ocultais as vossas mãos frágeis e delicadas em enormes mangas... e depois, assim vestidos, ides lutar pelas coisas mais vãs e ridículas!"

A vaidade só tem êxito quando é tomada a sério. A opinião que Bernardo tinha dos cavaleiros seculares era tão clara, tão inocente e tão embaraçosa como a da criança que viu através da "roupa nova" do imperador. O contraste com os Templários dificilmente poderia ser maior. As últimas barreiras foram afastadas e em toda a parte as pessoas clamaram pela ajuda aos Cavaleiros Santos».

Stephen Howarth («A Verdadeira História dos Cavaleiros Templários»).


«O ano de 1156 marca o regresso da Terra Santa de uma personagem que na altura já era um herói nacional da terra portuguesa e que, depois da sua morte, passará a ser legendário.


Estátua de D. Gualdim e a torre da Igreja de S. João Baptista.



Gualdim Pais nasceu em Bragança, mas as suas origens são bastante imprecisas. Foi aluno no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, e muito jovem ainda ficou ao serviço do futuro rei, Afonso Henriques, que ajudou juntamente com os seus irmãos de armas, os cavaleiros Mem Ramires e Martim Moniz, em todas as batalhas travadas contra os Mouros com vista à conquista do Reino. Evidenciou-se na tomada de Santarém, em 1147, e, mais tarde, na conquista de Lisboa, em 1149, antes de partir para a Palestina, onde participou no cerco de Gaza, em 1153.

Os seus dotes de guerreiro e chefe aumentam ainda mais o prestígio que lhe é conferido pelas qualidades notáveis de combatente e de organizador. A estada no Oriente aperfeiçoa uma experiência militar já confirmada e, quando regressa da cruzada, Gualdim Pais sabe perfeitamente qual a missão que o espera. Não tarda a receber o título de Grão-Mestre provincial da Ordem dos Templários em Portugal, sendo assim confirmada oficialmente a missão para que fora destinado.

Alguns anos antes, enquanto Afonso Henriques se preparava para travar a famosa Batalha de Santarém, São Bernardo deu-lhe a conhecer que, em sonho, vira a Virgem Santa revelar-lhe a vitória do rei.

Imediatamente, Afonso Henriques promete oferecer a Clairvaux as terras e subsídios necessários para a construção de uma grande abadia, caso obtenha essa vitória decisiva. A revelação do sonho torna-se realidade e o rei mantém a promessa: São Bernardo vai pessoalmente a Alcobaça, acompanhado por cinco monges arquitectos encarregados de delimitarem os terrenos necessários para a fundação, cuja primeira pedra será colocada pelo próprio soberano.

Mas a implantação de um mosteiro em Alcobaça necessita de forte protecção militar, de que são encarregados os Templários, que já possuem alguns castelos na região. No entanto, a construção do Mosteiro de Alcobaça não poderá iniciar-se antes de estar perfeitamente garantida a segurança total dos bens cistercienses.

Afonso Henriques doa então à Ordem dos Templários todas as terras situadas entre Santarém e Tomar. Gualdim Pais é encarregado de elaborar a cintura defensiva que rodeia os bens de Clairvaux e que ao mesmo tempo reforça a protecção das linhas portuguesas contra as incursões árabes.

Tomar será a chave estratégica que permitirá opor resistência a qualquer ataque vindo da fronteira andaluza e vigiar a estrada de Coimbra, artéria vital do Reino. No dia 1 de Março de 1160, Gualdim Pais inicia a construção do Castelo de Tomar, reforçado um pouco mais tarde, em 1171, pelo Castelo de Almourol, edificado no meio do Tejo, e pelo Castelo de Bode, no rio Zêzere, castelos estes que são dois bastiões de vigilância das águas e dos territórios. A protecção completa-se com os castelos de Pombal, Penela, Castelo Branco, Idanha e Cera.

Perto de Óbidos, reconquistada em 1148, é erigido um bastião portuário com a finalidade de suster qualquer ataque marítimo. O porto de Serra de El-Rei desapareceu totalmente. Invadido por aluviões, está agora situado a dez quilómetros para o interior.

Tomar, símbolo templário, corresponde simultaneamente aos imperativos ditados pelas exigências estratégicas da política territorial e religiosa contra os infiéis. Mas a charola e a cúpula de oito arcos ogivais da capela octogonal, réplica do Rochedo de Jerusalém, contêm o Tabernáculo de Ouro e a cidadela passa a ser a guarda dos mistérios da génese templária, germe fecundo de um futuro brilhante.

Devido às suas qualidades pessoais de bravura, à sua acção incansável e às suas realizações, Gualdim Pais representa o tipo ideal do templário cuja memória permanece fervente em terra portuguesa. Representa até o iniciado perfeito, capaz de trabalhar com presciência para o futuro do seu país; os seus sucessores limitar-se-ão a aperfeiçoar a obra que iniciou.

Castelo de Tomar



Localização de Tomar




Convento de Cristo em Tomar



Charola do Convento de Cristo







Janela do Capítulo no Convento de Cristo





Quando regressa da Terra Santa, passaram-se trinta e quatro períodos de trinta e quatro anos desde o início da era cristã e o destino dá-lhe também trinta e quatro anos para levar a cabo a missão de que foi pessoalmente incumbido. Terá consciência destes factos? As viagens enriqueceram os conhecimentos astronómicos que já tinha e a formação templária que possuía levou-o a dedicar-se a preliminares já confirmados antes de se lançar no amadurecimento de projectos mais longínquos».

Maurício Guinguand («O Ouro dos Templários»).


«Logo em 1308, pela Bula Regnans in Caelis, o Papa se dirigiu aos soberanos europeus, denunciando os alegados crimes dos templários franceses e ordenando a abertura de um inquérito aos de todos os reinos. No caso português, D. Dinis não só recebeu essa Bula, mas uma outra, intitulada Callidi serpentis vigil, expedida a 30 de Dezembro do mesmo ano, recomendando e pedindo mesmo a prisão dos templários portugueses, para serem entregues aos tribunais.

O Rei mandou-lhes de imediato instaurar um processo judicial, mas, agindo com notável circunspecção, tudo fez com delongas, dando tempo aos cavaleiros para prepararem a sua defesa. Nesse período quase todos fugiram ou esconderam-se, com a sua evidente protecção. Entretanto formou-se um tribunal, constituído pelo Bispo João de Lisboa, pelo jurista Mestre João das Leis e pelo Prior dos Franciscanos.

Nenhum templário foi preso, mas, por sentença de 27 de Novembro de 1309, todas as propriedades e bens templários reverteram para a Coroa, a começar pelas propriedades de Pombal, Soure, Ega e Redinha, mais tarde Idanha-a-Velha, Salvaterra do Extremo, Rosmaninhal, etc.

Um perigo se avolumava no entanto para a Coroa portuguesa, o de que, depois da extinção oficial da Ordem, o Papa e os Bispos pudessem reclamar a "herança" dos seus avultados bens, o que além de tudo o mais, pela transferência de castelos e praças fortes para fora da jurisdição real, podia colocar em risco a paz do Reino. Foi então que D. Dinis congeminou um entendimento com o seu genro, o Rei D. Fernando de Castela, que resultou na Convenção de Salamanca, de 21 de Janeiro de 1310, a que aderiu pouco depois o Rei D. Jaime II, de Aragão.

Esta aliança dos reis peninsulares revelava toda a consideração que tinham pelos templários. Era, no fundo, uma barreira levantada para a sua defesa e ao mesmo tempo para garantia dos direitos dos soberanos aos seus bens.

A inquirição ordenada por D. Dinis aos templários portugueses, à sua vida, aos seus costumes, às suas práticas e à sua fé, ilibou-os totalmente. Também os nossos Prelados, reunidos, os declararam inocentes de quaisquer crimes. E assim pouco a pouco, começaram todos a regressar à pátria, recebendo pensões sobre os bens penhorados e sendo tratados com respeito por toda a gente, como "antigos Templários" (quondam Milites).

A aliança dos reis peninsulares foi extraordinariamente efectiva. Assim, quando a Ordem do Templo foi extinta, em 1312, concedendo-se muitos dos seus haveres aos Hospitalários, o Papa abriu uma excepção em favor dos três soberanos, D. Dinis, D. Fernando e D. Jaime II, fixando um prazo para concertar com a Santa Sé a aplicação dos bens. Para entretanto os administrar em Portugal, o Papa nomeou o Bispo do Porto, D. Estevão, personalidade de ambicioso que anteriormente tivera o favor real, mas que se mostrava agora indigno da sua confiança. Por isso o nosso monarca rejeitou tal nomeação e, pondo os tempos entre os males, foi atrasando as negociações.

E, quando a Bula de suspensão foi enfim publicada, já não podia ter entre nós qualquer efeito. Os cavaleiros haviam desaparecido; os bens estavam em poder de D. Dinis; o administrador do Papa achava-se repudiado. Os hospitalários não podiam ter a ousadia de chamar a si os territórios templários.




Cruz da Ordem de Cristo








Não cessaram porém as pressões da Ordem de S. João do Hospital, de alguns Bispos e da própria Igreja de Roma, considerando-se com direitos à herança templária. D. Dinis não esquecia que o próprio Papa João XXII, em 1317, tinha tomado a liberdade de doar ao Cardeal Bertrand, um dos seus prelados favoritos, nada menos do que a povoação e o castelo de Tomar, com todas as suas rendas. No lance, como sempre habilíssimo, D. Dinis instigou o príncipe herdeiro e alguns nobres do reino a apresentarem um protesto, decisivo e formal. O cardeal desistiu da posse, para que estava autorizado por uma bula, e não se falou mais nisso.

Por outro lado, ao defender de forma tão sábia e eficaz os Templários em desgraça e ao conservar sem perdas, mesmo mínimas, todo o seu património, D. Dinis não fez como os seus pares de Castela ou de Aragão, que absorveram na Coroa todos os bens templários. Pelo contrário, tudo indica que, desde o princípio, teve a ideia preconcebida e o propósito de restaurar de algum modo a Ordem, que lhe prestara bons serviços e sobretudo na qual via uma força de primeira importância para os seus planos, se é que estes não tinham uma das suas fontes principais na própria herança espiritual da Ordem.

Não o soube a tempo Dante Alighieri, que no Canto XIX do Paraíso, na Divina Comédia, condena duramente o de Espanha (provavelmente D. Fernando IV, de Castela e Leão) pela sua luxúria e vida de moleza, os reis de Aragão, Sicília e Maiorca (provavelmente Jaime II e Frederico II), cujas obras ignóbeis (...) desonraram uma raça ilustre e duas coroas, e ainda o nosso D. Dinis, também por obras ignóbeis.

Eram os reis peninsulares que tinham assinado o pacto de guardar os bens templários, resistindo às pressões de Clemente V para a sua absorção no património eclesiástico, através dos Hospitalários ou dos Bispos. Mas Dante foi duplamente injusto para o Rei português. Não se sabe exactamente quando concluiu, no exílio, a sua Divina Comédia. Os primeiros Cantos, o Inferno e o Purgatório, terão sido escritos entre 1290 e 1313. O Paraíso, muito possivelmente entre 1313 e 1317-1320, isto é, nos últimos anos da vida do grande poeta e pensador, que morreu em 1321. O certo, contudo, é que, se foi tão severo para com D. Dinis, associando-o a outros reis, foi por o ter julgado, como eles, um ambicioso, que se apropriou para seu proveito dos bens dessa Ordem pela qual tinha particular reverência.

Não teve Dante tempo para saber que, ao invés de ter acrescentado a sua fortuna com as propriedades e tesouros templários, D. Dinis foi o Príncipe justo e sábio (denominação pelo poeta reservada para os habitantes, no Paraíso, do Sexto Céu ou Céu de Júpiter) que salvou a Ordem dos Templários, que resgatou e restaurou todos os cavaleiros do país e, mais do que isso, que preservou o seu legado, cumprindo-o em superabudância e dando-lhe um sentido amplificante e universal ao transformá-la na Ordem de Cristo.

Sampaio Bruno tocou neste ponto, embora ao de leve, no seu artigo D. Dinis e os Templários, postumamente inserido no livro Os Cavaleiros do Amor, ao escrever que se Dante, tendo acabado os seus dias em 1321, conhecimento teve da nobre conduta do Rei português, houve de levar com ele o desgosto de ter mal-entendido um benfeitor dos seus confrades».

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério», II).


«Com a mesma espontaneidade e obediência com a qual os Templários castelhanos se prestaram à entrega das suas fortalezas, deram mostras da maior docilidade de cada vez que foram requeridos para prestar declarações e ser interrogados por bispos e inquisidores no reino castelhano-leonês. O papa Clemente V tinha encarregado especialmente os arcebispos de Toledo e de Santiago de Compostela e o bispo de Sigüenza de, em conjugação com um inquisidor apostólico, frei Aimerico de Placência, da Ordem dos Predicadores, disporem os lugares e o momento mais apropriado para levar a cabo os interrogatórios. Estes tiveram lugar em Medina do Campo, Alcalá (1309), Toledo (1310) e Santiago, aonde foram acorrendo disciplinadamente os cavaleiros do Templo para responder às acusações que se reflectiam no interrogatório pontifício. O resultado, segundo estava previsto, iria engrossar a documentação que devia ser apresentada no concílio-geral que o papa vinha anunciando desde 1309 e que não se celebraria até 1312, em Viena. Mas o resultado deveria unificar-se depois de todos os interrogatórios se apresentarem num concílio provincial prévio a celebrar em Salamanca, que foi convocado para 15 de Julho de 1310 e que, confirmando o resultado dos tribunais locais, declarou todos os templários do reino, sem excepção, livres de todas as culpas que se lhes imputavam. Alguns dos interrogatórios apenas reflectiam certas faltas consideradas menores, que respondiam a costumes ancestrais de carácter supersticioso, que os Templários - ou alguns deles, pelo menos - tinham continuado a praticar, como pintar cruzes nos estribos dos cavalos para que, ao serem pisadas ao montar, protegessem o ginete dos perigos que o podiam ameaçar na batalha.



Brasão de Armas do Reino de Portugal (1247).




A propósito destes interrogatórios e destes concílios, convém recordar que, no organigrama do Templo, e apesar de se tratar de distintos reinos, Castela e Portugal constituíam uma única província templária. Os Templários portugueses, contudo, quase não se apresentaram para serem interrogados pelas comissões de inquérito castelhanas. Pelo contrário, o rei D. Dinis, que se limitou a fingir que retirava os bens à Ordem, conforme ordenavam as bulas papais, esperou pacientemente que um novo papa substituísse Clemente V e, à morte deste, a solicitar ao seu sucessor, João XXII, através de um enviado - que era, e não casualmente, um templário, João Lourenço -, permissão pontifícia para fundar uma ordem monástica que se chamaria de Cristo e que não só acolheria todos os Templários portugueses, mas também nasceria com o dote acrescentado de todos os bens que tinham sido oficialmente arrebatados à ordem por desígnio papal.

O caso português é atípico em toda a aventura templária, porque aquele reino foi o único de toda a Cristandade que não se incomodou em interrogar os seus Templários, procurando possíveis culpas e hipotéticas heresias mas que, de facto, prolongou sine die a sobrevivência do Templo, muito simplesmente mudando o nome da ordem e fazendo o simulacro de assumir outra regra, a de Calatrava, que, por certo, desde a sua fundação navarra por Raimundo de Fitero, se tinha guiado por umas ordenações cistercienses paralelas às que a Ordem do Templo acolhera na sua regra oficial.

É necessário reparar que do Templo português se conservou uma parte seguramente fundamental da documentação, que foi zelosamente guardada pelos seus sucessores da Ordem de Cristo e que se converteria com o tempo no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mas essa documentação, como é habitual, contém lacunas que parecem muitas vezes inexplicáveis e que introduzem os estudiosos na suspeita fundada de que a Ordem fosse em Portugal ainda mais poderosa e influente do que os documentos revelam. Entre essas lacunas existe uma especialmente suspeita: a de não nos dar notícia alguma sobre a considerável quantidade de frades com apelidos franceses (alguns apenas transformados) que apareceram incorporados na Ordem de Cristo a partir do próprio momento da sua constituição. O silêncio, no entanto, faz pensar com certo fundamento que Portugal, possivelmente através do porto de La Rochelle, acolheu bastantes dos escassos Templários que conseguiram escapar ao cerco sincronizado montado por Filipe IV, o Belo, e que, uma vez no novo destino, sem serem sequer remotamente incomodados por qualquer tribunal, colaboraram activamente na transformação formal do Templo na nova Ordem de Cristo, a qual, de facto, poderia ser considerada, perante a multiplicidade de tentativas espúrias e escassamente documentadas, como a verdadeira herdeira de, pelo menos, uma parte fundamental do ideário templário.

(...) há indícios que confirmam que o Templo teve amplos conhecimentos em matéria de navegação e em cartas marítimas que lhe permitiram reunir uma importante frota que não só lhe serviu para alcançar os portos mediterrânicos da Terra Santa e do Egipto como também lhe permitiu adentrar-se pelo Atlântico a partir das docas que controlava em França, Galiza e Portugal. A tradição templária foi fielmente continuada pela Ordem de Cristo portuguesa, que, segundo indiquei, noutro lugar, fundou sob os seus auspícios a escola náutica de Sagres, situada na ponta peninsular do cabo de São Vicente, para trabalhar na qual recorreram aos serviços dos melhores desenhadores de cartas marítimas da época, entre os quais se destacavam, a considerável distância dos restantes, alguns membros e famílias judaicas maiorquinas, como a dos Cresques, que viveram na ilha balear e tinham a sua casa praticamente anexada aos muros da dos Templários na capital. Daquela escola náutica saíram as cartas de navegação utilizadas pelos primeiros exploradores atlânticos portugueses, impulsionados pelo entusiasmo de D. Henrique, o Navegador, que foi o grão-mestre da Ordem de Cristo. Mas existem também bem fundamentados indícios de que aquelas cartas foram conhecidas por Cristovão Colombo que, certamente, enquanto se discutia o seu plano na Junta de Salamanca, realizou uma misteriosa viagem a La Rochelle, antigo porto templário - de que saiu a expedição canária de Jean Bethancourt -, da qual regressou a tempo de a Junta determinar que era viável o projecto que o futuro almirante lhe tinha apresentado.

Naturalmente, trata-se apenas de indícios. Mas são indícios bastante coerentes para nos fazerem suspeitar, com fundamento, de que o Templo não só colocou a Guerra Santa como meta e acesso à teocracia que projectava, como também penetrou, ou pelo menos tentou penetrar, em outros caminhos paralelos, através de saberes que podiam contribuir para que o seu plano fosse realizável e tivesse garantias de êxito em todos os campos. Não existem dúvidas de que o conhecimento - e sobretudo esse outro tipo de conhecimento que os poderes instituídos tendem a proibir, designando-os, conforme as circunstâncias, como inoperantes ou como satânicos - faz sempre parte dos grandes projectos concebidos com o objectivo de conquistar o mundo, pois essa conquista, quando se apresenta a níveis totais, nunca é só militar, mas também se deve coroar com uma mudança na consciência dos conquistados, para que se adaptem ao novo paradigma colocado pelo colectivo conquistador».

Juan G. Atienza («A Herança dos Templários. A história oculta do Templo na Idade Média Peninsular»).







«Se havia uma doutrina secreta ligada aos Descobrimentos, as causas que, em geral, se lhes apontam vêm a ter um valor secundário, importante no seu plano - económico, religioso ou outro - , mas incapaz de dar a verdadeira razão. Do nosso ponto de vista, tudo se integra num processo que vem de longe (pelo menos, desde a fundação da nacionalidade), cujo momento fundamental e decisivo se deve situar na queda dos Templários.

O que é que permitiu que, em Portugal, a Ordem da Milícia do Templo continuasse a existir coberta pela Ordem da Milícia de Cristo? Este facto simples: Portugal é a Ordem do Templo até D. Manuel I e desde a sua origem.

Só assim se explica que a cruz da Ordem simbolizasse a Pátria nos templos e nas caravelas.

Nos romances medievais de cavalaria, refere-se uma terra do Ocidente, junto ao mar, a terra de Anfortas ou Afonso, o Rei Pescador, onde estaria o Graal, símbolo da sabedoria iniciática, de que os Templários seriam os misteriosos guardiões. Pode suspeitar-se que, embora o Grão Mestre visível da Ordem estivesse em França (na altura de destruição da Ordem chama-se Jacques de Molay), fosse aqui em Portugal onde realmente se ocultasse o seu Mestre invisível.

É inútil procurar nos documentos utilizados pelos historiadores a prova do que se avança. O que estava tão hermeticamente guardado não poderia, certamente, aparecer em relatos de cronistas e de frades que talvez nada sabiam do assunto ou, se sabiam, não teriam qualquer interesse em divulgá-lo. Só em palavras cobertas alguma coisa poderia vir de dentro para fora e é por isso que documentos como o "manuelino", em que as palavras estão caladas e somente falam para quem sabe e quer pôr a demanda, fazer a pergunta, são afinal os documentos onde se conta a verdadeira história. Deste ponto de vista, parece-nos ser útil interrogar também a poesia dos trovadores.

A pergunta foi feita no estrangeiro. Notáveis intérpretes, como Gabriel Rosseti, Eugène Aroux, Denis de Rougemont, Otto Rahn e muitos outros estabeleceram de maneira decisiva, a ligação da poesia medieva ao Sul da França com os cátaros e com os Templários. Esqueceram, como em geral sempre acontece até com assuntos em que Portugal desempenha um papel dominante, a nossa poesia medieval. Não puderam, por isso, observar o facto importantíssimo, até para defesa da tese que sustentaram, que, vinte anos depois da cruzada católica contra os albigenses, que silenciou para sempre, no Sul da França a voz dos trovadores, foi posta em movimento a corrente dos poetas galegos e portugueses, durante cem anos activa à queda dos Templários».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).


«A reconquista cristã da Península Ibérica, operada de norte a sul, significa não só a submissão dos Árabes mas também a dos Judeus; não podemos, portanto, dá-la por concluída antes de 1498. Para alguns autores espanhóis, esta reconquista religiosa deveria ser completada pela unificação política dos cinco reinos cristãos, o que se operou só no século seguinte, em 1580. Convém comparar a data em que os Árabes foram expulsos do Algarve, 1260, com a de 1492, referente à conquista de Granada pelos Reis Católicos. A poesia dos trovadores, que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tem origens imprecisas que tanto podem ser atribuídas à poesia popular árabe como à poesia provençal».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).


«Poder-se-á provar que a poética árabe tenha realmente influenciado a cortezia? Renan escreveu em 1863: "Um abismo separa a forma e o espírito da poesia românica da forma e do espírito da poesia árabe". Um outro sábio, Dozy, declara nessa época que se não provou a influência árabe sobre os trovadores "e que ela não será provada". Esse tom peremptório faz sorrir.

De Bagdade à Andaluzia, a poesia árabe é só uma, pela língua e pelo contínuo intercâmbio. A Andaluzia está em contacto com os reinos espanhóis, cujos soberanos se ligam aos do Languedoc e Poitou. O florescimento do lirismo andaluz nos séculos X e XI é-nos hoje bem conhecido. A prosódia precisa do zadjal é a mesma que reproduz o primeiro trovador, Guillaume de Poitiers, em cinco dos onze poemas seus que nos restam. "Provas" da influência andaluza sobre os poetas corteses nem é preciso procurá-las já [cf. os trabalhos de um autor americano, A. R. Nykl, a sua tradução do Colar da Pomba, d'Ibn Hazm  que é uma teoria do amor cortês árabe - e a sua obra de conjunto Hispano-Arabic Poetry and its relations with the old Provençal Troubadours, Baltimore, 1946. Ver também as obras de Louis Massignon, de Henry Pérès, de Émile Dermenghem, de Menendez Pidal, de Karl Appel, etc., etc.]. E poderia aqui encher páginas inteiras de citações de Árabes e Provençais, que os nossos grandes especialistas do "abismo que separa" teriam por vezes dificuldade em adivinhar de que lado dos Pirenéus teriam elas sido escritas. Está entendida a causa. Mas eis o que me importa.


Denis de Rougemont






No século XII, no Languedoc como no Limousin, assiste-se a uma das mais extraordinárias confluências espirituais da História. Por um lado, uma grande corrente religiosa maniqueísta, que havia tido a sua origem no Irão, subiu pela Ásia Menor e pelos Balcãs até à Itália e à França, trazendo a sua doutrina esotérica da Sophia-Maria e do amor pela "forma de luz". Por outro lado, uma retórica altamente requintada, com os seus processos, seus temas e personagens constantes, suas ambiguidades, renascendo sempre nos mesmos lugares, e seu simbolismo, enfim, remonta do Iraque dos Sufis platonizantes e maniqueizantes até à Espanha árabe e, atravessando os Pirinéus, encontra no Sul da França uma sociedade que, parece, estava à espera desses meios de linguagem para dizer o que ela não ousava nem podia confessar nem na língua dos clérigos nem na fala vulgar. A poesia cortês nasceu deste encontro.

E é assim que na última confluência das "heresias" da alma e das do desejo, vindas do mesmo Oriente pelas duas margens do mar civilizador, nasceu o grande modelo ocidental da linguagem do amor-paixão».

Denis de Rougemont («O Amor e o Ocidente»).


«Entre os glaciares dos Alpes e os Pirenéus ensolarados, das margens do Loire plantadas de vinhas aos paradisíacos jardins em socalcos da Côte d'Azur e da Côte Vermeille, desabrochou no início do nosso milénio uma civilização brilhante, amável, espiritual, onde a poesia e o amor, a Minne, ditavam leis. Diz-se que essas leis, as leys d'amors, foram dadas ao primeiro trovador por um falcão pousado no ramo de um carvalho dourado.

As leys d'amors continham trinta e uma prescrições. Facto singular, dispunham como princípio supremo que a Minne excluía toda a ideia de amor carnal ou de casamento. A Minne representa a união de almas e corações... O casamento significa a morte da Minne e da poesia. O amor, simples paixão, esvai-se depois do prazer sensual. Com a verdadeira Minne no coração, não se deseja o corpo da bem-amada, mas o seu coração. A verdadeira Minne é pura e imaterial. A Minne não é o amor, como eros não é o sexo.

"Os amantes devem ser de coração puro, não pensarem senão na Minne. A Minne não é pecado, é uma virtude que torna bons os maus e os bons ainda melhores. E d'amor mou castitaz (e do amor vem a castidade)". Assim falava Guillaume Montanhagol, trovador de Toulouse.

Foram os trovadores que impuseram as leys d'amors. Nas chamadas "cortes de amor", os cavaleiros e rapsodos culpados de infringir as leis da Minne eram julgados pelas damas.

O Minnedienst, serviço de amor, homenagem rendida à graça e à beleza, era designado pelos trovadores pelo termo domnei (de domina, senhora). O domnei concedia ao domnejaire, servidor da Minne, a joy d'amour, anelo amoroso do poeta. Era honrado o que compunha as Minnelieder mais belas, e, uma vez homenageada a sua dama, o cantor tornava-se seu vassalo e tributário, ficava ao seu dispor como um servo. Ajoelhado aos seus pés, o trovador jurava fidelidade eterna, como ao senhor suserano. Como prenda de amor, a dama oferecia ao seu paladino-poeta um anel de ouro, pedia-lhe que se levantasse e beijava-o na fronte. Era o primeiro beijo, em geral, o único... chamado Consolament. E d'amour castitaz. Alguns padres provençais chegaram a benzer essa união mística e a pô-la sob a protecção da Virgem Maria.

No norte da França, mais ainda na Itália e principalmente na Alemanha, o cavaleiro não conhecia outra pátria que a sala de armas, a justa e o campo de batalha. Não se concebia cavalaria sem nobreza. Só era nobre o cavaleiro que partia para a guerra no seu corcel e com os seus homens de armas montados. Nas terras occitanas, o burguês ou o paisano podiam aceder à cavalaria se eram bravos e leais e capazes de comporem rimas. Os atributos do cavaleiro occitano eram a espada, a palavra e a harpa, acessíveis a todos. O plebeu com dom de palavra podia ser enobrecido, o operário poeta podia ser armado cavaleiro.

"O homem bem nascido deve mostrar-se bom guerreiro e anfitrião generoso, dar a maior importância a uma bela armadura, ser elegante e polido. Quanto mais virtudes tiver o nobre, mais perfeito cavaleiro será. Os burgueses também podem ter virtudes cavaleirescas. Mesmo não-nobres de nascença, podem sê-lo no sentimento. Há uma virtude, porém, que deve ser comum a todos, nobres e burgueses: a fidelidade. O pobre pode suprir as suas carências com o discurso cortês e com a delicadeza. O que, pelo contrário, não sabe ser nem dizer, não terá a minha consideração, não é digno dos meus versos", diz o trovador Arnaud de Mareuil, ele próprio filho de pais pobres e humildes, que começou como copista e chegou a poeta na corte do visconde de Carcassonne e Béziers.






Otto Rahn



Parzifal




Cruz cátara



Vemos, pois, que, grande ou pequeno, qualquer um se podia tornar cavaleiro se era valente e honesto, e, inclusivamente, servidor da Minne e poeta. Os cobardes e grosseiros são indignos da cavalaria, não merecem corcel, têm a mula.

"Afastai-vos dos tontos e fugi dos discursos malévolos. Se quereis fazer o vosso caminho no mundo, sede magnânimos, francos, corajosos, estai sempre prontos a falar de coisas corteses. Se não tendes dinheiro para vestir bem, cuidai ao menos que tudo esteja limpo, em especial os vossos sapatos, o vosso cinto e o vosso punhal. Nada agrada mais, nada confere melhor aparência. O que pretende chegar a alguma coisa ao serviço das damas, deve ser hábil em tudo, de tal modo que a sua dama nunca lhe descubra defeitos. Esforçai-vos em agradar aos amigos e conhecidos da vossa senhora, para que ela só ouça dizer bem de vós. Isso exerce uma influência muito especial nos corações. Quando a vossa dama vos receber, não hesiteis em dizer-lhe que conquistou o vosso coração. Se vos conceder o que lhe pedis, que ninguém saiba. Pelo contrário, lamentai-vos perante todos de nada terdes conseguido, as mulheres não suportam tagarelas e idiotas. Agora, já sabeis como abrir o caminho neste mundo e como agradar às damas...", ensina-nos o trovador Amanieu des Escas.

Os trovadores eram homens alegres. Fora do serviço dedicado à sua dama, que importava, afinal, se pelo caminho se enamoravam de uma cara bonita e não chegavam à noite ao castelo onde deviam cear e dormir? O céu do Midi é aprazível; basta estender a mão para se colherem frutos e a água das fontes é, para o que a bebe, tão agradável como o vinho de Roussillon.

As leys d'amors prescreviam que a Minne devia ser pura como uma oração. Nas veias dos homens do sul corre sangue quente; antes de envelhecerem, os trovadores eram jovens, e as mulheres idosas não procuravam paladinos.

A poesia era a voz melodiosa da cavalaria. A sua língua amável, o provençal, primogénito dos idiomas neo-latinos, era matizada de retalhos iberos, gregos, latinos, celtas, góticos e árabes como a trama de um tapete multicolor. Da França, da Itália, da Catalunha, de Aragão, de Portugal, os trovadores iam a Montpellier, a Toulouse, a Carcassonne e a Foix aprender rimas novas e a medirem-se com reis e príncipes poetas, Ricardo Coração de Leão, Afonso de Aragão, Raymond de Toulouse.

Quem não conhece o inteligente e lutador Bertrand de Born, que Dante vê decapitado nos infernos, e Arnaud Daniel, eterno amoroso que no Purgatório "canta a chora e olha com desolação a loucura passada", suplicando ao grande florentino que pense sempre nele? Ou os seus pares, cada qual mais louco e dotado que os outros, Bernard de Ventadour, Gaucelm Faidit, Peire Vidal, Raymond de Miraval, o melancólico Arnaud de Mareuil, discípulo favorito de Arnaud Daniel e desditado paladino da condessa de Carcassonne?...».

Otto Rahn («Cruzada contra o Graal»).


«No Islão, a Guerra Santa - a jihad - era um projecto consubstancial ao ensinamento alcorânico, ao contrário do que sucedia no ambiente cristão, em que os Evangelhos apostavam, decididamente, na paz e na concórdia entre os seres humanos.

No mundo islâmico, tanto no Oriente como no Magrebe e no Al Andaluz, os ribats eram conventos fortificados onde se concentravam grupos de monges guerreiros especialmente preparados para integrar os corpos de elite dos exércitos muçulmanos. Ali se praticavam ao limite os ensinamentos corânicos, ao mesmo tempo que se preparava conscienciosamente os professos para aquela Guerra Santa que o Profeta tinha declarado como meta fundamental do Islão. A dita guerra, tal como era concebida pelos adeptos do ribat, era vista, em princípio, como uma purificação que se traduzia em luta consigo mesmo e contra as paixões próprias da condição humana, para se transformar depois em guerra aberta em prol do triunfo universal da ideia islâmica. Ao ribat contudo, não chegavam os devotos guerreiros para aí ficarem encerrados o resto da vida, como os monges cristãos, mas para receber a sagrada iniciação guerreira que permitiria aos adeptos enfrentar os inimigos da fé numa batalha que tinha muito de mística, de modo que matar e morrer por ela convertia-se num acto transcendente emanado directamente da vontade divina.

Ainda que crónicas contemporâneas não costumem admiti-lo, os guerreiros cristãos, na sua luta contra os mouros peninsulares, deviam ter conhecimento daqueles monges-soldados do Islão. A toponímia, por seu lado, deixou-nos muitos nomes que revelam lugares onde estiveram instalados esses conventos: San Carlos de la Rápita, na desembocadura do Ebro, Calatrava (transformação de Qalat aç-Ribat) e a Rábida onubense, assim como os nomes sorianos de Rabanera e Los Rábanos, dão conta de que na Idade Média peninsular houve monges-guerreiros islâmicos que defrontaram as tropas cristãs.






Estátua equestre de Saladino na Cidade Antiga de Damasco, na Síria.




(...) Algo mais do que notícias em segunda mão devem ter tido os cruzados da eficácia e valentia religiosa dos monges-soldados dos ribats muçulmanos, porque a sua fama e até algum esforço primário de imitação começaram a expandir-se, tanto entre os que ficaram na Terra Santa após a tomada de Jerusalém como entre os que regressaram à sua pátria uma vez cumprida a missão, muitos deles influenciados pela sacralidade da aventura que tinham acabado de viver.

Ainda que se saiba que o papa Urbano II vetou tacitamente aos espanhóis a sua intervenção na cruzada, alegando que as condições daquela convocatória já se davam na Guerra Santa que tinha lugar na Península sob os auspícios de Cluny, não é menos certo que numerosos cavaleiros e nobres, tanto castelhanos como catalães, navarros e aragoneses, acorreram ao chamamento, na sua maior parte integrados nas hostes de Raimundo IV, de Tolosa, casado com uma princesa castelhana que o acompanhou na empresa, a infanta Elvira, filha de Afonso VI. Também se afirma, por parte de alguns historiadores, a presença na Terra Santa, durante esta Primeira Cruzada, do conde Henrique de Borgonha, casado com Teresa, outra das filhas de Afonso VI e fundador do que seria o reino de Portugal, ainda que esta questão pareça duvidosa, à luz dos numerosos problemas que o conde teve de enfrentar na sua tentativa de tornar o mais independente possível o território que o sogro lhe legara.

Os cruzados peninsulares regressaram aos seus reinos originários imbuídos de lendas milagrosas e carregados de relíquias, entre as quais começaram a adquirir justa fama, passado algum tempo, as supostas imagens de Nossa Senhora esculpidas por São Lucas e, sobretudo, numerosos fragmentos da cruz em que morrera Nosso Senhor. Isso conta a tradição que aposta na participação na cruzada do conde de Portugal, a quem o próprio Godofredo de Bulhão teria oferecido numerosas relíquias e o imperador de Bizâncio nada menos do que um braço do evangelista São Lucas, que ainda hoje se venera na Sé de Braga. Prodígios deste teor contam-se igualmente, ainda que com mais laivos de certeza, do infante Ramiro, pai daquele que seria rei de Navarra com o nome de García Ramírez, o Restaurador, e genro do Cid Campeador pelo matrimónio que contraiu com a sua filha Elvira. O infante Ramiro lutou valentemente na cruzada e esteve na tomada de Jerusalém, por cuja Porta dos Leões entrou na cidade. A tradição conta que alcançou a piscina e que, no seu fundo seco, encontrou uma imagem de Nossa Senhora - executada, naturalmente, por São Lucas - e um fragmento do Lignum Crucis. Para albergar tais relíquias, encarregou no seu testamento o abade Pedro Virila, que o era do mosteiro de São Pedro Cardeña, de erigir uma igreja que se chamaria de Nossa Senhora da Piscina e que para custodiar o templo e venerar as relíquias se fundasse em seu nome uma casa-divisa ou confraria de devotos cavaleiros, de que fariam parte os seus descendentes e familiares e gente de bom berço, que se comprometeria a levar vida de caridade e a defender a fé dos seus inimigos, constituindo uma espécie de ordem cavaleiresca entregue à luta pela religião. Isto sucedia em 1110 e no testamento especificava-se que nunca poderiam entrar nela nem plebeus nem descendentes de muçulmanos ou de judeus, carentes todos eles do espírito aristocrático e devoto que aquela fraternidade exigia.

(...) O facto que creio objectivamente indubitável é que a Ordem do Templo se constituiu para um fim muito concreto; e que esse fim se manifestou discretamente desde o seu início - uma prova concludente disso é que despertou controvérsia e paixões, até mesmo ódios, a partir do próprio momento da sua constituição - e desenvolveu-se com altos e baixos de poder e de prestígio ao longo do processo, até um final que ocorreu por se ter posto em evidência - certa ou parcialmente falsa - um comportamento herético que a sociedade e os poderes do seu tempo não podiam consentir, aparentemente por ignorar as regras aceites, na realidade por constituir uma ameaça já evidente para a autoridade estabelecida e reconhecida.

O documento que acredita em primeira instância este projecto é a própria regra do Templo. Insistiu-se muito - e eu próprio caí nisso, arrastado pela insistência generalizada - em propor Bernardo de Claraval como autor da dita regra, tal como foi transmitida por Cister. Lendo-a atentamente surgem, todavia, determinadas pistas que indiciam que, com toda a probabilidade, o mestre de Claraval se teria limitado a corrigir ou a acrescentar algo que os próprios Templários tinham redigido em Jerusalém, tendo presentes os capítulos do código cisterciense, mas adaptando-os, por um lado, à circunstância guerreira da ordem templária, que tinha de ser adequada à sua natureza conventual - e não monástica - e, ainda que já de forma muito mais discreta, com os fins a longo prazo a que os fundadores se tinham proposto. Prova destas circunstâncias é encontrada no facto de o texto se ter transformado subtilmente desde a sua primeira aprovação, até ao ponto em que já se detectam diferenças substanciais entre a Regra Latina, que seria a adoptada no concílio de Troyes (1128), e a primeira versão francesa, de que se conservam manuscritos redigidos muito pouco tempo depois da oficialização da ordem. Igualmente, apreciam-se diferenças - subtis, mas importantes - com a posterior tradução da regra para uso dos Templários ingleses, italianos, castelhano-portugueses e catalano-aragoneses. Diferenças que, ainda que sejam em cifra, poderiam indicar-nos, mediante um estudo consciencioso, que o programa de actuação da ordem teve diferenças segundo o país no qual se estabelecia, do mesmo modo que existem ligeiras mas importantes alterações nos programas que hoje em dia são desenvolvidos pelas grandes multinacionais nos distintos Estados em que jogam os seus interesses

(...) Entre os elementos que deram forma às provas acusatórias do processo dos Templários figuram dois que muitos dos processados confirmaram com mais ou menos variantes. Um deles foi a presumível adoração de uma figura ou cabeça diabólica, sobre a qual ninguém se pôs de acordo no momento de fazer uma descrição apropriada e cujo suposto nome, baphomet, continua a despertar a curiosidade sobre o seu significado em muitos estudiosos. O outro referia-se à ofensa da cruz, na qual supostamente os noviços tinham de cuspir e renegar quando pronunciavam os seus votos de ingresso na ordem.




Comecemos por essa cruz. Os inquisidores, como é lógico, insistiram sobre este acto, que consideravam como o mais herético de quantos comprometiam os Templários e que contribuíram para a sua condenação. Alguns dos acusados deram respostas afirmativas a estas perguntas, outros disseram que, ainda que não o tivessem praticado pessoalmente, tinham ouvido falar dessa prática em alguma ocasião ou a tinham presenciado em cerimónias de que tinham sido meras testemunhas. Em qualquer caso, os textos que chegaram até nós sobre cerimónias de recepção na ordem, por cima de uma evidente ortodoxia, mostram-nos algo curioso: em nenhum momento destas cerimónias os textos citam Jesus Cristo ou o seu sacrifício na cruz, mas unicamente, Deus Pai e Santa Maria. Esta circunstância - se atendermos a que a ordem nasceu precisamente onde Jesus Cristo nasceu, viveu e morreu sofrendo a Paixão não deixa de ser significativa. Não tentemos encontrar provas que a motivem em documentos que eventualmente confirmem o que vou indicar, mas em circunstância templária, parcialmente conformada pela regra e pelos seus estatutos, leva-nos ao convencimento de que, em matéria devocional, os Templários tendiam a recusar, sempre que lhes fosse possível, a sacralidade do sacrifício crístico, cujo processo vital lhes parecia, sem dúvida, infinitamente mais digno de devoção do que o seu lado escatológico, sobre cuja circunstância a Igreja tinha erigido boa parte dos seus dogmas.

Assim, pois, a cruz, para o Templo, não era uma memória sacrificial, antes simbolizava as magnitudes cósmicas que já conformaram esse signo nos alvores da tradição arcana da Humanidade. Um significado que coincidia com a cruz grega vermelha e de braços iguais que acabou por ser, com ligeiras variantes, o signo de reconhecimento da ordem, uma forma muito distinta da que fora adoptada como senha vencedora da Igreja, tanto como símbolo como quando foi esquematizada nos templos da Cristandade. Os templos da Ordem, excluídas as capelas poligonais a que já fizemos menção, eludiram muitas vezes a planta de cruz latina, trocando-a por uma estrutura que, em muitos casos, poderia ser chamada - ignoro se tem um nome oficial concreto - de chave. São igrejas com uma girola que substitui o cruzeiro convencional e que, muito frequentemente, têm uma capela aos pés que imita, pela sua posição, os dentes de uma chave cuja parte superior seria constituída pela girola.

Sem ir mais além, para o que necessitaria de um longo estudo sobre os seus possíveis significados, parece evidente o facto de que o Templo sentiu - no plano do simbólico ou, pelo menos, do significativo - uma certa aversão em relação à cruz passional. Contudo, inclinou-se a carregar de significado a figura do Lignum Crucis, supostos fragmentos da cruz do Gólgota, expostos ou simplesmente guardados em relicários que tomaram a forma de cruzes patriarcais ou de dois travessões, aos quais conferem virtudes e capacidades milagrosas que em muitos casos, como o da chamada Cruz de Caravaca, se prolongaram popularmente até aos nossos dias».

Juan G. Atienza («A Herança dos Templários. A história oculta do Templo na Idade Média Peninsular»).





O Templo português: um caso atípico e único em toda a Cristandade


Criar um Estado a partir do nada


A questão já vinha de longe; nada menos que do instante em que os beneditinos clunicences penetram na Península e começaram a fazer o que queriam com a liturgia tradicional dos devotos e, na medida da sua influência, também com as decisões políticas dos seus governantes. Reinava em Castela e Leão Afonso VI, casado com Constança de Borgonha, a terra onde nasceu a reforma de Cluny, em cujo cenóbio se gerou aquela primeira ideia sinárquica de um Ocidente europeu fortemente regido pelos princípios teocráticos emanados de Roma, a cuja autoridade teria de se submeter toda a Cristandade, não só no aspecto religioso mas inclusivamente nas decisões fundamentais da alta política.

Ninguém parece querer atirar a primeira pedra. Todavia, a decisão tomada por Afonso VI de casar duas das suas filhas com condes borgonheses sempre me pareceu arranjo de sacristia, a vinculação concertada nos dois mosteiros, arranjar um elo de ligação que vinculasse definitivamente a terra castelhano-leonesa e, sobretudo, a margem atlântica peninsular a dinastias dedicadas ao ideal teocrático de Cluny. É curioso, em qualquer caso, que Urraca fosse destinada a Raimundo de Borgonha e que a filha bastarda, Teresa, casasse com o seu primo Henrique [eram ambos, por sua vez, sobrinhos de São Hugo, abade de Cluny]. E não é menos curioso que a outra filha, Elvira, contraísse matrimónio com Raimundo de Tolosa, destinado a ser um dos principais dirigentes da Primeira Cruzada. E até é curiosa a coincidência de que o único filho varão do rei Afonso, Sanchuelo, comprometido com a irmã de Al-Motamid de Sevilha, Zaida-Isabel - algo que raiava o cúmulo da frivolidade religiosa -, fosse morrer prematuramente na chamada batalha dos Sete Condes. deixando o destino do reino nas mãos de mulheres casadas com estrangeiros ligados a Cluny.

Prossigamos com as coincidências curiosas. Após os respectivos matrimónios, Urraca e Raimundo foram nomeados condes da Galiza e Teresa e Henrique condes de Portugal. Tanto o bispo português de Braga como o galego de Santiago eram eleitos entre monges clunicences. E muito em particular o bispo Gelmírez, que o foi de Compostela desde 1093 e foi o primeiro arcebispo eleito da terra jacobeia, mostrou sempre a sua repulsa às veleidades políticas de Urraca - sobretudo em virtude do seu segundo casamento com Alfonso, o Batalhador, de Aragão - e sua decidida inclinação por Alfonso Raimúndez, o futuro Afonso VII, o qual coroou rei da Galiza em 1111, vinte e cinco antes de aceder à coroa castelhano-leonesa.






Até 1095, o conde Raimundo de Borgonha, casado com Urraca, tinha sido conde da Galiza e de Portugal. Nesse ano passou a sê-lo só da Galiza, porque o seu primo Henrique contraía matrimónio com Teresa e recebia o condado português. Mas segmentação fez-se sem traumas nem protestos, após o convénio que firmaram os dois primos perante o monge Dalmas Geret, delegado do tio de ambos, Hugo de Cluny, no qual especificava que, no caso de Urraca e Raimundo se converterem em soberanos da coroa castelhana, Henrique e Teresa seriam donos, jure hereditario (ou seja, para eles e para a sua descendência), de Portugal, ainda que sob a soberania, já só nominal, dos monarcas castelhanos. Como vemos, algo a que ninguém poderia fazer o menor reparo.

Em três anos morriam Raimundo de Borgonha (1107), o infante Sancho, filho de Afonso VI e de Zaida (batalha de Uclés, 1108) e o próprio soberano (1109); cinco anos depois seria a vez do conde Henrique de Portugal, que tinha alargado consideravelmente o seu território à custa de numerosas conquistas aos muçulmanos. Era um momento de máxima tensão entre todas as forças políticas que pretendiam dominar o reino castelhano-leonês, mas o que parecia indubitável era que, apesar das dissensões e do estado de guerra civil aberta, nenhum dos elementos do conflito parecia disposto a ceder os direitos sobre Portugal, e muito menos Cluny, que tinha habilmente firmado a sua influência atlântica peninsular. Teresa, contudo, embora viúva, ignorou os deveres e os pactos contraídos e mal o marido morreu fez-se clamar rainha e, aparentemente - ainda que os historiadores não estejam de acordo quanto à data - chamava para  seu lado os Templários, mesmo antes de a ordem ser oficialmente reconhecida em Troyes, em 1126.

O Templo, como obra inspirada que foi na doutrina cisterciense, constituía um colectivo monástico-guerreiro visto com maus olhos por Cluny. Por seu lado, um condado português independente, susceptível de se converter em reino, era uma possibilidade política não admitida pelo todo-poderoso arcebispo compostelano Gelmírez, que já tinha provocado a ira dos súbditos do conde Henrique quando, em 1102, entrara à força no seu território para levar de Braga a Compostela as relíquias do monge San Frutuoso, uma acção que foi chamada pelos portugueses «o pio latrocínio». Não é estranho, nestas circunstâncias, que a rainha Teresa visse no Templo uma confirmação dos seus desejos e uma defesa tácita das suas intenções e, na Cister de Bernardo de Claraval, a tendência monástica que melhor se quadrava com os seus interesses. Calcula-se como muito provável a data de 1126 como a da entrada dos primeiros Templários em Portugal, e tem-se quase por seguro que naquele mesmo ano receberam em custódia a fortaleza de Soure e o lugar de Fonte Arcada. O primeiro mestre da ordem de Portugal foi Guillelme (talvez Guillaume) Ricard.

Ainda que não pudessem servir como força capaz de lutar contra cristãos, o Templo significava, no nascente Estado português, a tranquilidade de não ter de atender a duas frentes de batalha, a dos castelhanos e a do Islão. Por seu lado, os Templários viam, sem dúvida, a importância de se estabelecerem solidamente num país nascido do nada, com uma dinastia jovem e com vontade nacionalista, sobre a qual poderiam exercer uma influência mais eficaz do que em Castela e, sobretudo, poderiam conservar uma exclusividade que entre os castelhano-leoneses se afigurava muito mais difícil. O tempo dar-lhes-ia razão. Portugal chegaria a admitir, como esmola, a presença das ordens militares espanholas, sobretudo as de Santiago e Alcántara, nascidas na vizinha Extremadura, mas o Templo conservaria sempre a sua primazia em Portugal. O que essa primazia poderia significar para o projecto  templário vê-lo-emos mais adiante. Agora basta verificarmos com evidência os rapidíssimos avanços da influência templária, tanto com D. Teresa como, a partir de 1128, com o seu filho e herdeiro, Afonso Henriques, o qual, segundo confirma a Compostelana, «não se quis submeter à dominação do rei (Afonso VII), mas ergueu-se arrogante, logo que obteve o senhorio».

Os Templários tiveram de esperar até ao ano de 1137 para entrarem em acção. Antes, seguramente, limitaram-se ao seu papel oficial de guardiães da fronteira. Mas naquele ano assinou-se o tratado de Tui, pelo qual Afonso VII reconhecia a soberania do seu primo sobre todo o território português. Chegara o momento de empreender a recuperação da cornija atlântica. E ali estavam os Templários, dispostos a colaborar e, aparentemente, ali estava também em pessoa Bernardo de Claraval, recém-saído do conflito do antipapa Anacleto e glorioso profeta que anunciou a tomada de Santarém. Nos nove anos seguintes a ofensiva foi imparável, como se houvesse pressa em conquistar territórios antes que a máquina almóada se pusesse em marcha. Em 1146 tinha sido reconquistada a praça e com Santarém, Leiria e todo o território circundante entre os rios Mondengo e Tejo. Em 1149, com a colaboração de cruzados (Templários?) ingleses, conquistava-se Lisboa e em toda a área de conquista o Templo acumulava igrejas, conventos e castelos. Um Templário português, Gualdim Pais, distinguia-se como herói indiscutível daquelas acções guerreiras e, mal alcançada a vitória, partia para a Terra Santa, para receber a iniciação reservada às mais altas hierarquias da ordem.

Cerco de Lisboa, por Roque Gameiro


(...) Sem dúvida, o historiador gostaria de encontrar sempre a documentação suficiente que lhe permitisse abordar o estudo de um tema com todos os dados necessários, sem lacunas nem dúvidas e sem ter de recorrer a hipóteses carentes de apoio documental ou às eventuais tergiversações promovidas pelos cronistas que contaram os sucessos a partir de perspectivas cronológicas mais próximas, sujeitos, por isso, a pressões do mais diverso tipo, que os obrigavam a tomar partidos que hoje consideraríamos obsoletos. Infelizmente, continua a haver episódios da História que nunca conseguiram reunir a devida documentação, fosse porque tivessem passado despercebidos ou porque houvesse a concorrência de interesses para os ignorar ou para os julgar segundo critérios próprios. Assim aconteceu em Espanha com a Ordem dos Templários, cuja primeira penetração parece ter-se sumido em silêncios e contradições, permitindo com isso o aparecimento de hipóteses por vezes descabidas que, num momento ou noutro, chegaram a figurar como certezas em determinados ambientes: hipóteses que, por sua vez, configuraram atitudes, opiniões e tendências que só conduziram a confusões dificilmente superáveis, chegado o momento de estabelecer certezas impossíveis de fundar em dados objectivos.


Chauvinismo penibético

Vou contar uma mentira histórica na qual, de modo algum, pretendo que alguém acredite. Apenas quero que sirva para comprovar como atitudes que costumamos reprovar aos historiadores de outras terras nos podem também afectar. Mas também queria que tal mentira nos desse, se possível, a medida da importância que a Ordem do Templo teve nestas terras, até ao ponto de, num determinado momento, haver quem não se tivesse coibido de tergiversar a evidência histórica para estruturar uma aventura que, presumivelmente, caso se acreditasse nela, teria posto a Espanha, mais concretamente a Catalunha, como berço histórico - e, é de supor, ideológico - do processo templário.

A história chegou-me às mãos, por casualidade, através de uma pequena e quase desconhecida obra dos Templários, publicada em Burgos por uma editora já desaparecida e escrita por um autor com o qual, na altura, tentei inutilmente estabelecer contacto (1). Esse autor, investigando os manuscritos da Biblioteca Nacional, encontrou um do século XVII (2), no qual um tal D. Esteban Corbera descrevia ao conde de Guimerá a história e os pormenores que rodeiam o Lignum Crucis que se conserva na igreja de San Estéban de Bagá, nas beiras pirenaicas catalãs. Falei deste manuscrito e de quanto nele se referia a uma suposta história sobre as origens da Ordem do Templo, apresentando todos os dados e fontes de que me socorrera. Depois de a ter dado a conhecer, confirmei que outros a traziam também à luz como se tivessem acabado de a descobrir e nem sequer referiam o primeiro que a tinha revelado, à margem da confiança que esse autor pudesse merecer. Terei agora de a repetir, voltando uma vez mais a insistir na maneira como me chegou às mãos.

Apesar de não vir citado nem nos Anales de Zurita nem na obra de Fernández de Navarrete (3), o manuscrito em questão, fazendo-se, aparentemente, eco de uma tradição espalhada pela comarca de Bagá, conta que à Primeira Cruzada, e atendendo à chamada de Urbano II, acorreram os irmãos Hugo e Galcerán de Pinós, filhos do almirante da Catalunha e senhor de Bagá, e da sua esposa, Berenguela de Montcada, pondo-se às ordens do já citado Ramón IV de Tolosa e fazendo parte da campanha catalã comandada pelos condes de Rossilhão e da Sardenha. Na tomada de Jerusalém (1099), os irmãos Pinós lutaram e entraram na cidade pela porta chamada de S. Estevão e, posteriormente, o irmão mais velho, Hugo, uniu-se a outros cavaleiros cruzados para fundar uma confraria dedicada de corpo e alma à protecção dos peregrinos, à qual o rei Balduíno concedeu como sede uns edifícios situados nas dependências do antigo Templo de Salomão, pelo que os confrades passaram a chamar-se Templários, enquanto o seu fundador, convertindo em cabeça da ordem nascente, mudava o seu apelido para o do nome do seu povo originário, passando a chamar-se Hugo de Bagá, latinizado como Hugo de Baganis, ou Paganis, que os franceses rebaptizaram como Hugo de Payons ou Payns. Seria ele a enviar o seu irmão de volta à terra natal, portador do Lignum Crucis e com o encargo específico de fundar a igreja de San Estéban, que haveria de albergar a relíquia, e começar o recrutamento de cavaleiros para a ordem que tinha fundado na Terra Santa.

A história completa-se com um milagre já quase tradicional na hagiografia peninsular, segundo o qual D. Galcerán de Pinós teria caído em mãos dos sarracenos quando interveio na primeira conquista de Almería, uma minicruzada hispânica promovida pelo conde Ramón Berenguer IV de Barcelona, que teve lugar em 1145. Diz a lenda que o mouro pedia como resgaste do cavaleiro catalão nada menos do que cem vacas bragadas, cem cavalos brancos, cem peças de pano de ouro e cem donzelas; um preço difícil de pagar, uma quantidade quase impossível de reunir. Porém, enquanto os seus vassalos tentavam consegui-lo a todo o custo, ainda que condenando ao sacrifício os seus bens e as suas mulheres, D. Galcerán encomendou-se ao protomártir, por cuja porta tinha entrado anos antes em Jerusalém, e Deus dignou-se aceder às suas súplicas, depositando-o são e salvo no porto de Salou, exactamente quando o seu pai se dispunha a embarcar o dispendioso resgate solicitado pelo infiel.






É necessário reconhecer, contudo, pondo de parte os chauvinismos, que a trama da história concorda com toda uma série de pistas tradicionais que se podem encontrar ainda na Península, sob a forma de ritos ou de festejos, em lugares nos quais, significativamente, dominou o Templo. Recordemos que o culto ao Lignum Crucis contido no relicário em forma de cruz patriarcal, cuja origem remonta a Santa Helena, mãe do imperador Constantino, aparece não só em Bagá mas também em lugares como Ponferrada, Segóvia e Caravaca, todos eles com importantes recordações dos Templários que os possuíram. Por seu lado, o episódio do resgate tem um paralelismo com o mito do Tributo das Cem Donzelas, uma transformação cristianizada de ritos de fecundidade que se praticaram na Península muito antes de se implantar o Cristianismo e que subsistiram precisamente em lugares como Tomar e San Pedro Manrique, nos quais houve igualmente importantes possessões templárias.

Se não há documento, à parte este tão tardio, do século XVII, que possa confirmar a estranha história de um fundador do Templo de origem catalã - e, pelo contrário, muitos que testemunham a existência real do borgonhês Hugues de Payns -, existem e foram devidamente consignados pelos medievalistas (4) os que nos mostram de modo iniludível que a família Pinós esteve relacionada com a ordem quase desde o seu início, tanto através de constantes doações (5) como por actos como o legado do Templo de armadura e corcel (1179) que denotam que, pelo menos, alguns dos membros da família foram donatários dos Templários ou membros activos da ordem. O longo período de tempo desta relação (1154-1279) demonstra, no mínimo, que os Templários e a família Pinós mantiveram uma longa amizade, sem dúvida alguma estranha por ser tão prolongada, até ao ponto de não parecer absurdo pensar numa relação que proviria talvez dos próprios inícios da ordem na Palestina.

Ainda sem conceder a quanto vou atribuir mais valor do que o de uma hipótese, sobre a qual haveria que trabalhar em profundidade, creio que esta história de D. Hugo de Pinós ou de Bagá vem a ser como uma corroboração local e sem fundamento de algo que apontei ao princípio e que teremos ocasião de analisar mais adiante: ainda que criado por uma maioria de franceses, no Templo houve, seguramente, frades espanhóis desde os primeiros alvores da ordem. E, se bem que seja certo que os seus nomes permaneceram desconhecidos, talvez por obra e graça do sempiterno «puxar a brasa à sua sardinha» habitual em boa parte dos investigadores gauleses, não deixa de ser curioso que fosse Espanha o primeiro país onde se começou a falar dos Templários - como sucedeu com os da Militia Christi de Monreal, dos quais falei no capítulo anterior -, o condado de Barcelona o primeiro em que um governante morre membro da ordem (Ramón Berenguer III) e um nome espanhol, o templário Gondemar (6), o primeiro estrangeiro não francês que surge no contexto originário dos primeiros membros do Templo de Salomão.


[...] Gualdim Pais, a personalidade do Templo português

Conta Herculano, pai da historiografia portuguesa, que na campanha que terminou com a conquista de Santarém (1147) o rei D. Afonso Henriques ia acompanhado por 250 cavaleiros e «muitos Templários», o que parece significar que o número de frades foi pelo menos tão elevado como o de nobres que intervieram naquela primeira grande acção guerreira do Estado nascente. Fossem mais ou fossem menos, os números importam bastante menos do que o facto de se confirmar que a ordem estava solidamente fixada em Portugal e que, no início da sua particular reconquista, constituía já uma força militar de importância, capaz de se medir com vantagem com as forças almorávidas do rei de Badajoz.

No mesmo ano, antes de se lançar ao assalto de Lisboa, o soberano endossava uma escritura de doação à ordem do Templo, em que afirmava cumprir o voto de «dar aos cavaleiros e demais religiosos do Templo de Salomão que residem em Jerusalém em defesa do Santo Sepulcro todo o direito eclesiástico sobre Santarém» (7). Esta cessão supunha, para os Templários, passarem a ser proprietários de facto de um território extensíssimo que, ainda que compartilhado com Cister - que receberia, por sua vez, o lugar onde se edificaria o mosteiro de Alcobaça - representava a maior parte do território a norte do Tejo em terras portuguesas.

Neste momento, era mestre dos Templários portugueses o segundo deles, Hugo Martins, e um dos frades que mais se destacaram na campanha chamava-se Gualdim Pais, nascido cerca de 1118-1119 e armado cavaleiro pelo próprio rei depois da batalha de Ourique, quando apenas tinha vinte ou vinte e um anos de idade. Agora, mal terminada a ofensiva que resultou na tomada de Santarém, foi chamado pela Ordem para que se incorporasse na casa-mãe de Jerusalém, onde permaneceu mais de seis anos ao lado dos grão-mestres Robert de Craon e Evérard de Barres. Não era seguramente o primeiro Templário português que se unia ao poder central da ordem - há suspeitas fundadas de que um dos nove primeiros cavaleiros que constituíram o grupo fundacional, o assim chamado pelos franceses Arnaud de Roche, podia ser um Rocha e proceder da terra que se transformaria em breve no reino de Portugal. Em qualquer caso, a permanência de um Templário na Terra Santa supunha o acesso às mais profundas intimidades da Ordem e, sem dúvida, o suporte que lhe permitiria alcançar os postos de maior responsabilidade dentro da estrutura hierárquica templária.

Castelo de Almourol


Da estada de Gualdim Pais na Terra Santa apenas podemos supor que teria intervindo nas acções guerreiras nas quais os Templários tiveram um protagonismo destacado. Assim, podemos também supor que estaria junto do mestre Barres, seguramente um dos valores espirituais mais firmes do primeiro período da ordem (8). E, com toda a probabilidade, encontrar-se-ia no cerco de Gaza e na tomada de Ascalón, onde Bernardo de Tremelay, o quarto grão-mestre, encontrou a morte. É até quase seguro que, antes do seu regresso a Portugal, conheceu de perto André de Montbart, o tio de São Bernardo, e que colaborara na redacção dos estatutos da ordem que seriam publicados durante o mestrado de Bernard de Balanquefort. Se tivesse sido realmente assim, o que não é absurdo, verificaríamos que a estada do templário Gualdim Pais em Jerusalém coincidiu com um dos momentos mais intensos da Ordem, aquele em que se estruturou definitivamente o ideário do Templo e definiu os seus esquemas como poder multinacional capaz de começar a influir activamente nos projectos políticos da Europa do seu tempo.

Facto certo é que a presença de Gualdim Pais em Portugal volta a ser detectada cerca de 1155, em coincidência com a carta de protecção ao Templo dispensada pelo rei Afonso. Aparentemente, Gualdim trazia da Palestina uma preciosa relíquia, altamente simbólica como a maior parte das relíquias de origem tradicional: uma mão de São Gregório Nacianceno, guardada num rico estojo de prata. Neste caso, como em tantos outros, cabe pensar num especial valor posto na recordação deste santo padre da Igreja, não só filho de um bispo ligado à heresia dos ipsistários (9), mas também companheiro dos cenobitas Basílio e Gregório na sua campanha espiritual pelo estabelecimento do monaquismo oriental, de que tantos outros ensinamentos e chaves do conhecimento extraíram tanto os Templários como as então chamadas igrejas separadas.

A partir do regresso de Gualdim Pais a Portugal, começaram a acelerar-se acontecimentos fundamentais do recém-nascido reino. A disputa pelos direitos eclesiásticos sobre Santarém, iniciada pelo bispo inglês de Lisboa, D. Gilberto, durante a estada de Gualdim na Terra Santa, começava a acalmar-se; e após a morte do terceiro mestre português, Pedro Arnaldo, na conquista de Alcácer do Sal resolveu-se, mal Gualdim Pais foi eleito quarto mestre. O arranjo, politicamente muito inteligente, implicou a cessão das igrejas de Santarém, com todos os seus dízimos, à mitra lisboeta; mas, por outro lado, o rei confirmava os Templários como donos praticamente absolutos dos territórios da vertente norte do Tejo e da margem do rio Zézere: Pombal, Tomar, Ces, Almourol, Idanha, Monsanto, onde começariam a repovoar os campos desertos, convertendo imediatamente aquelas regiões ermas num lugar de Nullius Diocesis - diocese de ninguém - nas quais a única autoridade religiosa reconhecida seria o Sumo Pontífice, a quem os Templários ofereceram o bispado honorário na pessoa, primeiro de Adriano IV e depois na de Alexandre III (1159-1181); ambos os pontífices as aceitaram como tal e assim as confirmaram e reafirmaram como propriedade exclusiva do Templo, contra quem nada nem ninguém tinha o direito de intervir.

Não restam dúvidas de que aqueles territórios sobre os quais os templários tinham adquirido direitos tão firmes eram estrategicamente muito importantes. De facto, cortavam toda a possibilidade de futuras surpresas invasoras, porque por eles passavam absolutamente todas as vias e vaus que permitiam penetrar no território português a partir do Sul. Mas, além disso, tratava-se do espaço sagrado tradicional mais importante do país, carregado de memórias e de vivências ancestrais que o convertiam, ou podiam converter, no Axis Mundi a partir do qual se poderia concretizar o projecto firme de acção messiânica.

Tentarei explicá-lo.


A pista ocidental

A margem atlântica europeia, e fundamentalmente os seus confins mais ocidentais, aqueles qque mais se adentram no mar desconhecido - Cornualha, Normandia, Irlanda, Galiza e Portugal - gozaram sempre de um particular prestígio mágico, baseado em tradições relacionadas com o fim do mundo e com os valores míticos do conhecimento. Sei perfeitamente que a historiografia mais académica sempre se preocupou muito pouco com a improvável realidade encerrada nestas crenças, muitas vezes assumidas exageradamente pelos estudiosos do esoterismo e dos saberes tradicionais. Contudo, ninguém seria capaz de negar que os povos e as ideologias se moveram muito frequentemente empurrados pelas crenças ancestrais, firmemente enquistadas na consciência colectiva e dispostas a emergir à menor oportunidade que se lhes dê.

Neste sentido, o extremo ocidente, como final de um mundo e porta para outro, desconhecido, foi uma constante nos esquemas mentais do mundo antigo e medieval, desde o Caminho dos Mortos traçado pelos sacerdotes egípcios até ao Amenti, às inumeráveis migrações e invasões que se produziram ao longo da História, seguidoras quase sem excepção da rota este-oeste. O Ocidente e o seu Mais Além foi o núcleo protagonista da lenda tradicional atlante no Crítias platónico e, curiosamente, em muitos períodos-chave do passado dá-se o caso de as estruturas criadoras da cultura chegarem também do Ocidente, pela mão de povos que percorreram o caminho até aos Finis Terrae e voltaram, presumivelmente imbuídos dos conhecimentos que ali receberam. Assim, o caminho para ocidente foi como uma vontade ancestral que teve a sua expressão mais definitiva no Caminho de Santiago, que unia nas suas motivações a soma das vontades que moveram os homens e os povos desde a origem até à beira do desconhecido, até esse ponto indefinido onde, tradicionalmente, se unia o fim com o princípio, a morte com a vida, a ignorância com o saber.

Cabo Carvoeiro

















De certo modo, a posse daquele território português, que praticamente ia do cabo Carvoeiro até ao rio Zêzere, supunha a propriedade do principal conjunto de tradições e crenças ancestrais do território, um lugar onde, em muito maior medida do que em qualquer outro, sobrevivia a memória mítica de um passado remoto transformado em lenda ou em evidência mais próxima da fé e da fantasia do que a realidade imediata e quotidiana.

Sobre esta vivência, que sem dúvida propiciou que aquela zona inóspita se repovoasse rapidamente com cristãos procedentes do Norte e com muçulmanos que preferiam ficar ali em vez de emigrar para o Sul, havia, sem dúvida, outras razões susceptíveis de despertar o interesse do Templo: a posse de portos estratégicos que poderiam servir de escala para uma frota templária que muito rapidamente haveria de se converter na mais importante da Europa do seu tempo, fazendo franca competição com as esquadras de Pisa e de Génova, que repartiam oficialmente o domínio comercial marítimo do Mediterrâneo. O Templo, tal como possuiu de facto - e não de direito - o porto de La Rochelle, tal como preparou cuidadosamente um embarcadouro próprio em Burgo, muito perto da Corunha, controlou a costa portuguesa entre a Nazaré (muito perto de Alcobaça) e Peniche, junto a Óbidos, uma cidade que então se encontrava muito mais perto do mar do que hoje em dia. Naquele vasto trecho de costa existiam pelo menos quatro pontos-chave para construir ou dispor portos próprios, que poderiam ser guardados a partir da rede de fortalezas que bordejavam o Tejo e rodeavam aqueles apreciados enclaves.

O centro daquele denso núcleo de poder haveria de constituir-se no castelo de Tomar, cuja construção se iniciou sob o mestrado de Gualdim Pais, em 1160. Os Templários da sua guarnição que constituíam de facto o conselho de governação da ordem no reino, instalaram-se ali imediatamente, antes inclusivamente de se lançarem as fundações da fortaleza. Com o tempo, aquele lugar transformar-se-ia em panteão da ordem, onde seriam enterrados todos os mestres, enquanto os cavaleiros teriam o seu cemitério ao lado do horto da ordem, que ficaria conhecido até agora como o Horto do Rei.

Ao longo do tempo que decorreu antes de a fortaleza ser terminada, o mestre Pais, dono e senhor indiscutido do território, concedeu até três foros distintos à povoação. Nestes, a Ordem chama-se a si mesma o senhor e o primeiro deles tem início com uma declaração singular: «Eu, mestre Gualdim Pais, com os meus frades, a vós, que de Tomar sois moradores grandes e pequenos, de qualquer classe que fordes, e a vossos filhos e a vossas gerações, nos corresponde a nós, frades do Templo, integrados na fé de Salomão, fazer-vos uma carta de afirmação do direito sobre as vossas herdades».

No terceiro foro, promulgado em 1774, (10) o Templo manifesta-se já como uma autêntica força feudal sem paliativos, que obriga os habitantes da sua terra a abonar impostos que chegavam à quarta parte sobre os bens e colheitas de pessoas que se tinham arriscado a sobreviver numa das comarcas menos favorecidas do reino. O abuso, aparentemente constante, devia-se, segundo os Templários, a que a população daquelas terras nunca antes se vira atingida por imposto algum. Os camponeses tentaram mais de uma vez o protesto, mas a prepotência templária e a sua influência sobre os monarcas portugueses conseguiu que todos os pleitos fossem ganhos pela Ordem. Esse protesto prolongou-se até à extinção da milícia no concílio de Viena, em 1312. Nos sete anos que passaram entre o desaparecimento do Templo e a sua substituição pela Ordem de Cristo, os cidadãos de Tomar conseguiram fazer desaparecer do foro as seis linhas que marcavam a sua indiscriminada dependência dos frades, que tinham actuado, pelo menos neste caso conhecido, com muito maior dureza e com uma cobiça digna dos mais absolutos princípios emanados do feudalismo (11).


Portugal templário

Gualdim Pais, o quarto mestre, morreu a 13 de Outubro de 1195 e foi o primeiro a receber a sepultura em Santa Maria do Olival, depois de ter resistido a um duro assédio dos almóadas, cinco anos antes. A sua lápide sepulcral ainda se conserva, na segunda capela existente após a porta de entrada do templo e junto às dos outros mestres da ordem até à sua extinção. Por estas e pelas notícias que deu no século XVIII o cronista da Ordem de Cristo Frei Bernardo da Costa, que se propôs escrever uma crónica da sua ordem e que só conseguiu redigir o seu primeiro volume, dedicado precisamente ao Templo, temos uma ideia bastante clara do que foi o processo templário português. Um processo que, resumido ao máximo, nos dá a ideia do poder que o Templo teve na História do jovem reino.

A Gualdim Pais sucedeu, em 1195, o quinto mestre, frei Lopo Fernandes, que, apesar dos preceitos da Ordem, que proibiam os frades de intervirem nas lutas entre cristãos, morreu em 1199 no cerco de Ciudad Rodrigo, lutando contra o rei de Leão, Afonso IX.




O sexto mestre foi frei Fernando Dias, que teve como inimigos os elementos. Primeiro uma grande fome que se espalhou por Portugal, em 1202. Depois, em 1206, uma peste que assolou Tomar e a sua comarca e também levou o mestre.

O sétimo mestre, frei Gomes Ramires, foi-o dos Templários portugueses, leoneses e castelhanos a partir de 1210. Naquele tempo, o comendador de Tomar foi reposteiro do rei Sancho I e seu grande amigo. E os bens da coroa, ou pelo menos uma boa parte do tesouro do reino, cerca de 20 000 maravedis, encontravam-se em custódia no castelo de Tomar. O mestre, sendo-o dos Templários castelhano-leoneses, interveio directamente na batalha das Navas de Tolosa (1212) e morreu lutando contra os almóadas, oito dias depois desta batalha, no assalto a Úbeda.

O oitavo mestre, Pedro de Alvito, também dos três reinos, recebeu para o Templo a possessão de Castelo Branco, a que deu foro, e confirmou de Inocêncio III, em 1216, a sujeição dos domínios portugueses do Templo à Santa Sé. Reuniu os Templários dos três reinos e outros Templários europeus para a conquista de Alcácer do Sal (1217) e foi conselheiro privado e grande valido do rei D. Sancho I, tal como o seu sucessor, o nono mestre, Pedro Anes, que o foi entre 1223 e 1224.

Também mestre dos três reinos foi o décimo, Martim Sanches, que exerceu o seu cargo até à renúncia, em 1229. Sucedeu-lhe frei Esteban de Belmonte (1229-1237), que se converteu também em valido de Afonso II depois das acções guerreiras que levou a cabo, conquistando as praças de Jeromenha, Aljustrel, Serpa e Arronches. Sucedeu-lhe Pero Nunes, o décimo segundo, que faleceu em 1239, e, a este, frei Guilherme Fulcon (possivelmente francês, décimo terceiro mestre) que governou nos três reinos e faleceu em 1242.

O mestre mais jovem do Templo castelhano-português foi o que figura como décimo quarto, Martim Martins, que assumiu o cargo com apenas vinte e cinco anos e estava ligado familiarmente à nobreza mais antiga do reino português. Irmanado com Sancho II, conseguiu unir as suas forças à dos cavaleiros de Santiago, que até então apenas tinham intervindo esporadicamente em Portugal, e com eles lançou-se à reconquista do Algarve (12). Durante o seu mestrado, o rei português Sancho II teve de se exilar em Toledo (1247). No mesmo ano, o mestre renunciou ao cargo, passando ao serviço de Fernando III e morrendo na conquista de Sevilha (1248). Era já mestre do Templo castelhano-português Gomes Ramires, que entrou com as suas forças na cidade e conseguiu do monarca a doação da alcaidaria de Rastiñana.

O mestre Gomes Ramires morreu como décimo quinto mestre português em 1251, partidário do rei Afonso III.

Paio Gomes continuou a ser mestre dos três reinos e, ainda, que tivesse fixado residência em Zamora - o que já sucedia há muito tempo, embora seja difícil determinar a data - convocou o capítulo de Templários em Tomar (1251) no mesmo ano em que morria na Sicília o imperador Frederico II Staufen, uma personagem que não podemos esquecer e que reaparecerá nos próximos capítulos. O mestre Paio Gomes esteve sempre muito perto do rei Afonso III, não só nas suas acções bélicas mas também como conselheiro. Contudo, fazendo - desta vez sim - honra à tradição templária, renunciou ao seu cargo quando se lhe deparou à obrigação de levar os seus Templários portugueses à luta contra Castela.

O seu sucessor, o décimo sétimo mestre Martín Nunes, foi intermediário, com os seus Templários, para dirimir a questão da partilha entre os dois reinos da comarca do Algarve. O papa Urbano IV dirigiu-lhe pessoalmente a bula Gloriosus Deus in Sanctis suis, pela qual se concediam indulgências aos membros da irmandade de Santa Maria do Olival, fundada a instâncias do Templo. Durante o seu mestrado tinha terminado, graças à sua intermediação, a conquista portuguesa. Por isso se incorporou com os seus Templários castelhanos e lutou ao lado de Afonso X de Castela nas suas campanhas andaluzas. Em 1265 regressou a Portugal para morrer (in «A Herança dos Templários. A história oculta do Templo na Idade Média Peninsular», Editorial Estampa, 2005, pp. 86-90; 61-66; 108-119).






Notas:

(1) JOSÉ MARIA BERERCIATÚA OLARRA, La Orden de los Templarios. Ediciones Aldecoa, Burgos, 1957.

(2) Declaração da inscrição grega da cruz da igreja de San Esteban de Bagá, cabeça das baronias de Pinós, guia da armada que tomou a Terra Santa, ano de 1110, D. Hugo de Bagá, primeiro mestre do Templo. Sign. ms. 7.377, pp. 81-91 v.

(3) MARTÍN FERNÁNDEZ DE NAVARRETE, Españoles en las Cruzadas, op. cit. 

(4) J. MIRET I SANS, Les cases de templers i hospitalers à Catalunya. Impr. da Casa Provincial de la Caritat, Barcelona, 1910.

(5) A família cedeu ao Templo uma casa em Lérida, enquanto se reparava o castelo de Gardeny.

(6) Dado transmitido, sem indicar fontes, por RAFAEL ALARCÓN HERRERA, La outra España del Temple. Martínez Roca, Barcelona, 1988, p. 40.

(7) Citação de ANTÓNIO RIBEIRO em AMORIM ROSA, História de Tomar. Gabinete de Estudos Tomarenses, 1965.

(8) Evérard de Barres demitiu-se do seu cargo em 1149 e retirou-se para Citeaux, onde morreu com aura de santidade em 1173. Veja-se a minha lista de mestres em La Mística Solar de los Templarios. Martínez Roca, Barcelona, 1983.

(9) Esta heresia destacava-se pelo seu sincretismo com o mundo judeu e pagão. Chamava a Deus Ipsistos, o Altíssimo, como a Júpiter.

(10) Os documentos conservam-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cujo maço n.º 71 reúne os papéis correspondentes à Ordem do Templo.

(11) AMORIM ROSA, Op. cit., p. 50.

(12) Nessa altura chamava-se também Algarve à parte da comarca que se estende à margem esquerda do Guadiana, território oficialmente castelhano-leonês.






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