quarta-feira, 26 de março de 2014

"A liberdade é o próprio espírito"

Entrevista a José Marinho





«(...) Homem algum vive, escreve o pensador [Leonardo Coimbra], sem uma relação com o absoluto. Nuns, essa relação é mais profunda, levou-os a pesquisar sem fadiga e a repousar apenas na certeza do absoluto verdadeiro. Noutros, essa relação emerge, por momentos, da própria tranquilidade e aparente segurança de suas vidas automáticas e monótonas.

"O homem comum vive numa concha, formada dos seus hábitos, depósito dum secular arranjo social. Não se interroga, não pressente que, em torno dessa concha, marulha um infinito Oceano, removido de infinitas actividades e formas. No entanto, ele mesmo acredita na absoluta solidez da sua concha, ele mesmo tem um direito e um dever. E quem deve, crê na singular excelência do seu dever.

Por maior que seja o círculo do cepticismo, alguns pontos sólidos, alguns núcleos de realidade se encontram, de onde em onde, inexpugnáveis e serenos, sob o embate vertiginoso da dúvida...».

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).




"A liberdade é o próprio espírito"


No dia 30 do mês passado [1958] fomos uma vez mais à Faculdade de Direito, cuja Associação Académica, conforme já noticiámos aqui, promoveu um ciclo de conferências sobre problemas de filosofia. Não íamos desta vez ouvir um sacerdote, mas um pensador perplexo, como é sempre todo aquele que não radica a sua elaboração intelectual em certezas prévias. O título da palestra era aliciante: "O Conceito de Razão na filosofia portuguesa moderna". Começou o prelector por mostrar toda a importância do tema: a continuidade da problemática da razão num pensamento aparentemente tão intuitivo como é o nosso. Evocando a seguir as circunstâncias em que a urgência do tratamento deste assunto lhe surgiu, referiu os quatro livros  significativos que, pelo próprio título, tomam especial relevo nesta problemática: Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé de Amorim Viana, Razão Experimental de Leonardo Coimbra, Razão e Absoluto de José Bacelar, Razão Animada de Álvaro Ribeiro.

Até aqui entendemos nós. Depois, só no café, entre duas bebidas, pudemos ver mais alguma coisa. Levávamos uns apontamentos que lemos ao Dr. José Marinho. Ouviu atento e amável mas por, fim, exclamou:

- Em que dificuldades me veio colocar, meu amigo! Assim, tenho de fazer outra conferência, porque o pensamento é dom diferente da memória, apreende-se num instante e, noutro instante, dá-se dele pálida semelhança.



José Marinho



Em resumo, pretendi na minha palestra contribuir para suscitar reflexão e ambiente de compreensão para o nosso pensamento moderno. Repare, no meu título e no de que já temos falado. A hermenêutica ou exegese do nosso pensamento anterior ao século XVIII é, por certo, relevante. Dado o segredo, porém, do nosso destino como homens ou das possibilidades da filosofia portuguesa, está em nós e nos nossos próximos mestres ou conviventes. Eis o que é preciso dizer não como quem dita a verdade, mas suscita alheia reflexão e alheio exame.

Como naturalmente recorda, no início e em alguns pontos mais singulares da exposição, fiz voto de equanimidade perante os diversos tratados. Tenho, é claro, orientação própria e afinidades maiores com uns do que com outros. Ali, porém, era um intérprete, no dever de pôr a minha palavra ao comum serviço de pensadores afins ou diferentes de mim próprio, e não só por isso fui levado a mencionar outros pensadores, além dos que você antes indicou, como me apareceu logo impossível tratar o tema sem referir e examinar, embora com brevidade, outros, passados ou contemporâneos, como Antero de Quental, Sampaio Bruno, António Sérgio, Raul Proença, Sant'Anna Dionísio e Delfim Santos.

Referi-me também ao que devemos, sob o aspecto histórico, a Joaquim de Carvalho, quando tive de ocupar-me de Antero de Quental.

- Foi-me difícil, como a outros ouvintes, seguir uma exposição que abrange quase cem anos de vida filosófica, tanto mais que os pensadores de que o sr. dr. acaba de falar não escreveram livros com título referente à razão.

- A sua dificuldade de entender todo o desenvolvimento da palestra está plenamente justificada. Note que não falo por modéstia, mas por ser assim.

- Não, o problema é que é delicadíssimo...

Mas o sr. dr. José Marinho continuou:

Eu encontrava-me na necessidade de tratar o tema das relações entre a razão e a fé, ou a razão e a crença, pois essa relação está no princípio não só da obra singular do deísta Amorim Viana, mas também, como é evidente, em Leonardo Coimbra, e procurei evidenciar nas duas últimas e significativas obras que você já também mencionou, Razão e Absoluto, de José Bacelar e Razão Animada de Álvaro Ribeiro.

Depois de acender outro cigarro, o nosso entrevistado retomou a palavra:

-  Eu teria, segundo creio, conseguido desenvolver o tema com melhor unidade e mais breve elegância, bem como melhor garantia de entendimento dos auditores, se, entretanto, o exame de outros textos me não tivessem imposto duas outras relações capitais: a da inteligência e razão, a de razão e intuição. Mas não podia certamente situar o pensamento de Sérgio ou de Raul Proença, nem o de Bruno e Leonardo Coimbra sem tentar esse acúmulo de determinações que naturalmente me dificultava a marcha.



Sampaio Bruno



- Compreendo. Mas qual a sua ideia? Ou, se não há ideia, qual o seu propósito?

- Perdão, meu caro Sottomayor, como admite você que eu pretendesse dizer algo com propósito de ideias? Decerto, a Ideia (não se esqueça do I maiúsculo) é algo de consideravelmente mais sério, ou para sim ou para não, do que os nossos pensadores eclesiásticos ou científicos supõem. Veja por exemplo como é maravilhosa a descrença quando a ilumina desde as profundidades o transfigurante fulgor da Ideia!

Suspendendo-se um momento e com um brilho no olhar, o nosso entrevistado disse:

- A tão generosa e fiel notícia da minha intervenção no final da palestra do Pe. Dr. João Ferreira foi omissa num ponto. Eu disse efectivamente, e a minha palestra posterior procurou confirmá-lo, que a descrença não é pecado a negar em nome de uma crença estabilizada. Isso seria, religiosa, teológica e filosoficamente a abominação das abominações.

A descrença dissolve ou rompe os limites da crença que a razão finitizada e o ser encarcerado em longos hábitos e nas leis do mundo ou dos homens perverteram.

Interrompemos neste ponto para objectar:

- Afigura-se-me que à apologética católica não interessa hoje o problema da crença ou da descrença, mas o da fidelidade ou infidelidade à Igreja...

- Que imenso problema, perturbante de enigmas e sumos mistérios você abre aí! Repare que a fé é um vínculo absoluto, e na tradição judaico-cristã os crentes ortodoxos, entre os quais peço não me inclua, podem supor estar na posse de todo o segredo. Mas quem meditou o sentido de crer e descrer sabe estar aí uma via aberta, um processo aberto de relação entre Deus e o homem. Se conhece algum teólogo capaz de esclarecer-me cabalmente neste ponto, fará o favor de me dizer onde está e quem é.

- Não conheço, sr. dr. Concordo em que não é essa a direcção que entre nós tem tomado a apologética.

- Parece que algumas pessoas que me ouviram se não aperceberam de que isto continua uma das ideias de fundo da minha palestra: mostrar que os pensadores portugueses modernos, mais autenticamente filósofos do que os supõem, ou do que às vezes eles próprios se supõem, garantiram sempre a infinitude ou da razão ou da crença, o que tudo significa ter compreendido que o espírito é livre e que a liberdade é o próprio espírito. Para mim, e já não espero sair disto, quem mo ensinou, sendo eu quase menino, foi Leonardo Coimbra: "o cristianismo é a religião da liberdade".
Jesus Cristo e os Apóstolos


- Tenho pena de que o sr. dr. não possa dizer-me especificamente para cada pensador português moderno a qualidade ou o significado do seu contributo.

O nosso entrevistado respondeu:

- Bem vê, seria tão longo... Foi para mim surpreendente a leitura dos nossos pensadores modernos a partir do tema enunciado. Se tivermos em conta a adversidade da filosofia especialmente entre nós e a falta de autêntica preparação filosófica dos nossos universitários, hoje sentida em geral como bradando aos céus, eu diria que os nossos modernos filósofos estão quites. Que eles se não entendam uns com os outros, ou o público culto ainda desestime o seu esforço e mérito, isso nada revela senão que são e somos homens. Lembremo-nos também de que, em regiões espirituais de cristianismo aberto e mais sábio, como a Alemanha e a Inglaterra, as relações dos pensadores entre si ou com o ambiente cultural nem sempre são exemplares.

Subitamente caiu o silêncio sobre a nossa mesa. O dr. José Marinho estava já cansado de falar. Não nos era lícito insistir com outras perguntas. O jornalista também já tinha o braço cansado de transcrever para o papel as luminosas declarações de um pensador português que na obscuridade de uma vida modesta está a preparar uma obra que - Deus sabe e Deus permita - venha a ser para a nossa cultura mais um fermento capaz de levedar e satisfazer a nossa sede de verdades divinas.

Neste país que dá aos autores de histórias e aos redactores de História, enfim, aos que escrevem sobre o que os outros pensaram e disseram, uma protecção comparativamente injusta e ofensiva para as outras actividades intelectuais, a Associação Académica da Faculdade de Direito tem que sentir-se muito grata aos filósofos como António Quadros, João Ferreira e José Marinho que tão amavelmente se prestaram a satisfazer a impetuosa curiosidade das novas gerações universitárias (in Flama, ano V, n.º 533, Lisboa, 23 de Maio, 1958, pp. 21-24).





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